Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1265/09.8TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
NOVO REGIME
DEVER JURÍDICO
DECLARAÇÃO DE RISCO
BOA-FÉ
ANULABILIDADE
CONTRATO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 24º, 25º E 26º DA LCS (DEC. LEI Nº 72/2008, DE 16/04).
Sumário: I – O novo regime do contrato de seguro (LCS), resultante do Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2009, é aplicável a todos os contratos de seguros celebrados a partir desta data – artºs 2º, nº 1, e 7º do referido diploma.

II – Neste novo regime mantém-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador e (também) são introduzidas exigências ao segurador, nomeadamente impondo-se o dever de informação ao tomador do seguro sobre o regime relativo ao incumprimento da declaração de risco.

III - Neste âmbito, porém, cabe realçar a introdução do parâmetro da causalidade para aferir a invalidade do contrato de seguro e do já mencionado dever específico, por parte do segurador de, aquando da celebração do contrato, elucidar devidamente a contraparte do regime de incumprimento da declaração de risco.

IV - Quanto à causalidade (nexo de causalidade), importa a sua verificação para ser invocado pelo segurador o regime da inexactidão na declaração inicial de risco e a consequente invalidade do contrato de seguro.

V - Quanto aos deveres de esclarecimento e de informação, estão as partes vinculadas a prestar, espontaneamente ou mediante solicitação da contraparte, as informações que se afigurem relevantes e que razoavelmente lhes sejam exigíveis, de modo a clarificar as circunstâncias do contrato e do seu objecto mediato.

VI - Cada parte deve poder confiar que a contraparte não omite nem falseia informações relevantes para a formação da vontade negocial. Essa exigência coloca-se com particular intensidade no contrato de seguro, atenta a respectiva natureza como negócio ubérrima fides (ou de confiança).

VII - O cumprimento do dever de declaração do risco não se esgota no preenchimento do eventual questionário que acompanha a proposta ou com a entrega desta. Ele acompanha toda a fase de formação do contrato e o seu cumprimento terá de aferir-se pelas circunstâncias que venham ao conhecimento do proponente até à conclusão do contrato.

VIII - Sendo o condutor habitual (ou mesmo o próprio segurado, enquanto condutor habitual do veículo) portador de alguma incapacidade que o afecte (mas não iniba) na sua capacidade de condução, afigura-se que tal facto não pode deixar de ser tido como efectivamente relevante para a apreciação do risco a segurar, dentro dos princípios da boa fé (máxima fé), de colaboração e de confiança entre as partes contratantes.

IX - Assim sendo, entendemos que esta solução também releva para o caso de na declaração inicial de risco o tomador do seguro ter omitido que o condutor habitual da viatura segura é portador de uma incapacidade de um dos seus membros superiores, desde que a verificação do sinistro em causa tenha conexão (nexo de causalidade) com a referida incapacidade motora do condutor habitual e em concreto.

X - Não é um mero dolo, mas um dolo grave de incumprimento do estatuído no nº 1 do artº 24º, um dolo negocial do tomador do seguro, essencial para a forma de contratar por parte da seguradora, a omissão do tomador do seguro referida no ponto IX.

XI - O que determina que o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro, seguindo-se o regime geral da anulabilidade do contrato, quando o acidente ocorra antes de a seguradora ter tido conhecimento desse incumprimento doloso em não prestar informações exactas, nos termos do artº 25º, nº 3 da LCS.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

No Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, M…, residente na … intentou contra a COMPANHIA de SEGUROS A…, S.A., com sede na …, a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 21.720,00, acrescida de juros de mora, contados desde a data da citação até integral pagamento.

Para tanto e muito em resumo alega que no dia 30 de Janeiro de 2009, pela 01 hora e 30 minutos, na estrada municipal que liga o lugar de Cipreste ao lugar do Casal Novo, freguesia de Paião, concelho da Figueira da Foz, ocorreu um acidente de viação com o seu veículo matrícula …-PL.

Que o acidente ocorreu a cerca de 500 metros de distância do Convento de Seiça, no sentido Cipreste/Seiça e num local formado por uma recta com inclinação descendente (nesse sentido) e com uma largura de 4,80 metros.

Que foi apenas interveniente nesse acidente o veículo do autor, com a matrícula …-PL, marca Jeep, modelo Grand Cherokee.

Que na referida ocasião o veículo era conduzido pelo seu filho, J…, que seguia a uma velocidade de cerca de 50/60 km/hora e atento, pois que a estrada estava cheia de água.

Que momentos antes do acidente tocou o telemóvel ao referido condutor, tendo este agarrado no telemóvel a fim de identificar a chamada e ao levar a mão ao telemóvel, por descuido, tocou com o joelho esquerdo no volante do veículo, fazendo que este fosse ligeiramente à direita e resvalasse para um aqueduto.

Que ao tentar retomar a faixa de trânsito esse condutor perdeu o controlo do veículo e atravessou a faixa de rodagem do sentido contrário, indo embater com a roda da frente direita do veículo num aqueduto, capotando de seguida.

Que em consequência de tal acidente o veículo ficou imobilizado fora da estrada, na berma do sentido de trânsito oposto ao que seguia.

Que para reparar o veículo, cujos danos descreve, o Autor terá de despender o montante de 17.400,00€, sendo que o veículo está imobilizado desde a data do acidente.

Que o dito veículo estava afecto à condução do dito filho do A. e às deslocações deste.

Que o Autor ficou privado do uso do veículo.

Que o Autor tinha celebrado com a Ré um contrato de seguro tipo multi-riscos, com danos próprios, conforme apólice nº …, mas que a Ré se vem negando a assumir a responsabilidade pela reparação do veículo, donde a razão de ser da presente demanda.


II

Contestou a Ré, impugnando toda a factualidade constante da petição inicial, com excepção da que respeita à responsabilidade transferida pelo contrato de seguro com a referida apólice.

Tudo o mais, designadamente no que concerne às circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreu o alegado acidente, impugna, por desconhecer se tem ou não correspondência com a realidade.

Que, face ao demais circunstancialismo que descreve associado à participação do acidente, bem assim ao facto do alegado condutor padecer de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo, que o impede na respectiva mobilidade e operacionalidade, declina qualquer responsabilidade pela reparação do veículo sinistrado.

Que tal limitação física constitui uma limitação condicionante da sua aptidão física para conduzir, de acordo com o disposto no DL nº 45/2005 e Portaria 502/96, de 25/09, sujeita a averbamento obrigatório na respectiva habilitação legal para conduzir e determinante da adopção de mecanismos de adaptação do veículo à sua especial condição física.

Mais refere a Ré que a aludida incapacidade do condutor do veículo não lhe foi comunicada aquando da contratação do seguro, a qual foi, segundo alega, voluntária e conscientemente ocultada com o propósito de a enganarem – declarações inexactas e falsas, de má fé -, em prejuízo desta e em proveito próprio do A., para, assim, obter a anuência da Ré à proposta contratual apresentada; um prémio de seguro de menor valor do que o que resultaria da aplicação do tarifário vigente às limitações físicas do condutor habitual do veículo.

Que essa incapacidade do condutor constitui um elemento ponderoso na avaliação do risco e, concomitantemente, na decisão da seguradora aceitar ou não as propostas de seguro que lhe são apresentadas, bem como na determinação dos valores dos prémios aplicáveis.

Nesse seguimento, sustenta a nulidade do contrato de seguro por força do artigo 11º, nº 1 da Apólice Uniforme do Seguro de responsabilidade civil automóvel, e artigo 62º, nº 1 das condições gerais do contrato de seguro.

Mais alega que só com as diligências que levou a cabo após a comunicação do acidente é que a Ré teve conhecimento da referida factualidade.

Com estes e outros argumentos pede a improcedência da acção.


III

Não foi apresentada articulado de resposta, pelo que se seguiu a elaboração despacho saneador, onde foi reconhecida a regularidade processual da acção e onde se procedeu à selecção da matéria de facto alegada, em matéria assente e matéria controvertida, conforme fls. 54 a 56, selecção essa que veio a ser corrigida, conforme despacho de fls. 57 a 61, por efeito de reclamação oportunamente apresentada pela Ré sobre essa selecção.

Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com a gravação da prova testemunhal produzida e com a junção de vária prova documental.

Terminada a audiência, foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação, conforme fls. 275 a 281.

Proferida a sentença sobre o mérito da causa, foi a acção julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.


IV

                Desta sentença interpôs recurso o A., recurso que foi admitido em 1ª instância como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

                Nas alegações que apresentou o Apelante formula as seguintes conclusões (que se sintetizam, em função do interesse das alegações apresentadas e do objecto recursivo):

...


V

Contra-alegou a Ré/Apelada, COM AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO, onde também formula as seguintes conclusões:


VI

                Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, bem como da ampliação do seu objecto apresenta pela Recorrida.

                Esse objecto traduz-se na apreciação das seguintes questões:

A – Reapreciação da decisão da 1ª instância proferida sobre a matéria de facto.

B – Reapreciação da decisão de mérito, designadamente quanto à decisão que declarou anulado o contrato de seguro celebrado entre o A. e a Ré. e bem assim quanto à verificação (ou não) do acidente de viação alegado pelo A..

                Começando pela referida questão A, as respostas à base instrutória que estão em causa e cuja impugnação resulta quer do recurso apresentado pelo A./Apelante, quer da ampliação do dito requerida pela Ré/Apelada, são as dadas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 12º, 15º, 19º e 20º da base instrutória.

                Quanto aos quesitos 19º e 20º, onde se pergunta acerca da incapacidade motora do condutor da viatura à data do sinistro, resulta aquele quesito do alegado pela Ré no ponto 51º da contestação, razão pela qual é perguntado no dito quesito se “o filho do A., J…, indicado como condutor efectivo do veículo à data da celebração deste contrato de seguro, padecia de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que impedia a respectiva mobilidade e operacionalidade”.

                Ora, como antes se disse, o A. não apresentou articulado de resposta à contestação da Ré, e sendo esta matéria uma forma de defesa por excepção peremptória a não resposta à dita tem como consequência a admissão de tais factos por acordo, nos termos dos artºs 463º, nº 1, 490º, nº 2, 505º e 785º, todos do CPC.

                Mas não só, dado que tendo sido ouvido o referido Jorge em sede de audiência de julgamento, o mesmo referiu que “…tem um problema no braço esquerdo, desde 2005, com uma incapacidade de 23%, mas que mexe esse braço, só não faz alguns movimentos com o dito, embora não tenha qualquer averbamento dessa limitação na sua carta de condução…”.

                Daqui resulta que o dito quesito 19º carece de ter uma resposta afirmativa, embora também explicativa, e não só ter a resposta vaga que teve, razão pela qual se altera a resposta dada a tal quesito, a qual passa a ser a seguinte:

                Quesito 19º: Provado que o filho do A., J…, indicado como condutor efectivo do veículo à data da celebração deste contrato de seguro, padecia de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que impedia a respectiva mobilidade e operacionalidade, mais concretamente tem um problema no braço esquerdo, desde 2005, com uma incapacidade de 23%, mas mexe esse braço, só não faz alguns movimentos com o dito, embora não tenha qualquer averbamento dessa limitação na sua carta de condução.

                Quanto ao quesitado no ponto 20º, trata-se de um quesito acerca da alegada ocultação de tal limitação à seguradora e razões alegadas para tal ocultação por parte do tomador do seguro, quesito que resulta do ponto 57º da contestação.

                Trata-se, mais uma vez, de matéria de excepção peremptória, relativamente à qual o A. não ofereceu resposta.

                O dito quesito até foi adicionado à base instrutória por efeito de uma oportuna reclamação apresentada pela Ré nesse sentido, conforme resulta do despacho de fls. 57 (não temos no processo essa dita reclamação).

                Ora, e nos termos já antes referidos, tal matéria deveria ter sido considerada como matéria de facto assente, não de ser objecto de prova.

                Nessa medida, tal matéria, tal como foi alegada no ponto 57º da contestação, passa a ser incluída no conjunto da matéria de facto tida como assente, sob a al. B), eliminando-se o quesito 20º, pelo que a dita al. B) passa a ter a seguinte redacção:

Al. B) dos factos dados como assentes: “As limitações físicas do J…, referidas na resposta dada ao quesito 19º, que eram do conhecimento do A., não foram comunicadas à Ré Seguradora aquando da contratação do seguro, as quais lhe foram de forma livre, voluntária e conscientemente ocultadas com o propósito de a enganarem, em prejuízo desta e em proveito próprio do A., para assim obter a anuência da Ré à proposta contratual apresentada e um prémio de seguro de menor valor do que o que resultaria da aplicação do tarifário vigente às limitações físicas do condutor habitual do veículo”.

                Donde concluirmos pela alteração da matéria de facto a ter em consideração, com o aditamento da supra decidida resposta dada ao quesito 8º, da supra decidida alteração à resposta dada ao quesito 19º, da eliminação do quesito 20º da base instrutória e do aditamento da al. B) à matéria de facto tida como assente, face ao que se passa a aditar/alterar essa matéria, tal como se segue.

                Assim, a matéria de facto a ser tida em conta passa a ser a seguinte:      

...

14) O filho do A., J…, indicado como condutor efectivo do veículo à data da celebração deste contrato de seguro, padecia de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que impedia a respectiva mobilidade e operacionalidade, mais concretamente tem um problema no braço esquerdo, desde 2005, com uma incapacidade de 23%, mas mexe esse braço, só não faz alguns movimentos com o dito, embora não tenha qualquer averbamento dessa limitação na sua carta de condução (resposta dada ao quesito 19º da base instrutória, nos termos supra corrigidos).

15) As limitações físicas do J…, referidas no ponto 14 supra, que eram do conhecimento do A., não foram comunicadas à Ré Seguradora aquando da contratação do seguro, as quais lhe foram de forma livre, voluntária e conscientemente ocultadas com o propósito de a enganarem, em prejuízo desta e em proveito próprio do A., para assim obter a anuência da Ré à proposta contratual apresentada e um prémio de seguro de menor valor do que o que resultaria da aplicação do tarifário vigente às limitações físicas do condutor habitual do veículo (Al. B) da matéria tida como assente, tal como foi supra decidido).


***

                Prosseguindo com a apreciação da questão B, afigura-nos que dúvidas não ocorrem acerca da efectiva/real ocorrência do acidente em causa, no tempo, lugar e circunstâncias supra descritas, pelo que, com o devido respeito, afigura-se-nos que não terão fundamento as dúvidas suscitadas pela Ré acerca da ocorrência do mesmo, pois nada se apurou que permita manter tais dúvidas.

                Razão pela qual esta questão fica apreciada, já que cabia à Ré demonstrar ou provar a não verificação do acidente, tal como o A. o alega, o que não logrou fazer – artº 342º, nº 2 do C. Civil.

                  Está provado que (19) à data dos factos em causa (o acidente) a responsabilidade emergente de acidentes de viação causados pela circulação rodoviária do veículo automóvel ligeiro matrícula …-PL encontrava-se validamente transferida para a Ré Seguradora, através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 4100920300473/0, conforme doc. de fls. 44, e também como a própria Ré o reconhece (ver pontos 7º, 18º e 37º da contestação), sendo que desta apólice resulta que o seu início de vigência ocorreu em 22/01/2009, que o seu tomador e segurado foi o aqui Autor, e com esse seguro estão abrangidos os chamados “Grandes Danos” do segurado, até ao montante de € 16.000,00 e com a franquia de 2% sobre esse capital.  

                Donde que à luz desse contrato de seguro a Ré esteja, em condições de normalidade, também obrigada a proceder à reparação desse tipo de danos “próprios” causados ao Autor e resultantes do acidente em causa, ocorrido em 30/01/2009, portanto na vigência do referido contrato de seguro.

                Porém, na sentença recorrida foi entendido e decidido que a Ré Seguradora não deve responder por tal tipo de danos, por, no entender dessa decisão, dever ser considerado como anulado o referido contrato de seguro por, aquando da contratação do mesmo, o seu declarado condutor habitual padecer de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que lhe limitava a respectiva mobilidade e operacionalidade, o que terá sido indevida e deliberadamente omitido à Seguradora.

                Escreveu-se na sentença, a este propósito e muito em resumo:

                “Face à factualidade dada como provada, desde logo cumpre salientar que o autor não logrou provar que o acidente ocorreu nos exactos termos como o descreveu.

Porém, não subsistem dúvidas que o mesmo ocorreu, ainda que de forma não concretamente apurada.

De modo que a única questão que nesta acção reveste verdadeiro interesse tem justamente a ver com as consequências emergentes do contrato celebrado entre ambas as partes e em que medida é que a ré deve ou não ser responsabilizada pelos danos que o autor sofreu na respectiva esfera jurídica patrimonial.

E, nesta parte, adiante-se desde logo que, salvo melhor opinião, deve a mesma ser absolvida das pretendidas responsabilidades por uma única e simples razão.

O condutor habitual do referido veículo padecia à data do acidente de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que limitava a respectiva mobilidade e operacionalidade.

Por outro lado, evola da factualidade dada como provada que tal condição era do conhecimento pessoal do autor e do próprio condutor.

Pois bem, apesar de não se ter dado como provado que essa incapacidade tenha sido ocultada da ré com o propósito de a enganar, para obterem a anuência à proposta contratual apresentada e um prémio de seguro de menor valor do que aquele que resultaria da aplicação do tarifário vigente às limitações físicas do condutor habitual do veículo, ainda assim se considera que tal omissão não poderá deixar de ter significado e, neste caso, relevante e, naturalmente, contra o autor.

Com efeito, neste particular competia ao autor comunicar à seguradora aquela mesma incapacidade, a fim desta, posteriormente, a poder contemplar na celebração do referido contrato, aceitando ou declinando a referida contratação.

Nesse sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Janeiro de 2009, ao sumariar que “ao celebrar um contrato, é obrigação do segurado não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato”.

Com idêntico entendimento veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Novembro de 2010, ao referir que “a apólice de seguro deve ser datada, assinada pelo segurador e enunciar, além do mais, e em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes” e que segundo o artigo 429.º do Código Comercial “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.

Ora, a aludida incapacidade do condutor habitual do veículo era, à data da outorga do contrato de seguro, do conhecimento do autor, que nada reportou à ré a esse propósito.

Pelo que, face ao que antecede, entende-se que tal circunstância torna o contrato nulo/anulável.

A questão em apreço nos presentes autos revestia, na nossa perspectiva, relevo e poderia efectivamente influir na decisão de contratar ou, pelo menos, de contratar em termos diferentes.

Aliás, note-se que omissão do tomador do seguro não respeita apenas à incapacidade do condutor habitual mas também aos próprios sinistros, em que no formulário que lhe foi apresentado não fez qualquer menção ao seu número...

Actualmente, prevê o Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, no artigo 24.º, n.º1 que “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”, acrescentando o n.º 2 que “o disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito”.

De acordo com o artigo 26.º, n.º1 do referido diploma, a violação de tal obrigação faz com que o segurador deixe de estar obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no nº 1.

Ora, neste caso, apesar do Tribunal se ter convencido que o autor não omitiu a referida informação com a intenção concreta de prejudicar a ré, fê-lo, no entanto, com a intenção de a manter em erro, pois que não ignorava a importância que a mesma revestia (e poderia revestir) para a ré em termos de apreciação do risco.

Houve, neste caso, uma manifesta declaração reticente, com omissão de factos relevantes para uma adequada e correcta apreciação do risco.

…”.

                Será que devemos estar de acordo com tal fundamentação ou, como o defende o Recorrente, dever-se-á considerar o contrato como validamente celebrado e em sua plena eficácia?

                Vejamos:

                O acidente ocorreu em 30/01/2009 e o contrato de seguro em causa foi celebrado já em 2009, com vigência a partir de 22/01/2009 – facto supra nº 19.

                Face ao que tal contrato de seguro está submetido ao actual e novo regime do contrato de seguro (LCS), resultante do Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2009 e aplicável a todos os contratos de seguros celebrados a partir desta data – artºs 2º, nº 1, e 7º do referido diploma.

                Com este novo regime do contrato de seguro pretendeu-se, além do mais e no que respeita à declaração inicial de risco, “… evitar as dúvidas resultantes do disposto no artigo 429º do Código Comercial, reduzindo a incerteza das soluções jurídicas. Mantendo-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador, (também) são introduzidas exigências ao segurador, nomeadamente impondo-se o dever de informação ao tomador do seguro sobre o regime relativo ao incumprimento da declaração de risco… Neste âmbito, cabe ainda realçar a introdução do parâmetro da causalidade para aferir a invalidade do contrato de seguro e do já mencionado dever específico, por parte do segurador de, aquando da celebração do contrato, elucidar devidamente a contraparte do regime de incumprimento da declaração de risco. Quanto à causalidade, importa a sua verificação para ser invocado pelo segurador o regime da inexactidão na declaração inicial de risco e a consequente invalidade do contrato de seguro” - ver os considerandos iniciais (preâmbulo) ao referido regime jurídico, constantes do preâmbulo do Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, seu ponto V, a pgs. 2229 do Diário da República, 1ª série, nº 75, de 16/04/2008.     

                Assim, começando a nossa apreciação pela referida “causalidade” (nexo de causalidade entre a omissão – por parte tomador do seguro - das condições físicas do condutor habitual mencionado e o acidente ocorrido), ou seja entre a invocada falta de declaração de risco e o acidente ocorrido, o que se nos afigura é que a Ré Seguradora quase que omite a existência de tal nexo (a sua invocação), já que até nega a existência ou a ocorrência do sinistro e nos termos em que o A. o descreve, como bem resulta dos pontos 2º, 3º, 8º, 12º, 51º, 74º, 75º, 76º, 77º, 78º, 83º, 85º, 87º e 91º da contestação, onde, muito claramente, nega até a verificação do acidente e que no dito, a ter sucedido, fosse condutor do veículo o seu condutor declarado, J...

                Porém, nos pontos 51º, 52º, 55º, 57º, 58º, 59º, 65º, 99º, 101º e 103º da contestação acaba por referir que “o condutor do veículo, …, padecia de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que o impedia de ter mobilidade no dito, o que foi deliberadamente omitido na proposta de seguro apresentada, sendo que a dinâmica do acidente descrita pelo A. exigiria, antes de mais, que o veículo automóvel estivesse operacional e em circulação; imporia que J…, não obstante a inoperacionalidade do seu membro superior esquerdo, lograsse conduzi-lo apenas com recurso ao membro superior direito, apesar do veículo estar equipado com caixa de velocidades manual e não dispor de qualquer adaptador…; o que se deixa expressamente alegado para todos os devidos e legais efeitos”.

                Ora, afigura-se-nos que esta alegação é suficiente para a apreciação do sobredito preenchimento da “causalidade” entre a alegada omissão de declaração de risco e o acidente em causa.

                Mas deverá ser considerado que ocorre esse nexo, no caso concreto?

                Dos factos apurados assim resulta, dado que se deu como provado que o acidente em causa se deu de modo não concretamente apurado – pontos 2, 3 e 4 supra – e que:

14) O filho do A., J…, indicado como condutor efectivo do veículo à data da celebração deste contrato de seguro, padecia de uma incapacidade motora no membro superior esquerdo que impedia a respectiva mobilidade e operacionalidade, mais concretamente tem um problema no braço esquerdo, desde 2005, com uma incapacidade de 23%, mas mexe esse braço, só não faz alguns movimentos com o dito, embora não tenha qualquer averbamento dessa limitação na sua carta de condução.

15) As limitações físicas do J…, referidas no ponto 14 supra, que eram do conhecimento do A., não foram comunicadas à Ré Seguradora aquando da contratação do seguro, as quais lhe foram de forma livre, voluntária e conscientemente ocultadas com o propósito de a enganarem, em prejuízo desta e em proveito próprio do A., para assim obter a anuência da Ré à proposta contratual apresentada e um prémio de seguro de menor valor do que o que resultaria da aplicação do tarifário vigente às limitações físicas do condutor habitual do veículo.

                Note-se que o próprio autor alega (embora não se tenha dado como provada esta versão) que “…o condutor, J…, seguia a uma velocidade de cerca de 50/60 km/hora, atentamente, quando o seu telemóvel começou a tocar (de chamada), tendo lançado a mão para agarrar o dito e, por descuido, tocou com o joelho esquerdo no volante do veículo, fazendo com que este fosse à berma direita e resvalasse para um aqueduto… seguindo-se a perda de controle da viatura… e o seu capotamento” – pontos 5º a 13º da petição.

                Ora, apesar desta versão do acidente não ter sido dada como provada, na medida em que apenas o referido condutor a referiu no seu depoimento, não de pode deixar de a ter em consideração para o referido nexo de causalidade, pois, pelo menos, tem-se de se considerar como admitida e confessada pelo autor na petição inicial, para os ditos efeitos.

                E os factos supra dão-nos esse nexo de causalidade entre a dita omissão e o acidente, pois que se o dito condutor tivesse um uso pleno do seu braço esquerdo não só usaria este como o faz um qualquer condutor sem limitações, como não estaria sujeito às limitações de movimentos que comprovadamente tem e o que não pode deixar de ser tido em consideração para efeitos do nexo de causalidade em análise.      

                Logo, temos de considerar como verificado o nexo de causalidade entre a incapacidade desse condutor, não declarada na contratualização do seguro em questão, e o acidente ocorrido.

                Porém, e apesar de nos encontrarmos no domínio da LCS citada, onde se nos afigura ser exigível a verificação de tal nexo de causalidade, como ressalta da passagem do preâmbulo do diploma que aprova tal regime segurador supra reproduzida, e bem assim do disposto nos seus artºs 24º, 25º e 26º, nº 4, deve fazer-se notar que no regime do C. Comercial – artº 429º - a larga e predominante jurisprudência entendia que esse preceito nem sequer estabelecia/exigia o requisito da existência desse nexo de causalidade para se poder verificar a anulabilidade do contrato, como referem, p. ex., o ac. do STJ de 24/04/2007, Procº nº 07S851 (Silva Salazar); o ac. do STJ de 30/10/2007, Procº nº 07A2961 (Alves Velho); o ac. Relação de Lisboa de 12/03/2009, Proc.º nº 9551/2008-1.

                Nesse entendimento maioritário não era necessário que as declarações ou omissões (do tomador do seguro) tivessem efectivamente tido influência sobre a celebração ou as condições contratuais fixadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato, para que o contrato de seguro devesse ser anulado – ver ac. citados e ac. do STJ de 27/05/2008, Proc.º nº 08ª1373 (Moreira Camilo).

                Mas actualmente torna-se exigível que tal nexo se verifique, como bem o salientam os comentadores da Lei do Contrato de Seguro anotada, Almedina, 2011 – 2ª edição, pgs. 170 e segs., onde expressamente se diz: “Mas é o estabelecimento da causalidade do facto inexacto ou omitido para a ocorrência do sinistro como condição da sua invocação pelo segurador para a não cobertura do sinistro (corpo do nº 4 do artº 26º) - … - que constitui um dos aspectos mais marcantes do regime resultante dos artºs 24º a 26º”.  

                Porém, consideramos que está demonstrada a verificação do dito nexo, no caso presente.

                Assim sendo, cumpre saber se houve ou não violação por parte do tomador do seguro relativamente ao seu dever de declaração do risco, e como qualificar essa conduta.

                Nesta matéria e a seu propósito, citamos a obra “O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro”, de Luís Poças, colecção “Teses” da Almedina, 2013, designadamente a fls. 115 e segs. e 323 e segs., onde, entre o mais, escreve: “…o segurador não poderá avaliar o risco proposto sem a colaboração do proponente, que para o efeito deverá fornecer-lhe a informação relevante… O segurador sabe qual o vasto leque de circunstâncias relevantes, em abstracto, para a apreciação do risco, embora desconheça aquelas que, em concreto, caracterizam o risco proposto… Por seu turno, o proponente conhece de forma privilegiada as características deste risco mas não sabe exactamente qual a relevância a atribuir a todas elas para efeitos de declaração do risco…Se é certo que algumas delas são de relevância indiscutível, já o potencial interesse do segurador por outras será menos (ou nada) evidente. A complementaridade desta ambivalente assimetria apela inelutavelmente à cooperação das partes no interesse recíproco e encontra o seu ponto de equilíbrio no princípio da boa fé” – pgs 119/120.

                “O desfasamento entre o risco representado pelo segurador e o risco real tem por efeito a quebra da proporcionalidade entre o risco e o prémio e, logo, um desequilíbrio da correspectividade das prestações das partes” – pg. 135.

                “A classificação de alguns tipos contratuais como contratos uberrimae fidei ou de confiança decorre de a respectiva natureza implicar a existência de uma assimetria informativa e de uma especial relação de confiança entre as partes, requerendo um regime específico que confira uma especial tutela ao confiante e traduzido, nomeadamente, no reconhecimento de um amplo dever de informação sobre as circunstâncias relevantes para a formação da vontade negocial do confiante. É neste quadro que a actuação das partes deve pautar-se pelo princípio da máxima fé” – pg. 149.

                “Já quanto aos deveres de esclarecimento e de informação, estão as partes vinculadas a prestar, espontaneamente ou mediante solicitação da contraparte, as informações que se afigurem relevantes e que razoavelmente lhes sejam exigíveis, de modo a clarificar as circunstâncias do contrato e do seu objecto mediato. Devem igualmente as partes abster-se de prestar informações inexactas ou incompletas, ou de manter a contraparte em erro” – pg. 162.

                “O princípio da tutela da confiança assume igualmente um papel fundamentador do dever de declaração do risco. Como vimos, à relação pré-contratual é inerente a necessária confiança entre as partes, geradora de expectativas fundadas quanto à correcção e honestidade da conduta da contraparte, e merecedora da tutela do Direito. Cada parte deve poder confiar que a contraparte não omite nem falseia informações relevantes para a formação da vontade negocial. Essa exigência coloca-se com particular intensidade no contrato de seguro, atenta a respectiva natureza como negócio ubérrima fides (ou de confiança). Neste caso, dilui-se, portanto, o ónus de indagação do credor de informação – à mercê da prestação exacta desta, requerendo uma rigorosa tutela dessa expectativa – e dilata-se a intensidade do dever de informação a cargo da contraparte”- pg. 183.

                “Assim, do nosso ponto de vista, a cominação do incumprimento do dever de declaração do risco está intimamente associada à frustração de expectativas, já que o acto declarativo está na base, simultaneamente, da criação da confiança e da sua concomitante defraudação” – pg. 184.  

                “A regra geral sobre o dever de declaração do risco, tal como resulta do artigo 24º da LCS, envolve ambas as partes da relação negocial, numa procura de cooperação que já foi traduzida pela metáfora de um tandem… O nº 2 do mesmo preceito mantém o sistema de declaração espontânea, responsabilizando o proponente, em primeira linha, pelo cumprimento de tal dever. Em contrapartida, porém, o nº 3 envolve o segurador no controlo do referido cumprimento, impedindo-o de se prevalecer, em certas circunstâncias em que haja negligenciado tal controlo, da invocação da declaração inexacta ou omissão…” – pg. 330.

                “… o cumprimento do dever (de declaração do risco) não se esgota no preenchimento do eventual questionário que acompanha a proposta ou com a entrega desta. Ele acompanha toda a fase de formação do contrato e o seu cumprimento terá de aferir-se pelas circunstâncias que venham ao conhecimento do proponente até à conclusão do contrato” – pg. 332.

                “A declaração do risco traduz-se num autêntico dever de verdade material, quadro em que o princípio da materialidade subjacente obriga o proponente, não apenas a declarar meros factos em si mesmos pouco significativos quando descontextualizados ou tomados isoladamente, mas a comunicar as próprias inferências que desses factos se devem extrair” – pg. 335.

                “O requisito do conhecimento em sede de delimitação do dever de declaração do risco parece pressupor que todas as omissões ou inexactidões de factos efectivamente conhecidos impliquem, pelo menos, a negligência do proponente… Porém, pensamos que tal requisito não permite extrair esta conclusão, já que a omissão (ou inexactidão) poderá resultar de outros factores, como, p.ex., de uma valoração não culposa do facto como não sendo relevante, de uma interpretação errónea do sentido de uma questão colocada pelo segurador, etc.”- pg. 342/343.

                “Relativamente ao artigo 24º da LCS, considerando a referida dificuldade de o proponente aferir quais os factos ou circunstâncias que está obrigado a declarar, o novo regime não optou por um sistema de questionário fechado, mas, mantendo um regime de declaração espontânea, solucionou o problema por via da definição do critério de relevância e da delimitação, a esse nível, do dever de declaração do risco. Por outro lado, superando-se algumas das críticas apontadas ao anterior regime, a relevância deixa de ser aferida na LCS pelos critérios do segurador, passando a sê-lo em função dos critérios representados pelo proponente concreto: o dever incide sobre as circunstâncias que o tomador do seguro ou o segurado conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” – pg. 348/349.

                “…o regime vigente (é) enquadrável na classificação de declaração espontânea – na medida em que prescinde da existência de questionário e, quando este exista, não limita o dever de declaração à resposta ao mesmo…” – pg. 372.

                “A LCS apenas estabelece cominações para o incumprimento doloso ou negligente do dever de declaração do risco, mas não para um incumprimento de boa fé” – pg. 479.

               

                Ora, face aos conceitos e doutrina supra referidos e passando à análise do actual regime do contrato de seguro (LCS), aprovado pelo Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, o que resulta desde logo do artº 1º de tal regime jurídico é que “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem…”

                Este risco resulta, desde logo, da chamada “declaração inicial do risco”, a que se reporta o artº 24º desse dito regime, segundo o qual “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.

                E esta disposição legal é também aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito – nº 2 do citado preceito.

                Donde resulta que não só está obrigado a declarar quem é o condutor habitual do veículo, sob pena de anulabilidade do contrato – ver neste sentido, autor e obra supra transcrita, pgs. 684 e segs., e também o acórdão desta Relação de 3/12/2013, Proc.º nº 372/11.1TBACB.C1, cujo relator é o segundo adjunto desta acórdão (Des. Teles Pereira), disponível em www.dgsi.pt/jtrc – como está obrigado a declarar outras quaisquer circunstâncias igualmente relevantes para a apreciação do risco proposto e a segurar.

                Ora, convenhamos que sendo esse condutor (ou mesmo o próprio segurado, enquanto condutor habitual do veículo) portador de alguma incapacidade que o afecte (mas não iniba) na sua capacidade de condução, afigura-se que tal facto não pode deixar de ser tido como efectivamente relevante para a apreciação do risco a segurar, dentro dos princípios da boa fé (máxima fé), de colaboração e de confiança entre as partes contratantes.

                E nem a inexistência de questionário a este respeito pode prescindir de tais princípios e deveres obrigacionais, como supra exposto.

                E já assim sucedia no anterior regime jurídico do contrato de seguro – C. Comercial -, como também se pode ver, entre outros, no Ac. do STJ de 30/10/2007, Procº nº 07A2961 (Alves Velho), onde se escreve: “Na formação do contrato de seguro, segurado e seguradora estão especialmente vinculados a uma ubérrima bona fides”. 

                Vejam-se também, no actual regime jurídico do contrato de seguro e neste sentido, a Lei do Contrato Seguro anotada antes citada, notas ao artº 24º. 

                No caso concreto, o tomador do seguro e também segurado – o aqui Autor – fez a efectiva declaração de que o condutor do veículo seguro era seu filho, J…, nascido em 27/02/1983 e com carta de condução obtida em 22/08/2001, mas nada mais acrescentou ou informou – ver fls. 44, 49 e 50.

                Nada disse ou informou acerca de uma incapacidade motora de que este seu filho era portador e da qual tinha conhecimento: ver pontos 14 e 15 supra.

                Embora se desconheça qual a concreta incapacidade em causa, sabe-se que a mesma se reporta a um membro superior (o esquerdo), pelo que tal incapacidade pode efectivamente ter a ver com o risco assumido pela seguradora, mormente para a determinação desse risco e do valor do prémio pelo qual esta assume contratar com o tomador do seguro.

                Aliás, a própria Ré não alega, sequer, que no caso presente “não contrataria sequer o seguro proposto”, pois que se limita a alegar o que faz nos pontos 55º, 56º, 57º, 58º e 59º, onde sustenta que o tomador do seguro prestou declarações inexactas e falsas, de má fé, o que determina, na sua opinião, a nulidade do contrato de seguro e a não produção de quaisquer efeitos, em caso de sinistro.      

                Face ao que temos de concluir que houve efectivamente omissão, por parte do tomador do seguro – o autor – de factos relevantes para que a Seguradora pudesse avaliar o concreto risco proposto e o prémio de seguro a ele associado, nos termos do artº 24º, nºs 1 e 2 da LCS, omissão essa com efectiva relevância/causalidade no sinistro ocorrido.

                Mas também se apurou que (15) As limitações físicas do J…, referidas no ponto 14 supra, que eram do conhecimento do A., não foram comunicadas à Ré Seguradora aquando da contratação do seguro, as quais lhe foram de forma livre, voluntária e conscientemente ocultadas com o propósito de a enganarem, em prejuízo desta e em proveito próprio do A., para assim obter a anuência da Ré à proposta contratual apresentada e um prémio de seguro de menor valor do que o que resultaria da aplicação do tarifário vigente às limitações físicas do condutor habitual do veículo.

                Ora, convenhamos que esta atitude do tomador do seguro tem de ser considerada como dolosa, para efeitos do previsto no artº 25º, nº 1 da LCS, porquanto revela uma conduta de má fé, claramente deliberada e no sentido de não dar a conhecer à Seguradora elementos físicos do condutor habitual indicado que com toda a certeza tinham influência não só na vontade da Seguradora contratar, mas seguramente agravariam o prémio do seguro e de forma relevante, o que o tomador do seguro pretendeu que não sucedesse.

                Não é um mero dolo, mas um dolo grave de incumprimento do estatuído no nº 1 do artº 24º, um dolo negocial do tomador do seguro, essencial para a forma de contratar por parte da seguradora.

                O que, no caso, determina que o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro, seguindo-se o regime geral da anulabilidade do contrato (dado que este ocorreu antes de a Ré ter tido conhecimento desse incumprimento doloso de prestações de informações inexactas – note-se que o contrato de seguro em causa foi celebrado em 22/01/2009 e que o acidente ocorreu em 30/01/2009 -), nos termos do artº 25º, nº 3 da LCS.

                O que é a tese da sentença recorrida, embora predominantemente alicerçada no anterior regime jurídico do contrato de seguro, dado que aí se escreve, designadamente, o seguinte: “…A questão em apreço nos presentes autos revestia, na nossa perspectiva, relevo e poderia efectivamente influir na decisão de contratar ou, pelo menos, de contratar em termos diferentes.

                Ora, neste caso, apesar do Tribunal se ter convencido que o autor não omitiu a referida informação com a intenção concreta de prejudicar a ré, fê-lo, no entanto, com a intenção de a manter em erro, pois que não ignorava a importância que a mesma revestia para a ré em termos de apreciação do risco.

                Houve, neste caso, uma manifesta declaração reticente, com omissão de factos relevantes para uma adequada e correcta apreciação do risco.

                Era obrigação do autor dar a conhecer à ré a incapacidade de que o seu filho (condutor habitual do veículo) padecia.”.           

                Pelo que não podemos deixar de estar em acordo com o assim decidido, o que conduz à confirmação dessa sentença, com a consequente consideração de que tem de ser dado como anulado o contrato de seguro em causa, deixando a Ré de estar obrigada a cobrir o risco que assumiu, nos termos do nº 3 do artº 25º da LCS. 

                O supra exposto também resulta da chamada “Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, aprovada pela Norma Regulamentar nº 14/2008-R, de 27 de Novembro, do ISP, publicada no D.R., II série, nº 240, de 12/12/2008, designadamente das suas cláusulas 6ª, nºs 1 e 2; 8ª, nº 4, al. a); 9ª, nº 1; e 10ª, nº 1, al. b).

                Também no sentido supra exposto, assim o entendemos, pode ver-se J.C. Moitinho de Almeida in “Contrato de Seguros – Estudos” da Coimbra Editora, 2009, pgs. 229/230, a propósito do Projecto de Lei Brasileiro nº 3555, de 2004, Relativo ao Contrato de Seguro (sendo que os referidos Estudos de Moitinho de Almeida são sobre o regime jurídico do contrato de seguro português a entrar em vigor em 2009), onde escreve: “O Projecto (de Lei Brasileiro) aborda a declaração do risco na linha das mais modernas legislações europeias: o tomador do seguro apenas está obrigado a comunicar à seguradora as informações que esta considera relevantes e, assim, na prática as mencionadas no questionário (…) – a lei portuguesa estende, porém, o dever de declaração do risco para além do questionário (artigo 24º do D. L. nº 72/2008 -; a seguradora fica desobrigada em caso de dolo e a regra proporcional funciona se existir culpa…”.

                Também José Vasques in “Contrato de Seguro”, da Coimbra Editora, 1999, mas a propósito das normas relativas ao contrato de seguro constantes do Código Comercial – artºs 425º a 462º -, que foram revogadas pelo Dec. Lei 72/2008, escreve que “A declaração do risco é normalmente referida como uma das obrigações fundamentais do tomador do seguro. A declaração do risco parece, no entanto, de caracterizar como um dever pré-contratual. Trata-se, além do mais, de uma noção específica do direito do contrato de seguro, cujo fundamento há-de buscar-se no princípio da boa fé … A declaração do risco é uma declaração unilateral do proponente, a qual é aceite pela seguradora e que se destina a avaliar o risco e a permitir o cálculo do prémio” – pg. 211.

                “Com o objectivo de auxiliar o tomador do seguro a evidenciar os factos relevantes para a determinação do risco, usam as seguradoras fornecer-lhe um questionário que o guie nas suas declarações. No entanto, a existência do questionário, por mais exaustivo que seja, não exime o tomador do seguro da obrigação de comunicar à seguradora outros factos e circunstâncias com influência sobre o risco… O equilíbrio há-de encontrar-se em dever o tomador do seguro declarar todos os factos e circunstâncias dele conhecidas (ou que não devesse desconhecer) e cuja relevância para a formação do contrato esteja ao alcance de um segurado diligente com capacidade normal” – pg. 220.             

                Face ao que improcede o presente recurso, impondo-se a confirmação da sentença recorrida, o que se decide.

                No sentido supra exposto podem-se ver, também, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/4/2010 e de 22/11/2012, proferidos, respectivamente, nos Proc.ºs 421/07.9TCFUN.L1-6 e 118/11.4TVLSB.L1-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jtrl.  


VII

                Decisão:

                Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

                Custas do presente recurso pelo Recorrente.


***

Jaime Carlos Ferreira (Relator)

Jorge Arcanjo

Teles Pereira