Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
517/11.1TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE DO GERENTE
CREDOR SOCIAL
ILICITUDE
DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
DEFICIT PATRIMONIAL
DANO
INDEMNIZAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º JUÍZO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 78.º/1 DO CSC, 3.º/2 E 18.º/1 DO CIRE
Sumário: 1 - Apenas a violação das “disposições legais ou contratuais” que visam a protecção dos credores sociais pode configurar a “ilicitude” geradora da responsabilidade dos gerentes e administradores para com os credores sociais (nos termos do art. 78.º/1 do CSC); ou seja, tem que estar em causa a violação de disposições que visam a realização e conservação do capital social, a defesa da integridade do património social e a solvência da sociedade (não configurando tal “ilicitude” a violação das chamados deveres legais gerais, das normas que se destinam a assegurar um ordenado funcionamento da organização social e que asseguram a maximização da eficiência produtiva da empresa).

2 - É o caso da disposição legal (art. 18.º/1 do CIRE) que impõe o dever de apresentação à insolvência; dever legal que, porém, só existe em relação à situação de insolvência que se analisa na impossibilidade de cumprir obrigações vencidas (art. 3.º/1 do CIRE), ou seja, não se verifica a “ilicitude” do art. 78.º/1 do CSC – uma vez que não há dever de apresentação à insolvência – no caso “especial” em que a insolvência consiste na situação de deficit patrimonial (art. 3.º/2 do CIRE).

3 – Verifica-se o 2.º requisito previsto no art. 78.º/1 da CSC, ou seja, a “insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos” se, estando em causa a violação do dever de apresentação à insolvência, a situação líquida negativa da sociedade continuar a aumentar ano após ano, tendo, porém, a indemnização como limite – por o dano dos credores sociais começar por ser e resultar de dano causado à própria sociedade – o montante do dano causado à sociedade após a “ilicitude” cometida.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
A..., Lda., com sede em (...), Oliveira do Bairro, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B..., C...e D..., todos com os sinais dos autos, pedindo que estes sejam solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 96.068,63, acrescida de juros à taxa legal da citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que exerce a actividade de fabrico e venda, com fim lucrativo, de embalagens de plástico e que, de Junho de 2002 a Junho de 2007, teve como cliente a E..., Lda. de que os RR. eram, em tal período temporal, os gerentes. E... que, a partir de 2005, começou a atrasar-se no pagamento dos fornecimento que a A. lhe fazia, atingido o crédito da A. quando a E..., em 1/04/2008, requereu a sua própria insolvência (a qual veio a ser declarada em 18/04/2008) o montante de € 96.068,63; crédito este, que embora reconhecido à A., não obteve qualquer pagamento da massa insolvente da E....
Ora – acrescentou a A. – resulta dos balanços da E... que esta, já antes de 2004, se encontrava em situação de insolvência, o que era do conhecimento dos RR. (seus gerentes) que, apesar de conhecerem tal situação e de saberem não ser viável a recuperação económica e financeira da E..., não a apresentaram à insolvência; o que, caso o tivessem feito, como deviam, teria evitado que a A. realizasse as referidos vendas/fornecimentos (no montante de € 96.068,63), dando assim causa (os RR.), com a omissão de tal dever (de apresentação à insolvência), a um prejuízo de tal montante para a A..

Os RR. contestaram.
Começaram por invocar os RR B... e C...(na contestação conjunta que apresentaram) que a insolvência da E... foi declarada como fortuita, decisão essa que transitou em julgado e que, a tal respeito, formou caso julgado.
Mais alegaram que a decisão de requerer a insolvência da E... foi tomada após a ASAE (em 22/01/2008) haver suspendido o seu funcionamento e encerrado o sector de produção de refrigerantes, sumos, xaropes e licores; e por a E... não ter meios financeiros para suprir as faltas apontadas pela ASAE, deixando de poder satisfazer as encomendas dos clientes e ficando impedida de honrar os compromissos com fornecedores, clientes e trabalhadores.
Em todo o caso – acrescentaram – antes da intervenção da ASAE e apesar da situação financeira difícil da E..., os gerentes sempre acreditaram ser possível manter o exercício da sua actividade, os postos de trabalho e honrar compromissos assumidos; existindo mesmo para o pagamento do crédito da A. um plano de pagamento, através da emissão de um conjunto de cheques pré-datados.
Enfim, invocaram que tudo foi feito pelos gerentes para ultrapassar a grave crise económica reinante no País (agravada pela política comercial, adversa, da grande distribuição); que os sócios da E... disponibilizaram mesmo empréstimos (que detalharam) para a sua sobrevivência; que foi tal esforço que foi interrompido pela referida decisão administrativa da ASAE; e terminaram dizendo (após referirem que os fornecimentos da A., tendo deixado de ocorrer em Junho de 2007, o direito da A. já “caducou”) que não existiu qualquer omissão, quer em termos de dever de agir quer de informação do património, dos gerentes da E... e aqui RR.
Concluíram pois pela total improcedência da acção.

O R. D... apresentou contestação autónoma de teor idêntico – dizendo que não omitiu qualquer dever nem teve qualquer intenção de prejudicar a A. e que os gerentes sempre acreditarem ser a situação ultrapassável e haver possibilidades (ainda que mínimas) de restabelecer a viabilidade económica da E... – acrescentando, de novo, que nunca foi verdadeiro gerente de facto, mas tão-só de direito, uma vez que desempenhava tão só as funções de vendedor e comercial.
Concluiu pois pela total improcedência da acção.

A A. replicou, opondo-se às excepções suscitadas – caso julgado e “caducidade” – e mantendo o alegado na PI.

Foi proferido despacho saneador – no qual se julgaram improcedentes as excepções de caso julgado e de prescrição[1] arguidas pelos RR. B... e C... e em que se declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa.
Após o que, instruído o processo e realizada a audiência, o Exmo. Juiz de Circulo proferiu sentença em que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os RR. do pedido.

Inconformada com tal sentença, interpôs a A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que julgue a acção totalmente procedente e que condene os RR. de acordo com o solicitado na PI.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
I – Foi erradamente julgada a matéria de facto constante dos pontos nº 5, 2ª parte, e 6. da douta base instrutória e 31. dos factos julgados provados, que, pela prova produzida, sem outra que a contrariasse, e segundo as regras da lógica e da experiência da vida, deveria ter sido julgada provada, a dos dois primeiros, e não provada a do segundo, tendo sido violada a regra do art. 653º, nº 1, do C.P.C. de 1961, aplicável ao caso;
II - Como constam dos autos as provas que serviram de base a tais decisões, devem as mesmas ser modificadas, em sentido contrário ao decidido, de conformidade com o disposto no art. 712º, nº 1, al a) do C.P.C.,
III -Se bem que acertadamente escolhidas e interpretadas ao caso as normas dos arts. 78º e 483º do C. Civil e 3º, 18º e 19º do C.I.R.E, foram erradamente aplicadas, porquanto da aplicação das mesmas normas deve resultar a condenação dos réus no pagamento da indemnização pedida pela autora.

Os RR. B... e C..., responderam, sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pela A/recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II – “Reapreciação” da decisão de facto
Como questão prévia à enunciação dos factos provados, importa[2] – atento o âmbito do recurso da A. – analisar as 3 questões, a propósito da decisão de facto, colocada por tal recorrente a este Tribunal.
Constam do processo todos os elementos probatórios com que a 1.ª instância se confrontou quando decidiu os quesitos 5.º, 6.º e 20.º[3] sendo assim possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento.
Vejamos:
Perguntava-se no quesito 5.º se “os aqui Réus B..., C...e D... conheciam perfeitamente os factos referidos em 2), 3) e 4) e previam o seu agravamento, dada a organização estrutural da sociedade E..., Lda., designadamente por excesso de pessoal, máquinas e equipamento obsoletos e pesados encargos financeiros”; tendo-se respondido “provado apenas que o réus B..., C...e D... conheciam perfeitamente os factos referidos de 2), 3) e 4)”.
Perguntava-se no quesito 6.º se “já então bem sabiam, pela sua estrutura de custos, especialmente com pessoal, a natureza do equipamento, obsoleta, e os elevados custos financeiros, que não era viável a recuperação económica e financeira da mesma sociedade, como de facto veio a acontecer”; tendo-se respondido “não provado”.
Perguntava-se no quesito 20.º “se; apesar do que refere em 2), 3) e 4, os réus sempre acreditaram ser possível manter o exercício da actividade, os postos de trabalho e honrar compromissos assumidos desde que contassem com a compreensão e estreita colaboração de todos os fornecedores, incluindo a autora”; tendo-se respondido “provado”.
Pretende a A/apelante que os quesitos 5.º e 6.º sejam integralmente dados como provados e que o quesito 20.º seja julgado não provado; invocando para tal os depoimentos das testemunhas F... (economista que foi o Administrador de Insolvência da E...) e G...(TOC da Autora) e as regras da experiência da vida articuladas com o que resulta dos diversos documentos juntos aos autos (v. g., balanços, relatórios de gestão, demonstrações de resultados, ao longo dos anos de 2004, 2005, 2006 e 2007 da E...).
Que dizer?
Em 1.º lugar, que os depoimentos testemunhais – os referidos e os restantes – pouco ou nada acerescentaram, com relevo para os quesitos 5.º, 6.º e 20.º, ao que já resultava dos diversos diversos documentos juntos aos autos.
Aliás, quanto à testemunha F..., até seria algo surpreendente que tal pudesse acontecer, uma vez que ele foi Administrador no processo de insolvência da E..., tendo, por dever de ofício, oportunidade de se pronunciar – vide, v. g., o parecer do art. 188.º/2 do CIRE, por si subscrito, junto de fls. 51 a 54 dos autos, em que concluiu pela qualificação como fortuita da insolvência da E... – sobre as questões que os quesitos em causa encerram; e se ele porventura admitisse que os RR. sabiam que deviam ter apresentado a E... à insolvência a partir de 2004, então, estaria a confessar (como testemunha) que teria andado mal ao não intentar, enquanto Administrador da insolvência, uma acção como a presente contra os aqui RR..
Em 2.º lugar, que os diversos diversos documentos juntos aos autos – em que se incluem os vários documentos de prestação de contas previstos na lei (balanço, relatório de gestão, contas de exercício e os demais documentos), relativos aos exercícios anuais da E... desde 2004, e o próprio requerimento de apresentação à insolvência (de 01/04/2008) da E... – são bastante ricos e elucidativos[4], permitindo que, fazendo uso das regras da experiância e da normalidade da vida, se vá um pouco mais longe nas respostas aos quesitos 5.º e 6.º.
Em 3.º lugar, que uma coisa é o que, objectivamente, os vários documentos de prestação de contas da E..., analisados na sua evolução temporal, impõem que se conclua (com a ajuda das regras da normalidade da vida); outra, diversa, o que “ia na cabeça” dos seus gerentes e aqui RR., os quais, não obstante o que, objectivamente, é mister extrair dos documentos de prestação de contas, continuaram a fazer sucessivos empréstimos e suprimentos à E... – como se provou (ver factos 32 a 40 deste acórdão) e que aqui (na apelação) não se contesta – comportamento este que só é compatível e explicável com a sua “fé” na viabilidade económica da E....
Em conclusão, corrigem-se as respostas dadas aos quesitos 5.º e 6.º, a que se responde, conjuntamente, nos seguintes termos: “Provado apenas que os réus B..., C...e D... conheciam perfeitamente os factos referidos em 2), 3) e 4); e dada a organização estrutural da sociedade “ E..., Lda.” – o número do pessoal, as máquinas e equipamentos obsoletos e o peso dos encargos financeiros – era, em termos de normalidade, previsível que tais factos (aumento do passivo e evolução da diferença para o activo) se agravassem e, consequentemente, era, em termos de normalidade, previsível não ser viável a recuperação económica e financeira da E...”. E mantém-se inalterada a resposta “provado” dada ao quesito 20.º.
Defere-se pois no sentido acabado de referir a impugnação da decisão sobre a matéria de facto
*

III Fundamentação de Facto
Estão provados os seguintes factos:
1. A autora “ A..., Lda.” exerce a actividade de fabrico e venda, com fim lucrativo, de embalagens de plástico.
2. A “ E..., Lda.”, com sede na Av. (...), s/n, na Guarda (freguesia de (...), dedicava-se à actividade de fabrico e comércio, importação e exportação de sumos de frutos, refrigerantes, xaropes e licores e produtos alimentares, que envasilhava, rotulava e distribuía, com finalidade lucrativa.
3. Nos anos de 2004 a 2007, os réus B..., C...e D... foram gerentes da sociedade.
4. O réu B... fundou e explorou durante muitos anos previamente à constituição da “ E..., Lda.” uma empresa em seu nome individual, com a actividade de produção de refrigerantes, xaropes e licores.
5. E o mesmo réu B... transferiu posteriormente para a “ E..., Lda.” a clientela, matéria-prima e equipamento de que já anteriormente dispunha enquanto comerciante em nome individual (com o esclarecimento que em momento anterior havia efectuado tais transferências para a firma “Solavra”).
6. O réu D... sempre desempenhou as funções de comercial e de vendedor na sociedade “ E..., Lda”, sendo que também era seu gerente, assim como os demais réus.
7. E assim deslocava-se às instalações de tal sociedade apenas de oito em oito dias.
8. E não controlava os respectivos trabalhadores, nem contactava com os respectivos fornecedores.
9. Desde Junho de 2002 a Junho de 2007, a autora teve como cliente a sociedade “ E..., Lda.”, que necessitava para o envase dos seus produtos das embalagens que a autora lhe fornecia.
10. A autora, durante anos, efectuou esses fornecimentos à “ E..., Lda.”, emitindo e enviando-lhe sempre as correspondentes facturas, com a obrigação de os pagamentos lhe serem efectuados nos 60 dias seguintes à data de cada fornecimento, sendo que tais facturas sempre foram lançadas na conta corrente relativa à aludida “ E..., Lda.”.
11. Os fornecimentos referidos em cessaram em Junho de 2007, tendo a “ E..., Lda.” estabelecido com a autora um plano de pagamento do valor em dívida através da emissão de um conjunto de cheques pré-datados; sendo que já antes se tinha verificado pagamentos da aludida “ E..., Lda.” à autora através da entrega de letras de câmbio entre 2005 e 2007, as quais foram sendo sucessivamente reformadas, bem como com a emissão de cheques pré-datados, por vezes pagos em segunda ou terceira data, entretanto, renegociada.
12. Os pagamentos das facturas referidas em 9. pela “ E..., Lda.” à autora foram-se atrasando progressivamente a partir de 2005, de tal forma que o saldo da conta corrente da aludida “ E..., Lda.” junto da autora atingiu o valor de € 96.068,63.
13. A autora efectuou fornecimentos à dita “ E..., Lda.” e a pedido desta, entre 2005 e 2007, no valor de € 96.068,63.
14. Nos anos anteriores a 2004, a soma dos valores constitutivos do activo da sociedade “ E..., Lda.” era bastante inferior ao da soma do passivo, diferença que aumentava anualmente.
15. E, na realidade, a soma os valores constitutivos do seu passivo já excediam o da soma dos valores activos em € 227.866,63, representando esta diferença mais do que uma quarta parte dos valores activos.
16. E essa diferença evoluiu, nos subsequentes anos de 2005, 2006 e 2007, para, respectivamente, € 393.145,09, € 425.588,54 e € 575.306,93.
17. Os réus B..., C...e D... conheciam perfeitamente os factos referidos de 14. a 16; e dada a organização estrutural da sociedade “ E..., Lda.” – o número do pessoal, as máquinas e equipamentos obsoletos e o peso dos encargos financeiros – era, em termos de normalidade, previsível que tais factos (aumento do passivo e evolução da diferença para o activo) se agravassem e, consequentemente, era, em termos de normalidade, previsível não ser viável a recuperação económica e financeira da E....
18. Se a “ E..., Lda.” tivesse requerido judicialmente a sua própria declaração de insolvência em 2004, a autora já nada lhe teria fornecido após esse momento.
19. Os réus propalaram à autora que a “ E..., Lda.” tudo pagaria e que havia património que lhes permitia efectuar o pagamento dos fornecimentos.
20. A autora acreditava que o conjunto de prédios onde funcionavam as instalações fabris da “ E..., Lda.” (armazéns e terrenos) pertencia àquela sociedade (embora tais instalações nunca tivessem sido propriedade da referida sociedade).
21. A autora requereu no Tribunal de Oliveira do Bairro o arresto de bens da “ E..., Lda.”, tendo o mesmo sido decretado no processo nº 131/08.9TBOBR, do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, por sentença de 12.03.20084.
22. No dia 1 de Abril de 2008, a sociedade “ E..., Lda.” apresentou-se e requereu judicialmente a sua declaração de insolvência, mediante processo que correu termos sob o n.º 535/08.7TBGRD, do 1º Juízo deste Tribunal, tendo tal insolvência sido declarada mediante sentença proferida no dia 18 de Abril de 2008 e transitada em julgado, que declarou aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.
23. A “ E..., Lda” requereu a sua própria declaração de insolvência como se refere supra pelo motivo da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) ter deliberado suspender o respectivo funcionamento.
24. A “ E..., Lda.” foi notificada de tal decisão no dia 22 de Janeiro de 2008.
25. E assim a mesma “ E..., Lda.” deixou a partir daí de poder satisfazer os pedidos dos cliente, quando, contemporaneamente, não tinha meios para cumprir a exigência de obras de que a ASAE fazia pender o levantamento da suspensão.
26. E a partir desse dia 22 de Janeiro de 2008, a mesma “ E..., Lda.” entendeu ser impossível persistir com a fábrica aberta, sendo essa a única forma que a sociedade tinha para pagar as dívidas contraídas.
27. E assim daí em diante limitou a sua actividade à comercialização dos produtos que restavam em armazém, sendo que os stocks eram reduzidos e as referências mais vendidas foram as que rapidamente se esgotaram.
28. A autora reclamou créditos no valor de € 99.075,43 no aludido processo de insolvência, tendo o mesmo sido reconhecido e graduado como comum.
29. Dada a existência de créditos privilegiados, o produto da massa insolvente revelou-se insuficiente para o pagamento de qualquer parcela dos créditos comuns, designadamente do crédito da autora.
30. Por apenso (C) ao aludido processo n.º 535/08.7TBGRD, do 1º Juízo deste Tribunal, correu termos o respectivo incidente de qualificação de insolvência, no âmbito do qual o Sr. administrador de insolvência e o Ministério Público se pronunciaram no sentido de tal insolvência ser qualificada como fortuita, tendo a mesma assim sido declarada como tal mediante sentença proferida nesse apenso no dia 31 de Julho de 2008, transitada em julgado, não obstante a aqui autora ter oportunamente produzido alegações no sentido de a insolvência ser declarada como culposa.
31. Apesar do que se refere de 14. a 16., os réus sempre acreditaram ser possível manter o exercício da actividade, os postos de trabalho e honrar compromissos assumidos desde que contassem com a compreensão e estreita colaboração de todos os fornecedores, incluindo a autora.
32. E para fazer face a tais dificuldades, o réu B... emprestou à sociedade “ E..., Lda.” a quantia de € 146.160,93.
33. E H... – sócio da “ E..., Lda.”5 – emprestou à mesma sociedade o valor de € 25.699,04.
34. E I....– sócio da “ E..., Lda.”6 – emprestou à mesma sociedade o valor de €25.699,04.
35. E o réu C... emprestou à mesma sociedade o valor de € 9.975,96.
36. E o réu D... emprestou à mesma sociedade o valor de € 25.956,47.
37. E H...e o réu C... contraíram empréstimos, respectivamente de €50.000,00 e de € 33.817,81, destinados a fazer face a compromissos da sociedade “ E..., Lda.”.
38. E H...pagou dívidas da “ E..., Lda.” à Segurança Social no valor de € 18.674,57.
39. E pagou empréstimo da mesma sociedade ao Banco J... no valor de € 44.343,84.
40. E pagou empréstimo da mesma sociedade à Caixa L... no valor de € 28.583,77.
41. Na Conservatória do Registo Comercial mostra-se registado, em relação à E..., Lda., a decisão de encerramento do processo de insolvência por rateio final (Ap. 4/20100331) e o cancelamento da matrícula (Of. 20100331)7.

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IV – Fundamentação de Direito
Visa a A/apelante com a presente acção e apelação, como se extrai do relatório inicial, que os RR., enquanto gerentes (que foram) da E... (entretanto declarada insolvente), sejam responsabilizados – e condenados a indemnizar a A/apelante – por dívidas da E... para com a A/apelante.
Estamos pois – é questão, a nosso ver, pacífica – perante a acção autónoma ou directa dos credores sociais contra os gerentes, prevista e consagrada no art. 78.º/1 do CSC[5]; em que a A/credora visa o seu proveito directo, ou seja, visa que a indemnização a obter entre directamente no seu património[6].
Significa o que se acaba de dizer que tal acção/responsabilização (dos RR.) tem que ter, como pressuposto, a inobservância, por parte dos RR/gerentes, duma disposição legal destinada à protecção dos credores sociais.
Inobservância esta – é o ponto que pretendemos começar por salientar – que a A/apelante, com o devido respeito, acabou, decerto por lapso, por não chegar a alegar (condenando ab initio a sua pretensão ao insucesso).
Toda a alegação constante da PI está apontada – é verdade – à demonstração da violação do dever (por parte dos RR/gerentes) de oportuna apresentação à insolvência da E...; para o que se alegou repetidamente a situação de insolvência da E... desde 2004, porém, para tal, apenas se invocou a situação de deficit patrimonial da E..., apenas se invocou ser o passivo manifestamente superior ao activo desde 2004. De tal maneira que, em perfeita harmonia com o que factualmente havia sido alegado, se diz, nos art. 17.º e18.º da PI, que os RR. conheciam perfeitamente a situação de insolvência já em 2004 “e não apresentaram a E... à insolvência, mas deviam tê-lo feito, de acordo com as disposições conjugadas dos art. 3.º/2, 18.º/1 e 19.º do CIRE.[7]
Não estamos, evidentemente, a querer dizer ou a sustentar que o alegado (e abundantemente demonstrado) não configura a situação de insolvência da E... (e configura-a, a nosso ver e com o devido respeito por opinião diversa, logo no final de 2004). Efectivamente, embora, em 1.º lugar, a situação de insolvência se analise e consista na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas (cfr. art. 3.º/1 do CIRE)[8], quando se trata de pessoas colectivas ou patrimónios autónomos de responsabilidade limitada, o n.º 2 de tal art. 3.º faz acrescer uma outra situação possível de insolvência (uma situação especial de insolvência que acresce à do n.º 1): a existência de um passivo manifestamente superior ao activo.
O que temos em vista fazer notar é tão só que o dever de apresentação à insolvência (cujo núcleo de sujeitos abrangidos é justamente constituído pelos comerciantes) não existe em ambas as referidas hipóteses de situação de insolvência, mas apenas naquelas que se analisam na impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, ou seja, fora do âmbito do dever de apresentação à insolvência está o caso “especial” em que a insolvência consiste numa situação de deficit patrimonial.
É exactamente por tudo isto que começámos por afirmar que a A/apelante não alegou/invocou, logo na PI, a factualidade susceptível de integrar a inobservância duma disposição legal destinada à protecção da A/credora social; uma vez que – resulta da explicação anterior – a disposição legal invocada como tendo sido violada pelos RR. (o art. 18.º/1 do CIRE) remete para a situação de insolvência do art. 3.º/1 do CIRE e a A. só alinhou factos respeitantes à situação “especial” de insolvência prevista no art. 3.º/2 do CIRE[9], em que – é o ponto chave, que a A., decerto por lapso, não terá tido presente no raciocínio jurídico que presidiu à sua alegação da PI – não é imposto o dever de apresentação à insolvência.
É pois só por si suficiente, o que vem de ser dito, para fundamentar a improcedência da apelação e para confirmar a improcedência da acção, estabelecida na sentença recorrida.
Em todo caso, reforçando o afirmado – do alegado pela A/apelante e depois provado não preencher a “ilicitude” prevista no art. 78.º/1 do CSC (preceito que confere aos credores sociais uma acção directa e autónoma contra os gerentes e administradores) – e na mesma linha de raciocínio, importa, analisando o art. 78.º/1 do CSC[10], acrescentar (a montante) o seguinte:
Dispõe o art. 78.º do CSC (com a epígrafe “responsabilidade[11] para com os credores sociais”), no seu n.º 1, que “os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos”.
São pois dois os requisitos legais (para a responsabilidade dos gerentes e administradores) previstos no art. 78.º/1 da CSC:
a) Inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais; e
b) Insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos.
Quanto ao 1.º requisito, a primeira reflexão que normalmente é feita é a de que a “ilicitude” aí delimitada compreende a violação, não de todo e qualquer dever que impenda sobre os administradores, mas tão somente dos deveres prescritos em “disposições legais ou contratuais” de protecção dos credores sociais; ao que de imediato se acrescenta que as disposições contratuais são as disposições estatutárias e que tal violação muito raramente ocorrerá[12], pelo que a relevância prática do preceito está nas disposições legais de protecção (nas normas legais que, embora não confiram direitos subjectivos aos credores sociais, visam a defesa de interesses só ou também deles).
Nesta linha de raciocínio, menciona-se que a “ilicitude” se insere no quadro mais vasto da chamada responsabilidade pela violação de normas de protecção, prevista no art. 483.º/1 do C. Civil; estando, porém, apenas em causa (no art. 78.º/1 do CSC) a violação das normas que directamente visam proteger os credores sociais e não também a violação das normas dirigidas em 1.ª linha à tutela dos sócios e que por forma indirecta acabem por proteger o interesse de terceiros (credores sociais).
E, concretizando, acrescenta-se:
Visam proteger directamente os credores sociais as “disposições que atribuem ao capital social uma função de garantia dos credores sociais (normas que proíbem a distribuição a título de lucros, de valores necessários para manter intocado o capital social ou que visam assegurar a integral realização do mesmo capital e, ainda, quanto às sociedade por quotas, as normas que proíbem a restituição de prestações suplementares, quando as importâncias para tanto utilizadas forem indispensáveis para manter intacto o capital social[13]
O CSC contém várias normas destas (tuteladoras dos interesses dos credores sociais).
É o caso das que provêem a conservação do capital social (v. g. arts. 31.º, 34.º, 514.º, 236.º, 346.º/1, 513.º, 220.º/2, 317.º/4): que, proíbem, em princípio, a distribuição de bens sociais aos sócios sem prévia deliberação destes; a distribuição de bens sociais quando o património líquido da sociedade seja ou se tornasse (em consequência da distribuição) inferior à soma do capital e das reservas legais e estatutárias; a distribuição de lucros do exercício em certas circunstâncias e de reservas ocultas; a aquisição de quotas sem ressalva do capital social.
É o caso das normas relativas à constituição e utilização da reserva legal (art. 218.º, 295.º e 296.º do CSC).
São igualmente normas de protecção dos credores as que proíbem a subscrição de acções próprias (art. 316.º/1), bem como certas aquisições e detenções de acções próprias (art. 317.º/2 e 323.º, entre outros).
É ainda o caso da norma que delimita a capacidade jurídica das sociedades (art. 6.º do CSC).
Fora do CSC, cita-se o art. 18.º do CIRE (e também 19.º), que prescreve o dever dos administradores requererem a declaração de insolvência da sociedade em certas circunstâncias.”[14]
O que significa, à contrario, que não está em causa (no art. 78.º/1 do CSC) a violação das normas “que se destinam a assegurar um ordenado funcionamento da organização social que mediatamente propiciam a conveniente gestão do património social, assegurando as melhores condições, do interesse social na maximização da eficiência produtiva da empresa e do lucro, com manifestos reflexos no património social, única garantia geral para os credores da sociedade[15].
Enfim, em síntese, no art. 78.º/1 do CSC apenas estão em causa as violações das disposições que regulam a função de garantia do capital social; fora disto, só nas violações à capacidade de gozo (art. 6.º do CSC) das sociedades comerciais (só os actos praticados em nome da sociedade pelos órgãos sociais que não sejam nem necessários nem convenientes ao fim lucrativo da sociedade) ou na violação do dever de apresentação à insolvência do art. 18.º do CIRE[16] são divisáveis possíveis violações de normas directamente tuteladoras dos interesses dos credores sociais[17].
Por tudo isto – fechando o nosso raciocínio – o relevo inicial dado ao modo como a A/apelante configurou/apresentou a violação do dever (por parte dos RR/gerentes) de oportuna apresentação à insolvência da E...; uma vez que foi só por aqui (a A/apelante nada alegou/invocou quanto à distribuição indevida de lucros ou quanto a manipulações do capital social, como nada alegou em termos de negócios simulados ou gratuitos, de liberalidades ou prestações de garantias contrárias ao fim e interesse da E...) que a A. tentou preencher a ilicitude recortada na previsão do art. 78.º/1 do CSC.
Tentativa que, como já explicámos, era ab initio insuficiente (para o fim tido em vista).
Trata-se pois de ponto em que, com o devido respeito, não estamos em sintonia com a argumentação da sentença recorrida (embora a conclusão seja a mesma).
Considerou-se na sentença recorrida que não se provou que os RR. hajam violado o dever de apresentação à insolvência do art. 18.º do CIRE por não se poder “concluir que a situação de insolvência da E... remonte a 2004 ou sequer a 2005, 2006 ou 2007”.
Em face dos números dos Balanços e das Demonstrações de Resultados (juntos aos autos) dos anos de 2004, 2005, 2006 e 2007 (donde os factos/números 15 e 16 deste acórdão são retirados, havendo outros, identicamente relevantes, que podem ser retirados) é tal conclusão, com o devido respeito, bastante discutível.
Como já se referiu, quando se trata de pessoas colectivas ou patrimónios autónomos de responsabilidade limitada, o art. 3.º/2 do CIRE faz acrescer uma outra situação possível de insolvência: a existência de um passivo manifestamente superior ao activo.
E – é a questão – quando é que tal se verifica, quando é que se verifica a existência dum passivo manifestamente superior ao activo?
Quando não estamos perante deficits ocasionais, mas antes perante deficits que resultam de vicissitudes normais ou fisiológicas da actividade; e, quando, num juízo de prognose, se pode dizer que o deficit se projectará no futuro, com forte probabilidade, numa situação de impossibilidade de cumprir, sendo esta já potencial.
Era este, a nosso ver, há vários anos, o caso da E....
Com sucessivos resultados negativos (como a E... refere, em 2008, no seu requerimento de apresentação à insolvência, os últimos resultados positivos tinham sido obtidos em 1999); com resultados transitados negativos de € 510.836,61, € 639.290,20, € 757.687,69 e € 790.131,14 em 2004, 2005, 2006 e 2007, respectivamente; com o passivo a exceder o activo em € 227.866,63, € 393.145,09, € 425.588,54 e € 575.306,93, em 2004, 2005, 2006 e 2007, respectivamente; com o volume de negócios em forte baixa, de € 1.232.354,49 em 2004 para € 538.539,50 em 2007, o que é verdadeiramente surpreendente[18] é que a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não haja sido denunciada – requerendo a respectiva insolvência – por um qualquer credor.
Com tais números e não sendo normalmente previsível a sua recuperação económica e financeira (facto 17), é difícil sustentar, numa apreciação objectiva e racional – na bitola dum gestor criterioso e ordenado – que o excesso de passivo sobre o activo (desde 2004) era ainda assim insuficiente para se poder considerar a E... como estando em situação de insolvência, do art. 3.º/2 do CIRE.
De todo o modo – seja assim ou não – não é isto o relevante.
Em relação à situação de insolvência do art. 3.º/2 do CIRE não impõe a lei (art. 18.º/1 do CIRE), como já explicamos, qualquer dever de apresentação à insolvência[19].
Impõe tal dever apenas em relação à situação de insolvência consistente na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas (art. 3.º/1 do CIRE) e quanto a esta situação nada de relevante foi alegado/invocado pela A/apelante[20], pelo que, verdadeiramente, a tal propósito os factos nem permitem quaisquer raciocínios silogísticos.
Concluímos pois, em relação ao 1.º requisito do art. 78.º/1 da CSC, como começámos: os autos/factos não revelam a violação (por parte dos RR/apelados) de qualquer disposição legal destinada à protecção da A/credora, não revelam que tenha havido violação do dever de apresentação à insolência[21], mais, não permitem sequer a construção concreta do momento em que tal dever (de apresentação à insolência) devia ser cumprido, quanto mais a sua violação.
Uma nota final, ainda, a propósito do 2.º requisito previsto no art. 78.º/1 da CSC, ou seja, sobre a “insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos”:
A inobservância de normas destinadas à protecção dos credores leva à responsabilização dos administradores/gerentes para com os credores sociais desde que tal inobservância cause (nexo de causalidade) uma diminuição do património social (dano directo da sociedade) que o torna insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (dano indirecto dos credores sociais); ou seja, tem de haver um dano para a sociedade decorrente de normas de protecção dos credores sociais e tal dano tem que consistir numa diminuição do património social em montante tal que ele fica sem forças para a cabal satisfação dos direitos dos credores.
O dano dos credores sociais começa por ser e resultar de dano da própria sociedade, razão porque os credores sociais não podem exigir dos administradores/gerentes indemnização de valor superior ao dano provocado por estes no património da sociedade.
Significa isto que a lógica da indemnização[22] não é exactamente a que está reflectida no art. 24.º da PI, onde se diz que, “se os [RR.] se tivessem, como deviam [apresentado à insolvência], a A. já nada teria vendido à E... depois de 2004, o que tudo significa que a omissão daquele dever legal desencadeou ou foi causa adequada da realização das vendas de que resultou o prejuízo de € 96.068,63 sofrido pela A.”; e não é, de todo, com o devido respeito, a que está desenvolvida a fls. 22/25 da sentença recorrida (e que levou a concluir pela inexistência de dano no património social).
A data da constituição dos créditos não é o mais determinante.
No caso – a estar provada a violação do dever de apresentação à insolvência no final de 2004 – o dano directo da sociedade resultaria da mera circunstância da situação líquida negativa da sociedade continuar a aumentar ano após ano (após a omissão do dever de apresentação), o que, sendo o património social altamente insuficiente (como se apurou no processo de insolvência) para a satisfação dos créditos da A. (dano indirecto dos credores sociais), significaria o preenchimento do 2.º requisito do art. 87.º/1 do CSC.
E, a nosso ver e com o devido respeito, tanto teriam tal dano indirecto os credores constituídos após a omissão do dever de apresentação como os credores por créditos constituídos em datas anteriores.
O único limite – por o dano dos credores sociais começar por ser e resultar de dano causado à própria sociedade – seria o montante do dano causado à sociedade após a omissão do dever de apresentação à insolvência, isto é, exemplificando, admitindo que, do final de 2004 para cá (após a omissão do dever de apresentação), a situação líquida negativa da sociedade aumentou em € 350.000,00, este seria o máximo de indemnização que os gerentes teriam que pagar aos credores sociais (ainda que todos viessem pedir as suas indemnizações e estas ascendessem, v. g., a mais de 1 milhão de euros), uma vez que, é esta a lógica, só este montante estaria em conexão – numa relação de causa e efeito – com a “ilicitude” (omissão do dever de apresentação) que teria sido cometida.
De todo o modo – seja assim ou não – é o que se acaba de expor completamente irrelevante.
A nosso ver – diferentemente do sustentado na sentença recorrida – o 2.º requisito previsto no art. 78.º/1 da CSC (ou seja, a “insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos”) poderia estar preenchido; e dizemos isto assim – no condicional – uma vez que é sempre algo impróprio analisar um requisito (e dizer que está preenchido) que se articula e vem na sequência dum anterior que considerámos não estar preenchido[23].
Porém, o que conta – refere-se uma última vez – é que não foi alegado/provado o 1.º requisito do art. 78.º/1 da CSC: os autos/factos não revelam que os RR/apelados hajam violado o dever de apresentação à insolência e/ou qualquer disposição legal (ou contratual) destinada à protecção da credora social, aqui A/apelante.
*
Improcede pois “in totum” o que a A./apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do decidido na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam.
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V - Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela A/apelante.

Coimbra, 18/02/2014

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)

[1] A bondade de ambos os julgamentos, até por já haverem transitado em julgado, é inquestionável; em todo o caso, sobre a prescrição – que se resolveu pelo art. 498.º do C. Civil e apelando, por já terem decorrido mais de 3 anos, ao estabelecido no art. 498.º/3 – parece que o prazo prescricional a considerar devia ser o de 5 anos (cfr. art. 174.º/2 do CSC).
[2] “Importa” é uma força de expressão, uma vez que, como explicaremos infra, o desfecho das questões colocadas sobre a decisão de facto é totalmente indiferente para o desfecho final dos autos/recurso.
[3] O facto 31. da sentença, a que se alude na alegação recursiva, é o facto 20 da BI.
[4] Um balanço – e no processo há de vários e sucessivos anos – acaba sempre por fornecer uma síntese elucidativa da situação patrimonial do comerciante em determinado momento, através da indicação abreviada dos elementos do activo, do passivo e da situação líquida e respectivos valores.
[5] Acção para a qual, como resulta do art. 82.º/2/b) do CIRE (que revoga tacitamente o art. 78.º/4 do CSC), tem legitimidade exclusiva, na pendência do processo de insolvência, o respectivo administrador; o que, naturalmente, colocava uma questão de ilegitimidade (a E... foi declarada insolvente, como se refere no facto 22) que nunca foi afrontada e que – em face do que se refere no facto 41 – se admite que já não exista, razão pela qual também a não suscitamos e nos ficamos por este breve apontamento.
[6] Não estamos, claramente, perante a acção sub-rogatória prevista no art. 78.º/2 do CSC, em que se pretende obter uma indemnização que ingressará no património da sociedade (e não directamente no património dos credores, como é o caso dos autos/recurso), que é uma acção em proveito directo da sociedade.
[7] É a própria A/apelante, frisa-se, que, em termos de direito, invoca apenas o n.º 2 do art. 3.º do CIRE. Se não houvesse harmonia com o factualmente alegado, competiria ao juiz eleger a regra jurídica devida (cfr. 664.º do CPC= 5.º/3 do NCPC), porém, não é o caso.
[8] Vale a pena lembrar que “insolvência” significa, etimologicamente, situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações.
[9] Com eventual ligação ao art. 3.º/1 do CIRE – mas infirmando até o seu preenchimento – a A. alegou (art. 16.º): “De começo, os pagamentos foram feitos com alguma regularidade, tendo-se atrasado, progressivamente, a partir de 2005”. Ou seja, fala em “atraso” nos pagamentos e não na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, o que, reconhece-se – em face dos balanços e demonstrações de resultados, isto é, da dimensão do passivo da E... desde 2004 e da sua nula autonomia financeira – é um pouco surpreendente, porém, é o que foi alegado e o que temos ….
[10] No que seguiremos de perto os ensinamentos de Coutinho de Abreu, in Código das Sociedade Comerciais em Comentário – Vol. 1.º, Pág. 894 e ss. e in Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade, IDET, pág. 69 e ss; e de Maria Elisabete Ramos, A Responsabilidade de Membros da Administração, in Problemas do Direitos das Sociedades, IDET, pág. 81 e ss.
[11] Responsabilidade esta que é, indiscutivelmente, extracontratual. O art. 78.º/1 não diz respeito à frustração duma relação negocial existente entre os gerentes e os credores sociais (porque, precisamente, essa relação nunca se constituiu). O objecto do art. 78.º/1 consiste, antes, na imposição da responsabilidade civil aos gerentes porque estes (acentuamo-lo, terceiros relativamente ao vínculo obrigacional que liga a sociedade aos credores sociais), através do seu comportamento ilícito e culposo, tornaram o património social insuficiente para a satisfação das dívidas sociais. O art. 78.º/1, de certo modo, permite, é certo, ultrapassar a relatividade contratual – permite que os credores da sociedade responsabilizem terceiros/gerentes pelo não cumprimento das obrigações da sociedade – mas fá-lo no campo da responsabilidade extra-contratual; o que significa, naturalmente, que os credores têm o ónus da prova de todos os requisitos, inclusive da culpa, uma vez que, ao invés do que sucede na responsabilidade para com a sociedade (art. 72.º/1), a culpa aqui não é presumida (o que resulta do facto do art. 78.º/5 não remeter para o 72.º/1).
[12] Diz-se que muito dificilmente se concebe a existência de disposições contratuais destinadas a proteger os credores sociais.
[13] Maria Elisabete Ramos, obra e local citados.
[14] Coutinho de Almeida, obras e locais citados
[15] Maria Elisabete Ramos, obra e local citados.
[16] O CIRE, antes das alterações da Lei 16/2012, de 20-04, dirigia-se abertamente à protecção dos credores; o dever de apresentação visava evitar o agravamento de situações que podem prejudicar gravemente os credores.
[17] A responsabilidade baseada no art. 78º do CSC, escreve Ricardo Costa (“Responsabilidade dos gerentes de sociedade por quotas perante credores e desconsideração da personalidade jurídica”, in Cadernos de Direito Privado, N.º 32, p. 54), implica que se identifique, não todo e qualquer dever legal específico ou manifestação (ainda que legal) dos deveres legais gerais, mas somente os deveres legais específicos previstos em prescrições que aspiram, ainda que só em parte, à tutela dos credores sociais por intermédio, nomeadamente, da defesa da integridade do património social e, consequentemente, da solvência da sociedade.
[18] Note-se, dizemos “surpreendente” e não “impossível”. Os RR., aliás, procuraram explicar com os empréstimos à sociedade, os cheques pré-datados, a emissão de letras sucessivamente reformadas e os atrasos nos pagamentos aos fornecedores a continuação da actividade da E... até Abril de 2008; actividade que, segundo eles, só a intervenção administrativa da ASAE definitivamente inviabilizou.
[19] Repare-se, tal situação – de insolvência do art. 3.º/2 do CIRE – fica espelhada nos documentos anuais de prestação de contas que são alvo de depósito e de publicações obrigatórias num sítio da Internet de acesso público; isto é, tal situação é/era acessível aos credores, no caso, a A/apelante.
[20] A PI, repete-se, não foi gizada a pensar na situação de insolvência do art. 3.º/1 do CIRE (mas apenas na situação “especial” do art. 3.º/2 do CIRE).
[21] Apenas dizemos, frisa-se, que não foi violado o dever de apresentação à insolência, mas não dizemos que a insolvência não podia ter sido requerida e declarada. Repare-se: pode haver uma situação de insolvência do art. 3.º/2 do CIRE e a mesma não se ter ainda manifestado/projectado na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas; numa tal hipótese, não existirá o dever de apresentação à insolvência, porém, a insolvência poderá ser pedida por qualquer credor (a partir e com base no facto/índice do art. 20.º/1/h) do CIRE).
[22] A indemnização, escreve Menezes Cordeiro (Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª ed., p. 288), deve equivaler à medida da insuficiência patrimonial verificada. Este – o dano da sociedade – é, portanto, a medida da indemnização dos credores sociais.
[23] Basta pensar que uma análise rigorosa do 2.º requisito “exige” que se raciocine com uma data, ou seja, a partir da dada da violação do dever de apresentação à insolvência.