Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
601/20.0T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
ERRO NO MEIO PROCESSUAL
DANOS CAUSADOS POR COISAS
DEVER DE A VIGIAR
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 636.º, N.º 1 E 193.º, AMBOS DO CPC E ARTIGO 493.º , N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A ampliação do objeto do recurso da parte contrária só é admissível nos casos em que à parte não é facultada, por falta de legitimidade ad recursum – decorrente da circunstância de ser parte vencedora - a interposição de recurso independente ou subordinado: se a parte não for vencedora, mas vencida, ainda que só parcialmente, a lei não lhe abre a faculdade da ampliação do objeto do recurso, o que se compreende dado que neste caso lhe é lícito interpor recurso autónomo independente ou só subordinado;

II - A correção do erro do apelado sobre o meio processual adequado a levar ao tribunal ad quem a apreciação de parte do seu pedido no qual sucumbiu, não é admissível, se o direito ao recurso autónomo independente tiver sido atingido pela caducidade e a convolação do requerimento de ampliação do objeto do recurso para recurso subordinado importar uma diminuição das garantias processuais do apelante;

III - Aquele que detém uma coisa – por exemplo, uma árvore - com o dever de a vigiar, responde pelos danos que ela causar, excepto se provar que não teve culpa ou que os danos se teriam igualmente produzidos ainda que não houvesse culpa sua.

IV - O vinculado à vigilância, por exemplo, de uma árvore, pode alijar a sua responsabilidade em dois casos: se provar que nenhuma culpa houve da sua parte; se demonstrar que os danos sempre se produziriam, ainda que não houvesse culpa sua, hipótese em que pode prevalecer-se da relevância negativa de causas virtuais;

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

 

1. Relatório.

AA pediu ao Sr. Juiz de Direito do Juízo Local de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., que condenasse BB e CC a pagar-lhe a quantia de € 7 155,18 e juros.

Fundamentou esta pretensão no dano, patrimonial e não patrimonial, que suportou por virtude de, no dia 19 de Outubro de 2019, em ..., ..., um pinheiro seco e podre, por ter sido queimado, que se encontrava no prédio rústico dos réus, sobre o qual estes não mantiveram a vigilância e o cuidado que se lhes impunha, ser ter partido a cerca de meio metro do solo e caído sobre o seu veículo automóvel ligeiro de mercadorias.

Os réus defenderam-se por impugnação, alegando que têm providenciado pelo corte de árvores que se encontram naquela propriedade, tendo dificuldade em encontrar pessoas para realizar tal trabalho, que no dia 19 de Outubro, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 e as 21.00 horas devido á previsão de chuva ou aguaceiros por vezes forte, acompanhadas de trovoadas e rajadas de vento, e um aviso amarelo, para o mesmo Distrito, por causa do vento forte, com rajadas na ordem dos 80k/h, entre as 11 e as 18.00 horas de Sábado, tendo caído, nesse mesmo dia inúmeras árvores por todo o país, pelo que a responsabilidade pelo sucedido é do autor, que incumpriu as recomendações daquele aviso.

A sentença final da causa – proferida no dia 27 de Janeiro de 2022 e notificada ás partes no dia 3 do mês seguinte – julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a pagar ao autor a quantia de € 4 580,18, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, á taxa supletiva civil, até pagamento.

É esta sentença que os réus impugnam no recurso tendo extraído da sua alegação – oferecida no dia 9 de Março de 2022 – decerto no convencimento de que concluir muito é concluir bem, estas conclusões:

I – Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos que decidiu:

A) Condenar os réus a pagar ao autor a quantia de € 4.580,18 (quatro mil, quinhentos e oitenta euros e dezoito cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva civil em vigor, desde a citação até efetivo e integral pagamento

B) Absolver os réus do demais peticionado;

C) Condenar autor e réus no pagamento das custas processuais, na proporção do respectivo decaimento, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

II – Entendem os réus (aqui recorrentes) que o douto Tribunal a quo não andou bem ao decidir como decidiu.

III – A douta sentença recorrida deu como provados, com relevo para a decisão da causa, os factos SEGUINTES:

1. No dia 19/10/2019, cerca das 16h00, o autor dirigiu-se a um pinhal, pertença dos seus sogros, sito em ... – ..., a fim de realizar trabalhos de limpeza e carregamento de lenha.

2. O autor deslocou-se ao aludido pinhal num veículo ligeiro de mercadorias, de caixa aberta, da marca ..., com a matrícula ..-..-IG.

3. O veículo identificado em 2. encontra-se registado a favor do autor.

4. Nas circunstâncias aludidas em 1. o autor estacionou o veículo dentro do aludido pinhal.

5. Passados cerca de 15 a 20 minutos da sua chegada, um pinheiro partiu, a cerca de meio metro do solo, e caiu em cima da viatura identificada em 2.

6. O pinheiro em causa encontrava-se no prédio rústico composto de pinhal e mato, sito nas ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...22.º e não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., que se encontra ao lado do prédio aludido em 1..

7. O titular inscrito do rendimento identificado em 6. é o cabeça de casal da herança de DD da qual são herdeiros os réus.

8. Nas circunstâncias referidas em 1. a 5. o pinheiro encontrava-se seco e podre após ter sido queimado por um incêndio ocorrido naquela zona em 15/10/2017 e após a ocorrência da tempestade Leslie em 2018.

9. Em consequência do referido em 5. o veículo identificado em 2. ficou com o tejadilho/cabine amolgado, e com o para-brisas, vidros, borrachas, forro do teto, antena e chapa partidos e com a pintura riscada.

10. O autor interpelou os réus para assumirem os custos referentes ao aludido em 9., o que estes rejeitaram.

11. O autor enviou aos réus cartas registadas com aviso de receção, datadas de 24/10/2019 e 14/11/2019, comunicando os orçamentos que obteve para reparar os prejuízos referidos em 9..

12. O autor despendeu a quantia de € 3.690,00 com a aquisição de uma cabine e € 890,18 pelo serviço de montagem, mão-de-obra de bate-chapa e colocação de uma antena pilar e cera de tratamento, num total de € 4.580,18.

13. O veículo foi reparado e restituído ao autor cerca de dois meses após o aludido em 5..

14. O autor exerce a profissão de empreiteiro de construção civil, utilizando o veículo identificado em 2. nas respetivas deslocações, para executar o seu trabalho e carregar materiais, ferramentas e utensílios.

15. Durante o tempo que mediou a reparação da viatura, o autor pediu emprestado a alguns familiares e amigos os seus veículos.

16. Em momento anterior ao aludido em 1., os réus tiveram dificuldade em encontrar pessoas disponíveis para realizar o corte de árvores no prédio identificado em 6.

17. Nas circunstâncias de dia e lugar referidas em 1., o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 horas e as 21 horas, com previsão de chuva ou aguaceiros, por vezes fortes, acompanhados de trovoadas e rajadas e entre as 11 horas e 18 horas, com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora.

IV – E deu como não provado que:

(…)

c) No dia referido em 1. (dos factos provados) caíram inúmeras árvores em todo o País.

d) Que o aludido em 5. (dos factos provados) tenha ocorrido em virtude do referido em 17. (dos factos provados).

V – Na alínea C) da douta sentença recorrida, sob a epígrafe “Motivação”, vem fundamentada a decisão do Tribunal a quo sendo referido, a este propósito, que “A convicção do tribunal quanto à factualidade provada e não provada fundamentou-se nas declarações de parte prestadas pelo autor – na opinião dos réus excessivamente valoradas pelo Tribunal (negrito nosso e expressão por nós intercalada) - nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento e na prova documental   junta aos autos, cujo teor e veracidade não foram postos em causa pelas partes, tudo analisado de acordo com as regras do ónus da prova, à luz das regras da experiência comum e segundo o princípio da livre apreciação da prova.”

VI – Relativamente aos factos provados que, para o presente recurso, interessam (negrito nosso) sublinhamos o seguinte:

As testemunhas EE e FF, militares da Guarda Nacional Republicana (GNR) a prestar serviço, à data dos factos, no Posto Territorial da GNR da ... declararam que “…no dia em questão (precise-se, no dia 19/10/2019) fazia algum vento, considerando perigoso andar no local atenta a possibilidade de queda de árvores.” (negrito nosso).

Advogado do Autor, minuto 7,51 do depoimento da testemunha EE:

“Qualquer pessoa que fosse naquele momento àquele local, sabia que não devia estar ali? Ou não era uma situação tão grave?”

Testemunha EE:

“Bem, se me faz essa questão a mim próprio, ao vento que estava, eu não ia arriscar a estar a trabalhar num pinhal assim… (…)

Mas se havia algum perigo, sim. De facto, havia algum perigo. Dado o vento que estava e dada as circunstâncias em que as árvores estavam.”

Mais acrescentando

“(…) É como lhe disse, eu não ia arriscar a estar ali, mesmo estando vento menor do que o que estava, eu não iria arriscar ir para lá…”

Advogado dos Réus, minuto 13,30:

“Da sua experiência e daquilo que verificou, naquele dia em concreto aquele pinheiro terá caído pelo vento ou cairia sempre?”

Testemunha: “Talvez o vento ajudasse…”

Meritíssima Juiz, minuto 8,20 do depoimento da testemunha FF:

“Tendo em conta as condições climatéricas na altura e do que o senhor se recorda, o senhor iria ali par ao meio daquele pinhal, Acha que era seguro, não, o que considera?”

Testemunha FF: “Penso que não… (…) poderia cair algum pinheiro.”

Meritíssima Juiz: “E porquê? Por causa do vento ou da condição do pinheiro?”

Testemunha: “Por causa das duas coisas.”

E a douta sentença recorrida refere que “Estas testemunhas prestaram depoimento isento e objectivo, relatando factos a que assistiram no exercício da sua profissão, merecendo, por isso, credibilidade.”

VII – No que se refere à prova do facto do ponto 16. (negrito nosso) dos factos provados, a douta sentença recorrida sustentou que a prova do mesmo se fundamentou “…no depoimento das testemunhas GG e HH que…disseram que, antes da ocorrência dos factos aqui em causa…tentaram promover o corte das árvores naquele pinhal, sendo que das pessoas que contactaram, as mesmas não se mostraram disponíveis, mais aludindo, esta última testemunha, que procedeu ao corte de árvores noutros terrenos da família”, acrescentando a douta sentença que “Estas testemunhas prestaram depoimento circunstanciado e claro…”.

VIII – No que concerne à prova do facto do ponto 17. (negrito nosso) dos factos provados ela assenta “…na prova documental junta aos autos, mais concretamente de fls. 43 verso a 47 e 60 a 61 – notícias, certificado, avisos e informações meteorológicas a dar conta do estado do tempo para o dia, hora e local em causa nos autos, nos termos dados como provados”.

IX – O douto Tribunal a quo deu como factos não provados (negrito nosso), entre outros, os constantes das alíneas c) e d), a saber:

“c) No dia referido em 1. (19/10/2019) caíram inúmeras árvores em todo o País.

d) Que o aludido em 5. (Passados cerca de 15 a 20 minutos da sua chegada, um pinheiro partiu, a cerca de meio metro do solo, e caiu em cima da viatura identificada em 2.) tenha ocorrido em virtude do referido em 17. (Nas circunstâncias de dia e lugar referidas em 1., o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 horas e as 21 horas, com previsão de chuva ou aguaceiros, por vezes fortes, acompanhados de trovoadas e rajadas e entre as 11 horas e as 18 horas, com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora)”.

X – E o douto Tribunal sustenta a sua fundamentação para considerar os precedentes factos não provados referindo que “…não foi feita, no primeiro caso, qualquer prova nesse sentido e, no segundo caso, prova cabal da ali vertida conexão, sendo que inexiste qualquer elemento nos autos ou depoimento que assevere, de forma sustentada, que a queda do pinheiro se tenha devido às condições climatéricas sentidas naquele dia e hora”.

XI – De facto, no entendimento do douto Tribunal a quo “A prova produzida pelos réus, neste particular, assente, essencialmente, nos depoimentos das testemunhas que referiram o estado do tempo à data e hora dos factos (como ventoso, de chuva “miúda”) foi manifestamente insuficiente para permitir ao Tribunal, com o grau de certeza e segurança exigíveis, considerar tal facto como provado”.

XII – “Com efeito, não houve qualquer alusão à circunstância de as condições climatéricas terem provocado ou auxiliado a queda da árvore que, a par da documentação junta e que permitiu dar como provada a matéria do ponto 17., permitisse concluir que tenha sido esse fator o que desencadeou o incidente”.

XIII- Perante o que vem afirmado pelo douto Tribunal e consta das precedentes conclusões X, XI e XII, seja-nos permitido perguntar:

Face às condições climatéricas existentes, não só na altura do sinistro como durante o dia (chuva intensa e forte e fortes rajadas de vento), não é de admitir, com forte probabilidade e grande grau de certeza, que elas possam ter contribuído para a queda do pinheiro naquele dia e hora, tanto mais atendendo ao estado em que ele se encontrava?

Qualquer pessoa normal, aferida pelos padrões do bonus pater familiae (bom pai de família, homem médio), não hesitará em responder afirmativamente a esta questão.

Porque não o fez, portanto, o douto Tribunal de 1.ª Instância que se deve reger, também, por estes padrões de aferição?

XIV – Neste contexto, entendem os recorrentes que os factos dados como não provados pelo douto Tribunal a quo e constantes das alíneas c) e d) devem ser considerados factos provados pelo Venerando Tribunal Superior e aditados a estes.

XV – Na realidade, não podem restar dúvidas que naquele dia, mês e ano (19/10/2019) o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 horas e as 21 horas, com previsão de chuva e aguaceiros, por vezes fortes, acompanhados de trovoadas e rajadas e entre as 11 horas e as 18 horas, com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora, sendo, portanto, este período o previsivelmente mais gravoso e que coincidiu com o da queda do pinheiro (cerca das 16 horas e 20 minutos, conforme resulta dos factos provados, pontos 1. e 5.).

XVI – Ora, resulta da página de AVISOS do IPMA que compete a este Instituto “…assegurar a Vigilância Meteorológica e emitir Avisos Meteorológicos (negrito nosso) sempre que se prevê ou se observam fenómenos meteorológicos adversos”.

XVII – “Esta página de Avisos tem por objectivo avisar as Autoridades de Proteção Civil e a população em geral (negrito nosso) para a ocorrência de situações meteorológicas de risco, que nas próximas 72 horas (negrito nosso) possam causar danos ou prejuízos a diferentes níveis, dependendo da sua intensidade”, como se pode ler no GUIA DE UTILIZAÇÃO que consta da página de AVISOS do IPMA, obtida em 21/02/2022, pelas 12 horas e 42 minutos, via internet.

Estes “AVISOS são emitidos à escala distrital para diferentes parâmetros meteorológicos, segundo uma tabela de cores, que reflete o grau de intensidade do fenómeno”, pode, ainda, ler-se na mesma página.

XVIII – E, sobre a cor do aviso, menciona a mesma página:

“AMARELO – situação de risco para determinadas atividades dependentes da situação meteorológica. Acompanhar a evolução das condições meteorológicas”.

Acrescenta, também, a citada página que “Os Avisos são emitidos em relação às seguintes situações: vento forte, precipitação forte, queda de neve, trovoada, frio, calor, nevoeiro persistente e agitação marítima”.

Pode, portanto, concluir-se que “o AVISO AMARELO é emitido pelo IPMA sempre que a situação meteorológica representa risco para determinadas atividades”. (negrito nosso).

XIX – Nesta linha de orientação devem ser seguidos vários conselhos, dentre os quais sublinhamos dois de capital importância para a concreta situação, isto é, para o caso sub judice:

“Evite circular na rua…”;

“Esteja atento às zonas ventosas…”. (negrito nosso).

XX – Tudo aponta, portanto, nas situações como aquela em que se verificou a ocorrência, para que a população, em geral, tenha cuidados redobrados face à existência de condições meteorológicas adversas que podem causar danos a pessoas e a bens.

XXI – Ora, com este AVISO AMARELO do IPMA, com o período crítico nele mencionado (…entre as 11 horas e as 18 horas, com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora) que coincidiu com o momento da ocorrência do sinistro (cerca das 16 horas e 20 minutos), é de admitir, à luz da experiência comum e com probabilidade máxima, que o facto de o pinheiro ter partido e caído em cima da viatura do autor se deveu às condições meteorológicas adversas verificadas na altura, e mesmo durante o dia, nomeadamente aos ventos fortes, e para as quais o autor estava avisado e prevenido ou, no mínimo, tinha obrigação de estar.

Sem dúvida que aquele não era o dia para que o autor se deslocasse ao pinhal dos sogros para executar as tarefas que realizou.

E, se não se tivesse deslocado ao pinhal em causa, cumprindo as recomendações da Protecção Civil para o aviso amarelo no caso de vento, conforme foram juntas com a Petição Inicial, mormente, “Evitar a circulação e permanência junto de áreas arborizadas, estando atento para a possibilidade de queda de ramos e árvores, em virtude de vento mais forte”, não teria sido vítima da queda do pinheiro em cima da sua viatura.

É de perguntar, neste contexto, se é razoável sequer admitir-se que um homem médio, atentas as condições meteorológicas adversas que se verificavam, na altura, se ponha a caminho, entre de carro numa zona de pinhais e execute o trabalho que planeou, sem as considerar e ter o cuidado que devia ter?

A resposta tem de ser forçosamente negativa.

XXII – Acresce que não se pode olvidar que o autor exerce a profissão de empreiteiro de construção civil (cfr. ponto 14. dos factos provados) e, como tal e por força da sua profissão, seguramente que diariamente consulta as previsões meteorológicas – ou, no mínimo, está atento a elas – uma vez que as mesmas influenciam e determinam as obras que deve fazer, em cada dia ou período, face às referidas previsões: por exemplo, se chover não fará obras no exterior de um prédio, se estiver vento forte não andará em andaimes ou em cima de telhados, etc.

XXIII – Resulta da experiência comum que há determinados tipos de profissões que diariamente estão particularmente atentos às previsões meteorológicas para poderem orientar a sua actividade: como por exemplo, os pescadores, os agricultores, os construtores e empreiteiros de construção civil, no fundo todas as profissões que têm de providenciar e orientar o exercício da sua actividade em função das condições meteorológicas.

XXIV – Neste contexto, conhecendo, como devia conhecer, as previsões meteorológicas para aquele dia, é de questionar como ousou, de forma imprudente e insensata, dirigir-se “…a um pinhal, pertença dos seus sogros, sito em ... – ..., a fim de realizar trabalhos de limpeza e carregamento de lenha” (ponto 1. dos factos provados) e, ao fazê-lo, ter actuado de forma incauta e inapropriada para o dia e o momento, expondo- se, de forma clara e objectiva, e predispondo-se e criando condições para que a ocorrência do sinistro em causa tivesse lugar.

Sem dúvida que aquele não era o dia para que o autor se deslocasse ao pinhal dos sogros para executar as tarefas que realizou.

E, se não se tivesse deslocado ao pinhal em causa, naquele dia e hora, não teria sido vítima da queda do pinheiro em cima da sua viatura, tornando- se, assim, o único e exclusivo culpado pela ocorrência do sinistro.

XXV – Também, como consta das notícias publicadas e divulgadas no próprio dia da ocorrência do sinistro (19/10/2019), pode verificar-se que, praticamente em todo o País, choveu intensamente, sopraram ventos fortes, houve inundações e caíram árvores.

Neste sentido, atente-se na notícia divulgada na página do jornal PÚBLICO, no dia 19 de Outubro de 2019, pelas 16 horas e 57 minutos (dia da ocorrência do sinistro), no tocante à METEREOLOGIA, que referia expressamente o seguinte:

“Carros submersos, pessoas retidas num shopping, voos desviados. Chuva gera dia agitadíssimo no Norte.

A Protecção Civil registou 307 ocorrências no Distrito ... e 41 em ... devido à queda de chuva forte. Duas centenas de pessoas ficaram retidas num centro comercial da ...”.

(…)

Foram muitas inundações, quedas de árvores (negrito nosso), derrocadas”. Portanto, todo o País estava em sinal de alerta. Só o autor vivia noutro Mundo!

XXVI – Neste sentido, resultando provado que:

a) Face às notícias publicadas e divulgadas no próprio dia do sinistro (19/10/2019) que referiram a existência de inundações, chuvas intensas e fortes, ventos fortes e quedas de árvores, em praticamente todo o País;

b) A queda do pinheiro partido que tombou em cima da viatura do autor, foi, com probabilidade máxima, causada e provocada pelas fortes rajadas de vento e chuva intensa e forte que se fizeram sentir antes e durante a ocorrência do sinistro, requer-se ao Venerando Tribunal Superior que considere os factos constantes das alíneas c) e d) dos factos não provados da douta sentença recorrida como factos provados e determine que os mesmos sejam a estes aditados.

XXVII – Como bem refere a douta sentença recorrida na sua “V – MOTIVAÇÃO DE DIREITO”, “Segundo o disposto no artigo 487.º, nº 1, do Código Civil, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, exceto se existir presunção legal de culpa (sendo que as presunções legais de culpa se encontram previstas nos artigos 491.º, 492.º e 493.º do mesmo diploma legal).

Ora, no caso sub judice, tratando-se da existência de danos potencialmente causados pela queda de uma árvore sita em terreno pertença dos réus, cumpre atender ao artigo 493.º do Código Civil”.

XXVIII – No entanto, no caso concreto, é fundamental que a análise do mesmo não seja feita perfunctoriamente, mas se faça um exame profundo e cuidado do mesmo, e se penetra nas circunstâncias, pormenores e detalhes que o rodearam e em que ele ocorreu.

XXIX – Sublinhamos, a este propósito, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferido no Processo n.º 7838/10.9TBCSC.S1, em 10 de Março de 2016, cujo Relator foi o Ilustre Conselheiro Abrantes Geraldes, se pronunciou relativamente a uma situação que, nos seus contornos gerais, é idêntica à presente.

Por isso, na nossa fundamentação e no que se refere à aplicação do direito ao caso sub judice, seguiremos, muito de perto, citando, com a devida vénia, o argumentário dele constante, que, cum grano salis, tem cabimento na sustentação legal que, no presente caso, defendemos e fazemos.

XXX – De facto, o Acórdão do STJ, citado na precedente conclusão, refere ipsis verbis que “O art.º 493.º, n.º 1, do CC, regula uma situação de responsabilidade extracontratual, em que a culpa se presume, a qual não se confunde com outras que envolvam responsabilidade objectiva, submetidas a tipificação legal, em que a obrigação de indemnizar é independente da existência de culpa do agente, apenas se admitindo o seu afastamento em casos de força maior (v.g. arts. 505.º e 509.º, n.º 2, do CC)”.

XXXI – “Naquela situação, admite-se a exclusão da responsabilidade, mediante a prova de factos que traduzam ou a ausência de culpa, na modalidade de imprevidência, inconsideração ou negligência ou uma situação de inevitabilidade em que os danos se produziram mesmo sem qualquer culpa do proprietário da coisa de que naturalisticamente decorrem os danos para terceiros”.

XXXII – E continua o citado Acórdão do STJ a referir que “A responsabilidade não cabe ao proprietário, enquanto tal, mas apenas àquele que, sendo ou não proprietário do bem, tinha o dever de o vigiar.

Mais rigorosamente, recai sobre aquele que detiver o poder de facto sobre a coisa, no pressuposto de que, como referia Vaz Serra, ´quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano´ e que ´as coisas abandonadas a si mesmas podem constituir um perigo para terceiros´ de modo que ´o guarda delas deve, por isso, adoptar aquelas medidas; por outro lado, está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa á culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda´ (Trabalhos Preparatórios, BMJ, 85.º, pág. 365)”.

XXXIII – “Rui Ataíde refere que não é o perigo inerente à coisa que fundamenta a regra especial de responsabilidade, antes ´o dever de controlo correspectivo do poder de determinação sobre as coisas que ocupam um certo campo física e espacialmente delimitado´.

E reportando-se especificamente a eventos com interferência de árvores, observa que não sendo as árvores em si perigosas, o que está normalmente em causa é ´precaver a degradação do seu estado biomecânico e fitossanitário, aplicando os cuidados especificamente requeridos´ (Responsabilidade Civil por Violação de Deveres do Tráfego, pág. 369).

Mais adiante conclui que, ´relativamente ao modo como influem nas fontes de perigo, os deveres de controlo tanto podem ter carácter preventivo, visando precaver o nascimento de perigos, como supressivo, eliminando-os, sempre que detectados pelo exame das coisas ou puramente gestionários, no sentido em que se proponham manter perigos inamovíveis dentro de limiares razoáveis de segurança´ (pág. 712)” (citação do Acórdão do STJ vindo de mencionar).

XXXIV – Ora, resulta dos factos provados da douta sentença recorrida que “Em momento anterior ao aludido em 1. (dia 19/10/2019), os réus tiveram dificuldade em encontrar pessoas disponíveis para realizar o corte de árvores no prédio identificado em 6. (prédio rústico composto de pinhal e mato, sito nas ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...22 e não descrito na Conservatória do Registo Predial ...…)” (ponto 16. dos factos provados), o que demonstra e prova inequivocamente que os réus estavam atentos, vigilantes e a acompanhar a situação, evidenciando a sua preocupação e cuidado em quererem resolver a mesma e prevenir eventuais problemas futuros daí resultantes.

Este facto provado demonstra à saciedade que os réus não foram descuidados nem negligentes perante o estado em que o pinheiro se encontrava.

XXXV – E, continuando a apoiar-nos no citado Acórdão do STJ, sublinhamos que o mesmo refere que “O proprietário de imóveis tem o dever de exercer sobre os mesmos a necessária vigilância, de modo a prevenir a hipótese de serem lesados direitos subjectivos de terceiros”

XXXVI – “Mas não podemos pretender (continua a referir o citado Acórdão) – e o legislador, razoavelmente informado sobre estes fenómenos, não pretendeu seguramente – que, só pelo facto de ter bens à sua guarda, o proprietário deva exercer sobre os mesmos deveres de vigilância tais que, na prática, transformem a responsabilidade civil subjectiva, ainda que assente em culpa presumida, em responsabilidade objectiva ou pelo risco que apenas seria arredada em casos de força maior”. (negrito nosso).

XXXVII – “Um tal entendimento – continua o mesmo Acórdão – tornaria praticamente impossível ilidir aquela presunção, já que, como a realidade o demonstra com frequência, por mais diligência que fosse exercida para prevenir a ocorrência de sinistros, jamais se esgotariam as medidas que, em abstracto, seriam susceptíveis de o evitar…se acaso tivessem sido adoptadas”.

XXXVIII – “Aplicando um tal entendimento a proprietários de árvores implantadas em logradouros de prédios urbanos (e, diremos nós, cum grano salis e por aplicação analógica e extensiva, mesmo em árvores implantadas em pinhais ou florestas) daí resultaria que, mesmo que se tratasse de árvores totalmente sadias e em boas condições fitossanitárias, não deixariam de ser responsabilizados, fora dos casos de força maior, no pressuposto de que a única medida capaz de prevenir a sua queda por força do vento ou de outro fenómeno da natureza seria o seu antecipado corte radical”. (citado Acórdão do STJ).

XXXIX – “Não se ignora que noutros ordenamentos jurídicos a exclusão da responsabilidade do proprietário é rodeada de maiores exigências, apenas concebível para casos de força maior.

No entanto, não foi esta a solução consagrada no nosso ordenamento jurídico relativamente a danos naturalisticamente imputáveis a móveis, imóveis ou animais submetidos ao dever de guarda de outrem, em cuja regulação se procurou estabelecer uma distinção relativamente a outras situações para as quais se prescreve a responsabilidade objectiva, como ocorre nos casos de condução de veículos (art.º 501.º, n.º 1, do CC), de exploração de instalações de energia eléctrica ou de gás (art.º 509.º, n.º 1, do CC) ou de outros previstos em legislação avulsa” (mesmo Acórdão do STJ).

XL – “…Importa assumir que nem todos os danos naturalisticamente imputados a alguma coisa móvel, imóvel ou animal são passíveis de despoletar uma obrigação de indemnização, importando encarar, sem excessos, mas também sem subterfúgios, que a vida em sociedade comporta alguns riscos e que nem sempre será possível assacar a outrem a responsabilidade civil pelos danos que sejam provocados”. (negrito nosso).

XLI – “É este um dos efeitos da opção que se traduziu na limitação, a casos tipificados, da responsabilidade objectiva, sem implicar para os detentores dos bens imóveis, móveis ou animais, só por esse facto, a obrigação de reparação de danos”.

XLII – “Uma tal solução não pode ser contrariada através da adopção de critérios de tal modo rigoristas no que concerne à ilisão da presunção de culpa que acabem por produzir resultado idêntico ao que o legislador pretendeu evitar, o que se traduziria, em concreto, na responsabilização do proprietário dos bens móveis ou imóveis (maxime, árvores) pelo respectivo risco”. (negrito nosso).

XLIII – E, sublinhando e relevando esta linha de orientação, continua o citado Acórdão a referir que “A apreciação das condutas (acções ou omissões) dos agentes, designadamente dos proprietários do imóvel de que emergem os danos não pode ser feita num plano puramente abstracto, devendo incidir sobre as circunstâncias concretas que envolveram o sinistro. E para a eventual exoneração da sua responsabilidade, não devem ser descuradas sequer as dificuldades de demonstração das específicas condições que se verificavam na ocasião do sinistro”.

XLIV – “Dependendo a ilisão da presunção de culpa da formulação de juízos de valor relativamente à actuação dos obrigados ao dever de vigilância, tal implica a apreciação do cuidado que foi observado, em comparação com aquele que deveria ter sido adoptado por um proprietário normalmente diligente, previdente e atento aos riscos inerentes ao bem à sua guarda…seguindo os padrões do bonus pater familiae que serve de matriz à apreciação da culpa (art.º 487.º, n.º 2, do CC)”.

XLV – Assim, “na apreciação dos deveres de vigilância ou de guarda que recaem sobre os onerados, assim como a ponderação dos efeitos decorrentes de circunstâncias de ordem externa causalmente ligadas ao sinistro, os Tribunais não podem exigir dos interessados aquilo que é humanamente inexigível, bastando apreciar os factos apurados à luz da experiência comum” – continua a referir o citado Acórdão, (negrito nosso).

XLVI – Neste contexto, importa sublinhar e relevar que, no caso sub judice:

a) Em momento anterior ao dia 19/10/2019 – dia da ocorrência do sinistro – os réus, aqui recorrentes, tiveram dificuldade em encontrar pessoas disponíveis para realizar o corte de árvores no prédio propriedade dos réus (ponto 16. dos factos provados), o que comprova e evidencia a sua preocupação em abaterem as árvores, nas quais estava incluído o pinheiro que tombou sobre a viatura do autor, aqui recorrido, que justificavam ser abatidas e atesta o cuidado, a atenção e a vigilância que os réus, revelando um comportamento exigido e aferido pelos padrões do bonus pater familiae, colocaram preventivamente na resolução deste assunto (abate das árvores);

b) Nas circunstâncias do dia 19/10/2019, cerca das 16 horas, o autor, aqui recorrido, dirigiu-se a um pinhal, pertença dos seus sogros, sito em ... – ..., a fim de realizar trabalhos de limpeza e carregamento de lenha (ponto 1. dos factos provados), e, para esse dia, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 horas e as 21 horas, com previsão de chuva ou aguaceiros, por vezes fortes, acompanhados de trovoadas e rajadas e entre as 11 horas e as 18 horas – precisamente no período em que o autor se deslocou ao pinhal dos sogros (aditamento e negrito nosso) – com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora (ponto 17. dos factos provados).

XLVII – Ora, considerando estes factos provados, perguntamos:

a) Quem é que foi incauto e imprevidente?

b) Reiterando e relevando que o autor exerce a profissão de empreiteiro de construção civil (ponto 14. dos factos provados), não tinha a obrigação e o dever de estar atento e informado sobre as previsões e os avisos meteorológicos emitidos pelo IPMA para aquele dia?

c) Pela profissão que exerce, pela experiência da vida que possui, pela necessidade de saber o tempo que faz num determinado período ou dia para orientar os seus trabalhos para esse período ou dia, pelas características evidenciadas pelo tempo naquele dia, e sobretudo naquele período do dia, não seria razoável e prudente, se tivesse pensado e agido segundo os padrões do bonus pater familiae, que se abstivesse de, naquele dia e, sobretudo, naquele período do dia, se ausentar de casa para realizar o serviço que executou?

d) Se, num determinado dia, em que as previsões meteorológicas anunciam mar encapelado e vagas alterosas, um pescador se fizer ao mar para pescar e, por força das condições adversas e anunciadas, soçobrar, que conclusão um homem médio retira?

Natural e obviamente que foi imprudente e incauto e que, naquelas circunstâncias, não se deveria ter feito ao mar!

E não precisa, tão pouco verificar os avisos meteorológicos. É a prudência quem assim o determina.

Foi, portanto, vítima da sua própria e imprudente conduta. E nesse sentido, a culpa do ocorrido é única e exclusivamente do lesado, que concorreu em exclusivo para a produção do resultado, nos termos do artigo 570º do C. Civil que determina a exclusão de qualquer pagamento indemnizatório.

XLVIII – Ora, também, se o autor não se tivesse deslocado ao pinhal dos sogros naquele dia e hora, ainda que a árvore padecesse de alguma debilidade e tivesse tombado, o sinistro não teria ocorrido.

Foi, portanto, o autor vítima da sua própria e imprudente conduta, sendo o único e exclusivo culpado pelo que aconteceu.

XLIX - E, salvo o devido respeito, não se pode aceitar, de todo, que o douto Tribunal a quo aligeire o facto de estar aviso amarelo e o seu desconhecimento por parte do autor, mencionado na douta sentença que:

“É que, em primeiro lugar, inexiste prova concreta relativa ao estado do tempo àquela hora e naquele local, independentemente da existência do aviso amarelo emitido por aquele Instituto, e, em segundo lugar, não se pode concluir, sem mais, que o autor tinha que ter conhecimento da emissão deste aviso, o qual, embora divulgado nos meios de comunicação social, não implica uma efetiva necessidade de conhecimento.”

Na verdade, se vamos por esta questão de o autor não ter uma efectiva necessidade do conhecimento do aviso amarelo e se esta versão é corroborada por um órgão de soberania como é o tribunal, então, salvo o devido respeito terminem-se com os avisos. Os avisos existem, precisamente, para evitar acidentes como o ocorrido, prevenindo o cidadão para não actuar de determinada forma. O autor ao agir como agiu colocou- se ele próprio em perigo, desconsiderando todas as normas e prudentes regras de segurança. Dizer que o autor não tinha conhecimento deste aviso, é uma coisa, agora que tem a obrigação de se informar, perante as condições climatéricas objectivas, já é outra e isso o douto Tribunal não pode descurar dando cobertura a essas situações Existe um velho brocardo que determina “a ignorância da lei não desculpa a ninguém”, logo por maioria de razão, não pode nunca desculpar o autor a sua conduta com a ignorância do aviso, sendo que tal é aceite pelo Tribunal. Não se concebe tal situação. É indiscutível que àquela hora as rajadas de vento eram fortes (segunda rajada mais forte em quatro graus) – recorde-se o depoimento dos dois militares da GNR – pelo que não se compreende como a douta sentença a quo determina que não foi possível concretizar o estado do tempo àquela hora e naquele lugar.

L – Na realidade, todas as circunstâncias que rodearam o caso concreto – ida do autor, naquele dia e hora, ao pinhal dos sogros para – pasme-se! – realizar trabalho de limpeza e carregamento de lenha, o pinheiro estar localizado num pinhal e não junto à via pública, o aviso amarelo emitido para aquele dia pelo IPMA para o distrito ..., a que pertence a povoação onde ocorreu o sinistro, agravado pelo facto de as rajadas de vento com maior força e intensidade – na ordem dos 80 quilómetros por hora – estarem previstas para o período em que o autor se deslocou ao pinhal (entre as 11 horas e as 18 horas), o facto de os réus terem já diligenciado, em momento anterior à data da ocorrência do sinistro, pelo corte de árvores no mesmo local e prédio e terem dificuldade em encontrar pessoas disponíveis para o fazer (ponto 16. dos factos provados), o facto de pouco tempo antes terem passado no local para verificar o estado dos pinheiros, o facto de possuírem mais 12 pinhais que foram paulatinamente cortando, considerando a maior urgência desses, o que revela e demonstra o cuidado que estavam a colocar na situação e a vigilância e atenção que relativamente a ela estavam a ter, não lhes sendo exigíveis, no caso concreto e de acordo com os padrões de actuação do homem médio, outros cuidados para além daqueles que estavam a ter e a desenvolver – conduzem inequivocamente a que se deva considerar ilidida e refutada a presunção de culpa que recaía sobre os réus, (negrito nosso), não recaindo, portanto, sobre eles qualquer indício de responsabilidade objectiva ou pelo risco.

LI – Na verdade, a presunção de culpa que impende sobre o proprietário de um prédio ao abrigo do artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, pode ser ilidida mediante a prova da ausência de culpa ou a demonstração de que os danos se teriam igualmente produzido mesmo sem culpa.

LII – As circunstâncias relevantes para se considerar ilidida a presunção de culpa não podem ser de tal ordem que, na prática, transformem a responsabilidade subjectiva que impende sobre o proprietário em responsabilidade objectiva ou pelo risco.

LIII – Neste contexto, face ao alegado e comprovado, deve considerar-se eliminada a responsabilidade dos réus no presente caso e consequentemente o Venerando Tribunal Superior revogar a douta sentença recorrida, determinando a total improcedência, por não provada, da acção intentada pelo autor, aqui recorrido, contra os réus, aqui recorrentes, decidindo, em conformidade, absolvê-los totalmente do pedido formulado pelo autor, com todas as consequências legais que daí se retiram.

LIV - No limite e por mera hipótese – somente hipótese - poderiam admitir os recorrentes uma repartição equitativa da culpa mas mesmo isso seria desvirtuar por completo todas normas de segurança inerentes aos avisos e ao escopo com que os mesmos forma criados. Foi, portanto, vítima da sua própria e imprudente conduta. E nesse sentido, a culpa do ocorrido é única e exclusivamente do lesado, que concorreu em exclusivo para a produção do resultado, nos termos do artigo 570º do C. Civil que determina a exclusão de qualquer pagamento indemnizatório.

Termos em que, e nos mais e melhores de Direito, cujo douto e sábio suprimento se invoca, se requer que o Venerando Tribunal da Relação ... determine e decida:

A) Que face ao precedentemente alegado, comprovado e concluído, sejam considerados factos provados e aditados a estes os constantes das alíneas c) e d) dos factos não provados da douta sentença recorrida; e

B) Revogar a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo e consequentemente julgar totalmente improcedente, por não provada, a acção proposta pelo autor (aqui recorrido) contra os réus (aqui recorrentes), absolvendo-os do pedido formulado pelo autor, com todas as demais e legais consequências que daí se retiram,

C) Por mera hipótese académica, e caso não se entenda pela absolvição total dos réus - o que não se concebe - se considere uma repartição da culpa entre autor e réus, revogando-se a douta sentença a quo, e substituindo-a por outra, nessa conformidade.

Na resposta – oferecida no dia 31 de Março de 2022 – o autor concluiu pela improcedência do recurso e requereu a ampliação do seu objecto, pedindo a condenação dos réus recorrentes também no pagamento dos valores de € 1.575,00 e € 1.000,00, conforme requerido na petição inicial, tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

35. Tendo a douta sentença dado como factos não provados que:

 a) O autor ficou impossibilitado de utilizar o veículo identificado em 2. durante os meses de janeiro a março de 2020,

b) Na sequência do referido em 5. e em 13. i. o autor sentiu angústia e preocupação ao ver o estado do seu veículo e pelos trabalhos que teve que empregar para repor a situação tal como se encontrava antes do descrito em 5., nomeadamente, por ter que contactar com profissionais para a reparação, solicitar a presença da GNR no local, contactar os réus e pela necessidade de recorrer a tribunal e profissional do foro e que, ii. o autor deixou de aceitar trabalhos e serviços para os quais sabia que necessitava do veículo, entendemos que tal matéria de facto deve ser dada como provada, retirando-se, daí, as legais consequências, nomeadamente a condenação dos réus/ recorrentes, também, a pagar ao autor a quantia da de €1.575,00 e €1.000,00, tal como vem peticionado em sede de p.i.

36. E, os concretos meio probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diferente (como agora peticionado), são, por um lado, todos os documentos juntos aos autos pelos autores, como especial enfoque no documento 1 a 7 (auto de notícia e fotografias do estado em que ficou o veiculo do autor) e 9 a 32 (comunicações feitas aos réus e orçamentos/faturas/recibos), e, por outro lado, as declarações do autor e das testemunhas (referidas) gravadas pelo sistema de gravação de apoio aos Tribunais todas com referência à sessão de julgamento de 16-12-20121 (única sessão deste julgamento) como início às 9h45, a que se faz referência na motivação acima expressa, e que se dá aqui por reproduzida, para os legais efeitos.

37. Assim, da análise critica e concatenada destes concretos meios de prova, julgamos (com todo o respeito por opinião contrária) que se provaram os factos alegados pelo autor, e acima referidos.

38. Pelo que devem os pedidos do autor, na condenação dos réus nos valores de € 1.575,00 e € 1.000,00 merecer o provimento deste Tribunal, decidindo-se nessa conformidade.

Os apelantes não responderam.

O relator suscitou, oficiosamente, a questão da inadmissibilidade da ampliação, pelo apelado, do objecto do recurso e – para evitar a chamada decisão surpresa – ouviu sobre o ponto ambas as partes, apenas se tendo pronunciado os recorrentes, exprimindo a sua concordância com a decisão de indeferimento da ampliação adiantada no despacho correspondente.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.

2.1. O Tribunal de que provém o recurso, decidiu a matéria de facto nestes precisos termos:

2.1.2. Factos provados.

1. No dia 19/10/2019, cerca das 16h00, o autor dirigiu-se a um pinhal, pertença dos seus sogros, sito em ... – ..., a fim de realizar trabalhos de limpeza e carregamento de lenha.

2. O autor deslocou-se ao aludido pinhal num veículo ligeiro de mercadorias, de caixa aberta, da marca ..., com a matrícula ..-..-IG.

3. O veículo identificado em 2. encontra-se registado a favor do autor.

4. Nas circunstâncias aludidas em 1. o autor estacionou o veículo dentro do aludido pinhal.

5. Passados cerca de 15 a 20 minutos da sua chegada, um pinheiro partiu, a cerca de meio metro do solo, e caiu em cima da viatura identificada em 2.

6. O pinheiro em causa encontrava-se no prédio rústico composto de pinhal e mato, sito nas ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...22.º e não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., que se encontra ao lado do prédio aludido em 1.

7. O titular inscrito do rendimento identificado em 6. é o cabeça de casal da herança de DD da qual são herdeiros os réus.

8. Nas circunstâncias referidas em 1. a 5. o pinheiro encontrava-se seco e podre após ter sido queimado por um incêndio ocorrido naquela zona em 15/10/2017 e após a ocorrência da tempestade Leslie em 2018.

9. Em consequência do referido em 5. o veículo identificado em 2. ficou com o tejadilho/cabine amolgado, e com o para-brisas, vidros, borrachas, forro do teto, antena e chapa partidos e com a pintura riscada.

10. O autor interpelou os réus para assumirem os custos referentes ao aludido em 9., o que estes rejeitaram.

11. O autor enviou aos réus cartas registadas com aviso de receção, datadas de 24/10/2019 e 14/11/2019, comunicando os orçamentos que obteve para reparar os prejuízos referidos em 9..

12. O autor despendeu a quantia de € 3.690,00 com a aquisição de uma cabine e € 890,18 pelo serviço de montagem, mão-de-obra de bate-chapa e colocação de uma antena pilar e cera de tratamento, num total de € 4.580,18.

13. O veículo foi reparado e restituído ao autor cerca de dois meses após o aludido em 5.

14. O autor exerce a profissão de empreiteiro de construção civil, utilizando o veículo identificado em 2. nas respetivas deslocações, para executar o seu trabalho e carregar materiais, ferramentas e utensílios.

15. Durante o tempo que mediou a reparação da viatura, o autor pediu emprestado a alguns familiares e amigos os seus veículos.

16. Em momento anterior ao aludido em 1., os réus tiveram dificuldade em encontrar pessoas disponíveis para realizar o corte de árvores no prédio identificado em 6.

17. Nas circunstâncias de dia e lugar referidas em 1., o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 horas e as 21 horas, com previsão de chuva ou aguaceiros, por vezes fortes, acompanhados de trovoadas e rajadas e entre as 11 horas e 18 horas, com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora.

2.1.3. Factos não provados.

a) O autor ficou impossibilitado de utilizar o veículo identificado em 2. durante os meses de janeiro a março de 2020.

b) Na sequência do referido em 5. e em 13.

i. o autor sentiu angústia e preocupação ao ver o estado do seu veículo e pelos trabalhos que teve que empregar para repor a situação tal como se encontrava antes do descrito em 5., nomeadamente, por ter que contactar com profissionais para a reparação, solicitar a presença da GNR no local, contactar os réus e pela necessidade de recorrer a tribunal e profissional do foro;

ii. o autor deixou de aceitar trabalhos e serviços para os quais sabia que necessitava do veículo.

c) No dia referido em 1. caíram inúmeras árvores em todo o país.

d) Que o aludido em 5. tenha ocorrido em virtude do referido em 17.

Consigna-se que os restantes artigos da petição inicial e contestação não foram tidos em consideração uma vez que têm caráter instrumental, conclusivo e/ou contêm matéria de direito.

2.1.4. O Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1.2 e 2.1.3 esta motivação:

A convicção do tribunal quanto à factualidade provada e não provada fundamentou-se nas declarações de parte prestadas pelo autor, nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento e na prova documental junta aos autos, cujo teor e veracidade não foram postos em causa pelas partes, tudo analisado de acordo com as regras do ónus da prova, à luz das regras da experiência comum e segundo o princípio da livre apreciação da prova.

Em conformidade, a matéria factual vertida nos pontos 6., 7., 10. e 11. mostra-se assente, atenta a posição dos réus, que não a impugnaram, e atentos os documentos juntos aos autos a fls. 15 (caderneta predial) a 30 (correspondência trocada entre autor e réus), bem como do comprovativo de participação de transmissões gratuitas do Serviço de Finanças ... de fls. 85 a 87.

Refira-se que, no que concerne à primeira parte do facto dado como provado no ponto 6., ou seja, que o pinheiro em discussão nestes autos, se encontrava no terreno pertença dos réus, embora tal tenha sido impugnado em sede de contestação, certo é que, face ao restante teor deste articulado, bem como, ao depoimento das testemunhas dos réus, GG e HH, filha e marido da ré, (que se reportaram sempre ao pinheiro em causa como estando localizado no terreno pertença dos réus, afirmando terem ido ao local e reconhecido tal circunstância), não se suscitaram dúvidas quanto à veracidade de tal facto, motivo pelo qual, também nesta parte, se mostra o mesmo provado.

Em concreto, no que respeita aos factos descritos em 1. a 9. (com exceção dos supra aludidos), o Tribunal teve em consideração as declarações de parte prestadas pelo autor que, de forma circunstanciada e serena relatou que naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar, tinha ido apanhar lenha ao terreno do seu sogro, e que, pouco depois, embateu um pinheiro seco e podre, sito no terreno contíguo àquele, na sua viatura, amolgando a cabine, partindo vidros e riscando a pintura.

Nesta parte, as suas declarações mostram-se corroboradas pelo auto de notícia junto aos autos a fls. 10 e 11, pelo relatório de serviço de fls. 76 a 80, pelas fotografias juntas a fls. 12 a 14 - que retratam, precisamente, a árvore caída sobre o veículo do autor e donde é percetível o estado em que o mesmo ficou (designadamente, com a cabine amolgada e o vidro para-brisas partido) -, pelo certificado de matrícula de fls. 82 e pela caderneta predial rústica de fls. 83 verso.

Para além desta documentação, as declarações de parte do autor foram ainda confirmadas pelas testemunhas EE e FF, militares da GNR a prestar serviço, à data dos factos, no Posto Territorial da GNR da .... Estes militares confirmaram que naquelas circunstâncias de tempo e lugar avistaram um pinheiro que descreveram ambos como queimado, podre/«farinhento», caído sobre o veículo de caixa aberta, ressalvando que, no dia em questão fazia algum vento, considerando perigoso andar no local atenta a possibilidade de queda de árvores.

Estas testemunhas prestaram depoimento isento e objetivo, relatando factos a que assistiram no exercício da sua profissão, merecendo, por isso, credibilidade.

O mesmo se diga, neste conspecto, relativamente aos depoimentos de II e JJ, sogra e esposa do autor, respetivamente, que, apesar dos referidos laços familiares, depuseram de forma que se afigurou séria e circunstanciada, sem procurar beneficiar ou prejudicar qualquer uma das partes.

Ambas relataram que tomaram conhecimento do ocorrido, tendo-se deslocado ao local onde se encontrava o pinheiro queimado e podre (como asseverou a primeira destas testemunhas) sobre a viatura, ali encontrando o autor a tremer e chorar.

Relativamente à prova dos factos dos pontos 12. a 15., o Tribunal teve em consideração, mais uma vez, o teor das declarações de parte prestadas pelo autor que, tendo relatado tais factos no exato sentido dado como provado, fê-lo de forma absolutamente séria e que nos pareceu sincera. É certo que esta versão dos factos o beneficia e que o mesmo tem inegável interesse no desfecho da causa. Mas a verdade é que, mesmo sujeito a interrogatório e contrainterrogatório, o autor manteve sempre, de forma muito espontânea, convicta e segura, a sua versão dos factos, que descreveu sempre de forma contextualizada, assertiva e lógica.

Para além disso, e de forma relevante, as suas declarações aparecem secundadas pela prova documental junta a fls. 31 (orçamento) e fls. 32 e 33 (faturas), cujo teor foi corroborado pelo depoimento das testemunhas AA e KK, o primeiro, pintor de automóveis e quem elaborou o orçamento referido, e o segundo, quem, após a aquisição da cabine, procedeu à respetiva substituição.

Estas duas testemunhas, que também depuseram de forma séria e assertiva, descreveram os termos em que foram procurados pelo autor para proceder ao arranjo da viatura, sendo que a primeira esclareceu que, apesar de ter orçamentado a reparação, não procedeu à mesma porquanto a sua oficina não se encontrava em condições para o efeito. As declarações de parte do autor foram também sustentadas pelos depoimentos de II e II, na parte em que referiram que aquele ficou sem o veículo que utilizava no exercício da profissão de construtor civil, tendo que pedir a carrinha emprestada ao sogro e a outros familiares.

Pese embora todas as considerações tecidas supra, o autor prestou também declarações em que referiu que ficou de outubro até março sem poder utilizar o veículo em causa nestes autos.

Neste particular, no entanto, nenhuma outra prova se produziu que sustentasse tais declarações, antes pelo contrário.

Estas últimas testemunhas, bem como, as testemunhas AA e KK, quando instadas, não souberam concretizar quanto tempo o autor ficou sem o aludido veículo, referindo, na generalidade, que terá sido cerca de dois meses.

É certo que as faturas que se encontram juntas aos autos a fls. 32 e 33, estão ambas datadas de março de 2020, no entanto, tal não é suficiente para, a par das declarações do autor, dirimir as dúvidas que se suscitam face ao depoimento daquelas testemunhas e ao facto de a data aposta nas faturas poder apenas indiciar e não provar que o pagamento do aludido valor coincide com o da prestação do serviço (ou da respetiva finalização).

Com efeito, o tribunal não ficou convencido que o autor tenha ficado sem o seu veículo num período superior àqueles dois meses, motivo pelo qual se deu como não provado o facto referido em a).

A prova do facto do ponto 16. sustentou-se no depoimento das testemunhas GG e HH que, na senda do suprarreferido, disseram que, antes da ocorrência dos factos aqui em causa, entre si e réus, tentaram promover o corte das árvores naquele pinhal, sendo que das pessoas que contactaram, as mesmas não se mostraram disponíveis, mais aludindo, esta última testemunha, que procedeu ao corte de árvores noutros terrenos da família.

Estas testemunhas prestaram depoimento circunstanciado e claro, referindo, no entanto, ao contrário das restantes, que o pinheiro caído, no dia em que se deslocaram ao local (dia seguinte), encontrava-se, de facto «chamuscado», mas verde, sendo que, nesta parte, tais depoimentos não se afiguraram credíveis, desde logo atendendo a que se mostraram contrariados pelos das demais testemunhas que viram o pinheiro.

A isto acresce que, face às intempéries a que o mesmo foi sujeito e atentas as regras da experiência comum, o tribunal ficou convencido precisamente do contrário, que o pinheiro se encontrava queimado e podre.

Por fim, a prova do facto do ponto 17. sustentou-se na prova documental junta aos autos, mais concretamente de fls. 43 verso a 47 e 60 a 61 - notícias, certificado, avisos e informações meteorológicas a dar conta do estado do tempo para o dia, hora e local em causa nos autos, nos termos dados como provados.

Quanto ao facto da alínea b) - i, o mesmo deu-se como não provado porquanto não foi produzida prova nesse exato sentido.

Com efeito, em sede de declarações de parte, quando instado, o autor, de forma muito espontânea, asseverou por várias vezes que ficou atormentado e com medo depois da ocorrência dos factos em apreciação, não pelo trabalho que eventualmente deixaria de ter ou pelo esforço empregue na reparação do seu veículo, mas pelo que lhe podia ter acontecido caso não se tivesse afastado da árvore no momento em que esta caiu.

Também as duas testemunhas II e II, foram unânimes em, a par do autor, asseverar que o mesmo se sentiu preocupado e, essencialmente, com medo e nervoso relativamente ao que lhe poderia ter acontecido se não se tivesse afastado do local de queda da árvore, aludindo muito vagamente à sua preocupação com a situação do trabalho ou da viatura.

Concretamente, quanto ao facto não provado do ponto b) – ii, o tribunal assim o valorou porquanto não foi feita prova suficiente que o sustentasse.

Embora o autor, em sede de declarações de parte, tenha referido que teve que recusar alguns trabalhos em virtude de não ter veículo para o efeito, não conseguiu concretizar as situações em que não pôde trabalhar, a não ser relativamente a um serviço de impermeabilização a realizar em ....

De facto, a mãe e esposa, do autor aludiram nos seus depoimentos, de forma vaga, à recusa de trabalhos por parte deste, no entanto, também não concretizaram o número de vezes, nem quais as circunstâncias em que tal ocorreu. Ou seja, com exceção destes depoimentos ..., nenhuma outra prova foi feita que sustentasse aquelas declarações de parte e, para o efeito, seria necessário concretizar os termos da não aceitação de trabalhos e serviços (o que o autor referiu ser impossível de especificar, desde logo, em sede de petição inicial).

Não se pode olvidar, como já se referiu, que estamos perante declarações de parte, ou seja, declarações de um sujeito processual natural e necessariamente interessado no desfecho da lide, que, só por si, não chegam para sustentar a veracidade de um facto, sendo necessários outros elementos de prova que corroborem este princípio de prova, o que não aconteceu.

Apesar destas referências genéricas das declarações do autor e das testemunhas, a matéria factual em causa necessitava de maior substrato probatório, não logrando convencer o tribunal que tal tenha efetivamente ocorrido, até porque o autor se socorreu de viaturas de terceiros, não se apurando em que circunstâncias é que deixou de o conseguir fazer para ter que rejeitar outros trabalhos.

No mais, quanto aos restantes dois factos dados como não provados (pontos c) e d)), os mesmos assim foram valorados, porquanto não foi feita, no primeiro caso, qualquer prova nesse sentido e, no segundo caso, prova cabal da ali vertida conexão, sendo que inexiste qualquer elemento nos autos ou depoimento que assevere, de forma sustentada, que a queda do pinheiro se tenha devido às condições climatéricas sentidas naquele dia e hora.

A prova produzida pelos réus, neste particular, assente, essencialmente, nos depoimentos das testemunhas que referiram o estado do tempo à data e hora dos factos (como ventoso, de chuva «miúda») foi manifestamente insuficiente para permitir ao Tribunal, com o grau de certeza e segurança exigíveis, considerar tal facto como provado.

Com efeito, não houve qualquer alusão à circunstância de as condições climatéricas terem provocado ou auxiliado a queda da árvore que, a par da documentação junta e que permitiu dar como provada a matéria do ponto 17., permitisse concluir que tenha sido esse fator o que desencadeou o incidente

Ora, cabendo aos réus o ónus da prova de tal matéria, restando dúvidas ao Tribunal sobre tal facto, terá a questão que ser decidida contra si, motivo pelo qual se deu como não provado o facto da alínea d).

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objetivo do recurso.

Considerando os parâmetros da competência decisória deste Tribunal - tal como são recortados pelo objeto da acção, pelos casos julgados formados na instância recorrida, pela parte da decisão que desfavorece os recorrentes e pelas conclusões com que fecharam a sua alegação - a questão concreta controversa que importa resolver á de saber se a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva aqueles in totum do pedido ou, subsidiariamente, com fundamento numa culpa do apelado, lesado, que reduza, proporcionalmente, o valor da indemnização, que para reparar dano patrimonial, lhe foi arbitrada pela sentença apelada (art.º 635.º, n.ºs 1 a 5, do CPC).

A resolução desta questão reclama o exame, ainda que breve, dos pressupostos da constituição do dever de indemnizar fundado numa responsabilidade extracontratual ou aquiliana e das coordenadas dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da questão de facto da 1.ª instância. O bom e completo julgamento do recurso exige, por último, a reponderação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância.

Há, todavia, uma outra questão que importa, desde já, resolver, colocada pelo apelado na sua alegação: a da admissibilidade da ampliação do objecto do recurso.

3.1.1. Inadmissibilidade da ampliação do objeto do recurso.

A questão que, nesta sede, importa resolver, é a de saber se a ampliação pelo autor, apelado, do objeto do recurso, feita na sua resposta a este, deve ou não ser admitida.

A parte vencedora não tem legitimidade para recorrer, porque não é prejudicada, nem formal nem materialmente, pela decisão (art.º 631.º, n.º 1, do CPC). Os fundamentos da decisão são, em princípio, irrelevantes, seja qual for o critério da aferição da legitimidade para recorrer, pelo que, como regra, não é admissível um recurso sobre os fundamentos da decisão.

Porém, sempre que a acção ou a defesa comporte uma pluralidade de fundamentos, a parte vencedora pode requerer – mesmo a título subsidiário – a apreciação do fundamento em que decaiu na instância de que provém o recurso (art.º 636.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).  Portanto, se a acção comporta várias causas de pedir concorrentes ou a defesa se baseia numa multiplicidade de fundamentos e apenas uma daquelas causas de pedir ou um destes fundamentos foi considerado procedente a parte vencedora pode requerer ao tribunal ad quem a apreciação da causa de pedir ou do fundamento que não foi julgado procedente. O mesmo vale quanto à decisão sobre certas questões de facto: a parte vencedora, prevenindo a procedência do recurso do vencido, pode, a título subsidiário, impugnar a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (art.º 636.º, n.º 2, do CPC).

O recurso sobre a causa de pedir ou o fundamento em que a parte vencedora decaiu assume sempre uma feição subsidiária face ao recurso interposto pela parte contrária, dado que se destina a obter uma decisão favorável com base numa outra causa de pedir ou num outro fundamento se o recurso interposto pela contraparte for procedente e, portanto, for revogada a decisão impugnada naquilo que lhe era favorável.  O que singulariza, portanto, esta impugnação é a circunstância de ela ter por objeto os fundamentos da decisão – e não a decisão ela mesma, dado que no tocante a esta, por ser favorável a esse mesmo impugnante, este se não pode considerar vencido e, portanto, não dispõe da indispensável legitimidade ad recursum (art.º 631.º, n.º 1, do CPC).

Se a parte vencedora sucumbe quanto a um dos fundamentos e pretende impugnar a improcedência desse fundamento, não existiria nenhum obstáculo a quem, nessa conjuntura, essa parte vencedora pudesse interpor recurso subordinado quanto ao fundamento em que sucumbiu. Mas não essa a orientação da nossa lei de processo, que antes se decidiu pela possibilidade, não da interposição de um recurso subordinado – mas pela faculdade de formulação de um pedido de apreciação do fundamento em que a parte vencedora sucumbiu. Este regime só não corresponde ao do recurso subordinado porque se optou por não se reconhecer legitimidade ad recursum à parte vencedora quanto ao fundamento em que sucumbiu, regime de que decorre que a ampliação do objeto do recurso da parte contrária só é admissível nos casos em que à parte não é facultada, por falta de legitimidade ad recursum – decorrente da circunstância de ser parte vencedora - a interposição de recurso independente ou subordinado[1]: se a parte não for vencedora, mas vencida, ainda que só parcialmente, a lei não lhe abre a faculdade da ampliação do objeto do recurso, o que se compreende dado que neste caso lhe é lícito interpor recurso autónomo independente ou só subordinado[2].

Face a este enunciado é bem de ver que no caso ao autor – apelado – não é facultada a ampliação do objeto do recurso, estando antes indicado que impugnasse a decisão do tribunal da 1.ª instância, na parte em que sucumbiu através de recurso autónomo independente ou através do recurso subordinado, conforme o juízo definitivo que fizesse sobre a estratégia processual mais adequada para a tutela da situação subjetiva alegada. É que – repete-se - no caso, o autor não é parte vencedora – mas parte parcialmente vencida: a hipótese do recurso é de sucumbência recíproca paralela: autor e réus ficaram parcialmente vencidos.

A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar o direito ou interesse para os quais o autor solicita tutela jurisdicional é integrada pelos factos essenciais, i.e., pelos factos – concretos e não pela categoria jurídica ou legal em que eles são susceptíveis de ser subsumidos - dos quais resulta a situação subjetiva alegada por aquela parte (art.º 5.º, n.º 1, do CPC).  A causa de pedir que compete a um pedido de indemnização fundado numa responsabilidade extracontratual, é complexa sendo constituída por um facto ilícito, subjetivamente imputável ao seu autor, por um dano e pela imputação objetiva deste dano àquele facto, ou, noutra formulação, pelo facto, a ilicitude, a culpa, o dano e a causalidade[3] (art.º 483.º, n.º 1, e 563.º, n.º 1, do Código Civil).

Ora, na espécie o autor – recorrido – não alegou uma pluralidade de causas de pedir, mas uma só causa petendi. a relativa à responsabilidade delitual ou aquilina da qual faz derivar a constituição dos réus – apelantes – num dever de indemnizar (art.º 483.º nº 1 do Código Civil).  Realmente, o autor não alegou várias causas de pedir concorrentes – ainda que a título alternativo ou subsidiário – mas uma única causa de pedir: a integrada pelos factos dos quais resulta, no seu ver, a adstrição dos réus a um dever de o indemnizar, fundado numa responsabilidade extracontratual, dos danos que alega ter suportado, imputáveis a uma culpa negligente, presumida ou não, daqueles. O que sucede é que o autor sucumbiu – e, portanto, nem sequer é parte vencedora – não quanto a uma outra causa de pedir concorrente - mas quanto a parte do pedido que fez derivar da única causa petendi que alegou: a relativa aos danos não patrimoniais no valor de € 1 000,00, e patrimoniais, no valor de € 1 575,00.

E tendo ficado vencido, não quanto a outro fundamento, mas no tocante a parte do seu pedido indemnizatório, o que estava indicado era que impugnasse a decisão da 1.ª instância através de recurso autónomo independente – dado que a causa tem valor superior à da alçada do tribunal da 1.ª instância e a decisão deste é-lhe desfavorável em valor superior a metade dessa alçada – ou através do recurso subordinado (art.ºs 44.º, n.º 1 da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, 631.º e 633.º n.º 1, do CPC).

A conclusão a tirar é, assim, que o autor, porque não é parte vencedora, errou patentemente quanto ao meio processual adequado para impugnar a sentença, na parte em que ela lhe é desfavorável. A consequência desse erro é, em princípio, a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado, solução que surge claramente ordenada por uma ideia de máximo aproveitamento dos actos processuais, (art.º 193.º, n.º 3, do CPC)[4].  Diz-se em princípio, dado que aquela convolação está naturalmente sujeita a limites, uma vez que é necessário que a ela não obstem quaisquer outras circunstâncias, de que se destacam, desde logo, três: a extinção por caducidade do direito de praticar o ato convolado e a inaproveitabilidade do ato objeto de convolação, por não reunir os requisitos específicos exigidos para o acto para o qual seria convolado, ou por implicar o agravamento da posição processual da parte contrária aquela a quem a convolação aproveitaria. Se, realmente, o meio processual erroneamente utilizado determinou uma diminuição das garantias da contraparte, a sua convolação deve ter-se por inadmissível[5].

No caso, o autor procedeu à ampliação do recurso na sua alegação de resposta ao recurso dos réus, pelo que é patente a extinção, por caducidade do direito de impugnar a decisão por recurso autónomo independente (art.ºs 247.º, nº 1, 248.º, nº 1 e 638.º, n.º 1, do CPC). Não assim, quanto ao recurso subordinado (art.º 633.º n.º 2 e 638.º, n.º 5, do CPC). Simplesmente os apelantes apenas dispuseram do prazo de 15 dias para responder ao requerimento de ampliação, ao passo que, se tivesse sido interposto recurso subordinado, disporiam, para lhe responder – dado que nele se impugna a decisão da matéria facto - do prazo de 40 dias (art.ºs 638.º n.ºs, 5 a 8, do CPC). Do que decorre que o aproveitamento do acto praticado, através da convolação do meio processual utilizado – ampliação do objeto do recurso – para o meio adequado – recurso subordinado - determinaria um agravamento da posição processual dos apelantes, dado que importaria uma patente diminuição das suas garantias. Dito doutro modo: a correção do erro do apelado sobre o meio processual adequado a levar ao tribunal ad quem a apreciação de parte do seu pedido no qual sucumbiu, não é, na espécie sujeita, admissível, uma vez que o direito ao recurso autónomo independente foi atingido pela caducidade e a convolação do requerimento de ampliação do objeto do recurso para recurso subordinado importaria uma diminuição das garantias processuais dos apelantes.

De resto, se bem se vê, a ampliação do objeto do recurso de bem pouco servirá ao apelado. Porque de duas uma: se o recurso dos apelantes procede por se concluir, como propugnam, que não estão vinculados a qualquer dever de indemnizar, serão absolvidos in totum do pedido de reparação dos danos, tanto daqueles que a sentença impugnada julgou provados como dos que o autor pede que sejam considerados provados; se o recurso dos réus improceder, ficará prejudicado o conhecimento do objeto da ampliação do recurso, dado que foi deduzida a título subsidiário, i.e., apenas para o caso da procedência daquele recurso.

Como quer que seja excluída, pelas razões apontadas, a convolação do meio processual utilizado –  requerimento de ampliação do objeto do recurso da parte contrária – para o meio procedimental adequado - recurso autónomo independente ou recurso subordinado - só uma decisão se impõe: a rejeição daquele requerimento.

3.2. Pressupostos do dever de indemnizar fundado na responsabilidade delitual ou aquiliana.

Como se referiu já, a generalidade da doutrina – e, correntemente, também a jurisprudência – individualiza como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e a causalidade.

A imputação delitual, quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama, desde logo, uma conduta ilícita e culposa do infractor (art.º 483.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

Se o quadro dos elementos em que decompõe a responsabilidade delitual – ilicitude e culpa – é relativamente estável o mesmo não sucede, porém, com o conteúdo específico de cada um desses elementos.

A discussão gravita em torno da relação entre a ilicitude e o dolo ou a negligência e, consequentemente, à volta do conteúdo material e da função que deve ser assinalada à culpa.

Tradicionalmente, o dolo e a negligência são integrados na culpa. Nesta concepção, para que haja ilicitude, basta que o acto seja causa adequada de um resultado antijurídico; desde que da conduta decorra um resultado contrário ao direito, existe ilicitude; esta reclama apenas o desvalor do resultado, sendo-lhe indiferente as características intrínsecas da conduta.

A doutrina mais moderna, sob o signo declarado da teoria finalista da acção, desloca o dolo e a negligência da culpa para a ilicitude, subjectivizando-a. Nesta concepção subjectiva da ilicitude não é, portanto, suficiente que o resultado da conduta seja contrário ao direito; para que haja licitude, a conduta deve ser dolosa ou negligente. Ao lado do desvalor do resultado exige-se o desvalor da própria acção.

O que daqui decorre para a caracterização da culpa é meramente consequencial: incluído o dolo e a negligência na ilicitude, não é possível continuar a valorar a culpa pela relação psicológica da conduta com o seu autor: a aferição da culpa passa a depender de critérios estritamente normativos, reconduzindo-se a um juízo de censura ético-jurídica da conduta. A culpa decorre de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível.

Resta dizer que a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais.

Na imputação delitual, seja dolosa ou simplesmente negligente, o ónus da prova dos factos que fundamentam o juízo de censura ético-social do agente – e não do juízo de censurabilidade em si mesmo - onera o lesado; o não cumprimento desse ónus de prova comporta uma vantagem relevante para o lesante, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (art.ºs 342.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1 do Código Civil, e 414.º do CPC). A prova dos factos que fundamentam o juízo de reprovação da conduta do lesado, cabe ao lesante, mas este está dispensado de os invocar visto que incumbe ao tribunal conhecer deles oficiosamente (art.º 572.º do Código Civil)

A indagação da culpa do responsável revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar o funcionamento da imputação delitual, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar os factos de que decorre a sua existência.

Existindo uma presunção de culpa, é ao autor do dano que fica onerado com encargo de demonstrar que não teve culpa na ocorrência (artº 350.º, n.ºs 1 e 2. do Código Civil).

Uma presunção de culpa[6] extraordinariamente relevante, ainda que ilidível, é a que vulnera aquele que detém uma coisa – por exemplo, uma árvore - com o dever de a vigiar, que responde pelos danos que ela causar, excepto se provar que não teve culpa ou que os danos se teriam igualmente produzidos ainda que não houvesse culpa sua (art.º 493.º, n.º 1, do Código Civil).

O fundamento material geral desta imputação subjetiva residirá aqui em que a comunidade tem de poder confiar em que exerce o poder de domínio sobre um bem determinado, acessível a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar do estado ou de situações perigosas. Quem tem o dever de vigiar uma coisa – v.g., o proprietário dela - está obrigado a controlar os perigos que dela provêm e a impedir, em consequência, que se produzam danos em bens jurídicos alheios. Compreende-se e aceita-se o fundamento em que esta ideia repousa: quem domina uma fonte de riscos determinável dentro de um âmbito de atuação objetivável deve actuar no sentido do afastamento ou da minimização dos perigos que daquela coisa resultam para terceiros. E se a coisa não for em si mesma uma fonte de perigo, aquele princípio valerá no tocante a perigos especiais que dela partam. Mesmo nestes casos, deve afirmar-se a existência de um dever de vigilância e o consequente dever de actuação – cujo conteúdo só em concreto pode ser determinado - no sentido da eliminação ou da minimização do perigo da produção de danos.

Realmente, quem detém a coisa à sua guarda deve adoptar as medidas adequadas a evitar danos e, por virtude da sua relação com essa mesma coisa, e é, além disso, quem está em melhores condições, por comparação com o lesado, para fazer a prova da culpa, i.e., dos factos susceptíveis de a fundamentar [7]. A responsabilidade não assenta no perigo eminente à coisa, mas na violação do dever de controlo e de prevenção. Assim, não sendo uma árvore perigosa em si mesma, o que estará em causa é a prevenção do seu estado biomecânico e fitossanitário[8], já que, uma degradação desse estado, pelo défice mecânico real que determina, i.e. pela a inadequação da madeira para reagir mecanicamente a cargas, intrínsecas ou extrínsecas, cria o risco de colapso, total ou parcial, da árvore e, portanto, um perigo especial da ocorrência de danos.

O vinculado à vigilância, por exemplo, de uma árvore, pode alijar a sua responsabilidade em dois casos: se provar que nenhuma culpa houve da sua parte; se demonstrar que os danos sempre se produziriam, ainda que não houvesse culpa sua, hipótese em que pode prevalecer-se da relevância negativa de causas virtuais. Esta solução obedece, nitidamente, a este duplo pensamento: estimular a que sejam tomadas as precauções devidas no caso; fazer correr pelo beneficiário do perigo – rectius, da coisa de que o perigo dimana – o risco da verificação dos danos. Em contrapartida, é-lhe conferida a possibilidade de demonstrar o cumprimento dos deveres de cuidado presentes no caso, i.e., de fazer a prova da ausência de culpa sua, e de se prevalecer da relevância negativa de causas virtuais.

Ao contrário do direito penal, o direito civil conhece um ilícito geral de negligência (art.º 483.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

               O que confere especificidade e autonomia ao ilícito negligente é a violação, pelo agente, de um dever objectivo de cuidado a que, no caso, estava juridicamente vinculado. Sempre que se infrinjam regras de cuidado, de prudência, de atenção ou diligência - ocorre um delito negligente.

Contudo, a concepção da violação do cuidado objectivamente devido como elemento individualizador do delito negligente é apenas uma proposta de solução possível: o conceito de criação ou de incremente de um perigo não permitido, importado da dogmática penal[9], é também apto a densificar o conteúdo do ilícito negligente.

De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso[10]. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado; inversamente, a imputação deve ter-se por excluída, por exemplo, quando a conduta que produziu o evento não tenha ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido.

A diferença entre uma e outra proposta de solução é mais aparente do que real, dado que numa perspectiva prático-normativo, os dois conceitos acabam por se equivaler: a determinação do cuidado objectivamente devido corre paralelamente aos limites do risco permitido[11].

Há, porém, que proceder sempre à concretização das normas de cuidado, à determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, i.e., dos deveres que devem ser observados pelo agente para que se possa excluir a imputação por negligência.

A imputação negligente não se basta com a inobservância do cuidado geral com que toda a pessoa se deve comportar na interacção social; a sua comprovação exige, antes, a violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, ou dito doutro modo: na aferição do preenchimento do ilícito negligente, assume importância nuclear a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto.

Note-se, porém, que para fundamentar de forma definitiva a infracção do dever de cuidado objectivamente exigível, poderá não ser suficiente a individualização de um perigo abstracto: que o que é perigoso in abstracto pode deixar de o ser no caso concreto, é coisa que se compreende por si[12].

Negativamente, a imputação delitual negligente é delimitada pelo chamado princípio da confiança. A este princípio bem pode imprimir-se esta formulação: quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo.

A justificação substantiva deste princípio e, portanto, a determinação do seu âmbito de actuação, pode sintetizar-se nesta proposição: como regra geral não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie que os outros cumprirão os seus deveres de cuidado. Encontrando o princípio da confiança o seu fundamento material no princípio da autorresponsabilidade, segue-se que não é juridicamente exigível, que se deva contar sempre com aquelas pessoas que violam as regras jurídicas de comportamento e, por essa via, as normas de cuidado.

Há uma tendência frequente para concluir sem mais que não pode socorrer-se do princípio da confiança aquele que se comporta em violação do dever objectivo de cuidado. Feita assim, a afirmação é inteiramente inexacta, dado que bem pode suceder que, v.g., o facto e o dano consequente não possam objectivamente ser imputados àquela violação do dever – logo de acordo, de resto, com o critério da imputação objectiva, de harmonia com o qual é necessário que seja o perigo típico criado ou potenciado pela conduta aquele que se concretiza, ele próprio e não outro, no resultado danoso.

Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (artº 487.º. nº 2, do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada pessoa é, portanto, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais do agente concreto, caso estas sejam inferiores às do homem médio.

Todavia, uma coisa é a constatação da violação objectiva de um dever de cuidado outra bem diferente a imputação objectiva do dano à violação desse dever[13]. Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta.

De harmonia com o princípio que a responsabilidade civil só intervém relativamente a comportamentos humanos e se exige, para a constituição do dever de indemnizar, um resultado, há sempre que verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído – imputado - à conduta.

É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento a que se procura dar resposta com a causalidade.

Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (artº 563 do Código Civil)[14].

A finalidade evidente da teoria da causalidade adequada é a limitar a imputação do resultado às condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Há, porém, domínios em que as soluções que resultam da aplicação da teoria da causa adequada não são inteiramente satisfatórias, o que sucede, sobretudo, em actividades que, comportando em si mesmas riscos consideráveis são, todavia, legalmente permitidas. Está nessas condições, por exemplo, a circulação rodoviária em que, na generalidade dos casos, a conduta se revela adequada à produção do resultado, sem que, sob pena de paralisação ou de retrocesso da vida económica e social, seja possível proibi-la.

A teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento[15]. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar.

A adequação deve, naturalmente, referir-se a todo o processo causal e não só ao resultado, sob pena de um alargamento excessivo da imputação. É neste contexto que se situam os problemas da intervenção de terceiros ou da interrupção do nexo de causalidade, que têm em vista aqueles casos em que o resultado se verifica em consequência de uma co-actuação do lesado ou de terceiro.

 O critério da causalidade resolve o problema por recurso ao concurso real de causas adequadas, simultâneas ou subsequentes, considerando qualquer dos lesantes responsável pela reparação de todo o dano[16].

Esta conclusão impõe-se ao menos nos casos em que a causa operante interrompeu a série causal hipotética e em que a causa operante só provocou o dano porque os termos da causalidade hipotética já decorridos favorecem a sua eficácia causal, de tal modo que o dano, tal como concretamente se verificou, não se teria verificado se não fossem esses termos. Quando isso suceda, estamos perante um caso de concorrência efectiva de causas – e não de um caso de causalidade hipotética e, portanto, não se coloca o problema da relevância negativa da causa hipotética.

Todavia, estes casos não podem, em rigor, assumir relevo de um ponto de vista de pura causalidade, devendo valer para eles a solução disponibilizada pelo critério da criação ou, em caso de concurso de riscos, da potenciação do risco permitido.

Na verdade, em face das dificuldades do critério da adequação não são de estranhar as propostas da sua correcção, por recurso aos conceitos de risco permitido e do fim de protecção da norma.

De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso[17]. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado; inversamente, a imputação deve ter-se por excluída, por exemplo, quando a conduta que produziu o evento não tenha ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido.

Sucede, muitas vezes, que na situação, já está criado, antes da actuação do lesante, um risco de verificação do dano. Não obstante o resultado será ainda imputável ao lesante se este, com a sua conduta, aumentou ou potenciou o risco já existente. Quando isso suceda, o dano deve ser-lhe imputado.

A obrigação de indemnização tem por escopo fundamental a remoção do dano imputado e, portanto, a medida da indemnização é, por regra, simplesmente a do dano efectivamente imputado ao lesante (art.º 562.º do Código Civil). Questões como o nexo de causalidade transcendem, por isso, a problemática da determinação da indemnização.

Todavia, o Código Civil actual rompeu com o princípio da não influência da culpa sobre o quantum respondeatur, permitindo ao juiz, nos casos em que a imputação delitual opere por ilícito negligente, fixar a indemnização, equitativamente, em montante inferior ao dano, desde que o justifiquem não só o grau de culpa do lesante, como também a situação económica deste e do lesado e das demais circunstâncias do caso (art.º 494.º do Código Civil).

E o concurso de riscos, ou, se se preferir, a contribuição causal de terceiro para a verificação do dano, é certamente, uma das demais circunstâncias do caso a ponderar pelo tribunal.

Todavia, a fixação da indemnização em valor inferior ao do dano justifica-se sempre que os danos sejam provocados por terceiro – e na medida em que o sejam – ainda que não voluntariamente ou ainda que licitamente. Verdadeiramente, não há aqui uma limitação da indemnização – mas apenas uma delimitação dos danos que ao lesante devem ser imputados, pelo que a redução prescinde da comprovação, relativamente a esse terceiro, dos pressupostos da imputação delitual.

Também se aponta como factor limitativo da indemnização o concurso com a eventual culpa do lesado: quando um facto culposo do lesado tiver contribuído para a produção ou agravamento dos danos, o tribunal pode, no caso concreto, decidir se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída (artº 570.º, n.º 1, do Código Civil). A boa interpretação da lei exige dois esclarecimentos: em primeiro lugar, a expressão culpa deve ser muito amplamente entendida; sem segundo lugar, também não há aqui uma limitação da indemnização, mas apenas um recorte dos danos que ao lesante devem ser imputados.

Na espécie do recurso, a sentença impugnada concluiu por uma culpa presumida dos apelantes – e pela ausência de qualquer causa virtual do dano –  e em estrita coerência, vinculou os apelantes ao dever de reparar todos os danos que teve como provados.

Mas isto – alegam os recorrentes – deve-se ao erro na apreciação ou valoração da prova, quando a dois enunciados de facto julgados não provados, em que incorreu a Sra. Juíza de Direito da audiência.

Há, portanto, que tornar patentes os parâmetros dos poderes de controlo que são assinalados a esta Relação relativamente à decisão da matéria de facto do tribunal do Tribunal de que provém o recurso.

3.3. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.3.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (art.º 640.º, nº 1, do CPC).

Todavia, esse controlo é actuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão da questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária e, portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[18].

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º,  nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[19].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[20].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo[21].

3.3.2. Reponderação das provas.

Os apelantes dedicaram algumas das suas conclusões a noticias da comunicação social, v.g. do jornal Público, relatando, designadamente, no dia 19 de Outubro de 2019, um dia agitadíssimo no Norte, retenção de pessoas num centro comercial na ..., o registo de 307 ocorrências no Distrito ... e 41 em ... devido à chuva forte. Este facto não foi alegado na instância recorrida.

No direito português, os recursos ordinários, dado que obedecem ao modelo de reponderação e não de reexame, visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento e, portanto, o tribunal de recurso não pode, em regra, ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[22], o que exclui a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Ergo, aquele facto não pode ser considerado. De resto, convém recordar que o local onde ocorreu o facto lesivo não se situa no Distrito ... ou de ... – mas no de ....

São dois os enunciados de facto que os apelantes reputam de mal julgados: que no dia referido – 19 de Outubro de 2019 – caíram inúmeras árvores em todo o País; que o aludido em 5. (Passados cerca de 15 a 20 minutos da sua chegada, um pinheiro partiu, a cerca de meio metro do solo, e caiu em cima da viatura identificada em 2.) tenha ocorrido em virtude do referido em 17. (Nas circunstâncias de dia e lugar referidas em 1., o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso amarelo para o distrito ..., entre as 12 horas e as 21 horas, com previsão de chuva ou aguaceiros, por vezes fortes, acompanhados de trovoadas e rajadas e entre as 11 horas e as 18 horas, com previsão de rajadas de vento na ordem dos 80 quilómetros por hora).

Quanto a este último enunciado de facto – extraído da alegação produzida pelos apelantes no articulado de contestação - o que logo fere à atenção é que a queda do pinheiro surge referida ao aviso amarelo emitido pelo IPMA e à previsão de chuvas, trovoadas e, entre as 11 e as 18.00 horas do dia relevante de rajadas de vento na ordem de 80 k/h. Quer dizer: não decorre deste enunciado que a causa do colapso da árvore teve, em concreto, como etiologia o vento ou a chuva forte, i.e., que a previsão contida nos avisos do IPMA se concretizou no local onde ocorreu o evento lesivo.

Realmente, os réus, no articulado em que deduziram a defesa, alegaram a este propósito, ipsis verbis, o seguinte: art. 18.º: A verdade é que no dia 19 de Outubro de 2020, as condições atmosféricas eram adversas em termos de pluviosidade e vento; artigo 19.º: Nesse dia, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu aviso amarelo para o distrito ... entre as 12 horas e as 21 horas devido à previsão de chuva ou aguaceiros, por vezes fortes e acompanhados de trovoadas e rajadas; art.º 20.º:  Assim como emitiu aviso amarelo para o distrito ... por causa de vento forte com rajadas na ordem dos 80 quilómetros por hora entre as 11 horas e as 18 horas de sábado; art.º 21.º:  Ora, é curioso que o Autor, segundo o próprio, se tenha deslocado no sábado dia 19 de Outubro pelas 16 horas, para o meio de pinhais, quando os avisos em causa estavam emitidos; art.º 23.º: Não foi minimamente diligente, cauteloso e não cumpriu com as regras emanadas pela protecção civil quando estamos perante um determinado aviso emitido pelo IPMA.

Portanto, em lado nenhum da contestação se afirma, aberta ou expressamente, que a fractura do pinheiro ocorreu por virtude dos fenómenos climatéricos – maxime, do vento – objeto dos avisos daquele Instituto, alicerçados na respetiva previsão. A afirmação deste facto, deveras essencial, está, na hipótese mais benigna, meramente implícita ou pressuposta naquela alegação contida no articulado de contestação; só na alegação do seu recurso é que os apelantes são terminantes em afirmar abertamente que o facto do colapso do pinheiro e da sua queda sobre o veículo do autor se deveu às condições meteorológicas adversas verificadas na altura, e mesmo durante o dia, nomeadamente aos ventos fortes, e foi, com probabilidade máxima, causada e provocada pelas fortes rajadas de vento e chuva intensa e forte que se fizeram sentir antes e durante a ocorrência do sinistro.

Mas vamos que o facto decisivo, que foi mal julgado, é realmente que a ruptura da árvore se ficou a dever aos fenómenos climatológicos referidos. Para se julgar provado este facto, tem-se por certo, que não basta a existência de um aviso, assente numa previsão de um dado evoluir, no sentido do agravamento, da situação meteorológica. Que a mera previsão de um fenómeno climático relativamente extremo não equivale necessária e comprovadamente à sua concretização e que a previsão desse fenómeno para um território consideravelmente alargado não equivale também à sua inelutável verificação em todo o espaço desse território, é coisa que se compreende por si. A este propósito, convém recordar – como decorre de documento adquirido para o processo - que os avisos IPMA são emitidos por Distrito e não por Município, e que, como do conhecimento comum, o distrito ... tem 3 947 km/2. O mesmo é dizer, que é necessária a prova – e uma prova stricto sensu – de que aquela previsão, referida a um território de dimensões alargadas se concretizou e, mais do que isso, que se concretizou no território ou no espaço em que se deu o evento lesivo.

Outro ponto que logo se impõe à atenção é a ignorância dos factos relativos aos parâmetros dendrométricos da árvore – perímetro e diâmetro da base, altura, massa, relação entre a altura da árvore e o diâmetro do tronco (coeficiente de esbelteza) – desconhecimento que se explica, desde logo, pela ausência de alegação. O exercício da prova permitiu, todavia, adquirir estes factos essenciais – que não são já objecto de controversão - relativos ao estado fisiológico ou fitossanitário do pinheiro: este estava seco e podre, por ter sido queimado no incêndio ocorrido em 15 de Outubro de 2017 e partiu a cerca de 0,5 metros do solo. A morte e o apodrecimento do lenho e também do sistema radicular do pinheiro, afectou, irremissivelmente, o seu desempenho biomecânico, com inevitáveis repercussões na capacidade de carga e na sua estabilidade mecânica. A absoluta ausência de madeira sã, com a consequente perda da sua elasticidade e da capacidade de carga, conduziu à ruptura repentina e inesperada da árvore por fractura localizada muito por perto da base.

Tudo está, porém, em saber se essa ruptura ocorreu – como sustentam os apelantes no recurso – em consequência de um fenómeno meteorológico, maxime de um vento extremo ou ao menos de velocidade elevada. E quanto à velocidade do vento, tem-se por certo, tanto em face da prova pessoal – por declarações de parte e testemunhal - produzida na audiência, como em face da prova documental adquirida para o processo, que se deve ter por indeterminada, dado que, v.g., nenhum dos depoimentos a quantificou, o que não deve surpreender dado, por um lado, que a determinação precisa daquela velocidade reclama o recurso a instrumentos técnicos dotados de fiabilidade científica e, por outro, que, evidentemente, nenhuma das pessoas ouvidas é perita em meteorologia ou arboricultura - nem respondeu nessa qualidade.

É verdade que no relatório de serviço da GNR n.º 126/2019, elaborado pelo Guarda Principal, LL, que se deslocou ao local onde ocorreu o evento danoso e constatou o pinheiro caído sobre o veículo automóvel, do autor se pode ler que no momento em que a patrulha se encontrava no local, fazia vento com alguma intensidade.

Este documento constitui um documento autêntico (artº 369., n.ºs 1 e 2 do Código Civil). Faz prova, por isso, prova plena dos factos que sejam atestadas pela entidade documentadora (art.º 371.º nº 1 do Código Civil).

Este ponto merece ser examinado de forma detida.

A força probatória do documento consiste no valor ou na fé que, como meio de prova a lei lhe confere. Esse valor pode referir-se do documento em si mesmo; ao seu conteúdo. No primeiro caso, têm-se em vista a força probatória formal do documento, a sua autenticidade ou genuinidade; no segundo, a sua força probatória material.

A força probatória formal do documento diz, desde logo, respeito, à proveniência dele, à pessoa de que emana. No tocante à proveniência do documento, estabelece a nossa lei substantiva civil fundamental uma presunção de autenticidade: desde que o documento se mostre subscrito pelo autor, com assinatura reconhecida notarialmente ou com o selo do respectivo serviço, presume-se que provêm da autoridade ou oficial público a quem é atribuído (artº 370 nºs 1 e 2 do Código Civil).

À economia do recurso interessa, porém, a força probatória material do documento, quer dizer, a força probatória dele quanto às declarações ou narrações de que é continente.

Em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova pela dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (artº 371.º, n.º 1, 1ª parte, do Código Civil).

Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (artº 371.º, n.º 1, 2ª parte, do Código Civil). Todavia, os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do juiz (art.º 371.º, n.º 1, 2.ª parte do Código Civil).

 Aquele relatório faz prova plena que, no momento em que o autor se deslocou ao local fazia vento, mas já não a faz relativamente, quanto a esse facto, no momento – anterior - em que ocorreu a queda da árvore - dado que tal facto não foi, evidentemente, percepcionado pelo autor do documento - nem quanto à intensidade do vento, dado que se trata de um mero juízo ou uma avaliação pessoal do documentador. De qualquer modo este documento é claramente insuficiente para inculcar que a factura do pinheiro se ficou a dever-se ao vento ou a outro fenómeno meteorológico adverso[23].

Que no momento em que se deu a queda do pinheiro, fazia vento é uma conclusão que – em face também da prova pessoal produzida na instância recorrida – se deve ter por incontroversa.

Uma das provas que exerceu no ânimo do decisor de facto da 1.ª instância uma influência considerável, foram as declarações de parte do autor, AA. E este limitou-se a reconhecer, nas suas declarações, que tava vento e chuva, choveu assim de manhã, e depois estava uma morganha.

Uma prova cuja determinação da exacta força persuasiva levanta algumas dificuldades é as declarações de parte (artº 466.º, nº 3, do CPC). Prova que, por declaração expressa da lei, está submetida à livre convicção do juiz, salvo, naturalmente se o depoimento conduzir à confissão (art.º 466.º, n.º 3, do CPC). As declarações de parte podem, na verdade, redundar na obtenção de meio de prova de natureza distinta e com diferente valor probatório: confissão; reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam valer como confissão; demonstração de factos favoráveis - caso em que as declarações de parte são livremente valoráveis pelo juiz (art.ºs 352.º e 381.º do Código Civil e 466.º n.º 3, do CPC).

No entanto, não falta quem sustente que as declarações de parte se reconduzem à figura do início de prova e não à de um meio probatório em sentido próprio. Como o princípio de prova é o menor grau de prova - dado que sé vale apenas como factor corroborante da prova de um facto - as declarações de parte não são suficientes para estabelecer por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova do facto: a sua função seria, assim, eminentemente integrativa e subsidiária ou supletiva[24].

Seja como for, as declarações da própria parte – pela natureza das coisas, dado o perigo de parcialidade – devem ser avaliadas com particular prudência. O que bem se compreende: por força da qualidade de parte é natural a tendência do depoente para exprimir pontos de vista que o favoreçam e mesmo a inexigibilidade de dizer a verdade que conhece. Nalguns casos, o depoente reiterará as alegações que produziu nos articulados porque está sinceramente convencido de que a sua versão é a verdadeira. É o caso de boa fé; outras vezes, apesar de reconhecer que essa versão não é verdadeira, confirma-a por fraqueza de ânimo. Pode, finalmente, suceder, que nos articulados a parte tenha atraiçoado a verdade, tenha produzido alegações cientemente falsas: neste caso o mesmo impudor que o levou a faltar à verdade levá-lo-á a reiterar no seu depoimento essas alegações. Tudo, portanto, a aconselhar vivamente a prudência – muita prudência – na avaliação das declarações da própria parte.

No caso, a motivação com que se procurou fundamentar a decisão da questão de facto, parece sensível a um entendimento restritivo do valor probatório das declarações de parte – i.e. que lhe assinala um valor meramente integrativo ou supletivo, portanto, carecido de corroboração por outros elementos de prova – visto que julgou necessário, para se convencer sobre a realidade dos factos discutidos, recorrer, de modo adjuvante, a outras provas.

E, realmente, as declarações do autor encontram nas demais provas pessoais produzidas um elevado grau de confirmação ou corroboração.

Assim, a testemunha LL, declarou que na altura, fazia algum vento, sim, mas não era anormal, fazia vento com alguma intensidade, mas não era assim nada, e perguntado directamente se a queda do pinheiro terá ocorrido pelo vento, a testemunha asseverou que ele acabava por cair normalmente, muito embora noutro passo do depoimento tenha declarado que talvez o vento ajudasse (á queda da árvore). Por sua vez, a testemunha FF – Cabo da GNR que também se deslocou ao local do evento danoso – depois de garantir que o pinheiro esgaçou, esclareceu que se recorda de estar vento, sim, a intensidade em si não sei.

Por seu turno a testemunha II – sogra do autor – também asseverou que não estava assim grande vento, o mesmo sucedendo com a depoente JJ – cônjuge do autor – que garantiu que não havia muito vento, havia aquela chuva miudinha, mas não assim muito vento, que não estava nenhum temporal, nenhuma tempestade.

Decorre do depoimento designadamente da testemunha LL – e do relatório que produziu – que a queda do pinheiro que se abateu sobre a viatura automóvel do autor, foi a única ocorrência da queda de árvores, foi só essa, que aquele pinheiro foi a única árvore que caiu, o que também foi asseverado pela testemunha GG, filha do réu. Pergunta-se: de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, se acaso se verificassem as condições climatéricas extremas, designadamente em termos de vento, que os réus alegam no recurso, não seria expectável que caíssem mais árvores e não apenas uma?

Os apelantes ordenados pelo propósito de demonstrar a autoexposição em perigo do autor, transcrevem troços vários dos depoimentos, designadamente dos militares da GNR. Não se vê, porém, em que é que esses passos dos depoimentos concorrem para estabelecer, a realidade dos factos objeto de controversão, sobretudo o relativo à severidade das condições meteorológicas, designadamente quanto ao aspecto capital da velocidade do vento. O mesmo sucede com o enunciado relativo à queda de árvores por todo os País – cuja veracidade também não decorre das provas, designadamente pessoais, produzidas – dado que o facto relevante é antes o de saber se isso ocorreu no local em que se deu o evento danoso, sendo certo que aquela provas convencem que a queda do pinheiro apontado constituiu, nesse local, um acto isolado.

Todas as contas feitas, numa avaliação sã e prudente da prova, podem dar-se como provados os enunciados discutidos? Não, não se pode. E não havendo realmente razão para concluir que a Sr.ª Juíza de Direito tenha incorrido, no julgamento dos pontos de facto controvertidos num error in iudicando, por erro na aferição daquelas provas e, portanto,  que a  convicção que extraiu das provas não foi alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir de forma correcta[25], aquele julgamento deve permanecer intocado. Realmente, desde que a convicção que esta Relação forma a partir a partir das provas produzidas na 1.ª instância – apesar da distância e do modo como delas conheceu – coincide com a da Senhora Juíza de Direito, não há fundamento para alterar a decisão da matéria de facto desta última.

E sendo isto exato, a declaração do direito do caso deve ser construída sobre os factos julgados provados na instância recorrida.

3.4. Concretização.

Os apelantes citam, nas conclusões do seu recurso, com larga liberalidade, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferido no Processo n.º 7838/10.9TBCSC.S1, em 10 de Março de 2016, relatado pelo Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, que no seu ver se pronunciou relativamente a uma situação que, nos seus contornos gerais, é idêntica à presente.  Não, não é – longe disso.

Realmente aquele acórdão assentou, no plano de facto, no seguinte: a árvore causadora do dano – um cedro alto em bom estado de conservação - arrancou-se pela raiz apresentava bom rigor vegetativo, sem mostrar sinais de praga ou doença e apresentava uma copa vistosa, não impondo, por isso, uma vigilância acrescida. Os apelantes, convirão, decerto, que não é, nitidamente, o caso do recurso: o pinheiro estava seco e podre e fracturou-se perto da base. Esta diferente materialidade fáctica impede, decisivamente, a transposição, para o caso do recurso, da solução encontrada pelo Supremo para o caso que julgou no apontado acórdão.

No caso sujeito à atenção desta Relação, é seguro que o estado fitossanitário do pinheiro – com a consequente ausência quase absoluta de resiliência mecânica – criou um risco da verificação, quase certa da sua queda a qualquer momento, pelo que se impunha aos apelantes especiais deveres de vigilância e de cuidado e a adopção de medidas de prevenção adequadas a evitar de concretização daquele risco – v.g. o arrancamento ou o corte da árvore-  e aptas a esconjurar o perigo da ocorrência de danos. A matéria de facto disponível não documenta a adopção dessas medidas, como também não mostra que o colapso do pinheiro se ficou a dever a qualquer facto exterior ou estranho aos apelados, designadamente, a qualquer caso de força maior -  caracterizado, portanto, pelo seu carácter irresistível e inevitável, de que são exemplos v.g., a tempestade, a inundação, o sismo ou acto de autoridade (factum principis) - ou a caso fortuito, quer dizer, a evento revestido por sua vez, das características da irresistibilidade e da imprevisibilidade[26]. A falência do pinheiro deveu-se, antes, a uma culpa negligente, ainda que presumida, dos apelantes, dado que não demonstraram ter cumprido o dever de cuidado, que as circunstâncias lhe impunham e de cuja observância eram perfeitamente capazes.

De outro aspecto, a matéria de facto disponível não permite divisar a violação, pelo recorrido, de quaisquer deveres de cuidado de cuja observância era capaz e lhe era exigível no caso.

De resto, cremos que para este problema se pode obter uma solução juridicamente fundada, convocando para ele o princípio da confiança.

No momento em que ocorreu o facto danoso, o autor dado que nenhum motivo concreto tinha para pensar ou dever pensar de outro modo – não tinha que contar com a queda do pinheiro ou, noutra formulação, podia contar com uma actuação dos apelantes conforme com os deveres de vigilância e de cuidado que o estado fitossanitário e biomecânico do pinheiro irrecusavelmente impunham.  Mas não foi isso que sucedeu.

Reitera-se: a matéria de facto colocada à disposição da sentença – e deste acórdão - só relativamente aos apelantes permite afirmar ou fundamentar, em definitivo, uma culpa negligente, ainda que meramente presumida.

Em face da matéria de facto julgada provada pelo tribunal de que provém o recurso, não há, pois, também a mínima razão para que se deva concluir que o dano tenha sido provocado, no todo ou em parte, pelo lesado – ou por qualquer facto exterior ou estranho aos apelantes, designadamente, por condições climatológicas anormalmente adversas - e, portanto, não há qualquer fundamento para excluir ou sequer reduzir o valor do dever de indemnizar a que a sentença apelada vinculou os recorrentes.

               O recurso deve, pois, improceder.

               O conjunto da argumentação relevante que sustenta a decisão da inadmissibilidade da ampliação do objecto do recurso e de improcedência deste, pode resumir-se nestas proposições:

               - A ampliação do objeto do recurso da parte contrária só é admissível nos casos em que à parte não é facultada, por falta de legitimidade ad recursum – decorrente da circunstância de ser parte vencedora - a interposição de recurso independente ou subordinado: se a parte não for vencedora, mas vencida, ainda que só parcialmente, a lei não lhe abre a faculdade da ampliação do objeto do recurso, o que se compreende dado que neste caso lhe é lícito interpor recurso autónomo independente ou só subordinado;

               - A correção do erro do apelado sobre o meio processual adequado a levar ao tribunal ad quem a apreciação de parte do seu pedido no qual sucumbiu, não é admissível, se o direito ao recurso autónomo independente tiver sido atingido pela caducidade e a convolação do requerimento de ampliação do objeto do recurso para recurso subordinado importar uma diminuição das garantias processuais do apelante;

               - Aquele que detém uma coisa – por exemplo, uma árvore - com o dever de a vigiar, responde pelos danos que ela causar, excepto se provar que não teve culpa ou que os danos se teriam igualmente produzidos ainda que não houvesse culpa sua;

               - O fundamento material geral desta imputação subjetiva residirá aqui em que a comunidade tem de poder confiar em que exerce o poder de domínio sobre um bem determinado, acessível a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar do estado ou de situações perigosas;

               - Quem domina uma fonte de riscos determinável dentro de um âmbito de atuação objetivável, fica vinculado a deveres de cuidado e de prevenção- só determináveis em concreto - devendo actuar no sentido do afastamento ou da minimização dos perigos que daquela coisa resultam para terceiros, sob pena de responsabilidade;

- Se a coisa a vigiar não for em si mesma perigosa, aqueles deveres valerão no tocante a perigos especiais que dela partam;            

               - O vinculado à vigilância, por exemplo, de uma árvore, pode alijar a sua responsabilidade em dois casos: se provar que nenhuma culpa houve da sua parte; se demonstrar que os danos sempre se produziriam, ainda que não houvesse culpa sua, hipótese em que pode prevalecer-se da relevância negativa de causas virtuais;

- A imputação delitual negligente é negativamente delimitada pelo chamado princípio da confiança, de harmonia com o qual quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo, dado que, como regra geral, não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie que os outros cumprirão os seus deveres de cuidado.

Os apelantes sucumbem no recurso. Essa sucumbência, de harmonia com o princípio da causalidade, torna-os responsáveis pelas respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Por sua vez, o apelado deu causa ao incidente de rejeição da ampliação do recurso, estranho ao seu normal desenvolvimento, no qual sucumbiu. Deverá, por essa razão, por aplicação do mesmo princípio, suportar as custas dele (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC e 7.º, n.º 8, do RC Processuais).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

a) Julga-se inadmissível a ampliação, pelo apelado, do objecto do recurso;

b) Nega-se provimento ao recurso.

Custas do recurso, pelos apelantes, e do incidente de ampliação do recurso, com base no valor da ampliação, pelo apelado.

                                                                                                                      2022.07.12


[1] João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, 2022, pág. 162.
[2] Acs. do STJ 29.05.2014 (1092/10.OTBLSD-GP1.S1) e da RP 16.09.2013 (312/12.OTBMAI.P1) e 29.05.2014 (1092/10.OTBLSD-G. P1. S1); Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 145 e 149.
[3] Por último – reponderando, aliás, o seu pensamento, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 432.
[4] Ac. STJ 24.02.2022 (1238/20).
[5] António Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 233, e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., págs. 305 a 307; AUJ n.º 2/2010 e Ac. STJ de 08.02.18 (4140/16).
[6] Se se tiver presente que a culpa se resolve um juízo de censurabilidade ou de reprovação de um comportamento do agente que só existe se tiver ocorrido a prévia violação de normas – i.e. a ilicitude – esta presunção de culpa é, no fundo, uma presunção de ilicitude, dado que, havendo dano provocado por uma coisa, se postula ter havido violação do dever de a vigiar. Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina Coimbra, 2010, pág. 584.
[7] Vaz Serra, BMJ n.º 85, pág. 365.
[8] Rui Paulo Coutinho Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade Civil por Violação dos Deveres de Tráfego, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 369.
[9] Cfr. Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega, Lisboa, págs. 256 a 267.
[10] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004, págs. 313 a 321.
[11] Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Sobre os fundamentos da doutrina penal, Sobre a doutrina geral do crime, Coimbra Editora, 2001, págs. 355 e 356.
[12] Ac. do STJ de 07.11.00, CJ, III, pág. 104.
[13] A fixação da conexão entre a conduta ou condutas e o evento danoso é uma questão de facto subtraída, portanto, à competência decisória do Supremo Tribunal de Justiça, embora este, muitas vezes, não resista a considerar a aplicação do artº 563 do Código Civil como questão jurídica, com o argumento, pouco consistente, de que é necessário indagar a causa jurídica de certo evento. Cfr. Antunes Varela RLJ, Ano 122, pág. 120.
[14] Cfr., v.g., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 743 e ss., Pereira Coelho, o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil, BGD, Suplemento nº IX, Coimbra, 1976, pág. 201 e ss. e Miguel Teixeira de Sousa, Da Responsabilidade Civil por Factos Lícito, Lisboa, 1977, pág. 124 e ss. Menezes Cordeiro - Direito das Obrigações, cit., págs. 338 e 338 – sugere a integração da causalidade na própria conduta e, consequentemente a sua sujeição ao juízo de ilicitude: nesta perspectiva, a averiguação da causalidade adequada limitar-se-ia à indagação da licitude de certo comportamento face a um concreto dano e à identificação da adequação com a verificação do fim visado pelo agente.
[15] Ac. do STJ de 13.01.09, www.dgsi.pt.
[16] Pereira Coelho, O Problema da Relevância da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, págs. 31 a 34 e Ac. do STJ de 13.01.09, www.dgsi.pt. Na jurisprudência nota-se, nos casos de conculpabilidade, o recurso tendencial à doutrina da causa adequada, numa metódica que parte frequentemente do tratamento coincidente das questões da culpa e do nexo causal. Verifica-se, na verdade, uma preocupação maior pelos problemas ilicitude e da culpa, secundarizando o aspecto central e decisivo da adequação entre as condutas e o dano, o que tem, decerto, a ver com a constatação de que uma resposta positiva à questão da culpa facilitará a formulação do juízo causal. Cfr. José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 457 a 459.
[17] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004, págs. 313 a 321.
[18] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[19] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., pág. 237 e João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.
[20] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.
[21] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 333 e 334.
[22] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. STJ de 14.5.93, CJ STJ, 93, II, pág. 62 e RL de 2.11.95, CJ, 95, V, pág. 98.
[23] Esta conclusão harmoniza-se com a natureza de documento testemunhal que, em princípio, se deve assinalar à participação do evento. Dado que contém apenas uma informação acerca de acontecimentos que ocorreram goza, por isso, de uma força probatória material limitada, pelo que é admissível a prova de que o testemunho é inexacto, i.e., de que o acontecimento se passou de maneira diferente. Cfr. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 111, págs. 123 e 133.

[24] Carolina Braga da Costa Henriques, Declarações de Parte, pág. 48, disponível em wwwestudogeral.sib.uc.pt, Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum á Luz do Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 278, e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 357, e Acs. da RP de 15.09.2014, 20.11.2014, 17.12.2014, 26.06.2014 e 30.06.2014; criticamente, Miguel Teixeira de Sousa, entrada de 20.01.2017, acessível em https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudência-536.html#links; diferentemente, contra a degradação antecipada do valor probatório das declarações, por não ter fundamento legal, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos da prova legal, Luís Pires de Sousa, As Malquistas Declarações de Parte ("Não acredito na parte porque é parte")», disponível no sítio do STJ http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/CPC2015/painel_1_articulados_audiencialuissousa.pdf; Catarina Gomes Pedra, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil/Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito do Minho, 2014, pág. 145, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80, Elisabete Fernandes “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa?” Sobre a (in)coerência do Sistema Processual a este Propósito, Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, pág. 36., Acs. da RP de 23.03.2015 e de da RE de 12.03.2015, www.dgsi.pt. e, por todos, Ac. da RL de 26.04.2017 (18591/15.OT8NT.L1-7).
[25] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pág. 521.
[26] Antunes Varela, RLJ, Ano 119, págs. 274 e 275.