Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
303/08.6GASPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VIA DE COMUNICAÇÃO TERRESTRE
VIA EQUIPARADA A VIA PÚBLICA
VIA PÚBLICA
Data do Acordão: 03/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE S. PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS1º U), V) E 2º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: 1. - Um estaleiro onde a proprietária deposita materiais de construção e recebe clientes não é uma via de comunicação terrestre;
2.- Mesmo que assim não se entendesse, porque não era irrestrito o seu acesso por parte do trânsito público, não pode ser qualificada como via equiparada a via pública;
3.- Em qualquer das alternativas apontadas, não é aplicável o regime jurídico do Código da Estrada a acidente de viação ocorrido no estaleiro.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO


No Tribunal Judicial da comarca de S. Pedro do Sul, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A..., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1, do C. Penal, e a prática das contra-ordenações p. e p. pelos arts. 35º, nºs 1 e 2, 47º, nºs 1, d) e 2, 59º, nºs 1 e 3, a), 60º, nº 1, d), e 145º, nº 1, f), todos do C. da Estrada.
A Administração Regional de Saúde do Centro, IP – Centro de Saúde de S. Pedro do Sul, deduziu pedido de indemnização pela prestação de cuidados de saúde, contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 35 e juros legais.

Por sentença de 25 de Outubro de 2011, foi o arguido absolvido da prática do crime e contra-ordenações imputados, bem como do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

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Inconformado com a decisão, dela o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1 – Nestes autos foi exarada sentença, constante de fls. 170 a 173-v, decidindo absolver o arguido da prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal, e, ainda, das contra-ordenações p. e p. pelos arts. 35º, nºs 1 e 2, 47º, nº 1, alínea d), e nº 2, 59º, nºs 1 e 3, alínea a), 60º, nº 1, alínea d), e 145°, nº 1, alínea f), todos do Código da Estrada.
2 – Contudo, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que o arguido deveria ter sido condenado pela prática do sobredito crime de homicídio por negligência, numa pena de prisão suspensa na sua execução e, ainda, pelas ditas contra-ordenações nas respectivas coimas e sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados na via pública.
3 – De facto, devia ter sido dado como provado que o arguido não pediu ajuda a terceiro que lhe desse indicações sobre se podia fazer aquela manobra de marcha atrás em segurança e que, em consequência desse facto, não se apercebeu que na traseira do semi-reboque se encontrava aquele B..., tal como consta da acusação pública.
Com efeito, tal era imposto pelos seguintes elementos de prova:
a) As próprias declarações do arguido prestadas em Audiência de Discussão e Julgamento, constantes do Sistema Citius, aos 47m44s a 48m25s, declarações estas transcritas no ponto III da motivação deste recurso, onde o arguido admitiu que para a realização da manobra de marcha atrás descrita na acusação não requisitou o auxílio de terceiros. Estas declarações, aliadas às regras da experiência comum e a critérios de normalidade, impunham que se dessem como provados os factos supra descritos.
3 – Mais deveria ter sido dado como provado que o arguido sabia que não poderia efectuar a supra mencionada manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, sem previamente se assegurar que da sua realização não resultava perigo para terceiros e sem que aquele semi-reboque possuísse luzes de marcha atrás.
Com efeito, tal era imposto pelos seguintes elementos de prova:
a) As próprias declarações do arguido prestadas em Audiência de Discussão e Julgamento, constantes no Sistema Citius, aos 46m1ls a 47m10s, declarações estas transcritas no ponto III da motivação deste recurso, onde o arguido admitiu que na realização daquela manobra devia ter tornado outros cuidados, nomeadamente socorrendo-se de terceiros que lhe dessem indicações por forma a que tal manobra pudesse ser realizada em segurança.
b) Da falta de credibilidade da tese defendida pelo arguido nas declarações que prestou em Audiência de Discussão e Julgamento relativamente ao não conhecimento da obrigatoriedade de utilização por aquele semi-reboque de luzes de marcha atrás, constantes no Sistema Citius, 29m33s a 29m43s, declarações estas transcritas no ponto IV da motivação deste recurso, quando confrontadas com critérios de normalidade, atenta a experiência profissional do arguido consubstanciada em exercer a actividade de motorista há mais de 20 anos e ser titular de carta de condução desde os 21 anos de idade.
4 – Assim, deveria o Tribunal a quo ter dado como provados todos os factos constantes da acusação pública e considerado que se encontravam preenchidos todos os elementos de facto e de direito do crime e das contra-ordenações por que o arguido se encontrava acusado e, consequentemente, condenar aquele numa pena de prisão suspensa na sua execução pela prática do dito crime e nas respectivas coimas e sanção acessória de proibição de condução de veículos a motor na via pública pela prática das sobreditas contra-ordenações.
5 – De facto, o local onde se deu o acidente que vitimou aquele B... era um local do domínio privado mas aberto ao trânsito público pois encontrava-se aberto à circulação, em geral, de pessoas e/ou veículos, nomeadamente aos clientes daquela firma "W.... Ldª", o que implica que o trânsito de veículos naquele local se reja pelas normas do Código da Estrada, nos termos do art. 12º, nº 2 deste diploma legal.
6 – Era habitual naquele local onde se deu o acidente. à hora em que o mesmo ocorreu, circularem diversas pessoas e veículos, nomeadamente clientes da firma "W..., Ldª", posto aí funcionar o escritório de atendimento ao público desta firma, o que o arguido bem sabia e admitiu nas declarações que prestou em audiência – gravação das declarações do arguido, sistema CITIUS, aos 46m 11 s a 47m10s.
7 – Deste modo, era para o arguido previsível, quando efectuou a manobra de marcha atrás que veio a provocar a morte do dito B..., que na retaguarda do veículo por si conduzido pudesse estar (como efectivamente estava) alguma pessoa ou veículo, já que tal era normal acontecer naquele local e àquela hora.
8 – O arguido ao efectuar tal manobra de marcha atrás sem querer saber se na retaguarda do seu veículo se encontrava alguma pessoa ou veículo, violou o deve objectivo de cuidado que se lhe impunha, dever este fundado, desde logo, no disposto nos arts. 35º, nº 1 e 2, 47º, nº l , al. d), ambos do Código da Estrada, mas também e elementares regras de diligência, prudência e cautela, nomeadamente aquelas que impõem a quem efectua uma manobra de marcha atrás, mais a mais com um veículo pesado de mercadorias, que verifique previamente se na traseira desse veículo s encontram pessoas ou veículos por forma a evitar neles embater.
9 – No caso concreto o arguido podia e devia ter actuado por forma cumprir com tal dever objectivo de cuidado, ou seja, com o disposto nos arts. 35º, nº 1 e 47º, nº 1, al. d) ambos do Código da Estrada, ou requisitando para tanto o auxílio dei terceiros que lhe fornecessem indicações por forma a realizar tal manobra em segurança; ou fechando temporariamente as portas daquele estaleiro à entrada do público para efectuar aquela manobra em segurança; ou efectuando tal manobra fora do horário de atendimento ao público e quando naquele local não se encontrasse ninguém; ou pura e simplesmente abstendo-se de realizar tal manobra se não se conseguia assegurar que podia realizar a mesma em segurança. Tal seria o que qualquer condutor cumpridor das normas do Código da Estrada, diligente, prudente e cuidadoso faria naquelas circunstâncias.
10 – Ao absolver o arguido da prática do dito crime de homicídio por negligência e das sobre ditas contra-ordenações, violou a douta sentença recorrida os arts. 137º, nº l , e 15º, alínea b), ambos do Código Penal e os arts. 35º, nºs 1 e 2, 47º, nº 1, al. d), 59º, nºs 1 e 3, alínea a) e 60º, nº 1, alínea d), todos do Código da Estrada e 127º do Código de Processo Penal.
11 – Deste modo, e pelo exposto, deverá a sentença de que se recorre ser revogada e substituída por outra em que se dêem como provados todos os factos constantes da acusação pública e, em consequência, ser o arguido condenado pela prática do crime e contra-ordenações por que vinha acusado, numa pena de prisão suspensa na sua execução pela prática do crime e nas respectivas coimas e sanção acessória pela prática daquelas contra-ordenações.
(…)”.
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Respondeu ao recurso o arguido, alegando que a situação de facto apurada no julgamento não permite outra decisão que a proferida, pois que o acidente não ocorreu em via aberta ao público, o local onde se deu o sinistro só é acessível aos clientes da empresa depois de autorizados, não sendo expectável a presença da vítima ali, e se recorreu à ajuda de terceiros, noutras ocasiões, para a realização de manobras, foi-o em circunstâncias diferentes, concluindo pela improcedência do recurso.
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Na vista a que refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a sentença recorrida enferma do vício de erro notório na apreciação da prova, suprível pelo tribunal de recurso com a consequente anulação da sentença recorrida e sua substituição por outra que condene o arguido pela prática do crime imputado ou, assim não se entendendo, seja determinado o reenvio do processo, concluindo pelo provimento do recurso.
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal, tendo respondido o arguido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões da motivação constituem pois, como é unanimemente entendido, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Ed., pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, pág. 103).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A sujeição do acidente às normas do C. da Estrada;
- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;
- O preenchimento das contra-ordenações rodoviárias imputadas;
- O preenchimento do tipo do homicídio por negligência.
Oficiosamente, haverá que conhecer do vício do erro notório na apreciação da prova.
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Para a resolução das questões propostas importa ter presente o que, de relevante, consta da decisão recorrida. Assim:

A) Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…).
1 – No dia … .08, pelas 17.00 horas, o arguido, conduzindo o veículo automóvel, pesado de mercadorias, composto pelo tractor de matrícula … , e pelo semi-reboque de matrícula … , deu entrada no estaleiro da firma 'W..., L.da', sito no Lugar do … , deste concelho de S. Pedro do Sul.
2 – Naquele local o piso é em terra batida e irregular, encontrando-se ali amontoados diversos materiais para a construção, tais como brita, areia, gravilha e outros.
3 – Nesse momento não se encontravam quaisquer veículos ou pessoas na área para a qual o arguido conduziu o veículo pesado, a fim de o descarregar.
4 – Na altura ainda se fazia sentir os efeitos da luminosidade natural, não sendo todavia aquele local iluminado artificialmente.
5 – Alguns segundos após o arguido ter entrado naquele estaleiro, deu também entrada no mesmo B..., que conduzia o veículo automóvel de matrícula … , tendo parado tal veículo no interior daquele estaleiro, na área para onde o arguido conduzira o pesado de mercadorias.
6 – Contrariamente àquela que era a regra dos clientes da empresa titular do estaleiro, aquele B... não parou junto ao espaço destinado a escritório, situado à entrada do estaleiro, a fim de contactar com o funcionário normalmente ali presente.
7 – Na altura em que o dito B... acabara de parar o veículo que conduzia, o arguido efectuava uma manobra de marcha atrás, a fim de descarregar, em local específico daquele estaleiro, a gravilha que transportava no semi-reboque.
8 – Efectuava tal manobra de marcha atrás apesar de não conseguir ver se se encontravam obstáculos, veículos ou pessoas na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha.
9 – Também o semi-reboque de que se compunha o veículo que conduzia não possuía luzes de marcha atrás.
10 – Assim, com a realização de tal manobra de marcha atrás, o tractor do veículo conduzido pelo arguido ficou numa posição oblíqua relativamente ao semi-reboque que lhe estava acoplado, o que impedia que o arguido, ao realizar tal manobra, conseguisse ver se existiam obstáculos, veículos ou pessoas na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha.
11 – Deste modo, ao efectuar tal manobra de marcha atrás, e porque não conseguia ver se existiam pessoas, veículos ou outros obstáculos na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha, o arguido não se apercebeu que na traseira do semi-reboque encontrava-se aquele B..., ao lado do supra referido veículo de matrícula ..., pelo que veio a embater com a traseira daquele semi-reboque no corpo daquele B..., assim fazendo com que este último ficasse esmagado entre a traseira daquele semi-reboque e a parte lateral deste veículo ....
12 – Aquando de tal manobra de marcha atrás o veículo conduzido pelo arguido embateu ainda com a traseira daquele semi-reboque no espelho retrovisor direito daquele veículo de matrícula ..., amolgando o mesmo.
13 – Como consequência directa, imediata e necessária do embate referido em 11, sofreu aquele B... várias lesões, concretamente uma escoriação com 5x3 cms na região parietal esquerda; uma escoriação com 10x0,5 cms no terço médio externo do hemitórax direito; placa apergaminhada com 10x 14 cms na fossa ilíaca; placa apergaminhada com 10x14 cms no f1anco esquerdo do abdómen; ferida inciso-contusa na região posterior do antebraço esquerdo com 22 cms de comprimento e 3 cms de afastamento; placa apergaminhada com 9x7 cms do terço médio externo da coxa esquerda; ferida com 4x4 cms na face interna do joelho esquerdo; placa apergaminhada com 10xl cms na face externa do terço superior da coxa esquerda; fractura do terceiro espaço do esterno; fractura de todos os arcos médios e posteriores das costelas, cartilagem e clavícula direitas, com rotura da pleura; fractura dos arcos anteriores das 3ª, 4ª, 5ª e 6ª costelas, com infiltração sanguínea; fractura dos arcos médios das 3ª e 6ª costelas com rotura da pleura e infiltração sanguínea; fractura das 6ª à última costelas dos arcos posteriores, todas com rotura da pleura e infiltração sanguínea; perfuração do lobo inferior à direita do pulmão; fractura ao nível do lobo direito do fígado; fractura do rim direito; fractura da bacia, à direita, ao nível do ísquio; fractura da 9a vértebra dorsal com infiltração sanguínea.
14 – Todas estas lesões foram causa directa, necessária e adequada da sua morte.
15 – O arguido não representou a possibilidade de com a sua conduta vir a provocar as sobreditas lesões no corpo daquele B....
16 – Após o sinistro o arguido prestou à família do ofendido todo o auxílio e colaboração possíveis.
17 – O arguido e o ofendido eram amigos, pelo que o acidente e as consequências do mesmo abalaram o primeiro em medida bastante significativa.
18 – O arguido exerce a actividade de motorista há mais de 20 anos.
19 – Trabalha em empresa pertença de um seu tio, cuja exploração se encontra em processo de transferência para o próprio arguido.
20 – Tal empresa tem ao seu serviço 3 funcionários, e dispõe, para o exercício da sua actividade, de 3 veículos pesados de mercadorias, bem corno duas máquinas industriais.
21 – Em França o arguido reside em apartamento tomado de arrendamento.
22 – Em Portugal possui casa própria na localidade de … deste concelho de S. Pedro do Sul.
23 – Na residência de … vivem a esposa do arguido, que se encontra desempregada, e dois filhos com 20 e 14 anos de idade, ambos estudantes.
24 – O arguido e a esposa beneficiam, cada qual, de veículo automóvel ligeiro.
25 – Aquele é titular de carta de condução para veículos pesados já desde os 21 anos de idade.
26 – É pessoa trabalhadora e com boa imagem no meio social onde se insere.
27 – Tem como habilitações o 6º ano de escolaridade.
28 – Não lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais.
29 – Não possui antecedentes criminais.
[Mais se provaram, com interesse sobretudo para o deduzido pedido indemnizatório, os seguintes factos:]
30 – Em consequência das lesões supra retratadas em 13 da factualidade, o ofendido B... foi assistido, naquele dia 13.11.08, no SAP do Centro de Saúde de S. Pedro do Sul.
31 – Os encargos com a assistência médica do ofendido, nesta última instituição, ascenderam ao montante de 35 euros.
(…)”.

B) Quanto aos factos não provados, consta o seguinte:
“ (…).
Não se provaram outros factos relevantes para além ou em contradição com os anteriores.
(…)”.

C) E da sentença consta a seguinte motivação de facto:
“ (…).
Fundou-se a convicção do tribunal, seja quanto ao falecimento do ofendido B..., seja quanto às respectivas causas, no certificado de óbito de fls. 5/6 e no relatório de autópsia de fls. 40 a 45.
No que tange à dinâmica do acidente relevaram, desde logo, as declarações do arguido, o qual, no essencial, acabou por reconhecer a factualidade atinente a tal dinâmica, tal como retratada no libelo.
Esclareceu que no local onde pretendia depositar a carga que trazia no semi-reboque não se encontravam quaisquer veículos ou pessoas quando ali chegou, facto confirmado pela testemunha ..., o qual era então empregado de escritório da empresa titular do estaleiro, e que se encontrava no interior do espaço destinado, precisamente, a escritório. Referiu esta testemunha que primeiramente deu entrada o veículo pesado conduzido pelo arguido e, alguns segundos após, o veículo conduzido pelo ofendido, o qual, contrariando a regra dos clientes no sentido de pararem junto ao espaço do escritório, situado à entrada do estaleiro, dirigiu-se de imediato para o 'arreto' fundeiro do estaleiro, para onde se havia dirigido o veículo conduzido pelo arguido.
Ainda aquele ... referiu que aquando do sinistro já iniciava de escurecer, embora ainda não fosse caso para se circular com os faróis ligados.
Os documentos fotográficos de fls. 7 a 10, que a testemunha ..., agente da GNR, confirmou ser da sua autoria, e que retratam o veículo conduzido pelo ofendido (fls. 7/8), a brita descarregada pelo arguido (fl. 9) e o semi-reboque acoplado ao veículo tractor conduzido pelo arguido (fl. 10). O conteúdo de tais documentos fotográficos foi confirmado pelo arguido como retratado a situação verificada logo após o sinistro.
De igual modo os documentos fotográficos de fls. 73 a 75, da autoria da testemunha ..., como este referiu, e que o arguido confirmou como retratando a sequência ou dinâmica do sinistro. Tal sequência foi, por seu turno, explicitada pela testemunha ..., o qual esclareceu que tal sequência foi efectuada com base nas indicações dadas pelo próprio arguido.
Mais foi relevante a informação documentada de fls. 108/109 (cadastro de condutor), bem como o CRC de fl. 154.
Para a situação sócio-profissional do arguido foram relevantes as suas próprias declarações, em conjugação com os depoimentos das testemunhas ... (filho do ofendido), ... (presidente da Junta do Lugar da residência do arguido quando em Portugal) e ... (ex-patrão do arguido).
Em sede do pedido cível formulado pela ARS foi relevante o teor do documento de fl. 107.
(…)”.
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Da sujeição do acidente às normas do C. da Estrada [conclusões 5 e 6]

1. Discorda o Digno Magistrado recorrente do entendimento, seguido na sentença em crise, de que o local onde ocorreu o acidente, por se tratar de um estaleiro de uma sociedade, não constitui uma via, ainda que privada, aberta ao trânsito público, posto que afecto à utilização por fornecedores e clientes daquela, não estando por isso sujeito ao regime do C. da Estrada, sendo este o fundamento da absolvição do arguido, relativamente às imputadas contra-ordenações rodoviárias.
Vejamos se lhe assiste razão.

1.1. Resulta da factualidade provada, que o acidente com o veículo automóvel pesado conduzido pelo arguido e que provocou a morte da vítima ocorreu no estaleiro da sociedade «W..., Lda», que tinha o piso em terra batida e irregular, aí se encontrando depositados materiais de construção civil como brita, areia e gravilha, estaleiro a que acedeu a vítima conduzindo um veículo automóvel, como acediam os clientes da referida sociedade, ainda que, em regra, ficassem junto ao escritório.
Estes factos, que constam dos pontos 1, 2, 5 e 6 da factualidade provada da sentença, vão mais além, em termos de conteúdo, do correspondentemente alegado na acusação pública, nos §§ 1º, 2º e 3º [destes últimos apenas resulta que o acidente ocorreu no dito estaleiro, com as características de piso e de depósitos de materiais supra referidas, e ao qual a vítima, conduzindo uma viatura automóvel havia acedido], respondem já à questão de facto do acesso dos clientes da «W..., Lda.» ao estaleiro. Posto isto.

A alínea u) do art. 1º do C. da Estrada define «via equiparada a via pública» como a via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público. Por sua vez, a alínea v) do mesmo artigo define «via pública» como a via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público.
Definindo o âmbito de aplicação do próprio código – «Âmbito de aplicação» é a sua epígrafe – dispõe o art. 2º do C. da Estrada:
“1 – O disposto no presente Código é aplicável ao trânsito nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
2 – O disposto no presente diploma é também aplicável nas vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público, em tudo o que não estiver especialmente regulado por acordo celebrado entre as entidades referidas no número anterior e os respectivos proprietários.”.
Como se vê, o que existe de comum entre a via pública e a via equiparada a via pública é que em ambas é facultado o trânsito público: as primeiras a ele estão afectas, e; as segundas a ele estão abertas.
E trânsito público é o trânsito que pertence a todos, que é usado por todos, é o trânsito permitido a qualquer utente da via, independentemente do fim visado com a sua utilização portanto, o trânsito de circulação geral de pessoas, veículos e animais.
Vale isto dizer que via pública ou equiparada é toda a via de comunicação terrestre onde existe uma liberdade de circulação, apenas restringida pelas regras gerais do ordenamento jurídico rodoviário (Francisco Marques Vieira, Direito Penal Rodoviário, Os Crimes dos Condutores, PUC, 2007, pág. 104).

1.2. Tendo o acidente ocorrido num estaleiro com as características supra definidas, poderá este local ser qualificado como via? Em sentido estrito, via é o lugar por onde se vai ou é levado. Neste sentido, o estaleiro não é uma via.
E também não o será em sentido amplo, precisamente porque, tal como vem definido – local onde a proprietária deposita materiais de construção e recebe clientes – não é, manifestamente, um local destinado ao trânsito [aliás, nas declarações que prestou em audiência e se encontram registadas, adiante sintetizadas, o arguido afirmou que o estaleiro tem hora de encerramento e que tem portão de acesso].

Mas, admitindo por hipótese de raciocínio, que o estaleiro, com as características definidas, pode ser qualificado como via, então, porque pertencente a uma sociedade comercial, seria necessariamente uma via do domínio privado.
E tal via, face aos factos provados, seguramente não estava aberta ao trânsito público pela simples e decisiva razão de que não seria qualquer pessoa, qualquer veículo, qualquer animal que por ela podia circular, mas apenas os veículos da própria proprietária [como seria o caso do veículo pesado conduzido pelo arguido, atento o teor do auto de notícia de fls. 3 e 4] e os veículos dos clientes daquela, sendo que estes sempre, como é bom de ver, ao abrigo de uma autorização tácita da proprietária. Logo, relativamente a terceiros, a circulação só era livre no estaleiro para os clientes da proprietária, e não para qualquer utente da via, não existindo, consequentemente, a plena liberdade de circulação do público.

Em síntese conclusiva:
- Um estaleiro onde a proprietária deposita materiais de construção e recebe clientes não é uma via de comunicação terrestre;
- Mesmo que assim não se entendesse, porque não era irrestrito o seu acesso por parte do trânsito público, não pode ser qualificada como via equiparada a via pública;
- Desta forma, em qualquer das alternativas apontadas, não é aplicável o regime jurídico do C. da Estrada a acidente de viação ocorrido no estaleiro.
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Do vício do erro notório na apreciação da prova

2. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta entende que o arguido, face aos factos provados, realizou uma manobra de marcha atrás de forma descuidada e isto mesmo que se entenda não dever proceder o recurso quanto à modificação da matéria de facto, não se mostrando por isso viável a conclusão de que aquele agiu sem culpa na produção do acidente, pelo que a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova.
Vejamos se assim é.

No regime dos vícios da decisão, previsto no art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal, cujo conhecimento é oficioso (Ac. Uniformizador nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995), o tribunal de recurso não reaprecia a prova produzida, apenas verifica e sanciona a existência da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e do erro notório na apreciação da prova. Estamos perante vícios intrínsecos à sentença que, como estipula a lei, têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ficando assim afastada a possibilidade de, para a sua demonstração, se lançar mão a elementos a ela [decisão] alheios.

Existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341). Dito de uma outra forma, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, pág. 74).
Uma vez que na perspectiva da Exma. Procuradora-Geral Adjunta a matéria de facto provada que consta da sentença recorrida é suficiente para concluir pela conduta descuidada do arguido e da causalidade da mesma relativamente ao sinistro verificado, é seguro que, nessa perspectiva, o que ocorreu foi, não um qualquer erro notório na apreciação da prova mas antes, uma errada subsunção dos factos provados ao direito aplicável.

Concluindo, a sentença não enferma do vício do erro notório na apreciação da prova, nem nela se evidencia qualquer outro dos vícios previstos no nº 2, do art. 410º, do c. Processo Penal.
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Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto [conclusões 3 e 4]

3. Diz o Digno Magistrado recorrente que o tribunal a quo deveria ter dado como provados todos os factos constantes da acusação pública ou seja, deveria ter sido considerado provado que, «o arguido não pediu ajuda a terceiro que lhe desse indicações sobre se podia fazer aquela manobra de marcha atrás em segurança», que, «em consequência desse facto, não se apercebeu que na traseira do semi-reboque se encontrava aquele B...», e que, «o arguido sabia que não podia efectuar a supra mencionada manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, sem previamente se assegurar de que da sua realização não resultava perigo para terceiros e sem que o semi-reboque possuísse luzes de marcha atrás», fundando este entendimento nas declarações do arguido prestadas na audiência de julgamento [fazendo referência aos tempos de gravação na acta], conjugadas com as regras da experiência comum, declarações que transcreveu nos segmentos que considerou relevantes.
Assim, cumprido que foi pelo Digno Magistrado recorrente o ónus previsto no art. 412º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal, nada impede o conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto, nos exactos limites que lhe foram fixados.

3.1. Na acusação pública constam os §§ 8, 11 e 12 [assim por nós numerados] com o seguinte teor:
- [8] Deste modo, o arguido, ao efectuar tal manobra de marcha atrás, porque não conseguia ver se existiam pessoas, veículos ou outros obstáculos na traseira e no lado direito, atento o seu sentido de marcha, do dito semi-reboque, porque este semi-reboque não possuía luzes de marcha atrás e porque não pediu a uma terceira pessoa que lhe desse indicações sobre se podia fazer aquela manobra de marcha atrás em segurança, não se apercebeu que na traseira do dito semi-reboque se encontrava aquele B..., em pé, parado, ao lado do supra referido veículo com o número de matrícula ..., pelo que veio a embater com a traseira daquele semi-reboque no corpo do B..., assim fazendo com que este último ficasse esmagado entre a traseira daquele semi-reboque e a parte lateral deste veículo ...;
- [11] O arguido sabia que não poderia efectuar a supra mencionada manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, sem previamente se assegurar que da sua realização não resultava perigo para terceiros e sem que aquele semi-reboque possuísse luzes de marcha atrás;
- [12] Contudo, não representou a possibilidade de com a sua conduta vir a provocar as referidas lesões no corpo daquele B....
Na sentença recorrida constam como provados os pontos 8, 9, 10, 11 e 15, com o seguinte teor:
- [8] Efectuava tal manobra de marcha atrás apesar de não conseguir ver se se encontravam obstáculos, veículos ou pessoas na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha;
- [9] Também o semi-reboque de que se compunha o veículo que conduzia não possuía luzes de marcha atrás;
- [10] Assim, com a realização de tal manobra de marcha atrás, o tractor do veículo conduzido pelo arguido ficou numa posição oblíqua relativamente ao semi-reboque que lhe estava acoplado, o que impedia que o arguido, ao realizar tal manobra, conseguisse ver se existiam obstáculos, veículos ou pessoas na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha;
- [11] Deste modo, ao efectuar tal manobra de marcha atrás, e porque não conseguia ver se existiam pessoas, veículos ou outros obstáculos na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha, o arguido não se apercebeu que na traseira do semi-reboque encontrava-se aquele B..., ao lado do supra referido veículo de matrícula ..., pelo que veio a embater com a traseira daquele semi-reboque no corpo daquele B..., assim fazendo com que este último ficasse esmagado entre a traseira daquele semi-reboque e a parte lateral deste veículo ...;
- [15] O arguido não representou a possibilidade de com a sua conduta vir a provocar as sobreditas lesões no corpo daquele B....

Do confronto dos factos acusados e dos factos provados, resulta que na sentença não consta como provado que:
- Porque [o arguido] não pediu a uma terceira pessoa que lhe desse indicações sobre se podia fazer aquela manobra de marcha atrás em segurança [como consequência não se apercebeu que na traseira do semi-reboque encontrava-se aquele B...];
- O arguido sabia que não podia efectuar a supra mencionada manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, sem previamente se assegurar de que da sua realização não resultava perigo para terceiros e sem que o semi-reboque possuísse luzes de marcha atrás.
Desta forma, face à afirmação aposta na sentença de que não se provaram outros factos relevantes para além ou em contradição com os anteriores [que consubstancia uma técnica incorrecta, capaz de suscitar equívocos quanto aos factos que, efectivamente, o tribunal conheceu] há que concluir que o tribunal a quo considerou estes dois segmentos factuais constantes da acusação como não provados.
Posto isto.

3.2. Ouvido o CD que contém a gravação das declarações prestadas oralmente na audiência, e relativamente às declarações do arguido, na parte relevante, delas resulta, em síntese, ter o mesmo dito que:
- Que eram 5h da tarde, não era propriamente noite, que o estaleiro tinha o portão aberto, que quando entrou não viu ninguém, não parou, estava à vontade e fez a manobra de seguida; que não pediu a ninguém para o orientar na manobra, entrou e não parou, chegou à frente passando junto do sítio onde veio a parar a carrinha da vítima e depois fez marcha atrás, não se apercebeu de qualquer embate porque não existiu, descarregou e chegou o camião à frente e viu o … a correr e a dizer que o Sr. B… não estava bem; chamou os bombeiros e depois chegou junto do Sr. B… que lhe disse que o tinha apertado com o camião;
- Que a galera não tem luzes de marcha atrás e que ia à inspecção de seis em seis meses e ninguém chamou à atenção para tal, que desconhecia que tinha de ter luzes de marcha atrás e sinal sonoro; que quando entrou no estaleiro não reparou se vinha algum veículo atrás de si mas que quando começou a manobra no local não havia ninguém, quando partiu a galera [isto é, fez ângulo entre o tractor e a galera] talvez tenha sido nesse momento que chegou o Sr. B… quando engrenava a marcha atrás, mas como não estava ninguém, fez a manobra à vontade;
- Que quando o tractor fez a oblíqua com a galera deixou de ter visibilidade para aquele lado, não saltou fora nem pediu a ajuda a ninguém, mas são poucos segundos para fazer a manobra; que quando entrou no estaleiro era hora de fechar e confiou que não estivesse ninguém e foi à vontade, não viu se estava alguém atrás; que o normal, em pleno dia, com gente dentro do estaleiro e carrinhas a entrar e a sair, é pedir ajuda, mas ali estava sozinho, era hora de fechar e também não havia ninguém a quem a pedir, sair para ver se estava alguém atrás ainda demorava mais tempo e confiou que não estava ninguém; que o local onde fez a descarga distava cerca de 1,5 m do local onde ficou a vítima e estava a carrinha;
- Que normalmente as carrinhas dos clientes paravam na parte de cima do estaleiro, junto ao escritório, e depois iam com o encarregado carregar os materiais, mas podia haver quem não fizesse assim; que no local do acidente não havia candeeiros de iluminação.

Assim, quanto à não provada omitida solicitação de terceira pessoa para auxiliar na manobra de marcha atrás, é evidente que o arguido a admitiu repetidas vezes, ao longo das declarações que prestou. E é também evidente, que se tivesse sido solicitada e obtida a colaboração de terceiro na orientação da manobra, o acidente não teria, com toda a probabilidade, ocorrido, quer porque seria detectada a presença da vítima no local, quer porque esta seria avisada da manobra em curso.
Desta forma, as declarações prestadas pelo arguido impõem que o segmento de facto não provado seja considerado como provado, passando o ponto 11 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
- Deste modo, ao efectuar tal manobra de marcha atrás, porque não conseguia ver se existiam pessoas, veículos ou outros obstáculos na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha, e porque não pediu a uma terceira pessoa que lhe desse indicações sobre se podia fazer aquela manobra de marcha atrás em segurança, o arguido não se apercebeu de que na traseira do semi-reboque se encontrava aquele B..., ao lado do supra referido veículo de matrícula ..., pelo que veio a embater com a traseira daquele semi-reboque no corpo daquele B..., assim fazendo com que este último ficasse esmagado entre a traseira daquele semi-reboque e a parte lateral deste veículo ....

E quanto ao não provado § 11 da acusação, resulta à evidência das declarações do arguido que este sabia que não devia – a questão coloca-se ao nível do dever, e não, do poder – efectuar aquela manobra de marcha atrás, aliás, qualquer manobra de marcha atrás, sem previamente se assegurar de que da realização da manobra não resultava perigo para terceiros, quando admitiu ser normal, em pleno dia e com gente e viaturas no estaleiro, dada a falta de visão para a retaguarda que, em regra, acontecia na realização desta manobra naquele local [devido à necessidade de partir o tractor e a galera], recorrer à ajuda de terceiros na orientação da mesma. E se é certo que também disse que quando ocorreu o acidente era hora de fechar, não viu nem estava ninguém no estaleiro e também não tinha ninguém a quem pedir a dita orientação, não é menos certo que o estaleiro estava aberto, havia um empregado no escritório [o Pedro que o avisou de que algo não estava bem com a vítima] e a vítima entrou no estaleiro conduzindo um veículo ligeiro, que não era propriamente pequeno. Acresce, e não pode deixar de estranhar-se que, na versão apresentada pelo arguido [única disponível], tendo a manobra de marcha atrás sido feita de seguida, passando o tractor pelo local onde veio a acontecer o acidente onde não existiam pessoas e viaturas, e virando, para depois recuar para o mesmo local, tendo perdido apenas segundos a desembraiar e embraiar a marcha à ré, como a viatura conduzida pela vítima, que passou, necessariamente, por ali não tivesse, ao menos, sido percepcionada pelo arguido, como também não se entende como teve a vítima tempo para estacionar a viatura, para se apear, para ir para o lado oposto ao do condutor, contra o qual veio a ser esmagado pela traseira da galera, quando o arguido efectuava o primeiro recuo, numa manobra que sempre descreveu como rápida.
Por último, o arguido admitiu sem qualquer reserva que a galera não dispunha de luzes de marcha atrás, dizendo que supunha que não eram obrigatórias no atrelado, pois o mesmo era regularmente inspeccionado e não lhe era apontada essa deficiência. O art. 59º, nº 1, do C. da Estrada estabelece que os dispositivos de iluminação, de sinalização luminosa e os reflectores que devem equipar os veículos, bem como as respectivas características, são fixadas em regulamento. A Portaria nº 851/94, de 22 de Setembro contém o Regulamento das Características das Luzes, e no § 12º dispõe que, os veículos automóveis e reboques podem dispor, à retaguarda, de luzes de marcha atrás, com as seguintes características (…). Logo, não é de facto obrigatória a existência de tais luzes na galera interveniente no acidente o que significa, relativamente à matéria de facto sindicada, apenas deve considerar-se provado que o arguido sabia que a galera não tinha tal equipamento de iluminação.
Desta forma, as declarações prestadas pelo arguido impõem que considere provado o seguinte ponto de facto, que passa a ser o ponto 15-A dos factos provados:
- O arguido sabia que não deveria efectuar a supra mencionada manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, sem previamente se assegurar que da sua realização não resultava perigo para terceiros, e sabia também que aquele semi-reboque não possuía luzes de marcha atrás.
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Do preenchimento das contra-ordenações rodoviárias imputadas

4. No ponto 1 que antecede e pelas razões que aí se deixaram expostas, entendeu-se que ao acidente que constitui o objecto dos presentes autos não são aplicáveis as normas do C. da Estrada.
Assim, uma vez que as contra-ordenações imputadas ao arguido têm todas natureza rodoviária, sendo previstas e punidas por aquele código, resta concluir pela sua não verificação, impondo-se, nesta parte, a confirmação da sentença recorrida.
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Do preenchimento do tipo do homicídio por negligência

5. Na sentença em crise, depois de se considerar que a conduta negligente, no seu núcleo essencial, consiste na violação do dever objectivo de cuidado de que o agente era capaz e estava obrigado, também se considerou que o cuidado devido impõe a verificação prévia da previsibilidade do perigo de lesão que da conduta decorre para bem jurídico tutelado. E porque se entendeu que, no caso concreto, o acidente, e mais longinquamente, a morte da vítima, não eram previsíveis, concluiu-se pela não demonstração de não ter o arguido agido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e consequentemente, pelo não preenchimento do tipo do crime de homicídio por negligência.
Opinião diversa manifestou o Digno Magistrado recorrente para quem o arguido tinha a possibilidade de ter previsto o perigo resultante da sua conduta e de tomar os cuidados necessários para evitar a produção do resultado.
Vejamos.

5.1. Fruto da sociedade do risco, a regra de que a punibilidade do facto depende do dolo do agente tem vindo a afastada, assumindo a negligência uma crescente importância, bem revelada pelo aumento da tipificação de crimes negligentes.
O crime de homicídio por negligência é, no nosso ordenamento jurídico-penal, um crime de resultado, que tutela – aliás, como todos os tipos de homicídio – a vida humana. O tipo só se preenche com a produção da morte de uma pessoa, como consequência da conduta negligente do agente.
Assim, dispõe o art. 137º, do C. Penal, com a epígrafe, «Homicídio por negligência»: “1 – Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 – Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.”.
O tipo não contém o conceito de negligência, havendo por isso que recorrer ao disposto art. 15º do C. Penal, segundo o qual:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
- a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
- b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”.

Na lição do Prof. Figueiredo Dias, a negligência é definida no proémio desta disposição, de modo unitário, prevendo o tipo de ilícito – a violação do cuidado a que o agente, segundo as circunstâncias, está obrigado ou seja, a violação do cuidado objectivamente devido – e o tipo de culpa – a violação do cuidado que o agente, de acordo com os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de observar (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 631).
Assim, no que ao crime de homicídio por negligência respeita, o tipo de ilícito fica preenchido sempre que uma conduta diverge da que era objectivamente devida numa situação de perigo para a vida humana, por forma a evitar a violação deste bem o qual, por causa daquela divergência, vem a ser efectivamente violado. Salienta, a propósito, o Mestre citado, “O tipo de ilícito do facto negligente não deixa assim, em caso algum, integrar-se completamente pela mera causação de um resultado (…). Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico: e, consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o «homem médio» pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente.”. E o tipo de culpa do homicídio por negligência fica preenchido quando aquele dever de cuidado objectivamente devido – previsível, evitável e inobservado – podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades, inteligência, experiência de vida e posição social (cfr. ob. cit. pág.634).

Assim, o elemento estruturante do tipo de ilícito negligente é a violação do dever objectivo de cuidado – desvalor de acção – a que acresce, nos crimes de resultado, a verificação do resultado típico – desvalor de resultado. A violação do dever objectivo de cuidado pressupõe a previsibilidade objectiva do perigo para o bem jurídico e, verificada esta, a inobservância pelo agente do cuidado objectivamente exigível, o cuidado que seria observado pelo homem consciente e cuidadoso e que, com razoável probabilidade, obstaria à produção do resultado.
Já no tipo de culpa negligente censura-se ao agente a sua atitude ético-pessoal de falta de cuidado face ao bem jurídico lesado ou colocado em perigo pela acção desvaliosa. São pressupostos deste juízo de censura, a previsibilidade subjectiva do resultado e a capacidade de o agente cumprir o dever objectivo de cuidado.
Posto isto.

5.2. Revertendo agora para a questão sub judice, comecemos por relembrar, em síntese, os factos relevantes, que são, tendo-se em conta as alterações introduzidas pelo decidido no presente recurso:
- O arguido, motorista profissional de pesados há já mais de vinte anos, conduziu um veículo pesado de mercadorias, composto por tractor e semi-reboque, carregado com gravilha, para o interior de um estaleiro onde eram depositados materiais de construção e onde os clientes da respectiva proprietária se dirigiam para os adquirir, sendo que, nesse momento, não se encontravam veículos ou pessoas na área do estaleiro para onde o arguido conduziu o veículo a fim de proceder à sua descarga;
- Segundos depois de o arguido ter entrado no estaleiro, nele entrou também B…, conduzindo um veículo ligeiro de mercadorias, de caixa aberta o qual, contrariamente ao que era costume aos clientes da proprietária do estaleiro, em vez de parar junto ao escritório, situado junto à entrada, foi estacioná-lo na área do estaleiro para onde o arguido conduzira o pesado;
- Quando o B... acabou de estacionar o veículo que conduzia, o arguido efectuava uma manobra de marcha atrás, para proceder à descarga da gravilha transportada no semi-reboque, apesar de não conseguir ver se na traseira, para o lado direito, atento o sentido de marcha [ré] se encontravam veículos, pessoas ou outros obstáculos pois que, no desenrolar da dita manobra o tractor e o semi-reboque ficaram em posição oblíqua, relativamente um ao outro;
- Devido a esta falta de visibilidade, e porque também não pediu a uma terceira pessoa para o auxiliar na realização da manobra, o arguido não se apercebeu de que, na traseira do semi-reboque, se encontrava o B..., ao lado do veículo ligeiro que acabara de estacionar, vindo a embater com a traseira do semi-reboque na vítima e a esmagá-la contra a parte lateral do veículo ligeiro, que assim sofreu diversas lesões que foram causa directa, necessária e adequada da sua morte;
- O arguido sabia que não devia efectuar a manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, e sem previamente se assegurar que da sua realização não resultava perigo para terceiros, mas não representou que, como consequência da sua conduta, que o B... pudesse sofre as lesões que o vitimaram.

Assim sintetizada a factualidade provada, terá que ser dada razão ao Digno Magistrado recorrente, pelas razões que seguem.
Contrariamente ao entendimento expresso na sentença recorrida, não vemos que a morte da vítima possa ser considerado como imprevisível, no concreto contexto em que ocorreu.
Como decorre do que supra se deixou dito, o tipo de ilícito do crime do crime de homicídio por negligência só se preenche quando o resultado morte é uma consequência previsível da conduta descuidada do agente. Esta previsibilidade é objectiva, mas não é absoluta ou seja, a sua determinação é feita de acordo com as regras da experiência e com o normal acontecer.
Ora, se é certo que o acidente ocorreu num estaleiro para depósito e venda de materiais de construção portanto, num local não propriamente destinado à circulação de veículos automóveis, não é menos verdade que nele têm necessariamente que circular e manobrar veículos desta natureza e, não rara vezes, segundo parece, de consideráveis dimensões, pelo que, e contrariamente ao entendimento expresso na sentença recorrida, consideramos irrelevante que a circulação automóvel neste espaço, constitua uma afectação residual do mesmo.
Por outro lado, se era regra ou, talvez melhor dito, se era habitual, os clientes entrarem no estaleiro e pararem junto ao escritório da proprietária, a verdade é que tal não decorria de uma imposição da empresa, nem há notícia nos factos provados, de qualquer proibição ou restrição imposta aos clientes no acesso a certas zonas do estaleiro designadamente, à zona onde ocorreu o sinistro [o que é normal que os clientes façam não constitui uma norma]. Aliás, a testemunha ..., empregado de escritório no estaleiro e que, então, atendia um cliente no escritório, disse nas declarações prestadas na audiência de julgamento [que este tribunal ouviu] ter visto a vítima a entrar no estaleiro, mas não fez qualquer referência a ter estranhado o comportamento daquela e muito menos, de o ter tentado impedir, apesar de depois dizer que a regra era o cliente parar junto ao escritório e fazer a encomenda [em bom rigor, nem sequer se provou a razão de a vítima ter entrado no estaleiro, nem o que pretendia quando dirigiu e estacionou o veículo ligeiro de mercadorias na zona onde o arguido fazia a manobra].
Mas o que, em qualquer caso, temos por certo, é que o estaleiro estava em pleno funcionamento [a testemunha ... afirmou ser a hora de encerramento às 19h] o que significava a real possibilidade de entrada e saída de viaturas e a circulação destas e de pessoas, fossem clientes, fossem trabalhadores, por toda a sua área, circunstância que o que o arguido não podia ignorar, ainda que se tratasse, como tratava, de um espaço não aberto ao público em geral [todo o estaleiro, e não apenas o local onde ocorreu o acidente pois, como se disse, nada impedia o acesso a este].
Ninguém dúvida de que a condução de veículos automóveis, independentemente da via ou local onde ocorra, é uma actividade perigosa, uma actividade causadora de risco para terceiros. E como também é sabido, o risco que tal actividade envolve aumenta na razão directa do peso e dimensões da máquina usada.
Pois bem, para o homem consciente e cuidadoso ou, preferindo-se, para o homem médio, o embate de um veículo pesado de mercadorias num qualquer cidadão, ou o seu esmagamento contra um elemento fixo é, à luz das regras da experiência, adequado a causar-lhe lesões físicas graves e mesmo, a morte, pelo que, a realização de uma manobra de marcha atrás, sem visibilidade nem auxílio de terceiro, em local onde era possível e provável a circulação de pessoas e viaturas, não deixaria de ser configurada por aquele homem consciente e cuidadoso, como apta a produzir um resultado desvalioso. E aqui, cremos, também não releva o argumento de que a manobra decorreu em tempo necessariamente curto pois que, para além da relatividade do conceito, mesmo que se tenha provado que quando o arguido conduziu o pesado para a zona do estaleiro onde o pretendia descarregar, aí não se encontravam nem pessoas, nem veículos [ponto 3 dos factos provados], certo é que a manobra do pesado, porque não podia ser feita de uma só vez [o arguido referiu a necessidade de, por duas vezes, o pesado ter que circular em marcha atrás, até alcançar o ponto ideal de descarga, e também a testemunha ... referiu a complexidade da manobra, sem que tenha visto, em concreto, a que conduziu ao sinistro] e teve que demorar pelo menos o tempo necessário para a viatura ligeira passar pelo local, aí estacionar, a vítima dela se apear e colocar-se no lado oposto ao do condutor, onde acabou por ser colhida [sem esquecer que, como também se provou, a vítima não entrou no estaleiro logo a seguir ao arguido, mas alguns segundos depois, sem que se saiba quantos], o que elimina a ilação retirada do ponto 3 dos factos provados, de acordo com a qual, uma vez que não se encontrava ninguém no local no momento em que o arguido para aí dirigiu o pesado, nas diversas fases da manobra complexa que desenvolveu, e sabendo que quando o veículo andava em marcha à ré, não tinha visibilidade para trás, o arguido podia realizar tal manobra sem tomar precauções que neutralizassem a falta de visibilidade, isto porque poderia acontecer, como não era improvável e aconteceu, que durante o desenrolar da mesma, ao local chegassem viaturas e/ou pessoas.
Assim, sendo objectivamente previsível o perigo, o arguido tinha que actuar com o cuidado objectivamente exigível isto é, com o cuidado que o homem consciente e cuidadoso teria observado e seria adequado a evitar a produção do resultado. A norma de cuidado que o homem médio teria observado no caso concreto, seria a de solicitar a orientação de terceiro na realização da manobra ou, na impossibilidade de tal, a de se certificar, por qualquer meio, designadamente, apeando-se as vezes necessárias, de que, em qualquer das fases da manobra, nada nem ninguém correriam riscos. Se tal tivesse sido observado, com toda a probabilidade, a vítima não teria sido colhida e esmagada e portanto, o resultado danoso não se teria verificado.
Em suma, sendo objectivamente previsível a verificação do resultado e tendo o arguido omitido o cuidado objectivamente exigível, está verificada a violação do dever objectivo de cuidado e, em consequência, o tipo de ilícito do crime de homicídio por negligência.

No que respeita ao preenchimento do tipo de culpa negligente, sendo o arguido motorista profissional de pesados há já longos anos, sabendo que o estaleiro estava aberto e por ele podiam circular sem restrições de maior, pessoas – trabalhadores e clientes – e viaturas, conhecendo as características do veículo que conduzia e as concretas condições em que realizava a manobra que se veio a revelar fatal, é evidente que o mesmo, de acordo com as suas capacidades, podia prever as consequências da sua conduta descuidada, como podia ter observado o dever objectivo de cuidado que a situação impunha [aliás, e como já se disse, o arguido reconheceu a falta de cuidado na realização da manobra].

5.3. Em conclusão do que antecede, porque se entende estarem preenchidos os tipos objectivo e subjectivo do crime de homicídio por negligência, impõe-se a condenação do arguido como autor material de tal crime, p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do C. Penal, o que necessariamente impõe a revogação, nesta parte, da sentença recorrida.

6. Cabe agora decidir das consequências jurídicas do crime praticado pelo arguido mediante a escolha e fixação da medida concreta da pena a aplicar.

Prevenção – geral [protecção de bens jurídicos] e especial [reintegração social do agente] – e culpa são, nos termos do art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal, as balizas a ter em conta para a determinação da medida concreta da pena.
A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto. Já a culpa, dirigida para a pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 214 e ss.). A medida concreta da pena será então dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização], mas sempre com o limite inultrapassável da medida da culpa.
Em síntese e citando o Mestre que vimos seguindo, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, pág. 81).

6.1. O art. 137º, nº 1, do C. Penal pune o homicídio por negligência com prisão até três anos ou com pena de multa. Assim, o passo seguinte visa a escolha da pena, cujo critério legal se encontra previsto no art. 70º do C. Penal, segundo o qual, quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência a esta última sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Já sabemos que as finalidades das penas e portanto, da punição, são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente (art. 40º, nº 1 do C. Penal).
A circulação de veículos automóveis é uma actividade perigosa, e ninguém desconhece a elevada sinistralidade causada pela circulação viária que, ano após ano, acontece no nosso pais, nem a negra estatística daí resultante, com pesadas consequências, pessoais e económicas.
Por isso, nos acidentes de viação mortais, porque as expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada são mais elevadas – ainda que, em regra, se esteja perante crime negligente e normalmente, não se detectem relevantes necessidades de prevenção especial – deve entender-se, como se entende, in casu, que a opção por pena não privativa da liberdade não daria adequada e suficiente realização às finalidades da punição.

6.2. Feita a escolha de pena privativa da liberdade, há que passar à determinação da sua medida concreta.

A moldura penal de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, correspondendo aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o seu limite máximo. A determinação da medida concreta da pena, tendo em conta estes limites, é feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, devendo o tribunal atender, para o efeito, a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal).
Entre outras circunstâncias – porventura específicas de cada caso concreto –, há que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).
Posto isto.

Sendo o arguido condutor profissional, titular de carta de pesados, há já mais de vinte anos, não pode deixar de considerar-se elevado o grau de violação do dever de cuidado que estava obrigado a observar, bem como elevada é a intensidade da sua negligência.
Por outro lado, o arguido ficou abalado com a morte da vítima, de quem era amigo e prestou todo o auxílio possível à família daquela, sendo certo que, como resulta da motivação de facto – que não, dos factos provados – confessou no essencial a versão provada do acidente. Vale isto dizer que o arguido, revelando uma personalidade adequada ao direito, assumiu e interiorizou o desvalor da sua conduta.
Acresce que o mesmo não tem antecedentes criminais nem antecedentes contra-ordenacionais, e encontra-se inserido, profissional, familiar e socialmente.

Assim, porque as circunstâncias atenuantes sobrelevam às circunstâncias agravantes, atenta a moldura penal proposta – um mês a três anos de prisão – entende-se como adequada e perfeitamente suportada pela culpa do arguido, a pena de 8 (oito) meses de prisão.

6.3. Pelas razões que se deixaram expressas no ponto 6.1., a pena de prisão não será substituída por pena de multa, nos termos do art. 43º, nº 1, do C. Penal, pois que a pena não privativa da liberdade não asseguraria, no caso concreto, os fins da punição.

Por outro lado, atenta a personalidade do arguido, a assunção da sua culpa e a conduta solidária para com a família da vítima, bem como a inexistência de antecedentes criminais e a sua inserção profissional, social e familiar, concluiu-se por um juízo de prognose favorável no sentido de que, a simples censura do facto e ameaça da prisão bastarão para assegurar, adequada e suficientemente, aquelas finalidades.
Em consequência, e nos termos do art. 50º, nºs 1 e 5, do C. Penal, deve ser suspensa a execução da pena de 8 (oito) meses de prisão, pelo período de um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
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7. A condenação do arguido pela prática do imputado crime de homicídio por negligência determinaria ainda a apreciação do pedido de indemnização civil deduzido pela Administração Regional de Saúde do Centro, IP.

Sucede que estamos perante um acidente causado por um veículo terrestre a motor, sujeito à obrigação de segurar imposta pelo art. 1º do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro. O pedido deduzido, porque se contém dentro dos limites fixados para o capital obrigatoriamente seguro (art. 6º do diploma citado), devia ser obrigatoriamente deduzido, e apenas, contra a seguradora do veículo (art. 29º, nº 1, do mesmo diploma), o que não aconteceu, sendo por isso manifesta a ilegitimidade do demandado.
É pois, manifesta, a ilegitimidade do demandado.

Por esta razão, mantêm-se o decidido na sentença recorrida quanto ao pedido deduzido pela Administração Regional de Saúde do Centro, IP.
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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso.
Consequentemente, decidem:

A) Alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:

1. Passando o ponto 11 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
- Deste modo, ao efectuar tal manobra de marcha atrás, porque não conseguia ver se existiam pessoas, veículos ou outros obstáculos na traseira do veículo que conduzia, pelo lado direito do mesmo, atento o seu sentido de marcha, e porque não pediu a uma terceira pessoa que lhe desse indicações sobre se podia fazer aquela manobra de marcha atrás em segurança, o arguido não se apercebeu de que na traseira do semi-reboque se encontrava aquele B..., ao lado do supra referido veículo de matrícula ..., pelo que veio a embater com a traseira daquele semi-reboque no corpo daquele B..., assim fazendo com que este último ficasse esmagado entre a traseira daquele semi-reboque e a parte lateral deste veículo ....

2. E sendo aditado aos factos provados o ponto 15-A, com a seguinte redacção:
- O arguido sabia que não deveria efectuar a supra mencionada manobra de marcha atrás sem ter visibilidade para a traseira e lado direito daquele semi-reboque, sem previamente se assegurar que da sua realização não resultava perigo para terceiros, e sabia também que aquele semi-reboque não possuía luzes de marcha atrás.
*

B) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido A... da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1, do C. Penal.
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C) 1. Condenar o arguido A..., pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1, do C. Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão.
2. Suspender a execução da pena de prisão pelo período de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
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D) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

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Sem tributação (arts. 2º, nº 1, a) e 75º, b), do C. Custas Judiciais).
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Heitor Vasques Osório (Relator)
Jorge Dias