Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
408/13.1TBBBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: SEGUNDA PERÍCIA
FUNDAMENTOS
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - INSTÂNCIA CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 1 DO ART.º 487º DO CPC
Sumário: I. Conforme resulta do transcrito n.º 1 do art.º 487.º, qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia; não se trata, porém, de uma faculdade discricionária, exigindo a lei que o requerente invoque, de modo fundamentado e concludente, as razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado.
II. Para além dos casos em que a parte requer a segunda perícia sem indicação de qualquer razão, é ainda de considerar incumprido o ónus da fundamentação a que se fez referência quando a parte não invoque elementos sérios, aptos a alicerçarem a manifestada discordância relativamente ao resultado da primeira perícia.

III. Constitui fundamentação bastante a manifestada discordância do apelante em relação à metodologia seguida pela Ex.mª Sr.ª perita a qual, nos termos da alegação, não teria realizado qualquer exame, tendo assente o seu relatório na informação que pelo examinando foi fornecida e análise de documentação clínica que lhe foi facultada.

IV. Tal fundamento assume particular relevância estando em causa uma especialista de nacionalidade espanhola, sem alegado domínio perfeito da língua portuguesa, circunstância que no dizer do examinando dificultou a comunicação entre ambos, tendo ainda sido desconsiderada a informação de que havia sido solicitada a realização de exames complementares de diagnóstico pelos médicos da especialidade que este acompanham, atendendo às queixas que mantém, sem que do relatório elaborado transpareçam as razões pelas quais se não julgou relevante conhecer o resultado de tais exames.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório

A..., residente em Braga, instaurou acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, contra B..., Companhia de Seguros, SA, com sede na (...) , em Lisboa, tendo em vista a efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação.

Tendo tido lugar a audiência prévia, a Mm.ª juíza que à mesma presidiu identificou o objecto do litígio, indicando como questões controvertidas a decidir i. a natureza do contrato celebrado entre as partes, seu objecto e riscos cobertos; ii. da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil; e iii. quais os danos indemnizáveis e respectivo quantum Indemnizatório, tendo ainda enunciado como temas da prova a ocorrência de um acidente de viação a 30 de Abril de 2010; a dinâmica do acidente; o local do embate; as lesões sofridas pelo autor; os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo autor; e a cobertura dos danos sofridos pelo contrato celebrado.

No acto, e ao abrigo do disposto no art.º 467.º do CPC, foi ordenada a realização de perícia médico-legal ao Autor, indicando-se como objecto os quesitos de fls. 77 frente e verso e 87 verso.

Tendo sido junto o relatório pericial, no qual se concluiu pela atribuição ao autor de um défice funcional permanente da integridade físico psíquica de 2%, fixando-se o “quantum doloris” suportado como de grau 2 numa escala progressiva de1 a 7, e dele discordado, requereu o autor a realização de segunda perícia, para o que alinhou os seguintes fundamentos:

- desde o acidente que o vitimou, ocorrido em 30.04.2010, o Autor vê-se condicionado para as mais elementares tarefas, mostrando-se incapaz de apertar os cordões dos sapatos, permanecer de pé imobilizado ou ainda de conduzir o seu veículo por mais de uma hora;

- em virtude do sinistro, o Autor tem padecido de dores cervicais intensas, geradoras de períodos de imobilização total que o forçam ao uso do colar cervical;

- os problemas cervicais em questão provocam-lhe adormecimento dos membros superiores, que se estendem até aos dedos das mãos, patologias que motivaram a sua integração nas “Consultas de Medicina Física e de Reabilitação” no Hospital de Braga, as quais frequentou por pelo menos 6 vezes, conforme documentos que juntou;

- no âmbito das referidas consultas foram prescritas ao Autor duas Ressonâncias Magnéticas, que aguardam há largos meses pela marcação;

- o resultado do relatório pericial é de todo desajustado à realidade dos factos;

- acresce que o exame médico-legal que alicerçou o relatório em crise foi efectuado por uma profissional de nacionalidade espanhola, a Dr.ª C..., a qual denotava sérias dificuldades de compreensão da língua portuguesa, falando durante toda a consulta em espanhol com o Autor, o que, claro está, dificultou em larga escala a comunicação;

- o dito exame médico-legal não passou mesmo de uma conversa, sem que qualquer exame médico propriamente dito tenha sido efectuado.

Concluindo que o relatório pericial elaborado não se baseou nos elementos médicos essenciais à sua feitura nem decorreu de forma adequada à obtenção de resultados correctos, requereu a realização de segunda perícia tendo em vista a correcção da inexactidão dos resultados a que chegou aquela que ora impugna.

A ré opôs-se, após o que foi proferido douto despacho que, considerando imotivado o requerimento do autor, indeferiu a realização da pretendida segunda perícia.

Inconformado desta feita com o despacho proferido, dele interpôs o autor tempestivo recurso, o qual minutou, rematando as alegações apresentadas com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª A Ré alegou fundadamente as razões da discordância com a primeira perícia realizada, quando alega e elenca sérios padecimentos do Autor para as mais elementares tarefas do seu dia-a-dia, que motivam a sua frequência a consultas especializadas no Hospital de Braga; de igual relevo salientou-se que a Perita tinha sérias dificuldades em expressar-se na língua portuguesa, o que dificultou em larga escala a comunicação no decurso da perícia; perícia essa, aliás, que mais não passou de uma conversa, desvirtuando a nomenclatura “perícia médico-legal” que lhe é característica, visto que nenhum concreto exame médico foi realizado.

2.ª O art.º 487º nº 1 do CPC, cuja redacção é a mesma do anterior art.º 589º, deve ser interpretado no sentido de só dever ser indeferida a perícia quando [1] haja fundamentação insuficiente e quando [2] não haja a mínima dúvida no espírito do julgador que o pedido não se justifica.

3.ª Nenhum desses motivos para o indeferimento se verificam, tanto mais que bastariam duas das três razões basilares apontadas, o agravamento do estado de saúde do Autor, comprovado por prova documental cabal e, bem assim, a pendência de dois exames que se auguram como conclusivos para determinar a real proporção dos problemas existentes na sua coluna e, em especial, o facto de, estando nós perante uma perícia médica, esta ter assentado apenas numa conversa, sem que nenhum exame tenha sido realizado para justificar o requerido.

4. O Tribunal a quo ao decidir da forma que decidiu, interpretou erradamente aquele art.º 487.º n.º 1 e o art.º 476.º do CPC, violando em toda a linha o direito da Ré ver produzida a sua prova nos termos do art.º 413.º do CPC.

5. A segunda perícia requerida é por demais pertinente, justifica-se face às omissões da primeira e não se nos afigura passível de ser afastada atento o elenco das “razões da discordância” constantes daquele requerimento ao mesmo tempo que a situação fáctica em análise está nas antípodas da inexistência de qualquer dúvida, como aliás a jurisprudência dominante, se não mesmo unânime, estabelece como condição do seu indeferimento”.

Com tais fundamentos, pretende a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que defira a realização da segunda perícia.

A apelada não contra alegou.

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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em determinar se o requerimento da segunda perícia se encontra com suficiência fundamentado, devendo ser ordenada a sua realização.

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II. Fundamentação

Importando à decisão os factos, tal como os deixámos relatados em I., a solução da questão que se deixou enunciada há-de encontrar-se na interpretação do disposto no art.º 487.º do CPC, segundo o qual “Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado” (vide n.º 1).

Nos termos prevenidos no n.º 2 do preceito também o Tribunal pode, oficiosamente e a todo o tempo, ordenar a realização desta segunda perícia, sempre que a julgue necessária ao apuramento da verdade.

A Mm.ª juíza “ a quo” rejeitou o requerimento apresentado partindo do pressuposto, que temos por correcto, de que essencial para a realização da segunda perícia é a motivação da divergência da primeira, concordando-se igualmente com a afirmação de que não é bastante para fundamentar a realização da segunda perícia o argumento de que à parte não agradam os resultados da primeira, por lhe não serem de todo favorável. Todavia, não cremos que tais considerandos tenham aplicação no caso concreto.

Vejamos:

A prova pericial destina-se, como qualquer outro meio de prova, a demonstrar a realidade dos enunciados de facto produzidos pelas partes (art.º 341.º do Código Civil), tendo por objecto a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não detém (art.º 388.º do Código Civil).

Convém ainda ter presente que, quanto maior for a densidade técnica das questões controvertidas sujeitas à prova pericial, mais dependerá o julgador do juízo científico que vier a ser formulado, tal como se afigura ocorrer no caso em apreço, em que uma das questões essenciais a dirimir é precisamente o grau de incapacidade de que o autor e aqui apelante ficou portador em virtude do evento que se discute nos autos.

Conforme resulta do transcrito n.º 1 do art.º 487.º, qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia que, na verdade, não é uma nova perícia. Com efeito, tendo por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destinando-se a corrigir eventuais inexactidões dos resultados a que esta chegou, trata-se de uma repetição, estando uma e outra sujeitas à livre apreciação do julgador, regime este que decorre do preceituado nos art.ºs 488.º e 489.º.

A lei é no entanto clara ao expressar que não se trata de uma faculdade discricionária, sendo condição essencial ao deferimento do requerimento de realização de segunda perícia a respectiva fundamentação, cabendo naturalmente ao requerente invocar, de modo fundamentado e concludente, as razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado[1]. Da apreciação da valia desses fundamentos dependerá o atendimento da pretensão formulada, ou antes o seu indeferimento, caso o juiz conclua pelo carácter impertinente ou dilatório da segunda perícia.

Resulta do que vem de se dizer que, para além dos casos em que a parte requer a segunda perícia sem indicação de qualquer razão, é ainda de considerar incumprido o ónus da fundamentação a que se fez referência quando não sejam invocados elementos sérios, aptos a alicerçar a manifestada discordância relativamente ao resultado da primeira perícia.

No caso dos autos, e como se referiu, o requerimento foi indeferido com o fundamento de que não haviam sido invocadas pelo agora recorrente fundadas razões de discordância do relatório. Não cremos, porém, antecipando a solução, que assim seja.

Em primeiro lugar, é patente a discordância do apelante em relação à metodologia seguida pela Ex.mª Sr.ª perita a qual, nos termos da alegação, não teria realizado qualquer exame, tendo assente o seu relatório na informação que pelo examinando foi fornecida e análise de documentação clínica que lhe foi facultada. E a ser assim, a alegação de que a Sr.ª perita não dominava a língua portuguesa, circunstância que dificultou a comunicação entre examinador e examinando, não pode considerar-se de escassa relevância, irrelevando neste conspecto, isso sim, que o relatório se mostre correctamente elaborado em língua portuguesa, já que daqui não decorre necessariamente que a sua subscritora domine o português falado, e é disso que se queixa o apelante.

Acresce que, tendo a Sr.ª perita aludido à documentação clínica que lhe foi facultada, na qual sustentou igualmente as conclusões a que chegou, não deixa de chamar a atenção o facto de não ter relevado a circunstância, também mencionada no relatório, do autor aguardar a realização de RX a toda a coluna cervical e, bem assim, de EMG, exames cuja realização foi solicitada pelos clínicos que o acompanham, tendo ainda marcada para futuro próximo consulta da especialidade de ortopedia. Admite-se que o conhecimento do resultado de tais exames possa ser irrelevante e se mantenham imperturbadas as conclusões a que chegou a Sr.ª perita e fez consignar no relatório, atendendo até à circunstância do autor, ao que resulta do mesmo, ter antecedentes patológicos relevantes. Todavia, não se sabe se assim é, já que a Sr.ª perita omitiu qualquer alusão à desnecessidade de aguardar pelo resultado de tais exames, isto apesar de ter afirmado a existência, face aos elementos que lhe foram disponibilizados, do necessário nexo causal entre o traumatismo e o dano verificado. Parece-nos, deste modo, tal como o autor faz notar, que tal eventual irrelevância, a ter sido esse o juízo formulado pela Sr.ª perita a esse respeito, mereceria ter sido explicitada.

Decorre do que se deixou dito que o requerimento apresentado pelo apelante individualiza as razões da sua divergência relativamente ao resultado da primeira perícia, fundamentos que, como vimos, não podem considerar-se destituídos de razoabilidade, sendo certo que, conclui, a perturbação verificada na comunicação estabelecida com a Sr.ª perita e a desconsideração, por esta, de exames clínicos cuja realização foi ordenada por médicos da especialidade de ortopedia que o acompanham, conduziram à inexactidão das conclusões que expressou no relatório apresentado, quer no que respeita ao grau de incapacidade de que ficou portador, quer no que tange à avaliação e gradação do quantum doloris.

Não subscrevemos assim o argumento invocado pela Mm.ª juiz no sentido de estar em causa o mero inconformismo com um resultado que não serve as pretensões do apelante, antes se afigurando que se mostra cumprido com suficiência o ónus da fundamentação que o citado n.º 1 do art.º 487.º faz recair sobre o requerente[2].

Em conclusão, procedendo os argumentos recursivos, não pode subsistir o despacho recorrido.

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III. Decisão

Em face a todo o exposto, e na procedência do recurso interposto pelo autor, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em revogar o despacho recorrido, o qual se substitui por outro que determina a realização de 2.ª perícia, com observância do disposto no art.º 488.º do CPC.

Custas a cargo da apelada.


Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida

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[1] Assim, Lopes do Rego, “Comentários ao Código do Processo Civil”, vol. I, pág. 509, em anotação ao art.º 589.º do CPC cessante, sendo certo que neste âmbito nenhuma alteração foi introduzida pelo diploma agora em vigor, mantendo assim a anotação plena actualidade.

[2] Acresce que, ainda a ter-se por exacto que o requerimento apresentado não cumpria o ónus da alegação em termos bastantes, sempre o princípio da cooperação intersubjectiva imporia a prolação de despacho prévio ao indeferimento, formulando convite ao autor para aperfeiçoar o requerimento apresentado, através da indicação das razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado, conforme foi entendido nos arestos desta mesma Relação de 24/4/2012 e 20/6/2012, processos n.ºs 48557/07.6 TBVIS.C1 e 3796/08.8 TJCBR-D.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.