Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3638/10.4TJCBR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PESSOA SINGULAR
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5.º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 239º B) E I) DO CIRE
Sumário: I – A exoneração do passivo restante é uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor, pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração, fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

II - Não é possível sustentar, sem colocar em causa os limites do estado de direito em que vivemos, que o salário mínimo nacional não permite um sustento minimamente digno; e/ou que será impossível com dois salários mínimos fazer face ao sustento mínimo de uma família com dois filhos menores.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

No requerimento de apresentação à insolvência, os devedores/apresentantes A... e B..., ambos com os sinais dos autos, requereram a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE.

Tendo sido declarados insolventes e prosseguindo os autos, tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante, o Ex.mo Juiz – após os credores se haverem manifestado contra tal pedido de exoneração – considerou não existir motivo legal para o indeferimento liminar de tal pretensão dos insolventes e, entre outras coisas, determinou, no “despacho inicial”, que, “durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível – correspondente aos valores superiores ao montante da remuneração mínima mensal garantida fixado anualmente – que os insolventes venham a auferir se considere cedido à fiduciária ora nomeada”.

Inconformados com este segmento da decisão, interpuseram ambos os insolventes recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outro que determine “a cedência ao fiduciário do valor dos seus salários correspondentes a 1/3”.

Não foram produzidas quaisquer contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação
II b) – De facto
Em termos estritamente factuais – e respigados do Relatório do art. 155.º do CIRE – é possível alinhar, com relevo, o seguinte:
 - Em 2010, o recorrente auferiu, como chefe de vendas, o rendimento mensal bruto de € 2.293,00 (a que acresce, de comissões, cerca de € 300,00); e a recorrente auferiu, como vendedora, o rendimento mensal bruto de € 694,00.
 - Os créditos reclamados ascendem a € 340.594,06 (€ 286.775,05 de capital e o restante de juros); destacando-se os créditos do Banco C...., D.... e E...., nos valores de, respectivamente, € 130,759,98, € 117.518,10 e € 43.388.96.
- O património apreendido aos insolventes é constituído por um prédio urbano – casa de habitação de rés-do-chão, 1.º andar e logradouro – sito em ...., Antuzede, que se encontra hipotecado a favor do E.....
- Os insolventes têm 2 filhos menos, com 13 e 7 anos, a seu cargo.

*

II b) - De Direito

Não será supérfluo começar por referir – contextualizando juridicamente a questão sob recurso do rendimento a excluir da cessão – que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e tem como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[1].

É assim uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade[2]; a “exoneração” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “leviana”, que se infere que não pensaram “duas vezes” quando se deram conta que era “fácil” obter um financiamento, que se recusaram a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair “levianamente”; a exoneração não pode/deve servir para, contraídas avultadas dívidas[3], se pretender, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar.

É esta, pelo menos, a história e a razão de ser do “instituto”; como, “confessadamente”, o CIRE o assumiu no seu preâmbulo.

Estando a exoneração do passivo já em definitivo não liminarmente indeferida, vem isto a propósito da concretização prática da exoneração, em linha com a sua ratio e o seu escopo, não poder/dever equivaler a uma “remissão”.

Vejamos:

É ainda no despacho inicial – em que, como foi o caso, não se indeferiu liminarmente o pedido de exoneração – que o juiz determina a parte do rendimento que fica excluída da cessão à entidade designada por “fiduciário”; que o juiz determina que, durante um período de 5 anos – prazo fixo que não depende do prudente arbítrio do juiz – subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado como período de cessão, o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, designada fiduciário, para os fins do art. 241.º.

Rendimento disponível” que, segundo o art. 239.º, n.º 3, do CIRE, é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, designadamente, “do que seja razoavelmente necessário para i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional

A exclusão em causa – é uma observação óbvia – é a resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento coloca ao devedor/insolvente (e ao seu agregado familiar).

Assim, na definição da amplitude do “rendimento disponível”, é certo e seguro que, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora (do “rendimento disponível” a ceder) uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.

Cumprindo tal inevitabilidade, o legislador enunciou, a nosso ver, em termos de limite mínimo da exclusão, o critério “do que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”; logo acrescentado, em termos de limite máximo, que não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional.

É esta a “leitura” que fazemos do preceito em causa; ou seja, o legislador não adoptou um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno.

Tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não estamos autorizados a afirmar que o legislador, quando, ano após ano, fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia o montante que para tal efeito fixa como 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno. Por outro lado, “sustento minimamente digno” não se confunde com mínimo de sobrevivência, uma vez que também no nosso ordenamento jurídico existe, “abaixo” do salário mínimo, como critério orientador de tal limite mínimo de sobrevivência, o rendimento social de inserção[4].

Enfim, encurtando razões, a exclusão imposta pelo art. 239.º, n.º 3, b), i) pode ser do montante do salário mínimo nacional.

Montante em que – concordando com a decisão recorrida – se considera adequado fixar a quantia que os devedores/recorrentes devem receber durante o período da cessão; se considera adequado fixar os rendimentos a excluir da cessão[5].

Alude o art. 239.º, b), i), do CIRE, é certo, ao sustento minimamente digno, não só do devedor, mas também do seu agregado familiar; que, no caso, é composto pelos 2 recorrentes e pelos 2 filhos menores, porém, para tal, para um sustento minimamente digno, ficarão não apenas com um mas com dois salários mínimos nacionais.

Reconhece-se que se trata-se dum montante – os dois salário mínimos – que obrigará os recorrentes e o seu agregado familiar a viver, nos próximos cinco anos, com comedimento e modéstia; não é preciso sequer qualquer elemento factual explícito para sustentar tal afirmação, uma vez que pertencem ao domínio dos factos públicos e notórios os gastos/despesas que é imprescindível efectuar para obter o indispensável para o sustento, habitação e vestuário dum agregado familiar de 4 pessoas.

De todo modo, não é possível sustentar, sem colocar em causa os limites do estado de direito em que vivemos, que o salário mínimo nacional não permite um sustento minimamente digno; e/ou que será impossível com dois salários mínimos fazer face ao sustento mínimo de uma família com dois filhos menores.

Importa não esquecer – daí o percurso e ênfase inicial – que o escopo do instituto da “exoneração”, requerido por ambos os recorrentes, é a extinção de todas as sua obrigações – é o começar de novo, “aprendida a lição”, sem dívidas – o que necessariamente significa, para si próprios, a assunção de “custos” e sacrifícios durante os 5 anos da cessão; o que, com o devido respeito, não aconteceria se a exclusão da cessão se fizesse nos termos pretendidos pelos recorrentes[6].

Em poucas palavras:

O critério decisivo para excluir rendimentos da cessão não reside no que os devedores/insolventes dizem que precisam para o seu sustento; o que cada um de nós diz que precisa para o seu sustento é algo especulativo e, por certo e com o devido respeito, as mais das vezes nem serão aqueles que se deixaram cair em situação de insolvência que têm sobre o assunto a melhor “norma”.

O critério decisivo para excluir rendimentos da cessão reside no que é necessário, num plano de normalidade e razoabilidade, para o sustento mínimo; independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até gerou a situação de insolvência – ou pretende manter.

Os sacrifícios, como é justo e equitativo, devem ser repartidos entre os credores, que ficarão sem receber uma parte possivelmente significativa dos seus créditos[7], e os devedores; a extinção dos créditos e a exoneração dos devedores, no final dos 5 anos, não podem induzir ou incentivar um desvalor comportamental – aquilo a que a teoria económica designa como “risco moral”.

Em conclusão, confirma-se a decisão recorrida em que se determinou que, durante o período da cessão (que se prolongará por 5 anos), fique excluída tão só uma quantia igual a um salário mínimo nacional (em relação a cada um dos insolventes/requerentes.


*

III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.


*

Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[2] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[3] Para o rendimento e património de quem contrai tais dívidas.

[4] Criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio, e que consiste numa prestação que visa conferir apoios para a satisfação das necessidades essenciais.
[5] Atento o disposto no art. 88.º do CIRE, não se compreende o motivo por que os recorrentes dizem que continuam com os seus vencimentos penhorados.

[6] Nas execuções pendentes contra si, segundo dizem os recorrentes, tinham 1/3 dos salários penhorados, pelo que se a exclusão se fizesse conforme o pretendido nenhum “custo” adicional teriam que assumir com a presente exoneração, mas apenas a “vantagem” da redução em 1/3 dos seus vencimentos (e a totalidade das dívidas) se extinguir ao fim de 5 anos.

[7] Se os credores não são prudentes, se, como é o caso, instituições de crédito emprestam montantes que, à partida e num plano de normalidade, logo se percebia nunca os devedores iriam ter possibilidades de pagar, não podem legitimamente pretender e aspirar que os devedores – que também foram imprudentes ao pedir e aceitar empréstimos de montantes que não podiam pagar – fiquem vinculados às dívidas para sempre; a exoneração do passivo também tem em vista evitar as situações de imprudência dos credores, também existe para provocar contracção no crédito e produzir impacto positivo na economia, para impor exigência e responsabilidade a quem concede crédito, uma vez que se assim se proceder/esse menor é o risco de sobre endividamento e de insolvência.