Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
570/10.5TBMGR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PASSIVO
EXONERAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 11/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 238.º, 1, C) DO CIRE; LEI N.º 34/2004, DE 29/07; D.L, 53/2004, DE 18/03
Sumário: 1. O pedido de protecção jurídica previsto no artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29/07, quando não for feito no decurso da causa a que respeita, não interfere com o decurso do prazo para o pedido de exoneração do passivo restante, previsto no artigo 238.º, n.º 1 do CIRE.

2. Logo que constate que se encontra em situação de, generalizadamente, não poder cumprir os seus encargos, o devedor deve apresentar-se à insolvência, por forma a que os credores fiquem a conhecer a real situação e possam accionar as medidas conservatórias e de garantia de que disponham (se for esse o caso) ou de accionar os meios legais coercivos de que possam dispor para a satisfação dos respectivos créditos.

3. Tudo sem embargo de o devedor, em caso de apresentação tardia, poder demonstrar que, na prática, tal prejuízo não ocorreu.

4. Não podem beneficiar do regime de exoneração do passivo restante, de carácter excepcional, os que pura e simplesmente contraíram dívidas para as quais sabiam não ter meios de as pagar por estarem acima das suas possibilidades económicas, com prejuízo para os credores.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

            A...e mulher B..., já identificados nos autos, requereram a sua declaração de insolvência, com o fundamento em se encontrarem numa situação de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante e pelas circunstâncias do incumprimento, revelam a impossibilidade de satisfazerem pontualmente as suas obrigações.

            Designadamente, de acordo com o que alegam, a requerente mulher foi operada a um joelho, o que motivou que estivesse de baixa médica durante algum tempo e em que já auferia subsídio de desemprego, pelo que mais nada lhe foi pago, após o que só conseguiu empregos temporários, o que diminuiu os rendimentos do casal requerente.

            De tal forma que, foram contraindo sucessivos créditos pessoais e de consumo, perante vários bancos e entidades, para além do crédito à habitação que já haviam contraído, que acarretam uma prestação mensal de 2.200,93 €, que corresponde a um total de créditos assumidos no valor de 97.775,62 €, sendo que o requerente marido aufere um ordenado mensal ilíquido, no montante de 579,00 € e a requerente mulher o de 550,00 €, também ilíquido.

            Quanto a tal convém especificar que, de acordo com a própria alegação dos requerentes (cf. artigo 10.º do requerimento inicial), a prestação mensal referente ao crédito para habitação ascende ao montante de 186,97 €, correspondente ao valor do empréstimo de 54.786,20 €, pelo que toda a demais quantia que pagam mensalmente (no valor de 2.200,93 € - cf. artigo 15.º do mesmo articulado) se refere a créditos pessoais e de consumo e do uso de cartão de crédito.

            Concluem que face a tais rendimentos não têm qualquer hipótese de pagarem os créditos assumidos, a que acrescem as despesas normais do agregado familiar, agravadas pelo facto de terem um filho menor.

            Mais alegam que entraram em incumprimento generalizado das suas obrigações desde Setembro de 2009, sendo que o seu pedido de declaração de insolvência deu entrada em juízo em Abril do corrente ano (foi distribuído em 07 de Abril).

            Mais alegam não ter quaisquer outros bens para além dos indicados, de que sobressai uma fracção de um prédio urbano, sito na Marinha Grande, que se encontra hipotecado ao BPI e um veículo automóvel, que foi avaliado em 350,00 €.

            Concomitantemente, com o pedido de declaração de insolvência, deduziram o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 235.º e seg.s do CIRE por, segundo alegam, preencherem todos os requisitos nos mesmos exigidos, em função do que se predispõem a ceder o rendimento disponível no montante que viesse a ser fixado.

            No decurso da assembleia de credores, o M.mo Juiz, na decorrência da formulação de tal pedido, deu a palavra ao Sr. Administrador da Insolvência e aos credores, para se pronunciarem quanto ao mesmo, tendo este informado nada ter a opor a tal pedido, tendo-se-lhe oposto os credores presentes.

            Em seguida, o M.mo Juiz proferiu o despacho que se passa a transcrever (para melhor compreensão da questão a decidir), no qual inferiu liminarmente o referido pedido de exoneração do pedido:

            “Fixa o art. 235.º que, sendo devedor uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

Resulta do Preâmbulo do Decreto Lei n.º 53/2004 de 18 de Março que se está na presença do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a possibilidade de os devedores singulares se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, denominado como de fresh start, concedendo-lhe a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste, restando-lhe uma nova oportunidade de vida.

Portanto, trata-se de um benefício concedido aos insolventes constituindo uma medida de protecção do devedor, que se pode traduzir tanto num perdão de poucas como de elevadas quantias e montantes, exonerando-os dos seus débitos e que, por parte dos credores, se traduz numa perda correspondente. O passivo restante pode constituir, mesmo assim, somas avultadas.

Por outro lado, nunca se pode deixar de ter presente que o processo de insolvência tem, no seu todo, como objectivo precípuo o de obter a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores – já referido no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004 – e que o presente benefício se reflecte apenas na esfera patrimonial do devedor.

Mas, para se ter acesso a tal benefício e ser deferido o pedido, a lei impõe certos requisitos e procedimentos, fixados nos artigos 236.º, 237.º e 238.º.

Desde logo, a concessão efectiva da exoneração pressupõe a não existência, para um indeferimento liminar, da verificação das condições do n.º 1 do art. 238.º e, entre elas e que ao caso em presença interessa, a da al. d), que dispõe que deve ser indeferido o pedido se “O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não o estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos 6 meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Da análise de todos os motivos que se impõem ao tribunal para averiguação e para deferir ou indeferir liminarmente o pedido – alíneas do n.º 1 do art. 238.º - resulta que a função do Juiz será a de verificar se o insolvente merece ou não que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que apenas com concretização a prazo de 5 anos, submetendo-o a um período experimental, denominado “período de cessão” (n.º 2 do art. 239.º), findo o qual poderá terminar em sucesso ou não do mesmo pedido.

Carvalho Fernandes e João Labareda, (in C.I.R.E, Anotado, vol. II, pág. 190), acentua que as alíneas do art. 238.º, n.º 1, embora pela negativa, enumeram os requisitos a que deve sujeitar-se a verificação das condições de exoneração e inclui a al. d) dentro do quadro daquelas que respeitam à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.

De todos os pressupostos negativos previstos no art. 238.º, n.º 1 do CIRE apenas será de apreciar o previsto na já citada alínea d), já que dos elementos constantes dos autos não resulta o preenchimento de qualquer outra.

De acordo com o art. 3º, n.º 1, do CIRE “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

Dos elementos constantes dos autos resulta que os débitos dos insolventes se venceram em Setembro de 2009 (cfr. Artigo 19 e relação de credores de fls. 15), tendo-se apresentado à insolvência apenas em Abril de 2010, ou seja mais de 6 meses após o vencimento de tais créditos, estando portanto desde Setembro em situação de Insolvência.

Ora, estando em causa dívidas já vencidas que acarretam, o imediato vencimento de juros (de mora), o atraso do devedor em apresentar-se à insolvência causa, necessária e directamente, prejuízo aos credores, em virtude do avolumar do passivo daí decorrente, independentemente do valor desses juros ser mais ou menor elevado, já que o aludido preceito (artigo 238º nº1 alínea d) apenas falta em prejuízo (neste sentido vide acórdão da Relação do Porto de 20 de Abril de 2010, in www.dgsi.pt).

E refere-se no acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Janeiro de 2010 in www.dgsi.pt que “Uma vez que os créditos vencem juros, o mero decurso do tempo leva ao aumento da quantia em dívida, o que se traduz igualmente numa maior dificuldade de o devedor solver a mesma, tanto mais que a sua situação económica desde o início que se mostrou precária e assim continuou ao longo dos anos, sem qualquer possibilidade realista de significativa melhoria”.

Por outro lado os devedores não ignoravam e alegam-no, que a sua situação desde aquela data (Setembro de 2009 até Abril de 2010) não melhorou, sendo que os mesmos apenas tem como rendimento os seus vencimentos, ou seja, estando desde Setembro de 2009 em incumprimento e não havendo razões para que tal situação se alterasse para melhor, deveriam desde logo ter requerido a sua insolvência o que se não compreende que não tenham feito e ao não fazê-lo aumentaram o montante da dívida e as dificuldades inerentes em as mesmas serem liquidadas. Assim terá que se concluir que os devedores in casu agiram com culpa no agravamento da sua situação.

Nestes termos, decorre do exposto que está inteiramente preenchida a previsão contida na alínea d) do art. 238.º do CIRE, pelo que não pode o insolvente beneficiar da exoneração do passivo pretendida.

Assim, e ao abrigo do disposto no art. 238º, n.º 1, al. d) do CIRE e considerando também a posição assumida pelos credores, indefiro liminarmente o pedido de exoneração.”

           

            Inconformados com tal decisão, interpuseram os requerentes o presente recursos de apelação, concluindo a sua motivação do seguinte modo:

I. Não se pode inferir, pelo facto de os Recorrentes apenas se terem apresentado à insolvência em Abril de 2010, sendo que o incumprimento generalizado dos seus créditos se reporta a Setembro de 2009 – sendo certo que o incumprimento de alguns créditos se refere a uma data posterior – que tal facto signifique que desde essa data se verifica a situação de insolvência, tal qual esta vem configurada nos artigos 3.º, n.º 1 e 20.º, ambos do CIRE.

II. Atendendo à noção de situação de insolvência e ao facto de terem os Recorrentes liquidado as suas obrigações até Setembro de 2009 - e outras até data posterior - e tendo-se apresentado à insolvência em Abril de 2010, mas tendo formulado o pedido de protecção jurídica junto do Instituto da Segurança Social, em Fevereiro de 2010, tendo sido deferido tal pedido em Março de 2010, conforme consta dos autos, não se pode entender que houve atraso na apresentação à insolvência.

III. Os Recorrentes diligenciaram por essa apresentação dentro do prazo de seis meses estabelecido na alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, tendo já o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão proferido pela 6.ª secção, em 11-02-2010, no processo n.º 2259/09.9TBBRR.L1, entendido como relevante a data de apresentação do requerimento de protecção jurídica, junto do Instituto da Segurança Social, I.P., tendo determinado que “A situação de “Insolvência” está definida no art.º 3.º da seguinte forma: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”. Atendendo a esta noção, ao facto, não contestado, constante do relatório da Sra. Administradora, de que os requerentes foram pagando as prestações até Janeiro de 2009 e tendo o pedido de insolvência sido formulado em Tribunal em Julho de 2009, mas com formulação de pedido

de protecção jurídica junto da Segurança Social – fls. 25 – a 16 de Julho de 2009, não existe fundamento para se poder considerar que os requerentes se apresentaram à insolvência após o decurso dos referidos 6 meses.”.

IV. Os Recorrentes apresentaram-se à insolvência no prazo de 6 meses após o conhecimento que se encontravam nessa situação de insolvência, até porque a verificação da situação de insolvência pode não coincidir temporalmente com a data do primeiro incumprimento das prestações dos créditos.

V. Mesmo que se entenda que os Recorrentes não se apresentaram à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – o que apenas se concede por mera questão de raciocínio – não constitui motivo justificativo que esse facto, necessariamente, conduza ao indeferimento da concessão da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE.

VI. O preceito fundamentador do indeferimento da exoneração do passivo restante, exige, cumulativamente, que o devedor, não estando obrigado a se apresentar à insolvência, não o tenha feito nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, exigindo ainda que exista prejuízo para os credores, bem como exige que o devedor soubesse, ou não pudesse ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

VII. Não resulta nos autos, ainda que residualmente, que os credores tenham sofrido qualquer prejuízo pela não apresentação à insolvência, por parte dos Recorrentes, nos seis meses posteriores à verificação da situação de insolvência, nem tão pouco algum credor alegou esse facto, nem tão pouco se fez prova que o facto dos Recorrentes não se terem apresentado em data anterior tenha causado prejuízo a qualquer um dos credores, ou sequer agravado esse prejuízo.

VIII. Atentos os motivos fundamentadores alegados pelos credores para se oporem a que seja concedida a exoneração do passivo restante aos Recorrentes, é forçosa a conclusão que não foram trazidos para o processo factos e elementos que levassem o Meritíssimo Juiz “a quo” a concluir de forma inequívoca que se deve aplicar, ao caso em apreço, o disposto no artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE, nem tão-pouco esses elementos constam dos autos.

IX. O único prejuízo que o Meritíssimo Juiz “a quo” afirma ter existido para os credores foi o vencimento de juros, sendo que o avolumar de juros de mora não significa, impreterivelmente, a existência de prejuízo para os credores.

X. O vencimento de juros de mora não equivale ao prejuízo a que se reporta o artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE.

XI. Existe jurisprudência nesse mesmo sentido, como o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 2538/07.0TBBRR.L1-2, proferido em 14.05.2009; Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 347/08.8TBVCD-D.P1, proferido em 11.01.2010; Acórdão proferido no processo n.º 1376/09.0TJPRT.P1, pela 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto, em 15 de Abril de 2010, e Acórdão proferido por esse Exmo. Tribunal da Relação, no processo n.º 1793/09.5TBFIG-E.C1, em 22 de Fevereiro de 2010, todos in www.dgsi e cujo sumários, para os quais se remete, já foram expostos nas alegações do presente recurso.

XII. Torna-se evidente, até tendo por base as supra mencionadas decisões de tribunais superiores, que não sendo os juros o prejuízo a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE, tornava-se necessário a existência de outro tipo de prejuízos, designadamente a existência de diminuição de património por parte dos Recorrentes, facto que não ocorreu, não é alegado ou sequer foi fundamento do despacho de que se recorre.

XIII. Compulsados os autos não existem prejuízos para os credores, e, principalmente, não foram fundamentadores do despacho de que se recorre, que apenas se cinge à existência de juros.

XIV. Os Recorrentes apresentaram-se à insolvência sem que tivessem tido conhecimento da existência de uma qualquer acção judicial interposta contra si, pelo que mais uma vez aqui se demonstra que inexiste algum prejuízo para os credores; caso assim fosse, certamente que os credores não deixariam de accionar judicialmente os Recorrentes e dessa forma tentariam mitigar os seus “alegados” prejuízos.

XV. O que leva a que exista prejuízo para os credores é o agravamento da situação económica dos Recorrentes, no lapso de tempo decorrido desde a verificação da situação de insolvência até ao momento em que os Recorrentes se apresentam à insolvência, tendo necessariamente de existir um agravamento da situação financeira, facto que não ocorreu pois a situação financeira dos Recorrentes manteve-se a mesma, tendo estes mantido o seu património na integra, bem como os seus habituais postos de trabalho.

XVI. Não resulta dos autos que os Recorrentes soubessem, ou não pudessem ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, nem, como é óbvio, pode tal resultar dos autos.

XVII. Em parte alguma dos autos resulta que os Recorrentes soubessem não existir uma perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, uma vez que ambos se encontram empregados, a trabalhar e a receber o mesmo vencimento que recebiam aquando da contratação de cada um dos créditos que lhes foram concedidos pelos credores que agora se opõem a que seja conferida a exoneração do passivo restante aos Recorrentes, quando é certo que na altura em que os créditos foram concedidos os vencimentos auferidos pelos Recorrentes, bem como o seu património – que se manteve o mesmo - se afiguravam mais do que bastantes para a concessão de tais créditos.

XVIII. A manutenção dos seus actuais postos de trabalho não pode ser encarado como um agravamento da situação económica por parte dos Recorrentes, nem tão pouco pode ser encarado como a consciencialização por parte dos Recorrentes, com culpa grave, conforme a lei exige, que sabiam inexistir qualquer perspectiva séria da sua situação.

XIX. A lei não se basta com o agravar da dívida; a lei exige efectivamente um prejuízo para os credores decorrente do agravamento da sua situação financeira, que no caso sob judice, não se verifica.

XX. Não é suficiente, no nosso modesto entendimento, dizer que como não foi cumprido o prazo de seis meses, que tal facto acarreta invariavelmente prejuízo para os credores (que no despacho de que se recorre apenas se cifra em juros) e que os Recorrentes teriam necessariamente consciência, com culpa grave, de que não havia perspectivas sérias de melhoria da sua situação económica.

XXI. Nesta esteira já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 374/09.8TBPFR-G.P1, proferido em 1 de Outubro de 2009; o Acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 4501/08.4TBPRD_G.P1, proferido em 25-03-2010; Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 286/09.5TBPRD-C.P1, proferido em 6.10.2009, todos in www.dgsi.pt, e Acórdão emanado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 11.02.2010, no processo n.º 2259/09.9TBBRR.L1, cujos sumários, para os quais remetemos, foram já explanados nas alegações do presente recurso.

XXII. O Senhor Administrador da Insolvência não se opôs a que fosse concedida a exoneração do passivo restante aos Recorrentes, tendo determinado o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão proferido no processo n.º 499/08.7TBBAO-B.P1, de 3 de Agosto de 2009, que “… sem embargo de considerarmos que a última palavra pertence sempre ao julgador, nem por isso este deve ignorar o que a este respeito é dito pelo Administrador da Insolvência, dado os especiais e particulares conhecimentos que este adquiriu ao longo do processo acerca das reais e concretas causas que transformaram o estado de insolvência do apelante.”

XXIII. Andou mal o Meritíssimo Juiz “a quo” ao indeferir o pedido de exoneração do passivo restante tempestivamente apresentado pelos Recorrentes, com base no disposto na alínea d), do n.º 1, artigo 238.º, do CIRE, tendo feito uma errada interpretação e aplicação do mencionado preceito legal.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser o despacho de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante substituído por outro que defira a exoneração do passivo restante aos Recorrentes, por todos os requisitos se encontrarem devidamente preenchidos por parte dos Recorrentes, em conformidade com as presentes alegações.

Assim, será feita, como sempre, inteira J U S T I Ç A!

           

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            O recurso foi admitido, cf. despacho de fl.s 223, como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:

            A) Se os requerentes se apresentaram à insolvência dentro do prazo de seis meses previsto no artigo 238.º, n.º 1, al. d) do CIRE e;

            B) Se se verificam os requisitos para que o pedido de exoneração do passivo restante seja liminarmente indeferido.

Os factos para tal relevantes são os que constam do relatório que antecede.

            A) Se os requerentes se apresentaram à insolvência no prazo de seis meses previsto no artigo 238.º, n.º 1, al. d) do CIRE.

            Defendem os recorrentes que assim é porque verificando-se o incumprimento generalizado dos seus créditos em Setembro de 2009 se apresentaram à insolvência em Abril de 2010, mas tendo formulado o pedido de protecção jurídica em Fevereiro de 2010, que veio a ser deferido em Março do mesmo ano, pelo que se tem de considerar que se apresentaram tempestivamente à insolvência.

            De acordo com o artigo 238.º, n.º 1 do CIRE, os requerentes (porque não estavam obrigados a apresentar-se à insolvência – cf. artigo 18.º, n.º 2 do mesmo diploma legal) deveriam ter requerido a sua insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.

            Dado que esta ocorreu em Setembro de 2009 e só o fizeram em Abril de 2010, é óbvio que o referido prazo de seis meses se acha ultrapassado.

            Contrapõem os recorrentes, no entanto, que assim não é porque, em Fevereiro de 2010 requereram protecção jurídica, a qual lhes veio a ser deferida no mês de Março seguinte.

            Carecem de razão em tal alegação.

            Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29/07, o procedimento de protecção jurídica é autónomo relativamente à causa a que respeite, salvo se apresentado na pendência de acção judicial e se pretender a nomeação de patrono (n.os 1 e 4 deste preceito).

            Ora, desde logo, no caso em apreço não estamos perante dedução de tal pedido na pendência da acção (mas previamente), para além de que o requerimento inicial de pedido de declaração de insolvência é subscrito por Mandatário Judicial munido de procuração – cf. fl.s 11 dos presentes autos.

            Daqui decorre, pois, que o pedido de protecção jurídica, em nada interferiu com o decurso do supra aludido prazo de seis meses, havendo que concluir, como se fez na decisão recorrida, que a formulação do pedido de exoneração do passivo restante foi feita para além do prazo de seis meses a que se alude no artigo 238.º, n.º 1 do CIRE.

            Consequentemente, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

            B. Se se verificam os requisitos para que o pedido de exoneração do passivo restante seja liminarmente indeferido.

            Resumidamente, entendem os recorrentes que não, por se exigirem cumulativamente os três requisitos mencionados na al. d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, que não se podem ter por verificados pelo simples decurso do tempo e inerente aumento dos juros de mora devidos.

            Ao invés, na decisão recorrida considerou-se que os devedores ao não se terem apresentado logo, em Setembro de 2009, à insolvência e sem que houvesse razões para fosse expectável uma melhoria das suas condições económicas, contribuíram, culposamente, para o agravar da sua situação económica, aumentando o montante da dívida, decorrente do aumento dos juros de mora e as dificuldades em poderem liquidar as suas dívidas.

            A figura da exoneração do pedido restante surgiu prevista nos artigos 235.º e seg.s do CIRE, na redacção do Decreto Lei n.º 53/2004, de 18/3, a qual no item 45.º da sua exposição de motivos, a justifica como visando obter um ponto de equilíbrio entre “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

            Efectivamente a legislação alemã da insolvência, na qual a nossa foi buscar boa parte da inspiração, consagrou uma figura semelhante à da americana “fresh start” e que na legislação teutónica recebe a designação de “Restschuldbefreiung”, a qual, igualmente, visa conferir aos devedores pessoas singulares, que se viram, por circunstâncias que, em muito ou em larga medida, ultrapassam a sua vontade, numa situação de insolvência, uma oportunidade de começar de novo.

            Volvendo ao nosso ordenamento jurídico, no dizer de Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado (Reimpressão), Quid Juris, Lisboa, 2006, a pág. 184, a referida exoneração “… traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante.”.

            Em sentido semelhante se pronuncia Menezes Leitão, CIRE, Anotado, 3.ª edição, 2006, pág. 220, realçando a intenção de fazer “desaparecer” o peso de uma insolvência anterior.

            Daqui resulta, como é bom de ver, que se trata de uma medida muito gravosa para os credores e que, por isso, de modo algum pode ser erigida em regra mas sim vista como excepção e que só se pode alicerçar no comportamento anterior do devedor.

            Isto é, não se pode permitir que todo e qualquer devedor que, ao endividar-se “não pensou duas vezes em o fazer”, designadamente se tinha meios de liquidar as dividas que contraiu, se não agiu com transparência e boa fé, como e para que fins se endividou, possa, agora, contraídas avultadas dívidas, pretender, sem mais, pagar apenas uma parte delas, ao abrigo do regime excepcional do pedido de exoneração do passivo restante.

            Citando Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea De Estudos Sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, a pág.s 276 e 277:

            “A concessão da exoneração do passivo restante …, depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém.”.

            Ou, no dizer de Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, a pág. 264, tal benesse apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade.

            De resto, realce-se que no item 45 das exposição de motivos do DL 53/2004, de 18/3, já acima parcialmente transcrito se faz expressamente referência às “… pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência,”.

            Do que tem de retirar-se a conclusão, de que, também, no nosso ordenamento jurídico, a figura da exoneração do passivo restante tem de ser vista como uma excepção e não a regra.

Como um benefício que só se pode basear num comportamento do devedor que se viu incorrer numa situação de insolvência, não obstante ter pautado a sua conduta por regras de rectidão, honestidade, transparência e boa fé, mas não já para casos em que o devedor apenas pensou em contrair toda a espécie de créditos, sabendo, desde o início, não ter possibilidades de os pagar e sem que se vislumbre, comprovadamente, que se trata da satisfação de necessidades essenciais, como a habitação ou a saúde e de uma situação de insolvência em que, de forma imprevisível, se viu envolvido.

            Os requisitos de que depende a concessão de tal benefício, são os que constam do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, incumbindo-nos, no caso presente aferir o previsto na sua ald. d), de acordo com a qual:

“O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.          

            Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. (CIRE; Anotado), a pág. 190, encontram-se ali definidas, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende a exoneração, integrando-se a prevista na al. d) como respeitante a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.

            Conclusão que reiteram na sua obra, Colectânea De Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, de pág.s 277 a 279.

            Resulta do preceito ora citado que tal pedido deve ser liminarmente indeferido desde que se verifiquem, cumulativamente, os três requisitos no mesmo enumerados, a saber:

            a) apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;

            b) com prejuízo para os credores e;

            c) conhecimento ou ignorância indesculpável da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

            No que respeita ao primeiro dos requisitos ora enumerados, está assente que a apresentação foi para além do prazo legalmente previsto, pelo que nada mais há que acrescentar quanto a isso.

            No que se refere ao segundo, o da actuação com prejuízo para os credores, refere-se na decisão recorrida que do simples decurso do tempo, com o aumento dos juros de mora em dívida e que se vão acumulando, se tem de extrair a conclusão de que se verifica o prejuízo dos credores.

            Esta é uma matéria que tem vindo a ser decidida de forma divergente pela jurisprudência, do que se pode ver um apanhado no Acórdão desta Relação de 07/09/2010, Processo 72/10.0TBSEI-D.C1, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc.

            Por nós, estamos em crer que o simples decurso do tempo aumenta o prejuízo dos credores, dado o aumento dos juros de mora, que se reflecte sobre as quantias em dívida, bem como pode potenciar um maior desleixo do devedor na administração e conservação dos bens que lhe restam e de que continua a dispor e que sabe serem insuficientes para a satisfação dos seus débitos.

            Mas, estamos, ainda, em crer que o facto de o devedor não se ter apresentado à insolvência no prazo que é legalmente fixado, por si só, também contribui para o aumento do prejuízo dos credores, uma vez que só pode entender-se a exigência de tal prazo, para protecção destes.

            Ou seja, logo que constate que se encontra em situação de, generalizadamente, não poder cumprir os seus encargos, o devedor deve apresentar-se à insolvência, por forma a que estes fiquem a conhecer a real situação do devedor e possam accionar as medidas conservatórias e de garantia de que disponham (se for esse o caso) ou de accionar os meios legais coercivos de que possam dispor para a satisfação dos respectivos créditos.

            Tudo sem embargo de o devedor, em caso de apresentação tardia, poder demonstrar que, na prática, tal prejuízo não ocorreu, tal como se decidiu no Acórdão que acima se referiu e aqui se acolhe.

            O que in casu não acontece.

            Pelo contrário, verifica-se que os rendimentos indicados como auferidos pelos requerentes foram sempre muito inferiores aos encargos que assumiram em consequência dos sucessivos empréstimos que solicitaram, sendo que, no momento em que formularam o pedido de insolvência e de exoneração do passivo restante, auferem rendimentos (globais) ilíquidos no montante de 1.129,00 € mensais e assumiram encargos a que corresponde uma prestação mensal global de 2.200,93 € (cf. artigos 15, 20 e 21 do seu requerimento).

            Ao que acrescem as despesas do agregado familiar, composto por eles e um filho menor.

            E mais uma vez se refere que daquela prestação, apenas a quantia de 186,87 €, mensal, respeita a crédito para habitação, sento toda a demais resultante de créditos pessoais e para consumo e de uso de cartão de crédito.

            Daqui tem, pois, de se concluir que os requerentes não chegaram à situação em que se encontram por circunstâncias anómalas ou imprevistas.

            Não. Tal aconteceu porque pura e simplesmente contraíram dívidas para as quais sabiam não ter meios de as pagar, que sabiam estar acima das suas possibilidades económicas, com prejuízo para os seus credores e sem que o seu comportamento revista as características que acima se deixaram referidas, pelo que não podem beneficiar do regime de exoneração do passivo restante, o qual, na nossa óptica, reveste carácter excepcional.

            Assim, desde logo, não pode ter-se por verificado este segundo requisito.

            Mas também o terceiro (perspectiva séria de melhoria da sua situação económica) não se verifica.

            Recorrendo, mais uma vez, aos ensinamentos de Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea …, pág. 280:

            “Está aqui em causa apurar se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar razoavelmente convicto de a sua situação económica poder melhorar em termos de não se tornar necessária a declaração da insolvência.”.

            Ora, analisando o requerimento apresentado pelos ora recorrentes, estes, nada alegam neste sentido.

            Ao invés, atentos os bens que possuem e sem que se verifiquem melhorias a nível salarial, cada vez mais se deteriora a sua situação financeira, pelo que inexistem quaisquer indícios fiáveis de que o atraso na apresentação à insolvência se tenha prendido com o facto de expectável melhoria da sua situação económica.

            Por tudo isto, somos de opinião que, em conformidade com o disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, é de manter a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos recorrentes.

            Assim, também, quanto a esta questão tem o presente recurso de improceder.

             

Nestes termos se decide:

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que tenha sido concedido nos autos principais.


Arlindo Oliveira (Relator)
Emídio Francisco Santos
Beça Pereira