Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
352/07.1 TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
FUNDAMENTOS
CHEQUE
RECUSA DE PAGAMENTO
BANCO
EXTRAVIO
SACADOR
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: N.º 2 DO ART.º 660.º, AL. D) DO ART.º 668.º, ART.ºS 653.º, N.º 4, 2.ª PARTE, E 712 DO CPC
Jurisprudência Nacional: AUJ N.º 4/2008
Sumário: I. Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, ou seja, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do n.º 2 do art.º 660.º do CPC, é nula a sentença que se pronuncie sobre causa de pedir ou excepções que, encontrando-se na exclusiva disponibilidade das partes, não tenham sido invocadas, nisto consistindo o fundamento de nulidade previsto na al. d) do art.º 668.º do mesmo diploma legal.

II. Não acarreta a nulidade da sentença, cujas causas se encontram taxativamente elencadas no art.º 668.º, eventual irregularidade na resposta dada a um artigo da base instrutória, sem prejuízo do seu conhecimento em sede do controlo feito pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto, nos termos dos art.ºs 653.º, n.º 4, 2.ª parte, e 712.º do CPC.

III. A doutrina fixada no AUJ n.º 4/2008 não abrange todo e qualquer caso de recusa de pagamento fundada em ordem do sacador, dela exorbitando “os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulenta do cheque”.

IV. Comunicado pelo sacador o extravio de cheque à instituição bancária sacada, não se impondo a esta última que encete diligências tendo em vista a comprovação da realidade do facto, deverá no entanto assegurar-se da sua verosimilhança, quer pelas circunstâncias relatadas quer, coadjuvantemente, pelo oferecimento de prova indiciária do alegado.

Decisão Texto Integral: I- Relatório
No 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, a A..., Lda., depois denominada B..., SA, com sede na Rua ..., Coimbra,
veio instaurar contra
Banco , C... SA, com sede na ... Lisboa, e
D..., viúva, residente na ..., Turquel, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final a condenação solidária das demandadas no pagamento da quantia de € 11 453,47 (onze mil, quatrocentos e cinquenta e três euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida dos juros vincendos até integral pagamento, computados à taxa legal.
Em fundamento alegou, em síntese útil, que no exercício da sua actividade de comercialização de veículos novos e usados da marca Volvo, BM e outras, e ainda de compra e venda de máquinas para obras públicas e construção, vendeu à sociedade E..., Lda., um equipamento usado da marca Caterpiller, ao qual se reporta a factura emitida em 31 de Janeiro de 2005, no valor de € 21 420,00.
Nos termos da proposta de venda n.º 1004, de 27/1/2005, foi estabelecido que o preço seria regularizado mediante a entrega de quatro cheques, cada um no valor de € 5 355,00. No cumprimento do assim acordado, o sócio gerente da sociedade compradora, Sr. F..., entregou ao colaborador da demandante quatro cheques sacados pela compradora que, na presença deste, foram assinados pela esposa daquele, a ré D..., neles tendo sido apostas datas futuras (28/2/2005, 28/3/2005, 28/4/2005 e 28/5/2005). No que se reporta aos dois primeiros cheques, apresentados a pagamento nas datas neles apostas, obtiveram boa cobrança, sendo que os restantes, apresentados também a pagamento nas datas que neles haviam sido apostas como sendo as dos vencimentos, foram devolvidos pelo banco sacado, o aqui primeiro réu, por motivo de extravio, ao que se sabe, em conformidade com documento escrito apresentado no balcão da J... pela segunda ré. Não obstante o declarado, sabia a demandada D...que os cheques em causa haviam sido entregues à autora no âmbito das relações comerciais que esta estabelecera com a sociedade E..., Lda., sendo assim a sua legítima possuidora.
Ao subscrever o documento declarando o extravio dos títulos sabia a segunda ré que as declarações que em tal documento firmava não correspondiam à verdade, ciente que a sua descrita conduta impedia o pagamento das quantias neles inscritas. Também o demandado Banco C... actuou ilicitamente, ao devolver os mencionados cheques sem se ter certificado da existência de justa causa para a sua devolução, comportamento que manteve mesmo depois de ter tomado conhecimento que a declaração da segunda ré não correspondia à verdade.
Mau grado todas as diligências encetadas pela aqui autora tendentes ao recebimento das quantias inscritas nos cheques, mantém-se delas privada até ao presente, sendo certo que a dita sociedade E..., Lda. veio a ser declarada insolvente.
Porque estamos perante condutas ilícitas das demandadas, integrando até a conduta da primeira ré o ilícito criminal previsto no art.º 256.º, n.º 1, al. a) do CP, são as mesmas solidariamente responsáveis pelos prejuízos sofridos pela autora, consubstanciados no valor correspondente à soma das quantias inscritas nos cheques, acrescido dos juros de mora vencidos desde as datas neles apostas como sendo as dos respectivos vencimentos, e cujo ressarcimento aqui reclama.
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Regularmente citadas as RR, contestou apenas o C..., SA nos termos da peça que consta de fls. 50 a 54 dos autos, na qual impugnou ter tido conhecimento da falsidade da declaração que lhe foi apresentada pela gerência da sociedade sacadora dos cheques, sendo certo que não lhe competia julgar e decidir se tal declaração era ou não falsa. Deste modo, tendo agido na qualidade de mandatário da sacadora e tendo esta comunicado o extravio dos mesmos, não podia deixar de cumprir as suas instruções, recusando em conformidade o pagamento dos títulos.
Porque a sua descrita conduta permanece lícita, conclui pela sua absolvição.
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Dispensada a realização de audiência preliminar, prosseguiram os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças das quais reclamou a contestante C..., SA, sem êxito embora (cf. despacho de fls. 104 do processo físico).
Teve lugar audiência de discussão e julgamento, vindo o Tribunal a responder à matéria de facto controvertida pela forma constante de fls. 182 a 187, sem reclamações, após o que foi proferida sentença que, tendo condenado a ré D...no pedido formulado, dele absolveu a C..., SA.
Inconformada com o decidido, recorreu a autora no que à absolvição da instituição bancária sacada diz respeito e, tendo apresentado doutas alegações, delas extraiu as seguintes conclusões:
“1.ª A resposta ao quesito 21.º da base instrutória (“provado apenas que a 1.ª Ré ordenou o cancelamento dos referidos cheques a pedido da 2.ª Ré e em virtude do falecimento do sócio gerente da empresa E..., Lda.” onde se questionava “Não se tendo certificado previamente de justa causa para tais devoluções?”) não corresponde à matéria alegada pelas partes, nem o Tribunal levou tais factos à base instrutória (dando oportunidade à Autora de exercer contraditório) violando-se, deste modo, o disposto nos artigos 264.º e 664.º do CPC e ferindo a sentença de nulidade nos termos do art. 668.º CPC.
Subsidiariamente e sem prescindir (recurso da decisão relativa à matéria de facto),
2.ª Em face da prova produzida – mormente, documento fls. 58 (doc. n.º 1 junto com a Contestação); Documento fls. 59 (doc. n.º 2 junto com a Contestação); documento fls. 110 (doc. n.º 2 junto com o requerimento do Apelado de 9.11.2010); depoimento de G...(fragmentos 00:02:03 a 00:03:10; 00:05:07 a 00:06:40 e 00:15:38 a 00:18:47); e depoimento de H... (fragmentos 00:07:44 a 00:07:59; 00:08:25 a 00:09:41; 00:11:41 a 00:16:08; 00:17:23 a 00:18:16 e 00:22:51 a 00:24:07) – a Mma. Juíza a quo deveria ter dado como provado o quesito 21.º da base instrutória, uma vez que a prova citada demonstra que o Banco Apelado, ao aceitar a revogação dos cheques, «Não se certificou previamente da justa causa para tais devoluções» (factualidade que deveria ter sido julgada como provada).
Ainda sem prescindir, ainda que assim não se entendesse (Recurso da decisão relativa à matéria de direito),
3.ª Nos termos do disposto no art.º 483.ºdo Código Civil «Aquele, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger a interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelo danos resultantes da violação».
Assim sendo,
4.ª Conforme sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça (no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2008) «Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil», conclusão esta plenamente aplicável no caso vertente (em que o Apelado C..., aceitou, durante o prazo de apresentação a pagamento, ordem de revogação de dois cheques apresentada pela 2.ª Ré, sem aferir da existência de justa causa para a revogação).
Deste modo,
5.ª Note-se, neste particular, que “Não basta, para lograr tais desideratos, a simples afirmação genérica, abstracta e não fundamentada de “extravio”, “vício na formação da vontade”, “roubo”, etc., para que se ache integrada a “justa causa” dos artigos 1170.º, número 2 do Código Civil. Impõe-se – não só em função do interesse da instituição bancária como das legítimas expectativas dos terceiros acima referenciados – que o motivo justificativo da revogação – ainda que se traduza num mero extravio – seja minimamente fundamentado e, mais, que seja verdadeiro, real, efectivamente ocorrido (ou, pelo menos, que o sacador, de boa fé, esteja disso convencido)” [Ac. do TRL de 19/05/2011, proc. n.º 2978/08.7TJLSB.L1-6, em que foi relator o Exmo. Senhor Desembargador José Eduardo Sapateiro].
6.ª Com efeito, mesmo que se entenda a convenção de cheque como uma modalidade de mandato específico, a verdade é que o art.º 1170.º do Código Civil (CC) – que, no seu n.º 1, dispõe que «O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação» – dispõe no seu n.º 2 que «Se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo justa causa» (sublinhado nosso).
Ora,
7.ª Conforme acima aludido, neste tipo de situações é ao Banco sacado um especial dever de diligência (ou seja, no momento da recepção da declaração de revogação do sacador e, ainda, no momento da devolução), motivo pelo qual, o Recorrido C... – ao bastar-se com uma mera declaração de revogação, sem realizar qualquer diligência complementar – agiu manifestamente com culpa (note-se que é o próprio Banco Apelado que refere ter-se bastado com a apresentação formal de um documento de revogação, defendendo que não tem de ajuizar da bondade do mesmo, por se encontrar vinculado a tal ordem do subscritor).
8.ª Acrescente-se, aliás, que nos termos do o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI, emitido pelo Banco de Portugal sob a forma de instrução (Instrução n.º 25/2003, BO n.º 10, de 15 de Outubro de 2003), o banco tomador (onde o cheque é apresentado a pagamento) «é obrigado a enviar ao sacado, na mesma sessão da apresentação do registo lógico e dentro do horário definido no manual de funcionamento, as imagens dos cheques e dos documentos afins» (Ponto 14. da instrução n.º 25/2003), facto que, para além de infirmar as afirmações das testemunhas do Banco no sentido de não saberem a entidade do emitente dos cheques, demonstra que o Apelado tinha e podia ter agido de forma diferente – confirmando, nomeadamente, a entidade que apresentava os cheques a pagamento.
9.ª Neste conspecto, aliás, o art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 454/91, na redacção que lhe deu o Decreto-Lei n.º 321/2001 de 17 de Dezembro (Estabelece normas relativas ao uso do cheque), determina que o sacado deverá recusar justificadamente o pagamento do cheque (n.º 2), exigindo-se que a justificação de recusa de pagamento seja demonstrada por «sérios indícios» (n.º 3), requisito que deve ser interpretado de modo exigente, considerando-se, portanto, ilícita a recusa de pagamento sempre que o banco não demonstre estar na posse de elementos dos quais resulta a forte possibilidade de se haver verificado uma das mencionadas anomalias [neste sentido, vide Evaristo Mendes, Cheque, Crime de Emissão de Cheque Sem Provisão, Inconstitucionalidade, Revista de Direito e Estudos Sociais, Abril-Setembro – 1999, Ano XXXX (XIII da 2ª Série), nºs 2 e 3].
10.ª Neste termos, ao abrigo do disposto no art.º 562.º do CC e conforme sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça no ac. STJ de 12-10-2010 (citado no ac. STJ 10-05-2012), «O não pagamento ao portador do montante titulado por um cheque, no momento da apresentação a desconto, independentemente da causa que lhe esteja subjacente, vem a significar a falta de realização do valor correspondente ao quantitativo da prestação a que aquele, na qualidade de credor, tinha direito, com o consequente dano patrimonial verificado. Por outro lado, um Banco que recusa o pagamento de um cheque revogado determina, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, que o tomador seja privado do respectivo montante, não sendo conjecturável prognosticar que o sacador disponha de outros bens acessíveis que garantam a respectiva solvabilidade».
11.ª Resulta do exposto, que deve o Banco Apelado ser condenado a pagar à Apelante o valor titulado pelos cheques, pois conforme defendido nos Acs. do STJ de 29-04-2008 (processo 07A4768, cujo relator foi o Conselheiro Mário Mendes), da RC de 01-06-2010 (processo 310/09.1TBPCV.C1, cujo relator foi o Desembargador Artur Dias) e do STJ de 10-05-2012 (processo 272/08.2TBPRT.P3.S1, cujo relator foi o Conselheiro Oliveira Vasconcelos), «Esse dano deve ser, no caso, quantificado na importância titulada pelo cheque injustificadamente não pago, por ser esse o quantitativo do dano emergente da sua conduta ilícita», o que é corroborado pelo segundo ao esclarecer que «Não se tendo provado que na data da apresentação a pagamento do cheque a conta do sacador carecesse de provisão, o dano do portador abrange o montante do dito cheque» (sublinhado nosso).
Deste modo,
12.ª A Douta Sentença recorrida violou os artigos art.ºs 264.º, art. 664.º e 650.º n.º 1 al. f) e 668.º n.º 1 al. d) do CPC; art.ºs 483.º, 1170.º, 562.º e 563.º do CC; art. 29.º e 32.º da Lei Uniforme do Cheque; art. 14.º, 2.ª parte do Decreto 13004 de 12.01.1927, art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 454/91 de 28 de Dez. na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 323/2001 de 17 de Dezembro e Ponto 14 do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI (Instrução n.º 25/2003, BO n.º 10 de 15 de Outubro de 2005).
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Sabido que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso (cfr. art.ºs 684 n.º 3 e 685.º-A do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
i. indagar se a sentença proferida padece da nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC por violação do disposto nos art.ºs 264.º e 664.º do CPC, atenta a resposta dada ao art.º 21.º da base instrutória, que não corresponde a matéria alegada pelas partes, não tendo sido incluída na base instrutória;
ii. determinar se face à prova produzida se impunha que a resposta ao identificado art.º 21.º da base instrutória fosse a de “Provado”;
iii. decidir se os factos apurados permitem imputar à demandada instituição bancária uma conduta ilícita e culposa, por violadora dos art.ºs 483.º, 1170.º, 562.º e 563.º do CC; art. 29.º e 32.º da Lei Uniforme do Cheque; art. 14.º, 2.ª parte do Decreto 13004 de 12.01.1927, art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 454/91 de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 323/2001 de 17 de Dezembro, e Ponto 14 do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI (Instrução n.º 25/2003, BO n.º 10 de 15 de Outubro de 2005), geradora da obrigação de indemnizar a autora nos termos por esta pretendidos.
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II. Fundamentação
i. Assaca a recorrente à sentença proferida a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC - por violação do disposto nos art.ºs 264.º e 664.º do mesmo diploma legal. Nos termos daquela primeira disposição legal, a sentença é nula “Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, ou seja, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 660.º, n.º 2), é nula a sentença que se pronuncie sobre causas de pedir ou excepções na exclusiva disponibilidade das partes e não invocadas. Nisto consiste o fundamento da nulidade previsto na predita al. d) do art.º 668.º, não preenchendo a previsão legal eventual irregularidade na resposta dada a um artigo da base instrutória. Com efeito, analisado o quadro legal -vide art.ºs 653.º, n.º 2, 658.º e 659.º, n.ºs 1 a 3 do CPC- dele decorre claramente a consagração na nossa lei processual de um sistema de cisão entre a decisão da matéria de facto e a sentença, sendo que os vícios da primeira não importam, em caso algum, a nulidade da última, cujas causas constam taxativamente elencadas do art.º 668.º. [1] Ademais, verifica-se que, quanto a este aspecto em particular, o recorrente se insurge, fundamentalmente, contra a decisão proferida em sede de apreciação da matéria de facto, a questão colocada será neste âmbito apreciada.
Atento o exposto e constatando-se que, a descontento embora da recorrente, na sentença sob recurso a pronúncia incidiu sobre as questões suscitadas pelas partes e apenas estas, não padece do invocado vício, com o que improcede este primeiro fundamento do recurso.
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ii. entrando agora na apreciação da decisão sobre a matéria de facto, pretende a recorrente a alteração da resposta dada ao art.º 21.º, que tem por excessiva e violadora do princípio do dispositivo, devendo ser-lhe dada resposta positiva.
Emanação do princípio do dispositivo, que enforma toda a nossa lei processual civil, recai sobre as partes o ónus da alegação dos factos principais da causa, a saber, os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções (vide n.º 1 do art.º 264.º do CPC). Daí que o Tribunal só possa fundamentar a decisão nos factos alegados pelas partes, com a ressalva dos factos instrumentais, que poderão ser considerados oficiosamente na decisão de facto, desde que tenham resultado da instrução da causa (vide n.º 2 do mesmo preceito). Por assim ser, e com a aludida excepção, as respostas excessivas hão-de ter-se como não escritas, sendo analogicamente aplicável o regime previsto no n.º 4 do art.º 646.º do CPC, conforme vem sendo uniformemente entendido, uma vez que, a entender-se diferentemente, “permitir-se-ia a inclusão de matéria de facto não articulada, em violação do princípio do dispositivo e do contraditório.”[2].
Existe excesso de resposta quando o Tribunal dá como provado mais do que é objecto da prova ou algo diverso do que se perguntava, mas a resposta explicativa só será excessiva se extravasar do âmbito da matéria articulada e do âmbito da acção[3].
A propósito, importa ainda reter que as conclusões e conceitos de cariz jurídico, quando desacompanhados de factos que os suportem e justifiquem, não podem ser sujeitos a diligências instrutórias, pelo que não são susceptíveis de ser levadas à base instrutória, sob pena de as respectivas respostas se terem igualmente por não escritas, nos termos do n.º 4 do citado artigo 646.º.
Balizado o quadro jurídico em que nos moveremos, está em causa o alegado pela autora no art.º 20.º da petição inicial, com o seguinte exacto teor: “O Banco réu devolveu os mencionados cheques sem se ter certificado da existência de (justa) causa para a devolução dos mesmos (…)”.
O assim alegado foi impugnado pela contestante, tendo tal matéria sido acolhida no art.º 21.º da base instrutória que, intimamente conexionado com o art.º 20.º (no qual se perguntava se a 1.ª ré havia causado as devoluções mencionadas em B) e C), continha a seguinte questão: “Não se tendo certificado previamente de justa causa para tais devoluções?”.
Contra tal formulação insurgiu-se a demandada C..., SA, com fundamento no facto de se tratar de matéria de direito a questão de saber se o Banco tem ou não o dever de averiguar da existência de justa causa para as devoluções dos cheques, não sendo por isso susceptível de integrar a base instrutória (vide fls. 94), reclamação que veio a ser indeferida, com fundamento na afirmação de que se tratava de um “verdadeiro facto”, isto nos termos do despacho exarado a fls. 104. Curiosamente, a Sr.ª Juíza veio mais tarde, aquando da prolação da decisão sobre a matéria de facto controvertida, “emendar a mão” e, considerando ser conclusiva a forma como se encontravam redigidos os artigos 20.º e 21.º, não sendo por isso possível responder-lhe nos seus exactos termos, deu a este último a resposta ora impugnada, do seguinte teor: “Provado apenas que a 1.ª ré ordenou o cancelamento dos referidos cheques a pedido da 2.ª ré e em virtude do falecimento do sócio gerente da empresa E..., Lda., na sequência de acidente de viação e por ser desconhecido o paradeiro dos cheques que este transportava”.
Sobrestando agora na decisão quanto à adequação desta resposta à prova produzida, cabe, antes de mais, decidir da sua admissibilidade.
Na organização da base instrutória deverá o juiz, consoante dispõe o n.º 1 do art.º 511.º do CPC, seleccionar, dentre os factos alegados pelas partes, aqueles que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções (factos principais), nos termos do art.º 264.º, n.º 1, tendo em conta as várias soluções plausíveis de direito e com consideração pelas regras que presidem à distribuição do ónus da prova.
No caso vertente, tendo o banco réu invocado ter-lhe sido comunicado pela gerência da sociedade sacadora o extravio dos cheques em causa, comunicação escrita com identificação precisa dos títulos, como se alcança das cópias que fazem fls. 58 e 59 dos autos, contrapôs a autora (em antecipação, posto que a alegação consta da petição inicial) que a instituição bancária procedeu à devolução dos títulos sem se ter certificado da existência da justa causa, querendo significar que não se certificou da veracidade do motivo que lhe tinha sido comunicado.
Pois bem, para lá do teor eminentemente conclusivo do artigo da base instrutória que acolheu tal alegação e que a Mm.ª juíza “a quo” veio, a final, a reconhecer, tendo o mesmo sido formulado pela negativa, com respeito pela alegação, certo é que a resposta que lhe foi dada não pode subsistir, por excessiva, sem embargo de se reconhecer que equivale no fundo a um “Não Provado”[4]. Na verdade, a resposta dada pela Sr.ª juíza não traduz, relativamente à pergunta, um “minus”, ou seja, não estamos perante uma resposta restritiva, mas sim um “aliud”, tendo o Tribunal respondido ao que não fora perguntado.
Questão diversa desta é saber se tal resposta, atenta a prova produzida e evidenciada pela recorrente, deveria ser positiva, conforme esta pretende.
A Sr.ª juíza “a quo” motivou a sua decisão, no que se reporta a este artigo em concreto, fazendo apelo “a toda a prova testemunhal produzida, em conjugação com a carta junta aos autos na audiência de julgamento, da qual consta a ordem de cancelamento de todos os cheques, dada pela 2.ª à 1.ª ré”[5]. Destacando fragmentos dos testemunhos prestados por G...e H..., ambos funcionários do C... à data e, bem assim, os documentos de fls. 58, 59 e 110, pretende a autora que se impunha a resposta de “Provado” ao artigo em causa.
Ora, ouvida toda a prova produzida em sede da audiência de discussão e julgamento não se vê razão para que a resposta seja positiva. Com efeito, mesmo concedendo, generosamente, que o artigo em causa, apesar de eminentemente conclusivo, poderia ter merecido uma resposta concretizadora, a verdade é que a autora não logrou provar quanto a este propósito alegou. Com efeito, e conforme decorre dos depoimentos prestados, não só pelas testemunhas identificadas pela recorrente, mas ainda de H..., à data em funções na agência da J..., na qual se encontrava sediada a conta bancária da sociedade sacadora, a verdade é que a morte do legal representante desta, Sr. F..., ocorrida na sequência de acidente de viação, foi, como seria de esperar, de imediato conhecida “na praça”, nas expressivas palavras da testemunha G..., que era o gestor da dita conta, afecta, como estava, ao Centro de Empresas de Leiria. Deste modo, recebida nestes serviços a comunicação cuja cópia consta de fls. 110 (a mais legível encontra-se, como referido, agrafada à contracapa), cujo carimbo de entrada se encontra datado de 5/5, dia imediato ao do decesso daquele F..., não se vê que adicional exigência poderia ou deveria a instituição bancária fazer, dada a verosimilhança do que ali se relatava (sintomático, a este respeito, o reconhecimento, por banda das testemunhas arroladas pela própria autora, com destaque para L..., administrativo na A... desde 1982 e autor das missivas juntas com a petição como docs n.ºs 5 e 6, que a comunicação de extravio na sequência do acidente e morte do legal representante da sociedade se justificava inicialmente, mas não a conduta posterior da gerência da sociedade, e até da instituição sacada, segundo a opinião que exprimiu). É certo que tal comunicação não se teria feito acompanhar da certidão de assento de óbito do falecido que, conforme consta de fls. 109, só no dia 12 de Abril terá sido lavrado, mas do que não há dúvida é que o identificado F... faleceu e a ordem de extravio foi dada pelos motivos que constam da referida missiva, tal como a ré D..., ouvida em sede de depoimento de parte, confirmou, e de resto foi dado conhecimento à própria autora, como se vê de fls. 38/39. Acresce que do teor das declarações prestadas por todas as testemunhas inquiridas resultou evidente que o falecido era na verdade o motor da sociedade e pessoa que movimentava as contas bancárias, daí ser igualmente de aceitar que a ré D..., mau grado ser também gerente da sociedade sacadora, não tivesse conhecimento dos portadores dos cheques emitidos.
A testemunha G...explicou ainda que, dada a morosidade da tarefa de dar por extraviados todos os cheques activos no sistema -o que poderiam ter feito face à instrução genérica constante daquela missiva- atento o seu elevado número (demoraria um dia, nas palavras da testemunha), optaram por fazê-lo cheque a cheque e à medida que os mesmos fossem apresentados a pagamento, não sem antes contactar a sacadora para confirmar se em relação àquele cheque, em concreto, se mantinha a menção de extravio, o que deu origem à emissão dos documentos que constam de fls. 58 e 59. É certo que a testemunha Maria Helena, que à data reportava àquele G..., não tinha memória destes documentos que, em seu entender, seriam até desnecessários face à instrução genérica antes recebida, tendo-se mesmo mostrado duvidosa quanto à regularidade da assinatura do seu subscritor, ao invés do que ocorre com o documento inicialmente recebido, cuja assinatura se encontra visada (ou seja, foi conferida por semelhança com aquela que constava da ficha de assinaturas, e verificada a sua conformidade). Tal falta de memória, todavia, mais que justificada atento o lapso de tempo entretanto decorrido -e até pela circunstância da testemunha exercer, hoje e desde há cinco anos, funções sindicais- não infirma o depoimento prestado pelo referido gestor de conta, ao fim e ao cabo a pessoa que, face a cada cheque, confirmava a recusa de pagamento com o assinalado motivo, isto depois de consultar a sociedade sacada para se certificar de que em relação àquele cheque em concreto não se verificava uma contra ordem. De assinalar, por último, que o motivo invocado foi tido por sério pelas mencionadas testemunhas, dada a circunstância coadjuvante de antes desta ocorrência não haver memória da sociedade sacadora ter alguma vez utilizado semelhante expediente para obviar ao pagamento de qualquer cheque por si emitido.
Lateralmente, sempre se dirá que, tendo a missiva de fls. 34 sido enviada à instituição bancária sacada apenas em 25 de Julho, muito depois de se terem esgotado os prazos de apresentação a pagamento dos dois títulos aqui em causa, não releva muito naturalmente para ajuizar da conduta do banco réu à luz do fundamento invocado pela autora.
Deste modo, e porque nenhum dos depoimentos invocados -nem qualquer outro meio de prova produzido, diga-se- sustenta a asserção vertida no art.º 21.º, não poderá o artigo merecer uma outra resposta que não seja a de não provado.
Em suma, à luz do que se deixou exposto, dá-se como não escrita, por excessiva, a resposta ao art.º 21.º, ao qual se responde negativamente.
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Agora estabilizada a matéria de facto, são os seguintes os factos a considerar (ordenados lógica e cronologicamente):
A. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de veículos ligeiros e pesados das marcas “Volvo”, “BM” e outros, novos e usados, máquinas para obras públicas e construção, peças sobressalentes, bem como a efectuar reparações e a oferecer assistência aos veículos mencionados (resposta ao art.º 1.º).
B. No âmbito da sua actividade comercial, a autora facturou à sociedade “ E..., Lda.”, sociedade por quotas, com sede na ..., ..., em ..., em 31.01,2005, um equipamento usado da marca Caterpillar, Modelo TH63, s/nº 3NN00788, o qual foi entregue, em 03.02.2005, nas instalações da referida sociedade “ E..., Lda.”, pelo transportador “N..., Lda.” (resposta aos art.ºs 2.º e 3.º).
C. Nos termos do acordo celebrado entre a autora e a mesma sociedade o preço daquele equipamento foi fixado no valor global de € 21.420,00, tendo ficado estabelecido que seria regularizado mediante a entrega de 4 (quatro) cheques, cada um no valor de € 5.355,00 (cinco mil, trezentos e cinquenta e cinco euros), conforme proposta de compra e venda nº 1104, datada de 27.01.2005, assinada pelo sócio gerente da “ E..., Lda.”, F..., que interveio nessa qualidade, conforme documento junto a fls. 24, que aqui se dá por integralmente reproduzido (respostas aos art.ºs 5.º a 8.º).
D. O mesmo sócio gerente da adquirente, em cumprimento do acordado, entregou ao colaborador da autora, M...., quatro cheques, assinados pela sua esposa (ora 2ª ré), na presença deste último, e sacados sobre o Banco C... (1ª ré), com os seguintes números: cheque nº 8225308157, datado de 28.02.2005; cheque nº 1025308165, datado de 28.03.2005; cheque nº 3525308173, datado de 28.04.2005; e 6025308181, de 28.05.2005 (resposta aos art.ºs 9.º, 10.º e 11.º).
E. Os dois primeiros cheques identificados -com vencimento em 28.02.2005 e 28.03.2005- apresentados a pagamento nas respectivas datas de vencimento, obtiveram boa cobrança (resposta ao art.º 12.º).
F. F... faleceu no dia 4 de Abril de 2005 (doc. de fls. 109).
G. Os cheques sacados sob o Banco C... S.A., e titulados pela sociedade E..., Lda., com os n.ºs 3525308173 e 6025308181, datados, respectivamente, de 28/04/2005 e 28/05/2005, foram apresentados a pagamento nas datas de vencimento (al. A).
H- O cheque nº 3525308173 foi devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal no dia 03.05.2005, por motivo de extravio, enquanto o cheque nº 6025308181 foi devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal no dia 02.06.2005, também por motivo de extravio (als. B) e C).
I- A gerência da sociedade E..., Lda. comunicou ao Banco C..., S.A., o extravio dos cheques identificados em G) (al. D).
J- O que fez, respectivamente, em 02/05/2005 e 31/05/2005, conforme escritos juntos aos autos a fls. 58 e 59, que aqui se dão por reproduzidos (al. E).
K- Tais justificações foram apresentadas no Banco C..., balcão da J..., pela Sr.ª D... (ora 2.ª Ré), esposa de F... (al. F).
L- O Banco C... (1ª ré) procedeu ao cancelamento dos cheques identificados em G) (resposta ao art.º 20.º).
M- Após a devolução dos referidos cheques o colaborador da autora L... entrou em contacto com J..., filha de F..., a qual informou que o pai havia falecido e que a devolução teria ocorrido por mero lapso, que seria corrigido (resposta aos art.ºs 14.º a 16.º) .
N- Com data de 06.05.2005 a autora enviou à sociedade E..., Lda., na pessoa de J..., a carta cuja cópia se junta aos autos a fls. 28, lembrando que o cheque n.º 35253008173, datado de 28/4/2005, havia sido devolvido e agradecendo a sua liquidação urgente, remetendo cópia da factura e cheques emitidos (resposta ao art.º 17.º).
O- A autora enviou à mesma sociedade a carta registada com a/r datada de 09.06.2005, cuja cópia se encontra junta a fls. 32, reclamando a liquidação dos montantes titulados pelos cheques n.ºs 2530817 e 2530818, ambos devolvidos por motivo de extravio, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor (resposta ao art.º 18.º).
P- A Autora enviou ao gerente do balcão da Ré Banco C..., S.A., sito na J..., a carta junta aos autos a fls. 34, datada de 15/07/2005, na qual comunicou que os cheques sacados pela cliente em assunto sobre aquela instituição se destinavam ao pagamento parcial de uma dívida à A..., Lda., tendo sido entregues pelo sócio gerente Sr. F..., mais declarando não aceitarem a invocação de extravio para fundamentar a devolução dos mesmos, dando conta de que iriam apresentar os títulos a pagamento pela 3.ª vez no dia 22 de Julho, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor (al. G).
Q- A carta a que alude a al. anterior levava em anexo cópia da carta remetida pela autora à 1.ª ré, conforme fls. 35 e 36 na qual, para além do mais, é referido que “Os dois primeiros cheques, com vencimento em 28/2/2005 e 28/3/2005 foram pagos nas datas de vencimento. Os restantes cheques foram-nos devolvidos pelo motivo de “Ch ver. Extravio”.
De imediato contactamos a Sr.ª J..., filha do Sr. F..., que nos transmitiu que o Sr. F... tinha falecido num acidente de viação e que, como teria na sua posse um livro de cheque havia desaparecido, decidiram por segurança comunicar o extravio dos cheques ao banco sacado. Mais nos apresentou desculpas pelo sucedido, referindo que iriam proceder de imediato à resolução do assunto” (resposta ao art.º 19).
R- A 2.ª ré sabia que os cheques tinham sido entregues à autora no âmbito das relações comerciais existentes entre esta e a sociedade E..., Lda. e que não se tinham extraviado (resposta ao art.º 13.º).
S- Por sentença proferida em 7 de Setembro de 2005, no Processo nº 2378/05.0TBACB, do 1º Juízo deste Tribunal, a sociedade “ E..., Lda.” foi declarada insolvente.
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De Direito
Sendo estes os factos a atender, importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico, em ordem a decidir se assiste razão à recorrente quando pugna pela condenação da instituição bancária.
A presente acção perfila-se como de efectivação da responsabilidade civil extra contratual com fundamento, no que ao banco recorrido diz respeito, na ilícita recusa de pagamento dos cheques de que a autora era portadora, apresentados que foram nos termos e prazo prescritos no § 1.º do art.º 29.º da Luch.
A questão enunciada, bastas vezes trazida à barra do Tribunal, convocava a aplicação do art.º 32.º, 1.ª parte, do mesmo diploma legal, nos termos do qual “A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”, sendo o prazo aqui mencionado o de 8 dias prescrito no art.º 29.º do mesmo diploma, contado da data da emissão. A interpretação do preceito em referência deu azo a consistente e persistente dissêndio jurisprudencial, vindo o STJ, no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, in DR I-A de 4 de Abril de 2008, a fixar a seguinte doutrina: “uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1 do Código Civil”.
A despeito da abrangente formulação da doutrina uniformizadora, vistos os fundamentos da decisão, logo se constata que não é toda e qualquer recusa de pagamento que se funde em ordem do sacador que tem natureza ilícita, por nem toda a instrução nesse sentido corresponder, em rigor, ao instituto da revogação[6] visado no AUJ tal como, de resto, nele ficou expressamente consignado, com a formulação da seguinte conclusão: “os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, embora muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do artigo 32.º da LUCH, não decorrendo desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques pelo sacado”. Tal ressalva, além do mais, harmoniza-se perfeitamente com o disposto no § II artigo 16.º do Anexo II à Lei Uniforme, nos termos do qual qualquer das altas partes contratantes tinha a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos”.
No caso em apreço estamos perante uma comunicação de extravio, situação subtraída portanto à doutrina do AUJ[7], sendo certo que, atentas as circunstâncias, conhecidas da própria autora, relatadas em tal comunicação (cf. o teor das als. P) e Q) -a ordem de extravio que determinou a devolução dos cheques foi dada pela 2.ª ré em virtude do falecimento do sócio gerente da sociedade, E..., ocorrido na sequência de acidente de viação, e sob alegação de ser desconhecido o paradeiro dos cheques que este consigo transportava, tal como resulta do doc. de fls. 110- nada impunha ao banco sacado que adoptasse conduta diversa, recusando a instrução da sacadora. Neste conspecto, apesar da afirmação efectuada pela instituição bancária na sua contestação, de que lhe não competia sindicar as razões invocadas pela cliente, a verdade é que se indiciava a veracidade do fundamento invocado, não se vendo que lhe fosse exigível encetar diligências ou exigir comprovativo suplementares, subsistindo a ordem daquela emanada.
O art.º 1205.º do CC define depósito irregular como o “…que tem por objecto coisas fungíveis”, sendo-lhe aplicáveis, na medida do possível, as regras do mútuo, por força da disposição contida no preceito imediato.
O art.º 408.º do Código Comercial, por seu turno, reportando-se aos depósitos feitos em bancos ou sociedades, estipula que os mesmos “reger-se-ão pelos respectivos estatutos em tudo quanto não se achar prevenido neste capítulo e demais disposições aplicáveis”.
Em síntese, “o depósito bancário, em sentido próprio, é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro”[8]. Porque se trata de uma operação bancária, enquanto realizada por entidade bancária, é um contrato de natureza comercial, sendo-lhe todavia aplicáveis, no que não esteja previsto em normas de direito comercial, o que a propósito estipular a lei civil (cfr. art.ºs 2.º, 362.º e 3.º do Código Comercial).
Constituído que esteja prévio depósito irregular, a instituição de crédito convenciona com o seu depositante a susceptibilidade de sacar cheques sobre ela. É o que, nos termos do art.º 3.º da Lei Uniforme do Cheque (LUCh) se denomina por “(…) convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque”.
Resulta do dispositivo legal que são partes no contrato ou convenção de cheque[9] o banqueiro e o seu cliente, devendo o primeiro ter fundos à disposição do segundo. A convenção pode ser expressa ou tácita, e tem como conteúdo atribuir ao sacador o direito de dispor dos fundos por cheque[10].
A propósito da natureza da convenção do cheque entendemos, com boa parte da nossa mais recente jurisprudência, tratar-se de um mandato, mas de um mandato específico, sem representação, para a realização de actos jurídicos precisos: os inerentes ao pagamento do cheque, sendo o sacado estranho à relação cambiária que se estabelece entre o sacador e o tomador do título[11]. Todavia, apesar de não ser parte no contrato de cheque é seu executante, na medida em que, por via da provisão, ou do convencionado[12], deve pagar ao tomador ou portador do cheque. Deste modo, configurando-se embora o mandato como tendo sido conferido também no interesse de terceiro, ainda assim, por força da ressalva final consagrada no n.º 2 do art.º 1170.º do Código Civil, estaria justificada a recusa de pagamento.
Finalmente, em aditamento, dir-se-á que, mesmo a ter-se como aplicável a doutrina fixada pelo AUJ -que temos por válida, sem prejuízo de se considerar, conforme se deixou já referido, que a situação dos autos se encontra subtraída à sua disciplina- não resultou demonstrada a ilicitude da conduta da instituição bancária.
Segundo o entendimento fixado, uma vez comprovada a situação ali prevista de recusa do pagamento com fundamento em ordem de revogação do sacador, estamos perante a prática, pela instituição bancária sacada, de um acto ilícito, cabendo-lhe a prova, enquanto facto impeditivo do direito do demandante, da existência de justa causa (n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil). Daqui não resulta, porém, em nosso entender, que caiba à instituição bancária fazer prova da realidade do motivo que fundamenta e justifica a recusa, mas tão somente que este lhe foi comunicado em termos que conferiram verosimilhança ao facto-fundamento invocado, quer pelas circunstâncias relatadas, quer, coadjuvantemente, pelo oferecimento de prova indiciária do alegado[13].
Por assim ser, tendo ao banco réu sido comunicado pela gerência da sociedade sacadora o extravio dos cheques em causa com os fundamentos, repete-se, conhecidos da própria autora, que constam da comunicação escrita de fls. 110 (formalidade que nem sequer temos por exigível, por nada resultar da lei nesse sentido sendo, pelo contrário, facilmente configurável uma multiplicidade de situações em que se impõe uma comunicação expedita à instituição bancária sacada, que poderá por isso ser meramente verbal), posteriormente reiterada e concretizada com identificação precisa dos títulos, como se alcança das cópias que fazem fls. 58 e 59 dos autos, justificada estava pela sacadora a ordem de revogação, não sendo de exigir à instituição bancária que abrisse um “incidente de averiguação e comprovação da justa causa invocada”, por claramente incompatível com a tutela dos também legítimos interesses daquela. De resto, conservando a portadora do cheque os direitos cartulares, para lá da tutela penal que lhe é conferida pelo art.º 11.º, alínea b), do Decreto-lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, segundo o entendimento fixado pelo AUJ n.º 9/2008, de 27/10/2008, no caso de falsidade da declaração, afigura-se que a solução encontrada garante, na justa medida, os interesses legítimos de um e outro intervenientes.
Deste modo, e analisada a conduta da ré instituição bancária, não se vê que tenha violado o dever imposto por qualquer um dos normativos que a recorrente pretende terem sido inobservados.
Por último sempre se dirá que, dependendo a procedência da pretensão indemnizatória da recorrente da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, não se vê que tenha feito prova efectiva do dano -ou, pelo menos, dano equivalente ao pedido formulado- e do indispensável nexo causal entre o alegado prejuízo e o facto ilícito imputado ao banco réu[14].
Assim, e se por um lado, face à devolução dos títulos não foram obtidas na ocasião as quantias por eles tituladas, não resulta dos autos que tal pagamento tenha ficado inviabilizado, não servindo tal desiderato a demonstração de ter sido entretanto declarada a insolvência da sociedade sacada, posto que se desconhece a existência de bens que pudessem responder por esta dívida ou sequer se a autora ali reclamou o seu crédito. Aliás, face à resposta restritiva que mereceu o art.º 20.º, excluído ficou o referido e indispensável nexo causal.
Atento o exposto, e improcedendo todas as conclusões do recurso, fica a subsistir o juízo de improcedência que nos vem da 1.ª instância.
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III. Decisão
Face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela B..., SA, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Sumário (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)
I. Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, ou seja, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do n.º 2 do art.º 660.º do CPC, é nula a sentença que se pronuncie sobre causa de pedir ou excepções que, encontrando-se na exclusiva disponibilidade das partes, não tenham sido invocadas, nisto consistindo o fundamento de nulidade previsto na al. d) do art.º 668.º do mesmo diploma legal.
II. Não acarreta a nulidade da sentença, cujas causas se encontram taxativamente elencadas no art.º 668.º, eventual irregularidade na resposta dada a um artigo da base instrutória, sem prejuízo do seu conhecimento em sede do controlo feito pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto, nos termos dos art.ºs 653.º, n.º 4, 2.ª parte, e 712.º do CPC.
III. A doutrina fixada no AUJ n.º 4/2008 não abrange todo e qualquer caso de recusa de pagamento fundada em ordem do sacador, dela exorbitando “os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulenta do cheque”.
IV. Comunicado pelo sacador o extravio de cheque à instituição bancária sacada, não se impondo a esta última que encete diligências tendo em vista a comprovação da realidade do facto, deverá no entanto assegurar-se da sua verosimilhança, quer pelas circunstâncias relatadas quer, coadjuvantemente, pelo oferecimento de prova indiciária do alegado.
                                                 *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida

[1] Ao passo que “a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: aquela decisão é impugnável por meio de reclamação, acto contínuo à sua publicação, e não é autonomamente recorrível, i.e., apenas pode ser impugnada no recurso que for interposto da sentença final, podendo, neste caso o controlo sobre o julgamento da matéria de facto ser feito pela Relação, nos termos gerais (artºs 653 nº 4, 2ª parte, e 712 do CPC)”. Do excelente aresto desta Relação de 19/12/2012, proferido no processo n.º 31156/10.3 YIPRT.C1, relatado pelo Ex.mº Sr. Juiz Des. Henrique Antunes.

[2] V. arestos da Rel. Lisboa de 30/6/2011, processos n.ºs 1755/08.0 TVLSB.L1 1 e 819/05.6 TBSSB. L1-6, este com recenseamento de diversas outras decisões a propósito proferidas.
[3] Neste sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC anotado, vol. II, 2.ª ed., pág. 663, e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, Almedina, 1997, págs. 226/227.
[4] Rejeitando, por excessiva, a resposta afirmativa do facto contrário ao perguntado em quesito formulado na negativa, v. aresto desta mesma Relação, datado de 20/3/2012, proferido no âmbito do processo n.º 2421/09.4 TBVIS-A.C1, disponível em www.dgsi.pt de que se destaca o seguinte ponto do sumário: “I – Estando quesitado na base instrutória um facto negativo não é permitido responder-lhe com o facto positivo correspondente por tal extravasar o âmbito do perguntado”.
[5] O documento aqui referenciado é uma cópia mais legível do doc. de fls. 110, permitindo a leitura da data aposta no carimbo, ao invés do que ocorre com este último, tendo sido fornecida ao Tribunal pela Il. Mandatária da instituição bancária ré na segunda sessão de julgamento. Por se tratar de elemento probatório, ao qual, de resto, se faz menção na motivação da decisão de facto proferida, estranha-se que apareça agrafado na contracapa do processo o que, no entanto, não obsta à sua consideração.
[6] Que respeitará às situações em que a ordem de não pagamento do cheque assenta em razões ou circunstâncias que não se relacionam com a validade e regularidade da relação cambiária, mas sim com a relação causal que lhe está subjacente, conforme se entendeu no acórdão desta relação proferida no processo n.º 46/09.3 TBVNO.C1, ainda inédito, no qual a subscritora do presente interveio como 1.ª adjunta.
[7] Neste preciso sentido, aresto do STJ de 13/7/2010, processo n.º 5478/07.9 TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Prof. Menezes Cordeiro, “Manual de direito bancário”, 2.ª ed., Almedina 2001, pág. 524.
[9] V., recusando à convenção de cheque categoria contratual autónoma, antes defendendo estarmos perante “simples estipulação que corresponde a um elemento natural do contrato de abertura de conta”, Prof. Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito”, pág. 233. 
[10] Prof. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 533.
[11] Neste sentido, Prof. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 539, e arestos do STJ de 19/10/1993, BMJ 430, págs. 466 e seguintes, e de 3/2/2005, processo nº 04B4382, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Prevenindo as hipóteses em que, mercê da confiança que o sacador lhe merece, o sacado permite o saque “a descoberto”.
[13] Com efeito se, por um lado, facilmente se concebe que em determinadas situações não será possível fazer prova, ainda que perfunctória, do alegado (basta pensar na possibilidade de alguém ser furtado em país estrangeiro, a hora tardia), não é menos verdade que a exigência de exibição, por exemplo, de uma participação policial do furto não garante, por si, a veracidade da denúncia.
[14] No sentido da necessidade de verificação destes pressupostos, acórdão STJ de 18/12/2012, processo n.º 5445/09.8 TBLRA.C1, no sítio www.dgsi.pt