Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
169/10.6TBCSC-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CHEQUE
MÚTUO
NULIDADE
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.46 Nº1 C) CPC, 289, 458 CC, 29 E 52 LUC
Sumário: 1.- Nos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerge ou não de um negócio jurídico formal.

2.- No segundo caso, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento unilateral da dívida previsto no art. 458º, nº 1, do CC, leva a admitir o cheque prescrito, enquanto documento particular, como título executivo, ao abrigo do art. 46º c), do CPC, desde que a causa da obrigação tenha sido invocada no requerimento inicial da execução.

3.- Baseando-se a execução em cheques prescritos, mas invocada, no requerimento executivo, a obrigação emergente de negócio jurídico formal, deve a mesma prosseguir para apuramento da existência de tal obrigação, sem prejuízo de o executado a poder impugnar na respectiva oposição.

4.- A nulidade do mútuo, por falta de forma legal, não retira a exequibilidade a tais documentos, pois que, por força do Assento do STJ nº 4/95 (hoje AUJ), a obrigação de restituição sempre existirá ao abrigo do art. 289º, nº 1, do CC, sendo avesso à celeridade e economia de meios obrigar o exequente a deitar mão da acção declarativa para obter a prestação.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. M (…), residente em Cascais, instaurou execução contra L (…) residente em Pombal, com base em dois cheques, por este emitidos, cada um de 750.000$00, datados de Fevereiro e Abril de 1995, e devolvidos por falta de provisão. Mais alegou que ambos os cheques titulam o pagamento de um contrato de mútuo celebrado entre as partes, que não foi cumprido. Peticionou, ainda, juros.

O executado deduziu oposição à execução, nela invocando que o direito de crédito cambiário referente aos cheques dados à execução mostra-se prescrito, por não ter sido respeitado o prazo de seis meses a que se refere o artigo 52º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque. Acrescentou ainda que o direito de crédito cambiário referente ao cheque dado à execução sob o nº 2 está também prescrito por falta de apresentação a pagamento no prazo previsto no artigo 29º da mencionada Lei. Mais sustentou que tal prescrição implica a inexequibilidade dos cheques, já que dos mesmos não consta o reconhecimento de qualquer obrigação cambiária e a alegação feita no requerimento executivo da obrigação causal não pode suprir a insuficiência de título. Alegou, ainda, que, mesmo que se aceite a tese de que os cheques prescritos podem valer como meros quirógrafos da alegada dívida, o contrato de mútuo invocado como relação jurídica subjacente configura uma negócio jurídico formal, nulo por falta de forma, o que origina igualmente a inexequibilidade dos cheques dados à execução. Mais alegou a inexistência de celebração de qualquer mútuo com o exequente, Que a verdadeira obrigação causal radica num contrato de aposta, que é nulo. Que acabou por pagar o prémio dessa aposta ao exequente, estando satisfeita a obrigação exequenda. Que o exequente está a pedir a mais cerca de 18 €, verificando-se, por isso, inexistência parcial de título executivo. Que parte dos juros peticionados prescreveram.

O exequente contestou, dando por reproduzido o que alegara no requerimento executivo.

*

Foi depois proferido saneador-sentença que, conhecendo apenas da inexequibilidade dos títulos, por prescrição da acção cambiária, julgou procedente a oposição à execução e, em consequência, julgou extinta a acção executiva.

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2. O exequente interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

3. Não houve contra-alegações.

II – Factos Provados

• Foram dados à execução os cheques juntos a fls. 5 a 6 dos autos de execução, constando como datas de emissão dos mesmos 01/04/1995 e 15/02/1995;

• Os referidos cheques foram apresentados a pagamento em 17/02/1995 e em 15/02/1995, respectivamente;

• Os referidos cheques foram devolvidos em 21/02/1995 e em 17/02/1995, respectivamente, pelo motivo de falta de provisão;

• A acção de execução para pagamento de quantia certa a que os presentes correm por apenso foi proposta em 08/01/2010.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3, e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade as questões a decidir são as seguintes.

- Exequibilidade de cheque apresentado a pagamento em data anterior à nele aposta.

- Exequibilidade de cheque cuja acção cambiária prescreveu, como documento particular.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Dispõe o artigo 52º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque que as acções sobre os cheques prescrevem em seis meses, contados do termo do prazo de apresentação do cheque a pagamento, no caso de a acção ser intentada pelo portador.

Nesta conformidade, na situação concreta verificamos que os cheques dados à execução foram apresentados a pagamento em 15 de Fevereiro de 1995 e em 17 de Fevereiro de 1995 e a execução só deu entrada em juízo em 08 de Janeiro de 2010, pelo que nessa data já se encontrava há verificada a invocada prescrição.

Ademais, o cheque n.º 1576772009 foi apresentado a pagamento em 17 de Fevereiro de 1995, quando a data de emissão constante do mesmo é 01 de Abril de 1995.

Por conseguinte, não foi igualmente respeitado o prazo de oito dias previsto nos artigos 28º e 29º, da L.U.Ch. de modo a permitir reunir as condições necessárias ao exercício do direito de acção, nomeadamente o recurso à via executiva ao abrigo do artigo 40º, corpo e § 2º, da L.U.Ch.

Assim sendo, a exequente perdeu o direito de usar das acções cambiárias respeitantes a tais títulos contra o executado.

No entanto, mostra-se ainda necessário averiguar se, perdido esse direito de acção cambiária, podem ou não os identificados cheques ser consideradas títulos executivos, à luz do artigo 46 º, alínea c), do C.P.C., agora como simples quirógrafos, ou seja, enquanto documentos particulares, assinados pelo devedor, desprovidos das características que são específicas e próprias dos títulos de crédito.

Na verdade, com a prescrição da obrigação cartular, a obrigação que passa a ser exigida é a obrigação causal.

A reforma do processo civil operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12 veio alargar consideravelmente o elenco dos títulos executivos, considerando como tal, além do mais, os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º do C.P.C. (artigo 46º al. c) do C.P.C.) (1 - Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 69).

Neste contexto, e após esta alteração legislativa suscitou-se a questão de saber se, deixando a lei de referir expressamente como títulos executivos as letras, livranças e cheques, um daqueles títulos de crédito, designadamente um cheque prescrito, pode manter a natureza de título executivo enquanto documento particular no qual se reconhece uma obrigação pecuniária, perdendo-a apenas enquanto cheque.

Esta problemática não tem apresentado tratamento uniforme nem na doutrina nem na jurisprudência, destacando-se duas correntes.

Uma defende que a letra, livrança ou cheque que não reúnam condições para valer como título de crédito, não podem ser constitutivos ou certificativos de uma obrigação, logo, não podem servir de título executivo, por se considerar que as livranças, letras e cheques já eram títulos executivos antes da reforma processual de 1995/96 e que o legislador não pretendeu alterar os requisitos de exequibilidade desses títulos, pelo que em tais casos não podem significar a declaração de constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se Acs. do STJ de 29/2/00, C.J., ano VIII, tomo I, pág. 124, de 16/10/01, C.J., ano IX, tomo III, pág. 89, de 20/11/03, C.J. ano XI, tomo III, pág. 154, de 18/10/07, www dgsi.pt, Ac. RC de 6/2/01, C.J., ano XXVI, tomo I, pág. 28 ).

A segunda corrente, largamente maioritária, com base na ampliação dos títulos executivos resultante a nova redacção do artigo 46º, alínea c) do CPC, sustenta que extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, mantém o documento a sua natureza de título executivo, por se tratar de documento particular assinado pelo devedor.

Esta última posição apresenta duas variantes: para uns, independentemente da invocação da relação subjacente, constituem título executivo, por o título implicar o reconhecimento unilateral de uma dívida, já que a sua emissão constituiu também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, ao abrigo do disposto no artigo 458º do C. Civil, ainda que não se invoque a respectiva causa, pois a mesma se presume, cabendo ao devedor a prova do contrário - neste sentido, P.Lima/A. Varela, in “Código Civil Anotado”, volume I, 4ª ed., pág.439, António Geraldes, in “Títulos Executivos”, Themis ano IV, nº7, pág.62, Ac STJ de 11/5/99, C.J. ano VII, tomo II, pág.88, Ac STJ de 25/9/07, Ac RP de 11/1/07, de 7/10/08, acessíveis em www.dgsi.pt); para outros, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo têm força executiva (cfr., designadamente, Acs. do STJ de 18/1/01, C.J. ano IX, tomo I, pág.71, de 29/1/02, C.J. ano X, tomo I, pág.64, de 30/10/03, de 16/12/04, Ac. RC de 27/6/06, de 21/11/06, de 29/5/07, de 26/6/07, de 28/10/08, acessíveis em www.dgsi.pt).

Enquadrando-se neste último entendimento, Lebre de Freitas (2 - In “A acção executiva”, p. 53 e 54; também Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito”, 2000, p. 82, 83 e 285). entende que, se o título de crédito menciona a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente. Relativamente aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como acontece com qualquer outro documento particular nas mesmas circunstâncias, temos de distinguir conforme a obrigação a que referem seja ou não emergente de um negócio jurídico formal. No primeiro caso, como a causa do negócio jurídico é elemento essencial deste, o documento não pode constituir título executivo, de acordo com o disposto nos artigos 221º, nº 1 e 223º, nº 1, ambos do C. Civil.

Contrariamente, na segunda hipótese, a autonomia do título executivo, em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida, decorrente da norma constante do artigo 458 º, n º 1 do citado Código, conduz à sua admissibilidade como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado. E se o exequente não a invocar, mesmo que subsidiariamente, no requerimento inicial, já não é possível fazê-lo na pendência do processo, depois da prescrição da obrigação cartular, sem o consentimento do executado, nos termos do artigo 272 º do C.P.C., por tal configurar alteração da causa de pedir.

Esta interpretação tem sido também sustentada pela maioria da jurisprudência (3 - Vejam-se, entre muitos, os Acs. do S.T.J. 4/5/99, publicado na CJSTJ, no VII, T II, p.82; de 29.01.02 na COL/STJ -1º/64; de 18.1.2001, CJ/STJ, 2002, I, 64 e 2001, I, 71STJ; de 30.1.2001 -CJ STJ, IX, 1, 86; de 29.2.2002-CJ STJ X, 1, 64; de 17.6.2003, processo nº 03A1404; de 30.10.2003, processo nº 03P2600; de 19.1.2004 e 09.03.04, disponíveis em www.dgsi.pt; os Acs. do Tribunal da R.P. de 06-10-2004, processo 0453923; de 20-02-2003, processo 0330757 disponíveis em www.dgsi.pt; de 16.12.99 e 13.1.2000, BMJ, 492º-489 e 493º-417; os Acs. do Tribunal da RL, de 11.10.2001 e de 02.06.20 “in” CJ 2002 III 121 e de 97.12.18 “in” CJ 1997 V 129 de 21-11-2002, processo 0072098; de 17-02-2004, processo 299/2004-7; de 30-09-2003 processo 5438/2003-7 disponíveis em www.dgsi.pt; os Acs. do Tribunal da RC de 98.12.03 “in” CJ 1998 V 33 e de 16.4.2002, CJ, 2001, IV, 120 e 2002, III, 11, de 02-03-2010, 419/07.6TBCVL-A.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.; os Acs. do Tribunal da R.G. de 09-11-2005, processo 1502/05-2; de 07-07-2004, processo 1216/04-2, disponíveis em www.dgsi.pt.; em idêntico sentido, na doutrina pode ainda ver-se Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Drº Remédio Marques, págs. 70 a 74, e Curso de Processo de Execução, Dr. Fernando Amâncio Ferreira, 7ª ed., págs. 34 a 36).

O mesmo raciocínio é aplicável ao cheque não apresentado a pagamento no prazo de oito dias, nos termos do primeiro parágrafo do artigo 29 º da L.U.Ch., pois nesta situação, similarmente, o credor perdeu o direito de acção cambiária, ao abrigo do disposto no artigo 40º do mesmo diploma.

Concordando com este entendimento, consideramos que, desde que o exequente invoque a relação jurídica subjacente e esta não constitua um negócio jurídico formal, é admissível que um cheque, nas referidas condições, configure um título executivo.

Revertendo ao caso concreto, verificamos que nos presentes, a relação subjacente - um mútuo - foi desde logo invocada pelo exequente, aqui oponido, na exposição de factos do requerimento executivo.

Contudo, a relação jurídica invocada configura um negócio jurídico formal

Na realidade, o empréstimo alegado em sede de requerimento executivo reporta-se a data anterior a Abril do ano de 1995 e estava em vigor na altura o artigo 1143º do C. Civil, na redacção conferida pelo D.L. n.º 190/85, de 24/06, nos termos do qual: “O contrato de mútuo de valor superior a 200.000$00 só é válido se for celebrado por escritura pública, e o de valor superior a 50.000$00 se o for por documento assinado pelo mutuário.”.

O mútuo invocado como relação subjacente ascendeu ao montante de 1.500.000$00, pelo que a sua validade dependeria da sua celebração por escritura pública, configurando um negócio jurídico formal.

 “Se o cheque em que se funda a execução estiver prescrito e for nulo por vício de forma, na medida em que traduz um mútuo cujo valor exige a celebração de escritura pública, não pode ter a virtualidade de poder constituir título executivo.” – Ac. RP de 06-10- 2008, Processo n.º 0854727, acessível em www.dgsi.pt.

“No caso de mútuo nulo por inobservância da forma legal, a nulidade inquina a invalidade do título que o pretende representar, tornando-o inexequível.” – Ac. RP de 13-02-2007, Processo n.º 0627123, acessível em www.dgsi.pt.

Assim, só se pode concluir que os referidos cheques não preenchem todos os requisitos exigidos pelo art.º 46º, al. c), do C. P. C. para serem considerados títulos executivos, válidos e idóneos, enquanto documentos particulares assinados pelo devedor (sendo que já que não podem beneficiar da protecção dos artigos 29º e 52º, da LUCh.), isto é, não têm capacidade/força executiva para permitir o prosseguimento da presente execução nos termos do disposto no artigo 46º, n.º 1, al. c), do CPC.

A procedência total da oposição à execução extingue a execução no seu todo, nos termos do artigo 817º, nº 4 do C.P.C.

Por conseguinte, deve a oposição à execução ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser julgada extinta a execução, com as legais consequências” – fim de transcrição.

A primeira questão posta pelo recorrente (nas suas conclusões 1. a 6.) acaba por não ser uma verdadeira questão que este tribunal tenha de conhecer.

Se lermos com atenção a decisão recorrida, vemos que ela decidiu que a acção cambiária relativa a ambos os cheques estava prescrita, nos termos do art. 52º da LUC. Assim sendo os cheques não eram, como tais, títulos executivos.

Adicionalmente a decisão recorrida referiu que um dos cheques, porque desrespeitado o prazo de 8 dias previsto no art. 29º da LUC, acabou por não conseguir ingressar no direito de acção cambiária facultado pelo art. 40º da LUC. Mas fê-lo apenas, em estilo subsidiário, para reforço argumentativo do decidido.

Contudo, o cerne da decisão, a questão verdadeiramente solucionada foi a questão da inexequibilidade dos cheques, por prescrição do exercício da acção cambiária.

E quanto a este ponto o recorrente aceitou expressamente a decisão, como resulta muito claramente do corpo das suas alegações de recurso, concretamente da motivação, quando aí escreveu que “O aqui recorrente aceita que efectivamente prescreveu o direito de acção cambiária exercida pelo portador dos aludidos cheques, o aqui recorrente, nos termos do artigo 52º da LUCH, pois aquando a presente acção foi intentada já há muito tinha decorrido o prazo de seis meses“.

Seria, aliás, estultícia estar a conhecer a questão ora posta pelo recorrente, já que, além de aceite por ele a decisão sob a prescrição da acção cambiária, o seu conhecimento revestiria, no caso concreto, carácter meramente académico, porquanto nenhuma influência pode ter no que vier a ser decidido por este tribunal relativamente à 2ª questão acima elencada, essa sim, a decisiva para a sorte do recurso.

3. Relativamente a esta 2ª questão a sentença recorrida de modo escorreito retrata com fidelidade a querela jurisprudencial e doutrinal sobre o assunto.

Na verdade, referiu a formação de duas correntes, que identificou, tendo escolhido o caminho da segunda, que, como referido, é largamente maioritária. Depois, quanto a esta última corrente, referiu a existência de duas variantes, que explicitou com clareza, tendo optado pela segunda variante, que é de facto a que tem merecido, muito maioritariamente, a preferência jurisprudencial (o presente relator já assim decidiu em Ac. desta Relação de 19.1.2010, Proc.207/09.5TBPMS, tendo como 1º adjunto o actual 2º adjunto).

A sentença recorrida prosseguiu a análise do caso concreto e, considerando, que foi invocado pelo recorrente um negócio jurídico formal, um mútuo, face ao valor envolvido, muito correctamente, verificou que o mesmo era nulo.

Bem, e até este ponto do discurso jurídico da decisão recorrida, nenhuma censura há a fazer à mesma, e mesmo o recorrente, até tal momento, não questiona, igualmente, o acerto da dita sentença.

A divergência do recorrente radica apenas na consequência a extrair da nulidade do mútuo por si invocado, entendendo que neste caso o que é relevante é a obrigação de restituição do capital, atenta a apontada nulidade e o disposto no art. 289º do CC.
Neste particular as posições divergem.
Alguns entendem que provada a invalidade formal ou substancial da obrigação exequenda que o título consubstancia, a execução não pode continuar – cfr. Lebre de Freitas, Acção Executiva, 1ª Ed., pág. 50.
Outros consideram que “Pretendendo o exequente a restituição da quantia confessadamente mutuada, o reconhecimento da nulidade do mútuo não obsta, por força do assento n.º 4/95, de 28 de Março de 1995, à restituição da aludida quantia, visto que é ao reconhecimento da obrigação de restituir que se referencia a exequibilidade do título” – vide Ac. do STJ de 31.5.2011, Proc.4716/10.5TBMTS-A, em www.dgsi.pt. Neste sentido vão, ainda, outros Acds. do STJ, como sejam o de 17.11.2011, Proc.168/09.0TBLMG, de 1.2.2011, Proc.7273/07.6TBMAI-A, de 13.7.2010, Proc.6357/04.7TBMTS-B, e de 19.2.2009, Proc.07B4427; e desta Rel. de Coimbra de 22.11.2011, Proc.1203/07.2TBTMR-A (tendo como 1º adjunto o actual relator, e como 2º adjunto o actual 1º adjunto), de 13.9.2011, Proc.189/10.0TBMGR, e de 2.3.2010, Proc.419/07.6TBCVL-A (tendo como 1º adjunto o actual relator, e como 2º adjunto o actual 2º adjunto).
Aderimos a esta posição, não apenas por ser a sufragada por larga percentagem, da actual jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, como, determinantemente, por a considerar-mos mais adequada e consonante com os princípios da economia e celeridade processual e mais efectiva da justiça material.
Na verdade e conforme foi pacificado pelo referido Assento 4/95 - hoje AUJ - quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.
Assim, “muito embora, do ponto de vista substancial, tal restituição seja reclamada com base em contrato de mútuo pressupostamente válido, nada obsta, por força do aludido assento, à restituição da quantia mutuada, reconhecida a nulidade do contrato, pois, como se escreve no assento, “com tal em nada se agrava a posição do demandado, já que, válido ou nulo o negócio […] não é um nada jurídico, mas algo de existente…considerando-se, precisamente porque está em causa o pedido de restituição da quantia mutuada, a inutilidade e inconveniência de se impor a via declarativa para se alcançar a restituição da importância mutuada; …Tudo se reconduz, pois, ao pedido de restituição da quantia mutuada que, não sendo devida com base no contrato de mútuo, é-o, porém, com base no artigo 289.º/1 do Código Civil, reconhecida que está a obrigação de restituição fundada em mútuo nulo” - Ac. do STJ de 31.5.2011, atrás citado.

Estamos perante um título que, não tendo validade como título de crédito, pode estar conectado à existência de uma dívida e, sendo esta dívida constituída por um mútuo nulo, a obrigação de restituição do capital subsistirá agora por força do artigo 289º do CC e, por isso, não inquina a validade do documento enquanto título executivo ligado a essa restituição.

Seguindo por esta via, o recurso não pode proceder, como o recorrente pretende, visto que o oponente/executado impugnou a existência do alegado mútuo, disse que o mútuo invocado pelo exequente, no requerimento executivo, nunca existiu, o que importará necessariamente o apuramento factual de tal questão, devendo, por isso, ordenar-se o prosseguimento dos autos.

4. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) Nos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerge ou não de um negócio jurídico formal;

ii) No segundo caso, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento unilateral da dívida previsto no art. 458º, nº 1, do CC, leva a admitir o cheque prescrito, enquanto documento particular, como título executivo, ao abrigo do art. 46º c), do CPC, desde que a causa da obrigação tenha sido invocada no requerimento inicial da execução;

iii) O que se harmoniza com a distinção a estabelecer entre o título executivo, documento necessário à execução, e a causa de pedir, facto que serve de fonte à pretensão processual;

iv) No caso dos autos, fundando-se a execução em cheques prescritos, mas invocada, no requerimento executivo, obrigação emergente de negócio jurídico formal, deve a mesma prosseguir para apuramento da existência de tal obrigação, sem prejuízo de o executado a poder impugnar na respectiva oposição, como no caso o fez;
v) A nulidade do mútuo, por falta de forma legal, não retira a exequibilidade a tais documentos, pois que, ex vi do Assento nº 4/95 (hoje AUJ), a obrigação de restituição sempre existirá ao abrigo do art. 289º, nº 1, do CC, sendo avesso à celeridade e economia de meios obrigar o exequente a deitar mão da acção declarativa para obter a prestação.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, parcialmente, assim se revogando a decisão recorrida, e ordena-se o prosseguimento dos autos de oposição.

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Custas pela parte vencida a final.

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 Moreira do Carmo ( Relator )

Carlos Marinho

Alberto Ruço