Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
277/05.05TASCD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
PROSSUPOSTOS
REENVIO PARA NOVO JULGAMENTO
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 11/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS:145ºE 146º DO CPC E 4º, 426º-A DO CPP
Sumário: 1 Não tendo sido alegado que o mandatário, defensor do arguido, tivesse estado, durante o período alegado, ininterruptamente impossibilitado de comunicar, quer com o mandante, quer com qualquer outro colega no qual pudesse substabelecer o mandato para a prática do acto omitido, não se verifica uma situação de justo impedimento.
2.O novo julgamento, em consequência de reenvio, compete ao tribunal que efectuou o julgamento anterior, isto sem prejuízo do disposto no art.º 40.º, al.ª c), do CPP. Ou seja, o juiz que participou no primeiro julgamento fica impedido de participar no segundo.

4. Havendo dois juízos na comarca, o segundo julgamento, determinado pelo reenvio, compete ao juízo não recorrido.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. F, foi submetido a julgamento porquanto indiciariamente incurso, segundo acusação deduzida pelo Ministério Público, na prática de factos consubstanciadores da autoria material, sob a forma consumada, de um crime de coacção, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.º 1 e 155.º, alínea a), por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal.

H, tal como ele já mais identificado nos autos, deduziu pedido cível tendente a obter a condenação do arguido a solver-lhe a quantia de € 2.630,00, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sobrevindos em virtude de tal conduta delitiva.

1.2. Na subsequente e normal tramitação processual, no decurso de uma das sessões da audiência de julgamento, concretamente a 3 de Novembro de 2009 (ut fls. 587/588), solicitou entretanto o arguido que se procedesse à leitura das declarações prestadas em anterior audiência pelo ofendido (o processo fora, efectivamente, reenviado para novo julgamento).

Desiderato não logrado pois que viu denegada tal pretensão conforme despacho exarado em acta, a 11 de Novembro de 2009 (fls. 592/595).

Irresignado, expressou o arguido, sem mais, a menção de pretender impugnar o assim decidido (fls. 597).

1.3. Prosseguindo os autos seus regulares termos, foi proferida sentença por cujo intermédio, e ao ora relevante, se decidiu, no dia 17 de Novembro do dito mês e ano:

- Condenar o arguido pela prática do ilícito mencionado, na pena (por aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus) de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, contudo suspensa na sua execução por igual período.

- Mais o condenar a solver ressarcitóriamente ao demandante a quantia global de € 2.000,00.

1.4. Com data de 15 de Dezembro de 2009, simultâneamente com a apresentação da motivação respeitante ao recurso que interpusera em acta (supra 1.2.), ofertou o mandatário do arguido o requerimento que é fls. 625/626, alegando fundamentos conducentes à verificação de justo impedimento e, logo, da prática tempestiva desse acto (o prazo normal, desconsiderado daquele outro facultado pelo regime instituído no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º, do Código de Processo Penal, findara a 2 de Dezembro).

Sobre a pretensão recaiu, então, despacho judicial cujo teor (fls. 721/723) se transcreve:

“A fls. 645 e ss. veio o I. Mandatário do arguido – Dr. R – invocar justo impedimento para a apresentação das alegações de recurso do despacho proferido em 11.11.09 e cujo prazo terminava a 2.12.09.

Tal requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 15.12.09 (cfr. fls. 625).

Para tanto e, em síntese, invocou ter estado, no dia 2.12.09 num julgamento no T.J. de Nelas na parte da manhã e, quando chegou ao escritório pela hora de almoço, ter sido informado da ida do seu pai, de urgência, para o Hospital São Teotónio, em Viseu, com uma paragem cardio-respiratória. Por tal motivo, foi, de imediato para o Hospital, onde o seu progenitor viria a falecer no dia 3.12.09, tendo o funeral ocorrido no dia 4.12.09. Dado o abalo psicológico sofrido, apenas pôde regressar ao trabalho no dia 14.12.09, motivo pelo qual apenas lhe foi possível apresentar a peça processual em causa no dia 15.12.09.

Notificados os demais intervenientes processuais, apenas o Digno Magistrado do M.P. se pronunciou no sentido de não ser considerado justo impedimento porquanto e pese embora compreenda o circunstancialismo fáctico, certo é que o momento da apresentação das alegações de recurso é demasiado longo para, em relação ao termo do prazo, se poder invocar tal instituto.


*

Cumpre apreciar e decidir:

Dispõe o art.º 146.º, do CPC (ex vi do art.º 4.º, do CPP) que: “1- Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.

2- A parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o acto fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.”

É entendimento unânime na doutrina e jurisprudência que a invocação do justo impedimento, para evitar o efeito extintivo do decurso do prazo, tem de ser feita logo que cesse a causa impeditiva.

O Tribunal não põe em causa os factos relatados pelo I. Mandatário na parte respeitante à hospitalização do seu progenitor no dia 2, ao decesso no dia 3 (aliás, comprovado documentalmente pela respectiva certidão de óbito) nem ao enterro no dia 4.

Perante tal circunstancialismo, afigura-se-nos que, nesses dias, efectivamente, o I. Mandatário se encontrou impedido de apresentar as alegações de recurso cujo prazo havia terminado no dia 2.12.09.

No entanto, estava obrigado a, assim que cessou tal causa, diligenciar pela prática do acto – por si ou por outro colega (ademais, não se pode deixar de mencionar que pelo I. Mandatário é afirmado ter uma colega de escritório – a quem poderia socorrer-se). E se não descuramos, rectius, bem compreendemos o abalo emocional sentido, certo é que o mesmo, do nosso ponto de vista, não preenche os requisitos de que lei faz depender para integrar o conceito de justo impedimento:

a) Que o evento seja normalmente imprevisto;

b) Que seja estranho à vontade da parte;

c) Que seja determinador da impossibilidade do acto ser praticado pela parte ou mandatário.

Na verdade, o sofrimento psicológico decorrente da morte do progenitor não é, com o devido respeito, impeditivo de diligenciar no sentido de o acto ser praticado, nomeadamente pela colega de escritório, motivo pelo qual o Tribunal entende então que o I. Mandatário não actuou com a diligência exigível e, assim, indefere o requerido.

(…).


*

Na sequência do despacho vindo de proferir, não admito o recurso apresentado por F despacho proferido em 11.11.09 por não apresentação atempada das alegações de recurso, nos termos do disposto no art.º 411.º, n.º 3, in fine, do CPP.

(…).”

1.5. Desavindo com a consideração desta inadmissibilidade, recorreu o arguido, apresentando, após motivação, as conclusões seguintes:

1.5.1. Devem considerar-se por provados os factos seguintes:

A) O Pai do defensor do arguido foi internado de urgência no dia 2/12/2009, dia em que este pretendia concluir a motivação de recurso, tendo falecido no dia 3/12/2009 e sido sepultado no dia 4/12/2009.

B) Em consequência do abalo psicológico de que consequentemente padeceu, o mandatário requerente esteve ausente do trabalho desde o dia 2/12/2009 até ao dia 14/12/2009.

C) O prazo para apresentação das alegações de recurso terminava no dia 7/12/2009.

D) No dia 15/12/2009 o mandatário subscritor remeteu ao Tribunal as alegações de recurso que havia concluído nessa madrugada, invocando, para a sua apresentação tardia, justo impedimento.

E) O internamento, falecimento, enterro e o correspectivo abalo psíquico não decorrem de culpa do mandatário e, bem assim, não lhe é censurável o período em que esteve ausente da sua actividade profissional, atento o contexto invocado.

1.5.2. Por mera cautela, e para a hipótese de se considerar que o facto referido em B), nomeadamente quanto à ausência do mandatário, e que o facto referido em D), nomeadamente quanto à conclusão da motivação de recurso, se encontram desprovidos do necessário suporte probatório, deve ser ordenada a baixa do processo para a produção da prova testemunhal (que indica), uma vez que o Tribunal a quo optou, sem a anuência prévia do recorrente, por não a produzir.

1.5.3. Os factos alegados e provados constituem justo impedimento, tempestivamente invocado, pelo que o Tribunal recorrido, ao decidir como decidiu, violou as disposições dos artigos 146.º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 107.º, do Código de Processo Penal.

Terminou pedindo que na revogação do despacho mencionado, seja proferido um outro admitindo a impugnação apresentada, uma vez que tempestiva.

1.6. Por outro lado, igualmente inconformado com o teor da sentença final exarada, recorreu também o arguido, apresentando, a propósito, esta síntese de conclusões:

1.6.1. No dia 3/11/2009, data designada para a realização do julgamento, a M.ma Juiz do 1.º Juízo proferiu despacho, o qual não foi notificado ao arguido ou ao seu mandatário, só tendo este tido dele conhecimento após a realização do julgamento, julgando-se incompetente para os ulteriores termos do processo.

1.6.2. Do respectivo conteúdo consta: “Compulsados os autos, verifico que, na sequência do último Movimento Judicial Ordinário, se mostra removido o impedimento que, nos termos dos artigos 40.º e 426.º A, CPP, impedia o Magistrado então colocado no 2.º Juízo deste Tribunal de proceder ao julgamento no âmbito do presente processo.

Consequentemente, ao abrigo do disposto no aludido artigo 426.º A, 1.ª parte, CPP, julgando-me incompetente para os ulteriores termos processuais, determino a remessa dos autos à M.ma Juiz do 2.º Juízo deste Tribunal.”

1.6.3. O artigo 426.º A do CPP define a competência para o novo julgamento no caso de reenvio do processo e, não obstante se encontrar mitigado pela intervenção do regime dos impedimentos, o mesmo não deixa de conter a regra relativa à competência do Tribunal reenviado.

1.6.4.          Tal regra, de acordo com a redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, ao caso aplicável ex vi n.º 1, artigo 5.º do CPP, “será a da competência do mesmo Tribunal para o julgamento do processo após o reenvio, com composição diversa.” - vide Ac. da RP, de 26/11/2008, proc. n.º 0845184, in www.dgsi.pt.

1.6.5. Assim, porque condicionada pela impossibilidade de intervenção do mesmo julgador, o recurso ao regime dos impedimentos na determinação da composição do Tribunal, guia-se, exclusivamente, pelas regrais legais que pré-determinam o modo de proceder à respectiva substituição.

1.6.6. De acordo com este entendimento, o Juiz impedido remeteu os autos à Magistrada que legalmente o substitui (artigos 426 A n.º 1, 46.º, ambos do CPP, e 68.º da LOFTJ); pelo que, a competência da referida Magistrada para a realização do julgamento decorria, como decorre, de um procedimento objectivo e claramente definido por lei.

1.6.7. Ora, sendo a Magistrada do 1.º Juízo quem substitui, nos casos de impedimento, como era o caso, o Magistrado do 2.º Juízo, e não impendendo sobre ela qualquer impedimento, motivo de escusa ou recusa, violaram-se as regras da própria substituição.

1.6.8. E, por maioria de razão, o modo de determinar a composição do Tribunal, já que, in casu, é pelo recurso às regras da substituição que determinamos a composição do tribunal reenviado.

1.6.9. Assim, não padecendo a intervenção da Magistrada, a quem foi regular e legalmente atribuída a competência para compor o Tribunal de Julgamento, de qualquer constrangimento legal (impedimento, escusa ou recusa) a mesma, cremos, era funcionalmente incompetente para se substituir.

1.6.10. Pelo que, em última análise, a violação das regras da substituição redundam, igualmente, na violação da regra da competência, na definição, em concreto, do tribunal reenviado.

1.6.11. De facto, embora no despacho a Magistrada se tenha declarado incompetente para prosseguir os autos, na verdade, o que ocorreu foi uma substituição sem fundamento legal, logo, uma extrapolação dos respectivos poderes funcionais, o que, in casu, tangeu um exemplo de desaforamento ilícito.

1.6.12. Afigura-se-nos, por isso, padecer o referido despacho de nulidade insanável, nos termos das alíneas a) e e) do artigo 119.º do CPP, por violação das disposições conjugadas dos artigos 426.º A, n.º 1, 46.º, ambos do CPP, e do artigo 68.º da LOFTJ, cujas consequências se determinam pelo artigo 122.º, ou seja, in casu, a invalidade afecta todo o processado posterior ao acto nulo, o que se peticiona se declare.

Sem prescindir, quanto à Sentença:

1.6.13. O Tribunal a quo condenou o arguido pela prática de um crime de coacção grave, na forma consumada.

1.6.14. Analisando a matéria de facto dada como provada e a fundamentação expendida, entendemos incorrectamente julgados alguns factos dados como provados, além de os considerarmos insuficientes e, até, contraditórios, nomeadamente com as conclusões que dos mesmos se extraiu em sede de motivação e fundamentação de direito.

1.6.15. Assim, mostram-se incorrectamente julgados os pontos 8), 9) e 14), quando aí se refere “o qual receou pela sua própria vida” da factualidade.

1.6.16. Impõem decisão diversa o depoimento do ofendido (cujas declarações se encontram registadas no sistema de gravação integrada, disponível na aplicação informática do tribunal, das 15h07m56s às 16h44m33s, por referência à acta da audiência de julgamento do dia 3/11/2009, do qual destacamos as passagens dos 15m20s aos 16m, dos 16m40s aos 22m30s, dos 23m15s aos 23m35s, dos 28m40s aos 30m32s.) conjugado com o depoimento das testemunhas FC e EM (cujas declarações se encontram registadas no sistema de gravação integrada, disponível na aplicação informática do tribunal, das 11h22m31s às 12h07m31s e das 12h08m05s às 12h20m11s, respectivamente, por referência à acta da audiência de julgamento do dia 11/11/2009).

1.6.17. Desta prova emerge, ao invés, que devem os mesmos, na parte em que refere “o qual receou pela sua própria vida”, ser tidos como não provados, resultando, ainda, da factualidade a sua manifesta insuficiência, e bem assim, contradições com a motivação e a fundamentação de direito, nomeadamente para e ao caracterizar o elemento do tipo legal de crime associado à ameaça efectuada por meio de crime cuja pena de prisão é superior a três anos.

Vejamos:

1.6.18. O crime de coacção grave, in casu na forma consumada e atento a enquadramento operado na Sentença na alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º do CP, para além dos elementos objectivos e subjectivos do tipo base, impõe que a coacção seja realizada por meio da ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos.

1.6.19. Ora, calcorreada toda a matéria de facto, não vislumbramos em que factos é que se baseou a Sentença para considerar preenchido o tipo grave, tal como não encontramos no depoimento do ofendido, ou das demais testemunhas, elementos seguros que nos permitam afirmá-lo.

1.6.20. De facto, dos referidos depoimentos, tal como da factualidade, não resultam materializados os seus receios, nomeadamente que em consequência da actuação do arguido o ofendido temeu pela sua vida.

1.6.21. Na verdade, o ofendido, sendo que as outras testemunhas nada adiantam que o permita sustentar, apenas refere que teve medo que pudesse acontecer alguma coisa e que não terá voltado ao referido local para evitar problemas, sendo que em momento algum afirma, ou sequer relaciona, terem os seus receios resultado de uma ameaça de morte que sobre si foi exercida como meio coactivo.

1.6.22. Por outro lado, o único momento em que o ofendido afirma que pensou que o arguido lhe daria um tiro foi quando a GNR se deslocou ao local, mas por motivos relacionados com a própria GNR e não com o modo de coacção em si mesmo considerado.

1.6.23. Consideramos, também por isso, que é insuficiente a matéria de facto e contraditórias com ela as conclusões que se extraíram na motivação e na fundamentação de direito, nomeadamente:

1.6.24. Que o arguido sacou de uma arma que trazia atrás das costas, a apontou ao animal e de seguida disparou um tiro para a sua cabeça, quando dos factos resulta, apenas, ter sacado da arma e disparado na direcção do animal, atingindo-o na zona da cabeça, e daí, por mera dedução, inferir-se

1.6.25. Que a conduta do arguido “só pode querer significar que o arguido quis passar a mensagem ao ofendido de que caso ele voltasse – no futuro – a pastorear as ovelhas naquele preciso local, o mataria, disparando contra ele na cabeça tal como acabara de fazer com o cão.”

1.6.26. De facto, consideramos que a convicção do Tribunal resulta novamente da autoria do tiro na cadela e que ao afirmar provada a factualidade de que a seguir iria o ofendido, como forma de considerar que o arguido ameaçou de morte o ofendido, assim o constrangendo, o Tribunal não a rodeou dos necessários elementos de facto para se inferirem tais conclusão e, por tanto, por maioria de razão, para se concluir pela segurança das mesmas.

1.6.27. Pelo que, quando da factualidade se retirou, para considerar preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime, que os receios do ofendido se prendem com uma ameaça de morte, concretizada pela ameaça de um disparo na cabeça, facto que até ele teria temido, caso ele não acatasse a imposição comportamental pretendida pelo arguido, o tribunal excede e contradiz a própria matéria de facto, nomeadamente a constante dos pontos 2), 3), 4), 5) e 7).

1.6.28. Assim, na procedência das alterações de facto peticionadas, mas sempre considerando, igualmente, os vícios apontados, temos por não preenchido o conteúdo normativo das disposições conjugadas dos artigos 154.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a), mostrando-se, por isso, a Sentença Condenatória em sua clara violação.

Afirmou a manutenção de interesse na apreciação do recurso interposto como aludido supra em 1.2.

Por fim, clamou que na procedência da nulidade suscitada, seja ordenada a baixa do processo para ser presente à Magistrada do 1.º Juízo, anulando-se, consequentemente, todo o processado posterior ao indicado despacho. Ou,

Na respectiva improcedência, seja o arguido absolvido do crime porque se encontra condenado. Ainda, subsidiariamente, considerando procedentes e inultrapassáveis os vícios apontados, se ordene o reenvio do processo para novo julgamento.

1.7. Cumprido o disposto pelo artigo 411.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas respondeu o Ministério Público, sustentando a improcedência de ambas as impugnações.

1.8. Proferido despacho admitindo-as, foram os autos remetidos a esta instância.

1.9. Aqui, com vista respectiva, nos termos do artigo 416.º, do mesmo diploma, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer conducente a idêntico improvimento dos dois recursos em causa.

1.10. Foi dado acatamento ao estatuído no artigo 417.º, n.º 2, ainda do citado diploma adjectivo.

1.11. No exame preliminar a que alude o seu n.º 6, consignou-se não ocorrer fundamento determinante à apreciação sumária dos recursos. Por outro lado, também nada obstava ao seu conhecimento de meritis. Donde que devessem prosseguir os autos seus termos, com recolha de vistos e submissão à presente conferência.

Urge, pois, ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A decisão recorrida teve por provados os factos seguintes:

1) No dia 14 de Dezembro de 2003, cerca das 15.30 horas, o arguido dirigiu-se a H, o qual se encontrava a pastorear ovelhas no local denominado …., sito em …, Carregal do Sal.

2) Por entender que o referido H não podia pastorear o rebanho naquele local, o arguido, disse-lhe: “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, tendo-lhe aquele respondido: “chega-te para trás que eu ouço-te bem.”

3) Acto contínuo, o arguido puxou de uma arma de fogo, de características não apuradas, que trazia na cinta, atrás das costas e, empunhando-a, disparou um tiro na direcção de um animal de raça canina, pertença do H que se encontrava a menos de três metros de distância.

4) O projéctil atingiu o animal na zona da cabeça, causando-lhe uma ferida penetrante/perfurante no olho esquerdo e uma ferida penetrante/perfurante, a cerca de 8 ou 9 centímetros abaixo da orelha direita.

5) De seguida, o arguido, disse ao H: “isto não é a brincar, a seguir és tu.”

6) O H abandonou então o local, dirigindo-se para a sua residência com a finalidade de telefonar para a Guarda Nacional Republicana.

7) Após, voltou ao local, com o propósito de recolher as ovelhas que deixara no local; nesse momento, o arguido dirigiu-se novamente ao H e disse-lhe: “ mato-te já.”

8) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que, ao disparar em relação ao canídeo pertença do ofendido e ao mencionar as acima referidas expressões (“ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já”) no circunstancialismo acima descrito (nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), causava receio ao H, procurando, desse modo, obrigá-lo a retirar o rebanho que pastoreava do local e impedir que o voltasse a levar para o mesmo lugar, o que quis e conseguiu.

9) Mais sabia o arguido que, com esse seu comportamento (disparando em relação ao canídeo do ofendido e ao mencionar as acima referidas expressões - “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já” - no circunstancialismo acima descrito - nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), procurava obrigar o H a adoptar comportamento contra sua vontade e que a descrita conduta era proibida e punida por lei penal.

10) O arguido é solteiro, operário da construção civil e não tem antecedentes criminais.

11) O demandante gastou com o tratamento da cadela a quantia de € 180,00; para além disso, despendeu com a deslocação para a Clínica Veterinária, sita em Tondela, cerca de € 20,00.

12) O demandante viu a sua cadela, companheira fiel da sua actividade de pastoreio, ficar irremediavelmente incapacitada; com efeito e apesar dos esforços médicos, a cadela ficou cega de um olho e com os sentidos diminuídos.

13) A cadela tinha cerca de 1 ano e 5 meses de idade, pelo que teria de vida útil na execução de tarefas de pastoreio, em princípio, à volta de mais 10 anos; a preparação de um canídeo para o pastoreio é tarefa demorada e incerta, o que privou o demandante de um canídeo para o trabalho durante bastante tempo, com o que teve um prejuízo de cerca de € 300,00.

14) A conduta do arguido provocou no queixoso/demandante H sentimentos de grande temor, constrangimento, medo e enorme inquietação, o qual receou pela sua própria vida e se viu obrigado, contra a sua vontade, a dirigir-se a sua casa com a finalidade de telefonar para a GNR e a abandonar o local.

15) O demandante experimentou grande desgosto pela perda de um animal pelo qual tinha grande estima, vivendo durante muito tempo em sobressalto e inseguro, passando algumas noites em claro e pensativo sobre o que havia acontecido.

2.2. Já no que concerne a factos não provados, precisou a dita decisão recorrida como segue:

A. Da acusação pública.

Com relevância para a causa inexistem factos por provar.

B. Do pedido cível.

Não resultou provado que o demandante tenha gasto € 50,00 com a deslocação a Tondela ou que tenha sofrido um concreto prejuízo de € 900,00 com a demora na preparação de uma cadela para o pastoreio.

2.3. Por último, reza por esta forma a motivação probatória de tal sentença:

A convicção do tribunal resultou da ponderação de todos os depoimentos prestados em sede de audiência, devidamente registados em gravação áudio, sendo certo que o arguido não compareceu em julgamento, privando assim o tribunal da sua versão dos factos.

Assim e em breve síntese, afirmou o queixoso H, de forma circunstanciada e convicta, que, em 14 de Dezembro de 2003, entre as 15 e as 16 horas, se encontrava a pastorear as suas ovelhas num terreno situado num local denominado… quando viu o arguido e a sua tia a caminharem na sua direcção; chegado junto de si, o arguido disse-lhe: “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, ao que o queixoso retorquiu “chega-te para trás que eu ouço-te bem”. O arguido entendia que aquele pedaço de terra onde o ofendido andava a pastorear era pertença da sua família, motivo pelo qual não queria que o ofendido lá andasse.

Entretanto, a cadela que acompanhava o queixoso no pastoreio, começou a farejar junto do arguido e, acto contínuo, o arguido sacou de uma pistola que trazia na cinta, atrás das costas, apontou-a ao animal que então estava a menos 3 metros de distância, e disparou um tiro para a sua cabeça; de seguida, o arguido, apontando a arma directamente ao queixoso, disse-lhe: “isto não é a brincar, a seguir és tu”.

A cadela começou a ganir de dor e pânico, correndo dali para fora; ele, na sequência do sucedido, abandonou o local, dirigindo-se para a sua residência com a finalidade de telefonar para a Guarda Nacional Republicana.

Seguidamente, voltou ao local para recolher as ovelhas que ali deixara; nesse momento, o arguido dirigiu-se-lhe novamente, dizendo: “ mato-te já”;

Apesar de ter continuado a pastorear as suas ovelhas no lugar …, nunca mais voltou àquele específico local onde estava na altura dos factos descritos na acusação com receio que o arguido aparecesse armado e acontecesse “alguma coisa”.

Posteriormente e quando a cadela apareceu novamente junto de si, estava cheia de sangue, decidindo transportá-la de urgência ao veterinário em Tondela, o que não pode ser ele a fazer por “estar desorientado de todo”; refere ainda que quando a GNR chegou ao local, não conseguiu encontrar qualquer arma, porque o arguido a deitou fora.

Por seu turno, afirmou FC pastor que andava num terreno situado a cerca de 300 metros daquele local, que ouviu um tiro e logo de seguida um animal a ganir; aproximou-se e viu o arguido a apontar uma pistola ao queixoso; mais tarde, viu a cadela já cega; este depoimento, pese embora de questionável rigor, é ainda assim claro na audição do disparo.

Prosseguindo, EM que se encontrava no quintal de sua casa, que dista do local algumas centenas de metros (falou em 400 metros) ouviu um tiro (que lhe pareceu vir do lado do,,,) e, logo de imediato, um cão a ganir.

Já a testemunha de defesa Maria .., tia do arguido, e arrogando-se proprietária daquele pedaço de terreno onde pastoreava o ofendido, afirmou que efectivamente se deslocou para junto do queixoso com o arguido, mais confirmando que o seu sobrinho disse ao queixoso, que andava a pastorear, que não queria que as ovelhas voltassem a pisar aquilo que é da família; porém, nada sabe sobre disparos nem de armas, não viu ou ouviu nada de relevante (nem sequer a cadela viu); sobre as lesões observadas na cadela, refere que nem conhecia ao ofendido a referida cadela, apesar de ser vizinha e conhecer há longos anos o ofendido e família. Disse ainda que nunca mais viu o ofendido naquele específico local onde esteve com ele e o arguido, relatando ainda uma ocasião em que aí encontrou um empregado do ofendido que lhe pediu “de joelhos” para que não dissesse ao ofendido que o tinha visto lá.

Não soube porém explicar a razão do ofendido não querer que as suas ovelhas aí pastoreassem ao ponto de um seu empregado ter aquela reacção, já que segundo a testemunha o ofendido estaria convencido de que lá poderia andar.

Como um dado objectivo, temos uma cadela que foi alvejada com um tiro; sobre isto, ninguém duvidará que este animal foi atingido por um projéctil proveniente de uma arma de fogo – o médico veterinário A (que elaborou e confirmou o teor do relatório de fls. 24) foi bem claro quando falou em ferida penetrante/perfurante (ou seja, que entrou e saiu da cabeça do animal), a qual apenas é compatível com uma bala ou outro projéctil disparado a grande velocidade.

Mas quem poderá ter disparado o tiro e provocado as lesões na cadela?

Porventura, não pretenderá o arguido sugerir que foi o próprio queixoso e dono da cadela quem disparou um tiro contra o animal para depois suportar os custos do seu tratamento e o manter na sua companhia!?...; ou, como parece fazer crer a testemunha Maria  , que tudo não passa de uma vingança do ofendido por o arguido ter feito uma denúncia contra ele na PJ!? …

O tribunal não tem pois a mínima dúvida sobre a autoria das lesões observadas na cadela, não se vislumbrando quaisquer razões para questionar a veracidade do depoimento do queixoso, quando conjugado com os demais elementos que lhe dão suporte.

Note-se que mesmo o depoimento de Maria , testemunha arrolada pelo arguido dá apoio à versão do ofendido quando confirma a razão do encontro entre si, o arguido e o ofendido e que se prende com questões de domínio sobre terrenos, que entende pertencerem à sua família, quando corrobora a circunstância também afirmada pelo ofendido de na altura trazer consigo um chaço e de este não ter mais voltado àquele terreno, quando diz que o ofendido andava a pastorear e, por fim quando confirma o teor da primeira expressão que o arguido dirige ao ofendido no sentido de o exortar a não mais voltar a aquela parcela de terreno.

Depois, de forma omissa e evasiva, revelando grande animosidade relativamente ao ofendido e uma atitude de protecção do arguido, limita-se a negar que algo mais se tenha passado para além do aviso feito pelo arguido, não merecendo pois, nessa parte, qualquer credibilidade. Como pode afirmar que nada viu (nem o cão!), nada ouviu e que, para além do aviso feito pelo arguido, nada de anormal se passou??!!

Até a testemunha EM (e não existe o mínimo motivo para não se confiar no depoimento desta testemunha), que se encontrava a centenas de metros de distância, ouviu o tiro e um animal a ganir! Se estava no local, viu e, sobretudo, ouviu necessariamente o disparo efectuado a poucos metros.


*

A sucessão de acontecimentos que resultou da prova produzida é pois a seguinte:

Por entender que o referido H não podia pastorear o rebanho naquele local, o arguido, disse-lhe: “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, tendo-lhe aquele respondido: “chega-te para trás que eu ouço-te bem”.

Acto contínuo, o arguido puxou de uma arma de fogo, de características não apuradas, que trazia na cinta, atrás das costas e, empunhando-a, disparou um tiro na direcção de um animal de raça canina, pertença do H, que se encontrava a menos de três metros de distância, atingindo-o na zona da cabeça.

De seguida, o arguido, disse ao H: “isto não é a brincar, a seguir és tu”, tendo então o H abandonado o local, dirigindo-se para a sua residência com a finalidade de telefonar para a Guarda Nacional Republicana.

Após, voltou ao local, com o propósito de recolher as ovelhas que deixara no local e nesse momento, o arguido dirigiu-se novamente ao H e disse-lhe: “ mato-te já”.

Perante estes factos, qualquer pessoa colocada no lugar do queixoso se sentiria por demais atemorizado (aterrado, diria) com o que o arguido pudesse eventualmente fazer. E, em consequência obrigado a agir da forma pretendida pelo arguido, não voltando a pastorear as suas ovelhas naquela parcela de terreno; quem actua da forma como o arguido actuou parece capaz de quase tudo!

E o que pretendeu o arguido? Ora, o arguido pretendeu inequivocamente forçar (coagir, compelir, obrigar, constranger) o queixoso a omitir uma acção: fazer com que o mesmo não voltasse a pastorear as ovelhas naquele local, o que conseguiu. As expressões utilizadas tendo em conta o contexto em que foram proferidas são objectivamente idóneas e adequadas a causar receio a qualquer pessoa e por conseguinte a obrigá-la a adoptar a conduta querida pelo agente.

Neste sentido, se considerou como provado que ao disparar em relação ao canídeo pertença do ofendido e ao mencionar as acima referidas expressões (“ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já”) no circunstancialismo acima descrito (nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), causava receio ao Henrique Brites, procurando, desse modo, obrigá-lo a retirar o rebanho que pastoreava do local e impedir que o voltasse a levar para o mesmo lugar, o que quis e conseguiu.

E que o arguido sabia que, com esse seu comportamento (disparando em relação ao canídeo do ofendido e ao mencionar as acima referidas expressões - “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já” - no circunstancialismo acima descrito - nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), procurava obrigar o Henrique Brites a adoptar comportamento contra sua vontade e que a descrita conduta era proibida e punida por lei penal.

Ou seja, e para que não subsistam quaisquer dúvidas: o tribunal afirma peremptoriamente que foi intenção do arguido impedir que o queixoso voltasse a pastorear as ovelhas naquele terreno que entendia ser propriedade da sua família, sito em …; e que o queixoso ficou com receio daquilo que pudesse acontecer caso não acatasse a ordem do arguido e em consequência sentiu-se forçado a não voltar àquele específico local onde ocorreram os factos.


*

Relativamente ao pedido cível, há que lembrar que a matéria relativamente ao mesmo não foi objecto de recurso, com excepção do valor atribuído aos danos não patrimoniais, tendo-se as partes conformado com o julgamento anterior.

Por conseguinte, serão mantidos na íntegra os factos provados 11, 12 e 13 da sentença proferida anteriormente, bem como os não provados relativamente ao pedido cível (e respectiva motivação), que apresentam autonomia relativamente à matéria criminal.

Assim, o tribunal recorreu à equidade para calcular um valor para o gasto com a viagem de ,,, a Tondela (ida e volta, serão 50 Km), o mesmo sucedendo com os prejuízos decorrentes com a inutilização da cadela para o exercício do pastoreio, já que a mesma ficou irremediavelmente diminuída nas suas capacidades (o demandante diz que ainda hoje, apesar de felizmente continuar viva, está contudo desnorteada); neste ponto, importa dizer, para substituir um animal, não só há necessidade de o adquirir, como também de o treinar; o tribunal, à míngua de outros elementos complementares, fixa em € 300,00 a quantia necessária para o efeito.

Como se disse, A , médico veterinário, confirmou o teor do relatório junto a fls. 24 dos autos, que descreve as lesões apresentadas pela cadela e o seu estado de choque provocado pelo tiro acabado de sofrer na cabeça. Mais deu conta do desgosto sentido pelo demandante com o sucedido com a cadela que ficou deficiente e ainda que este é pessoa que respeita e cuida com estima dos seus animais, nomeadamente daquela cadela. Não é, por conseguinte, difícil imaginar o estado de profunda tristeza e angústia vivido pelo demandante.

Com efeito, não é preciso possuir um cão para perceber o grande apego e carinho que o homem nutre por estes animais (porventura mais do que qualquer outro animal de estimação), para mais quando são companhia quase permanente.

Ainda hoje, o queixoso se emociona quando fala da sua cadela (e bem se vê que não é teatro), esclarecendo que continua a limpar as impurezas com regularidade no local onde apanhou o tiro, evitando a criação de quaisquer infecções, o que diz bem da afeição e cuidados que dispensa ao animal.

No que respeita ao estado emocional descrito em 14 e 15 dos factos provados em que ficou o demandante em virtude da conduta do arguido, foram expressivas e bem elucidativas as declarações prestadas pelo mesmo a esse respeito, o que pela gravidade da situação ocorrida, e demais elementos de prova, em conjugação com as regras da experiência comum permitiram a demonstração da factualidade correspondente.

Mais teve o tribunal em consideração o CRC junto aos autos.


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III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como é consabido, o âmbito dos recursos define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação[1], mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios e nulidades previstos (as) nos n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma adjectivo[2].

In casu, não emerge dos autos qualquer fundamento acarretando esta intervenção oficiosa.

Por outro lado, vista a ordem da sua interposição e efeito útil normal – de eventual prejudicialidade que a respectiva apreciação até pode acarretar relativamente ao minutado contra a sentença condenatória –, cabe ponderar, assim, em primeiro lugar do respeitante ao despacho aludido em 1.2., supra, e, improcedendo, apenas depois do atinente à decisão final prolatada.

Já no que tange aos respectivos objectos, traduzir-se-á o primeiro na indagação sobre se ocorreu justo impedimento que permitisse ao mandatário do arguido interpor, em 15 de Dezembro de 2009, recurso relativamente ao despacho exarado como dito em acta – fls. 592/595 –.

Acaso caiba conhecer-se, desde já, do recurso interposto da sentença final, seu objecto consistirá, por seu turno, em apreciarmos, se:

- A M.ma Juiz do 2.º Juízo do Tribunal de Santa Comba Dão, não detinha competência para proceder à audiência de julgamento nos autos?

- Se mostram incorrectamente apreciados os pontos de facto indicados por provados nos itens n.ºs 8), 9) e 14), além de que os constantes dos itens n.ºs 2), 3), 4), 5) e 7), todos da decisão recorrida, são insuficientes para a decisão de direito aí operada?

Vejamos, então.

3.2. No decurso de uma das sessões que comportou a audiência de julgamento, o arguido requereu, fundado ao disposto no artigo 356.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, que o Tribunal a quo confrontasse o ofendido com declarações que anteriormente prestara nos autos (o processo fora reenviado para novo julgamento, dissemos já), atentas as discrepâncias que em seu entender delas resultavam com as que agora prestara (cfr. fls. 587/588).

Auscultados os demais sujeitos processuais, decidiu o Tribunal em causa indeferir ao requerido (fls. 592/595).

Pretendendo impugnar a decisão, o arguido manifestou de imediato essa intenção em acta (sendo dia 11 de Novembro de 2009). Face ao expendido, também logo se determinou deverem os autos aguardar a apresentação da motivação correspectiva (fls. 597).

Com data de 15 de Dezembro de 2009, aprestou-se o arguido a juntá-la aos autos, simultâneamente invocando a ocorrência de fundamento determinante à configuração de justo impedimento para a prática, só nesta data, de tal acto processual (fls. 625 e segs.).

Concreta circunstância, a que alegou como já mencionado supra em 1.5.1., que não reproduzimos, de novo, e sobre a qual recaiu o primeiro despacho controvertido.

Quid iuris?  

Nos termos do disposto no artigo 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os actos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade judiciária, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento.
O requerimento em que este é invocado deve ser apresentado no prazo de três dias contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento (n.º 3, do mesmo artigo).

Pelo requerente foi respeitado este prazo de três dias, tendo em conta a data invocada como sendo aquela em que terminou o impedimento (regresso dia 14 de Dezembro ao escritório, após o decesso de seu pai e transtorno que lhe sobreveio em consequência).

O justo impedimento[3] constitui uma verdadeira derrogação da regra da extinção do direito de praticar um acto pelo decurso de um prazo peremptório. O prazo para recorrer de uma decisão judicial tem natureza peremptória e o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto, nos termos do n.º 3 do artigo 145.º, do Código de Processo Civil. “O acto poderá, porém, ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento, nos termos regulados no artigo seguinte.” (n.º 4, da mesma norma).

Serve assim de válvula de escape ao sistema decorrente da extinção do direito de praticar o acto na sequência do decurso do prazo peremptório[4].

Nos termos do n.º 1 do artigo 146.º, do Código de Processo Civil, “Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.”

O conceito de justo impedimento assim configurado é bastante mais vasto do que o contido neste mesmo artigo na redacção antes da reforma de 1995.

À data da referida reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro, só era considerado justo impedimento o evento imprevisível (“normalmente imprevisível”, dizia a lei) estranho à vontade da parte que a impossibilitasse de praticar o acto por si ou por mandatário, o que levava a doutrina a restringir a respectiva previsão legal àquelas hipóteses em que «a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que um cuidado e diligências normais não fariam prever.»[5]

Com a Reforma do Código do Processo Civil introduzida através do aludido Decreto-Lei n.º 329-A/95 “flexibiliza-se a definição conceptual de «justo impedimento» em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia da culpa, que se afastou da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam” – Vd. Relatório do referido Decreto-Lei.

O novo conceito de justo impedimento faz apelo, em derradeira análise, ao «meio-termo» de que falava Vaz Serra[6]: deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não é de lhes exigir que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excepcionais.

A esse «meio-termo» também já se referiu a nossa jurisprudência nomeadamente no Ac. RL de 22.03.2000 cujo sumário está disponível in www.dgsi.pt: “o justo impedimento só se verifica quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade absoluta de o praticar, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligências normais não fariam prever.”

“Não basta que se trate de um evento não previsto pela parte, nem se exige que se trate de um evento totalmente imprevisível. O aceitável é o meio-termo, devendo exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não sendo de exigir-lhes que entrem na linha de conta com factos ou circunstâncias excepcionais.”[7]

Segundo J. Lebre de Freitas[8], a nova redacção introduzida no n.º 1 do artigo 146.º visou a “flexibilização de modo a permitir abarcar situações em que a omissão ou o retardamento da parte se haja devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria.” Daí que, “à sua luz, basta para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstacularizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção. Tal não obsta à possibilidade de a parte ou o mandatário ter tido participação na ocorrência, desde que, nos termos gerais, tal não envolva um juízo de censurabilidade.”

“Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário… cabendo à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa.”

”Deixou, portanto a lei de fazer qualquer exigência a respeito da normal imprevisibilidade do evento, estranho à vontade da parte, para se centrar apenas na não imputabilidade à parte nem aos seus representantes ou mandatários pela ocorrência do obstáculo que impediu a prática do acto.”

Sobre o novo conceito de justo impedimento, escreveu-se ainda no Acórdão do STJ, de 17 de Julho de 2000, processo 1.088, da 3.ª Secção: “É certo que actualmente, à luz do art.º 146.º, n.º 1, do CPC (…) o que releva decisivamente para a sua verificação, mais do que a ocorrência de um evento totalmente imprevisível ou em absoluto impeditivo, é que o evento que impediu a prática atempada do acto não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, ou seja, que inexista culpa do sujeito requerente do acto, ou de seu representante ou mandatário, culpa essa a valorar em consonância com o critério geral estabelecido no n.º 2 do art.º 487.º do CC, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas.”

De tudo decorre que um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão.

Contudo a parte interessada não pode beneficiar da excepcionalidade do conceito de justo impedimento quando tenha havido da sua parte negligência, culpa ou imprevidência. Se o evento era susceptível de previsão e ela se não acautelou contra a possibilidade da sua verificação, sibi imputet.

No que concerne à culpa, tal como na responsabilidade contratual, a mesma não tem de ser provada, cabendo à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (cfr. art.º 146.º n.º 2 do CPC “a parte que alegar justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova…” e art.º 799.º n.º 1 do C. Civil): “embora não esteja em causa o cumprimento de deveres, mas a observância de ónus processuais, a distribuição do ónus da prova põe-se nos mesmos termos.”[9]

Ainda a propósito da culpa, Lopes do Rego[10] refere que, decisivo para a verificação do justo impedimento é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, sem prejuízo do especial dever de diligência e de organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das suas causas.

Pode ler-se, a propósito da mesma temática, no Ac. do STJ de 9 de Julho de 1991 (Proc. 488/91): “Quem alegue o justo impedimento terá que alegar, também, a sua impossibilidade de comunicação à parte, mandatário, ou outro advogado a quem fosse cometido o encargo de efectuar, imediatamente, a diligência em causa.

Em sintonia com a jurisprudência que julgamos unânime neste ponto, entendemos que, embora o actual art.º 146.º n.º 1 do C.P.Civil o não diga expressamente, à semelhança do que aí se estatuía na anterior redacção, para que ocorra justo impedimento é necessário que, em consequência do obstáculo, o acto não possa ser praticado por mandatário. Tratando-se de não entrega de motivação de recurso, por não ter sido tempestivamente feita, terá de alegar-se e provar-se que não pudera ser feita por outro advogado.

Assim, não se verificará justo impedimento se, apesar de um acontecimento, normalmente imprevisível, houver possibilidades, usando a diligência normal, de o acto ser praticado pela parte ou pelo mandatário. O mesmo é dizer, se puder ser praticado por outro advogado, no qual possa substabelecer o mandatário impedido ou que a parte possa entretanto mandatar para o efeito.”

Não despiciendo para o caso vertente, ainda, o regime resultante do Decreto-Lei n.º 131/2009, de 1 de Junho, que visando salvaguardar aos advogados certos direitos e regalias – rectius de dispensa de actividade durante certo tempo, mormente em caso de falecimento de familiar próximo –, estabeleceu “o direito dos advogados ao adiamento de actos processuais em que devam intervir em caso de… luto…” (artigo 1.º), e, regulando o respectivo exercício, precisou depois que “Em caso de falecimento de progenitores…, os advogados gozam do direito de obter, mediante comunicação ao tribunal, o adiamento dos actos processuais em que devessem intervir, no próprio dia do falecimento ou nos dois dias seguintes.” (artigo 3.º)

O caso presente:

Tem-se por incontrovertido – até porque assente em documento autêntico (fls. 665) –, o óbito do pai do requerente no dia 3 de Dezembro de 2009. Também adquirido o seu funeral no dia seguinte e, ainda, que o terminus do prazo para apresentação da motivação atinente ao recurso interposto pelo arguido através de declaração em acta no dia 11 de Novembro de 2009, se esgotava no dia 2 de Dezembro de 2010, isto sem prejuízo da prática do acto até ao dia 7 seguinte, mediante o pagamento da multa a que alude o artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do n.º 5 do citado artigo 107.º, do Código de Processo Penal).

Concedendo o abalo psíquico sofrido pelo mandatário do arguido, com o despacho recorrido, e na senda do que acima mencionámos como sendo os pressupostos indispensáveis á configuração do alegado “justo impedimento”, propendemos a denegar a pretensão ofertada.

Isto porquanto, sendo certo que o regime estabelecido no aludido Decreto-Lei n.º 131/2009, de 1 de Junho, se reporta ao adiamento, no caso de falecimento de progenitor, de actos processuais a que o advogado devesse estar presente, não menos verdade será que aí se colhe um elemento norteador ao que deve entender-se como o período razoável para que ele se tenha como impossibilitado de exercitar, então, os actos normais que o seu múnus lhe impõe.

Mas, e essencial, o alegado não comprova que o mandatário requerente tivesse estado durante o período alegado, ininterruptamente impossibilitado de comunicar, quer com o mandante, dando-lhe a conhecer a situação e permitindo-lhe, caso assim o entendesse, de outorgar procuração a outro causídico, quer com qualquer outro colega no qual pudesse substabelecer o mandato para a prática do acto omitido (sucedendo até in casu que o mandatário requerente partilha o escritório com uma colega, como ele próprio aduz). A situação invocada no requerimento em análise, tendo sido pessoalmente dolorosa, o que se não questiona por qualquer forma, não redundou (ao menos não foi isso invocado) numa impossibilidade absoluta para que o mandatário requerente diligenciasse nos termos indicados.

Poderia objectar-se ao carácter pessoal do patrocínio, a acarretar o melhor conhecimento do processo pelo requerente, facilitando de forma mais eficaz os interesses do seu constituinte.

Sucede que ninguém é insubstituível, nem a lei permite a derrogação de qualquer prazo peremptório à espera que um mandatário da parte se restabeleça para que o processo prossiga os seus termos. O acto é da parte, o advogado é apenas representante desta. Quando o advogado escolhido não está em condições de exercer o mandato, a parte tem de diligenciar pela escolha de outro que o esteja, caso aquele não tome a iniciativa de substabelecer noutro colega de profissão.

O requerente relegou para o último dia do prazo normal a apresentação da motivação. Concedendo-se que essa era uma faculdade que lhe cabia (ou, após, socorrer-se do mecanismo das disposições conjugadas dos citados artigos 107.º, n.º 5 e 145.º, n.º 5), e sendo embora objectiva a verificação de um acto que lhe não era imputável (o falecimento súbito de seu pai), certo é que, nas circunstâncias, atentando-se igualmente ao expendido no parágrafo que antecede, conclusão imposta é a de que a prática intempestiva do acto se ficou a dever a negligência sua, pois descurou a diligência que devia ter emprestado no acompanhamento da causa.

Corolário, assim, a improcedência deste primeiro recurso e, com ela, da determinada intempestividade do recurso respeitante ao despacho de fls. 592/595.

De curar, então, do recurso principal.

3.3.1. Nele, começa o recorrente por esgrimir contra a incompetência da Juiz do 2.º Juízo do Tribunal a quo, uma vez que na sequência de um anterior despacho, fora determinada a remessa dos autos à M.ma Juiz do 1.º Juízo desse mesmo Tribunal.

Uma panorâmica dos actos desenvolvidos, no que concerne, permitirão colocar a questão em mais pormenor:

Deduzida acusação, e remetidos os autos a Juízo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311.º, do Código de Processo Penal, foram os mesmos distribuídos ao 2.º Juízo em causa.

Na normal tramitação, proferida sentença, recorreu o arguido com ganho de causa, pois que através de aresto desta Relação, foi determinado o parcial reenvio respectivo para novo julgamento (fls. 502).

Regressados os autos à 1.ª instância, o M.mo Juiz do 2.º Juízo, anteriormente interveniente no julgamento realizado, designou nova data para o mesmo, e a que procedeu, tendo, inclusive, designado data para leitura da sentença (fls. 536/538).

Na data aprazada, tendo por base essa dupla intervenção do mesmo M.mo Juiz, e acobertado ao estatuído nos artigos 426.º, n.º 1; 426.º-A, n.º 1; 40.º, alínea c); 41.º, n.º 3; 119.º; 120.º; 121.º e 105.º, todos do Código de Processo Penal, requereu o arguido a nulidade de todo o processado, após a designação da data para o julgamento a que entretanto se procedia, o que foi deferido conforme decorre do despacho de fls. 543/547.

Na sequência do trânsito deste despacho, foram os autos remetidos ao 1.º Juízo do Tribunal a quo. Aí, designou-se nova data para julgamento (fls. 553), entretanto transferida para momento ulterior a requerimento do mandatário do arguido (fls. 559).

Antecedendo o próprio julgamento, foram os autos conclusos à M.ma Juiz desse mesmo Juízo, que determinou então:

“Compulsados os autos, verifico que, na sequência do último Movimento Judicial Ordinário, se mostra removido o impedimento que, nos termos dos artigos 40.º e 426.º-A, CPP, impedia o magistrado então colocado no 2.º Juízo deste Tribunal de proceder ao julgamento no âmbito do presente processo.

Consequentemente, ao abrigo do disposto no aludido artigo 426.º-A, 1.ª parte, CPP, julgando-me incompetente para os ulteriores termos processuais, determino a remessa dos autos á M.ma Juiz do 2.º Juízo deste Tribunal.” (fls. 584)

Volvidos os autos ao 2. Juízo, de imediato se procedeu ao julgamento indicado (fls. 586 e segs.), sem que o arguido algo tenha oposto. Mas, invoca agora, por tribunal incompetente para tanto.

Sucede ser a resposta negativa.

Nota que importa antes do mais consignar a de que a tergiversação do recorrente pouco abona em prol da lealdade processual. Na verdade, relapso, permitiu que se realizasse uma audiência de julgamento perante Juiz incompetente e apenas aquando do momento da leitura da sentença, invocou da excepção assim configurada. Depois, pese embora conhecesse a remessa dos autos para julgamento perante a M.ma Juiz do 1.º Juízo, confrontado com nova audiência perante Juiz do 2.º Juízo (nessa data aquela desaforara-se nos termos do indicado despacho de fls. 584), assistiu a nova audiência, sem nada obstaculizar a propósito, e, apenas sentenciado vem controverter novamente da propalada incompetência.

Naturalmente que as regras processuais são mandamentos cuja observância se reclama. Porém, o que impressiona é a coincidência do momento processual em que o recorrente as descortina… e daí a nota que por esta forma consignámos.

Mas, e relevante, porque se não verifica a invocada incompetência da M.ma Juiz do 2.º Juízo?

Responde Paulo Pinto de Albuquerque[11], que discorrendo sobre questões suscitadas acerca da competência para novo julgamento em caso de reenvio e em anotação ao aludido artigo 426.º-A[12];[13], anota, a propósito:

“4. (…), a Lei n.º 48/2007, de 29.8, altera profundamente o sistema de reenvio, assimilando o reenvio e a repetição do julgamento. Tal como a declaração de nulidade, a declaração de vícios do artigo 410.º, n.º 2, visa agora a repetição do julgamento pelo mesmo tribunal, embora com composição pessoal diferente. Isto resulta da ressalva da disposição do artigo 40.º, al.ª c). Dito de outro modo, o reenvio processa-se para o concreto tribunal que tenha efectuado o julgamento anterior, mas, por força do art.º 40.º, al.ª c), o juiz que participou no primeiro julgamento fica impedido de participar no segundo...

6. Só no caso de ser impossível o julgamento pelo mesmo tribunal, com competência pessoal diversa, a Lei n.º 48/2007, de 29.8, determina …” (sublinhados nossos)

Isto é, relevante no regime mencionado e como regra, não infirmada no caso, diga-se, a de que determinado o reenvio dos autos, competente é o tribunal que procedeu ao primitivo julgamento, desde que ressalvada a distinta competência pessoal.

A hipótese vertente: determinado o reenvio dos autos por este Tribunal de recurso, foram os autos remetidos para o Tribunal que procedera ao primitivo julgamento.

Aí realizado por juiz [pessoalmente, porque interveniente no primeiro julgamento] incompetente, assumiu o mesmo a nulidade operada, ordenando a remessa dos autos para outro Juízo a fim de acautelar a exigível diferença pessoal de julgador.

No 1.º Juízo, constatada a supressão de tal incompatibilidade pessoal atento o Movimento Judicial entretanto realizado, foi ordenado o retorno dos autos ao 2.º Juízo porque já então efectivamente acautelada aquela imposta destrinça pessoal.

Reposto, pois, o rigor processual que norteia o recorrente, improcede este fundamento do recurso.

3.3.2. Tempo de ponderarmos agora se foram incorrectamente apreciados os pontos de facto indicados por provados nos itens n.ºs 8), 9) e 14), além de que os constantes dos itens n.ºs 2), 3), 4), 5) e 7) se mostram insuficientes para a decisão de direito operada na decisão recorrida.

Mais do que controverter matéria de facto, o que almeja o recorrente em verdade é desconsiderar o juízo conclusivo do Tribunal a quo no que respeita ao elemento subjectivo da infracção – em rigor o que sobressai dos indicados itens n.ºs 8), 9) e 14) –, e, por outro lado, o funcionamento operado da alínea a) do artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, vistos os factos descritos agora nos itens n.ºs 2), 3), 4), 5) e 7).

Porém, sucede que igualmente aqui se mostra infundada a pretensão.

Ouvindo-se os meios de prova que colige – depoimento do ofendido e depoimentos das testemunhas PC e SM –, o que deles sobressai é a ocorrência do circunstancialismo descrito sob os itens n.ºs 1) a 7) da sentença recorrida.

Com efeito, a última afirmou que se encontrava no quintal de sua casa, que dista do local onde ocorreram os factos algumas centenas de metros (falou em 400 metros); ouviu um tiro (que lhe pareceu vir do lado do …) e, logo de imediato, um cão a ganir; mais tarde passou por ali o ofendido que lhe perguntou se ele tinha ouvido alguma coisa, ao que retorquiu afirmativamente; já a segunda, então assalariado do ofendido, e que guardava uma parte do rebanho deste, na E.., local situado a cerca de 300 metros do da ocorrência dos factos, disse ter ouvido um tiro e logo de seguida um animal a ganir; aproximou-se e do cimo de um penedo e de trás de um pinheiro, viu o arguido a apontar uma pistola ao queixoso; mais tarde, viu a cadela já cega; por fim, o ofendido descreveu os factos pela forma acolhida nos itens aludidos, em moldes que aliás a instância do próprio mandatário do arguido por forma alguma descredibilizou. Tudo conjugado, consabendo-se ademais as regras aplicáveis à apreciação da prova, mormente a testemunhal, mostra-se assertivo o juízo conclusivo do Tribunal a quo.

O crime de coacção exige dolo. Dolo que se basta inclusive com a sua forma eventual, isto é, não se mostra necessário que a acção do agente vise, especificamente, humilhar ou constranger o coagido (dolo específico), bastando que o agente, sejam quais forem as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme.

No caso vertente, porém, os factos mencionados sob os itens n.ºs 1) a 7) dão depois pleno suporte aos que a sentença recorrida fez constar nos itens n.ºs 8), 9) e 14), ou seja, ao descortinar da acção dolosa do recorrente, mas na forma mais intensa de dolo, qual seja a directa.

Isto porquanto o arguido ao disparar em relação ao canídeo pertença do ofendido e ao mencionar as citadas expressões (“ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já”) no circunstancialismo acima descrito (nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), sabia que tal conduta era susceptível de causar receio ao H, seu móbil, e no intuito de o obrigar a não mais pastorear o rebanho naquele local, o que quis e conseguiu, pois o ofendido ali mais não voltou.

A insuficiência descortinada pelo recorrente nos pontos de facto n.ºs 2), 3), 4), 5) e 7), visava afastar o funcionamento da forma grave do ilícito.

Aqui, com a resposta do Ministério Público em 1.ª instância, bem podemos dizer que dificilmente se conceberá hipótese na qual a ameaça com a prática de um crime de homicídio – logo a ameaça traduzir-se na prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos – pudesse ser mais evidente.

Deixemos falar a motivação probatória da decisão recorrida, quando consignou:

A sucessão de acontecimentos que resultou da prova produzida é pois a seguinte:

Por entender que o referido H não podia pastorear o rebanho naquele local, o arguido, disse-lhe: “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, tendo-lhe aquele respondido: “chega-te para trás que eu ouço-te bem”.

Acto contínuo, o arguido puxou de uma arma de fogo, de características não apuradas, que trazia na cinta, atrás das costas e, empunhando-a, disparou um tiro na direcção de um animal de raça canina, pertença do H, que se encontrava a menos de três metros de distância, atingindo-o na zona da cabeça.

De seguida, o arguido, disse ao H: “isto não é a brincar, a seguir és tu”, tendo então o H abandonado o local, dirigindo-se para a sua residência com a finalidade de telefonar para a Guarda Nacional Republicana.

Após, voltou ao local, com o propósito de recolher as ovelhas que deixara no local e nesse momento, o arguido dirigiu-se novamente ao H e disse-lhe: “ mato-te já”.

Perante estes factos, qualquer pessoa colocada no lugar do queixoso se sentiria por demais atemorizado (aterrado, diria) com o que o arguido pudesse eventualmente fazer. E, em consequência obrigado a agir da forma pretendida pelo arguido, não voltando a pastorear as suas ovelhas naquela parcela de terreno; quem actua da forma como o arguido actuou parece capaz de quase tudo!

E o que pretendeu o arguido? Ora, o arguido pretendeu inequivocamente forçar (coagir, compelir, obrigar, constranger) o queixoso a omitir uma acção: fazer com que o mesmo não voltasse a pastorear as ovelhas naquele local, o que conseguiu. As expressões utilizadas tendo em conta o contexto em que foram proferidas são objectivamente idóneas e adequadas a causar receio a qualquer pessoa e por conseguinte a obrigá-la a adoptar a conduta querida pelo agente.

Neste sentido, se considerou como provado que ao disparar em relação ao canídeo pertença do ofendido e ao mencionar as acima referidas expressões (“ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já”) no circunstancialismo acima descrito (nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), causava receio ao H, procurando, desse modo, obrigá-lo a retirar o rebanho que pastoreava do local e impedir que o voltasse a levar para o mesmo lugar, o que quis e conseguiu.

E que o arguido sabia que, com esse seu comportamento (disparando em relação ao canídeo do ofendido e ao mencionar as acima referidas expressões - “ficas avisado que não quero que uma ovelha pise o terreno da minha família”, “isto não é a brincar, a seguir és tu” e “mato-te já” - no circunstancialismo acima descrito - nomeadamente na posse de uma arma e depois de atingido o animal de raça canina na zona da cabeça), procurava obrigar o H a adoptar comportamento contra sua vontade e que a descrita conduta era proibida e punida por lei penal.

Seja, em síntese final, a improcedência de todos os fundamentos deste recurso.


*

IV – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos, se nega provimento a ambos os recursos interpostos.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.

Notifique.


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Coimbra, 3 de Novembro de 2010



[1] Cfr., artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

[2] Cfr. Acórdão do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória.

[3] Cfr., Ac. do STJ, de 9 de Março de 2010, no recurso n.º 5297/09, que seguiremos de perto.
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997, págs. 76/77.
[5] Cfr. Conselheiro Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, I, pág. 321.
[6] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109, pág. 267.
[7] Neste mesmo sentido ver, ainda, os Ac. RL de 13 de Abril de 1999 e RG de 23 de Junho de 2004, ambos in www.dgsi.pt.

[8] In “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, págs. 257 e 258, citado no Ac. RL de 4 de Novembro de 2004 in www.dgsi.pt.

[9] Acórdão da Relação de Guimarães de 23 de Junho de 2004 in www.dgsi.pt.
[10] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, pág. 125, citado no acórdão da RL de 4 de Novembro de 2004.
[11] In Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, págs. 1.152/3.
[12] “1. Quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal que tiver efectuado o julgamento anterior, sem prejuízo do disposto no artigo 40.º, ou, no caso de não ser possível, ao tribunal que se encontre mais próximo, de categoria e composição idênticas ás do tribunal que proferiu a decisão recorrida.
2. Quando na mesma comarca existirem mais de dois tribunais da mesma categoria e composição, o julgamento compete ao tribunal que resultar da distribuição.”
[13] Ainda com relevo, o preceituado pelo artigo 40.º, alínea c), do Código de Processo Penal:
“Nenhum juiz pode intervir em julgamento, … relativos a processo em que tiver:

c) Participado em julgamento anterior,
…”