Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4298/16.4T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: BENFEITORIA
CASAMENTO
COMUNHÃO
PRESUNÇÃO
PARTILHA
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: AERS. 216, 1722, 1723 CC
Sumário: 1. Na pendência do casamento celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, a realização de uma construção no prédio adjudicado a um dos ex-cônjuges (partilha por óbito) haverá que ser qualificada como benfeitoria que se integra na comunhão - não provado como foi paga mas demonstrando-se que foi feita na constância do casamento, tal benfeitoria constitui coisa comum (art.º 1723º, alínea c) do CC).

2. A presunção de comunhão decorrente do art.º 1723º, c) do CC visa primordialmente acautelar interesses de terceiros e do comércio jurídico em geral, não impedindo que na relação entre os cônjuges seja arredada, por qualquer meio de prova.

Decisão Texto Integral:            

         

  

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Nos presentes autos de inventário instaurados, em 2014, para partilha dos bens na sequência do decretamento de divórcio, sendo requerente M (…) e requerido e cabeça-de-casal A (…), por sentença de 12.12.2016, transitada em julgado, foi homologada “a partilha efectuada por acordo nos termos constantes da acta de conferência de interessados (…)[1], adjudicando-se a cada um dos interessados os bens que lhes ficaram a caber em preenchimento das respectivas meações e condenando ao pagamento do passivo aprovado ou julgado verificado”.

            Inconformada, sobretudo, com a decisão interlocutória de 19.4.2016, a requerente interpôs recurso de apelação (ao abrigo do disposto no art.º 76º, n.º 2 da Lei n.º 23/2013, de 05.3 – Lei que aprovou o actual regime jurídico do processo de inventário, doravante designado RJPI) formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Decidiu o Notário que as construções edificadas sobre o prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva sob o n.º 448, descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 4717, não ficou provado como foram pagas aquelas benfeitorias.

            2ª - Apesar de não ficar provado como foram pagas tais benfeitorias, a verdade é que foram feitas na constância do casamento dos intervenientes (factos provados 3 e 4 do despacho de 16.02.2016), logo, constituem bem comum do casal.

            3ª - A recorrente, na sua reclamação, invocou o seu direito a benfeitorias e foi feita a prova dos factos constitutivos desse direito (art.º 342º, n.º 1 do Código Civil/CC), conforme resulta dos factos provados do despacho de 16.02.2016.

            4ª - Podemos concluir com segurança que antes do casamento de ambos, apenas existia o prédio de r/c, que constava de estabelecimento comercial, propriedade dos sogros da recorrente, o qual foi doado ao cabeça-de-casal, e posteriormente foi construído, sobre aquele, o prédio urbano destinado a habitação, no 1º andar, com recurso a empréstimo bancário, subscrito por ambos os cônjuges.

            5ª - Donde só pode concluir-se que o mesmo foi construído, por ambos, na constância do casamento sobre prédio próprio do recorrido.

            6ª - O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os "ganhos" "alcançados" pelos cônjuges, todos os bens que "advierem" aos cônjuges durante o casamento que não sejam exceptuados pela lei; fazem parte da comunhão os bens que os cônjuges "fizeram seus" na constância do casamento a título oneroso.

            7ª - Assim a construção da moradia pelo casal formado por apelante e apelado, pode sem artificialismos ser integrada neste conceito de “adquirido” - o prédio onde foi implantada a moradia era bem próprio do apelado, mas a moradia foi construída na pendência do casamento, sob o regime da comunhão de adquiridos, com trabalho e dinheiros comuns do casal (art.º 1724º do CC) e foram empregues na sua construção bens próprios e bens comuns.

            8ª - Não se sabe ao certo quanto custou a construção, apenas temos por referência o valor do empréstimo, mas sabe-se que o terreno foi doado - cf. a escritura pública de doação - no entanto conforme caderneta predial, em 2012, ano em que foi determinado o valor patrimonial do prédio urbano era de € 23 690.

            9ª - O valor das despesas materiais feitas pelo casal com a dita construção da moradia é um bem comum do casal, nos termos dos art.ºs 1724º, al. b) e 1733º, n.º 2 do CC, pelo que deve ser relacionado como crédito do património comum do casal.

            O requerido/cabeça-de-casal respondeu e concluiu pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, há que apreciar e decidir, principalmente, se a dita “benfeitoria” deverá ser relacionada e partilhada.           


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte:[2]

            a) O casamento entre requerente e requerido (celebrado em 01.5.1976, no regime da comunhão de adquiridos) foi dissolvido por sentença (de divórcio) de 27.5.2014, transitada em julgado em 02.7.2014 (processo de divórcio n.º 6256/12.9TBLRA).

            b) Na sequência das sucessivas relações de bens apresentadas nos autos de inventário, a requerente reclamou contra tais relações de bens, pretendendo ver relacionadas, nomeadamente, as seguintes verbas:

            - Benfeitorias no prédio urbano sito na Rua dos (...) , inscrito na matriz predial sob o art.º 448 da União de Freguesias de Leiria, P (...) , (...) descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de Leiria sob o n.º 4717/P (...) ;

            - Benfeitorias no prédio urbano sito em V (...) , inscrito na matriz predial sob o art.º 3420 da União de Freguesias de Leiria, P (...) , (...) descrito na CRP de Leiria sob o n.º 5538/P (...) .

            c) O requerido opôs-se à relacionação afirmando que as referidas benfeitorias foram efectuadas “com o produto da venda de três bens rústicos que lhe foram adjudicados” na partilha por óbito de seu pai, de 05.4.1978, a que se reportam os documentos reproduzidos a fls. 28 e seguintes.

            d) Inquiridas as testemunhas e analisadas as demais provas oferecidas, o Senhor Notário (por despacho de 16.02.2016) deu como provados, entre outros, os seguintes factos:

            - Após o casamento foram realizadas obras que consistiram na construção de um 1º andar no prédio urbano sito na Rua dos (...) , inscrito na matriz predial sob o art.º 448 da União de Freguesias de Leiria, P (...) , (...) descrito na CRP de Leiria sob o n.º 4717/P (...) ;

            - Foram também feitos melhoramentos (que consistiram numa cobertura e pequeno armazém) no prédio urbano sito em V (...) , inscrito na matriz predial sob o art.º 3420 da União de Freguesias de Leiria, P (...) , (...) descrito na CRP de Leiria sob o n.º 5538/P (...) ;[3]

            - O A (…) adquiriu vários prédios rústicos pela escritura de partilha por óbito do pai de 05.4.1978, exarada a fls. 27 do livro C-156 do 1º Cartório Notarial de Leiria.

            E deu como não provado, designadamente:

            - O casal contraiu um empréstimo ao Montepio e com esse dinheiro pagou as obras na casa onde residiram;

            - O A (…) vendeu três prédios rústicos, adquiridos na referida partilha, e com o dinheiro pagou as obras na casa onde residiram.

            e) Na sequência daquela decisão, o cabeça-de-casal apresentou nova relação de bens que incluía, entre outras, as seguintes verbas:

            - 8. Benfeitorias realizadas no prédio sito na Rua dos (...) , descrito sob o n.º 4717 de P (...) , inscrito na matriz sob o art.º 448 da União de Freguesias de Leiria, P (...) , (...) ………………………………………€ 3 000,00;

            - 9. Benfeitorias efectuadas no prédio urbano sito em V (...) , descrito sob o n.º 5538, inscrito na matriz predial sob o art.º 3420 da União de Freguesias de Leiria, P (...) , (...) ………………………€ 600,00.

            f) Por despacho de 01.3.2016, o Senhor Notário ordenou a notificação do cabeça-de-casal “para retirar as verbas 8 e 9 da relação de bens”; após, foi apresentada “relação de bens rectificada” (fls. 86).

            g) Havendo a requerente pedido a “avaliação das verbas 1 a 11 da nova relação de bens”, tal pedido foi atendido nos termos do despacho de 13.4.2016 e concretizado na avaliação de fls. 94 verso (de 11.5.2016).

            h) A interessada/recorrente M (…) reportando-se àqueles despachos de 16.02.2016, 01.3.2016 e 13.4.2016, pediu a admissão das “verbas” ditas em II. 1. b) e e) na relação de bens, bem como a sua avaliação[4], após o que foi proferido o seguinte despacho (de 19.4.2016):

            «Salvo o devido respeito, não se compreende a posição da interessada M (...) no seu requerimento de 15.4.2016.

            Conforme a requerente bem reconhece no seu ponto 2 não ficou provado como foram pagas as benfeitorias e isso explica tudo sobre a não inclusão das mesmas na actual relação de bens. É que as benfeitorias só são bens, e portanto descrevem-se em espécie, quando possam separar-se do prédio – art.º 25º, n.º 6 do RJPI – o que não é o caso dos autos. De resto só podem entrar na relação de bens como créditos ou dívidas (n.ºs 5 e 6 do mesmo artigo). Não basta portanto existirem as obras ou a construção, é necessário provar-se quem as fez, com que dinheiro, com a contribuição de quem, para, em consequência, se concluir se há alguma dívida a alguém a levar à relação de bens. Como não se fez prova nada há a relacionar.

            (…)

            O despacho do incidente de reclamação foi bem claro quando se disse “Deste modo, não se produzindo prova relevante a questão deve decidir-se contra a parte a quem cabe o ónus da prova, a reclamante (art.º 342º, n.º 1 do CC e art.º 414º do CPC) pois cabe-lhe a ela fazer prova relativa aos bens que pretende ver relacionados (…)” pelo que ficou decidido sem qualquer equívoco que as benfeitorias ficaram excluídas.     

            Se o cabeça-de-casal num dado momento as incluiu por lapso na relação de bens a verdade é que logo a seguir as retirou pelo que também não vemos aí qualquer acordo no seu relacionamento.

            Pelo exposto não se admitem as benfeitorias na relação de bens e indefere-se o pedido de avaliação das mesmas.[5]//19.4.2016//O Notário»

            i) Na conferência de interessados, realizada a 30.11.2016, foi acordado adjudicar “todas as verbas do activo da relação de bens ao interessado A (…) (…) pelo valor da relação de bens” e reconhecer “a dívida à M (…) e a dívida ao A (…) nos valores que constam da relação de bens”, pelo que a interessada M (…)“tem a receber de tornas o montante de € 7 478,01 a pagar em 6 prestações de € 1 246,33 a começar no dia 10.01.2017 e as restantes até ao dia 10 dos meses seguintes”.

            Foi ainda consignado que “ambos consideram concluída a partilha pelo que prescindem da forma e mapa da partilha, requerendo a remessa do processo a Tribunal para homologação”.

            j) O cabeça-de-casal tem vindo a pagar as “tornas” devidas.[6]

            k) O mencionado prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 448 foi avaliado no ano 2012, sendo-lhe atribuído o valor patrimonial de € 23 690.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            No regime da comunhão de adquiridos são considerados próprios dos cônjuges: a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento; b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação; c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior (art.º 1722º, n.º 1, do CC).

            No mesmo regime de bens conservam a qualidade de bens próprios: a) Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca directa; b) O preço dos bens próprios alienados; c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges (art.º 1723º do CC). Fazem parte da comunhão: a) O produto do trabalho dos cônjuges; b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei (art.º 1724º do CC).

            Reza ainda a lei, reportando-se ao regime da comunhão geral e depois de enumerar os bens exceptuados da comunhão, que a incomunicabilidade dos bens não abrange os respectivos frutos nem o valor das benfeitorias úteis (art.º 1733º, n.º 2 do CC).

            3. Perante o estatuído no art.º 1723º do CC tem-se defendido, por um lado, que se consagrou/admitiu a sub-rogação real nos casos de troca directa [alínea a)] e de alienação de bens próprios quanto ao respectivo preço [al. b)], e que no que se refere aos bens adquiridos ou às benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, exige-se que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição ou em documento equivalente, com assinatura de ambos os cônjuges [al. c)]. Se não for devidamente mencionada a proveniência do dinheiro ou os valores com que foram adquiridos os bens ou efectuadas as benfeitorias, estes bens ou benfeitorias são comuns.

            Nesta linha de entendimento, diz-se, ainda, que esta solução é a mais correcta, considerando o interesse de terceiros, que doutro modo veriam frustrada a sua expectativa de que os bens comprados na constância do matrimónio sejam comuns, e, bem assim, que sendo uma ideia de protecção de terceiros que justifica a limitação estabelecida, tal limitação só deverá aceitar-se onde o interesse de terceiros o exigir - não estando em causa o interesse de terceiros mas única e simplesmente o dos cônjuges, nada parece impedir que a referida conexão seja provada por quaisquer meios.[7]

            Outro sector da doutrina defende que o art.º 1723º do CC veio admitir expressamente a sub-rogação real nos regimes de ´comunhão` (art.º 1734º do CC) para o efeito de manterem a natureza de bens ´próprios` os bens adquiridos a título oneroso, na constância do matrimónio, mas à custa de bens próprios, mediante o ´emprego` ou a ´utilização` destes. Assim, para que haja sub-rogação dos bens próprios, exige-se que a proveniência do dinheiro ou valores, com que os bens foram adquiridos ou as benfeitorias efectuadas, conste do próprio documento de aquisição ou de documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Só a intervenção simultânea dos cônjuges no documento onde se mencione a proveniência dos meios com que a aquisição foi efectuada garante capazmente a veracidade da declaração, pelo que a falta de menção da proveniência do dinheiro ou valores com que a aquisição seja feita constitui presunção ´juris et de jure` de que estes meios são comuns, não só para o efeito da qualificação dos bens adquiridos, mas também para o acerto das relações entre o património comum (seria este, em princípio, o devedor na hipótese em exame) e o património de cada cônjuge.[8]

            Assim, dúvidas não restam de que a presunção estabelecida no art.º 1723º, alínea c) do CC, visa, primordialmente, acautelar interesses de terceiros e do comércio jurídico em geral, quer se considere que estabelece, para este efeito, uma presunção juris et de jure (vocacionada para prosseguir esse desiderato, alheio à relação conjugal), quer se conclua pela existência de uma mera presunção iuris tantum (de comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento sob o regime de comunhão de adquiridos e que se aplicaria no caso de não estarem em causa interesses de terceiros).

            Sobre esta matéria recaiu, entretanto, o acórdão uniformizador do STJ n.º 12/2015, de 02.7.2015, com a seguinte orientação: «Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art.º 1723º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.»[9]

            4. Neste recurso, a recorrente insurge-se contra o facto de o Notário indeferir a sua pretensão de relacionar as benfeitorias que reclama - maxime, as benfeitorias no prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art.º 448 e descrito na CRP de Leiria sob o n.º 4717/P (...) .[10]

            Ante os elementos disponíveis (e a factualidade dada como provada), estamos perante um imóvel que terá sido adquirido pelo cabeça-de-casal na pendência do casamento[11], no qual, na constância do casamento, foram realizadas obras que consistiram na construção de um 1º andar (cf. II. 1. d), 1ª parte, supra) e onde ficou instalada a casa de morada da família do casal da requerente e requerido.

            O recorrido veio alegar que as referidas benfeitorias[12] foram efectuadas “com o produto da venda de três bens rústicos que lhe foram adjudicados” na partilha por óbito de seu pai (cf. II. 1. c), supra), enquanto a requerente/reclamante/recorrente afirmara, no pressuposto que constituem um bem integrante do património comum, que o casal contraiu um empréstimo ao Montepio e com esse dinheiro pagou as obras na casa onde residiram, perspectivas, contrárias, que não se comprovaram (cf. II. 1. d), 2ª parte, supra).

            E o Notário considerou que “não se produzindo prova relevante a questão deve decidir-se contra a parte a quem cabe o ónus da prova, a reclamante (art.º 342º, n.º 1 do CC e art.º 414º do CPC) pois cabe-lhe a ela fazer prova relativa aos bens que pretende ver relacionados (…) pelo que ficou decidido (…) que as benfeitorias ficaram excluídas” da relação de bens e da partilha (cf. II. 1. e), supra).

            5. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, face ao quadro normativo dito em II. 2., supra, antolha-se evidente que não se poderá sufragar este entendimento quanto à repartição do ónus da prova, pois não era à reclamante que incumbia relacionar os bens e alicerçar essa relação através de meios de prova fidedignos mas, sim, ao requerido/cabeça-de-casal, assistindo àquela o direito de reclamar contra a relação de bens (cf. o aduzido no requerimento de inventário e o preceituado nos art.ºs 23º, 24º e 27º, alínea c) do RGPI).

            A requerente/recorrente apenas despoletou o processo e reclamou a existência de bens comuns; o tribunal aderiu parcialmente a essa reclamação, consignando o facto específico relativamente às obras realizadas na pendência do casamento.
           
Assente o regime de bens do casamento – comunhão de adquiridos – e a realização de uma construção no prédio adjudicado a um dos ex-cônjuges, essa edificação haverá que ser qualificada como benfeitoria (art.º 216º, n.ºs 1 e 3 do CC); face a esse regime de bens, não provado como foi paga mas demonstrando-se que foi feita na constância do casamento dos intervenientes, tal benfeitoria constitui coisa comum, integrando-se na comunhão, por efeito do regime de bens do casamento (art.º 1723º, alínea c) do CC).[13]

            Ademais, na estrita relação entre os cônjuges, arredado aquele interesse de terceiros que enforma a vocação da norma, nada impedia que fosse produzido qualquer meio de prova, no sentido de infirmar a comunhão que o preceito estabelece, com aquela finalidade, podendo/devendo o cabeça-de-casal demonstrar a falta de intervenção do ex-cônjuge na obra reclamada, arredando-a da comunhão.[14]

            6. Ante o referido quadro normativo e os factos demonstrados - sendo seguro que a construção ocorreu no decurso do casamento -, importava/importa relacionar as benfeitorias em causa enquanto bem comum do extinto casal, entendimento que, diga-se, não deixou de ser actuado pelo próprio cabeça-de-casal mediante a relacionação referida em II. 1. e), supra.

            Está em causa o eventual crédito da requerente/recorrente por benfeitorias efectuadas em prédio que é bem próprio do cabeça-de-casal, por se ter comunicado àquela, em princípio na proporção de metade, o valor das benfeitorias úteis feitas no bem próprio do outro cônjuge, sendo aquela do mesmo credor, no momento da partilha, importando saber porventura o custo de tais obras e o seu valor actual[15].

            Esta, de resto, uma solução conforme às disposições legais do direito da família , em que domina o propósito de operar, no momento da partilha dos bens do casal, as adequadas compensações entre patrimónios (entre o património comum dos cônjuges e um património próprio), visando a recomposição do equilíbrio das massas patrimoniais.[16]

            Por conseguinte, tratando-se de bem comum, deve o mesmo ser relacionado, nos termos expostos [benfeitorias no prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art.º 448 e descrito na CRP de Leiria sob o n.º 4717[17]; manter-se-á incólume o acordado em sede da conferência de interessados de 30.11.2016 quanto à partilha das demais verbas - que não está em causa neste recurso -, operando os seus feitos a adjudicação já acordada], prosseguindo os autos os trâmites ulteriores da partilha de bens subsequente ao divórcio (inclusive, com a eventual avaliação das benfeitorias).

            7. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, pelo que importa revogar a sentença que homologou a partilha e o dito despacho interlocutório.


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            III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a sentença homologatória da partilha (e a decisão interlocutória de 19.4.2016), devendo proceder-se em conformidade com o referido em II. 6., supra.

            Custas pelo recorrido.


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20.6.2017


Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Vítor Amaral


[1] Referindo-se, de seguida, na mesma sentença: “cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais (e que se justifica atenta a sua simplicidade)”.
[2] Atendendo, designadamente, aos elementos de fls. 9, 15, 23, 44, 48, 51, 66, 78, 81, 84, 86, 88, 91, 92, 94 verso, 103 e 129 e seguintes.
[3] A este e ao anterior prédio se referem as descrições prediais aludidas nos documentos de fls. 45 verso e 46. 
[4] Conforme já havia solicitado em requerimento datado de 26.02.2016 (fls. 84; cf., ainda. II. 1. g), supra).
[5] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[6] Encontra-se documentado o pagamento das três primeiras prestações (fls. 129, 132 e 134).
[7] Vide F. M. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1981, págs. 475 e seguintes.
   Defendia ainda este mui ilustre Professor que “Quando os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios entrem na comunhão, por estarem em causa interesses de terceiros e não ter sido feita a ´menção` exigida na alínea c) do art.º 1723º do CC, parece que o cônjuge prejudicado deve ser ´compensado` pelo património comum”, ponto que “não é claro na lei” – ibidem, pág. 477, “nota 1”.
   Vide, ainda, em idêntico sentido, F. M. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, 2ª edição, 2001, pág. 518.
   Orientação também expressa por Guilherme de Oliveira, na RLJ, 133º, 351 (em anotação a acórdão da RL de 09.01.2001): «(…) as exigências especiais previstas no art.º 1723º, alínea c), só têm algum sentido quando estiverem em causa os interesses de terceiros que a norma visa defender; (…) tratando-se apenas dos interesses dos cônjuges, deve admitir-se, por qualquer meio, a prova da origem do dinheiro e da existência da sub-rogação

[8] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. IV, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, págs. 425 a 427 e 444.

   Segundo Antunes Varela, o Código Civil inclinou-se para a tese que reconhece a sub-rogação real ´indirecta` mas com uma forte limitação, destinada a proteger as legítimas expectativas de terceiros - Os bens adquiridos ou as benfeitorias efectuadas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só se consideram como bens próprios, quando a proveniência do dinheiro ou valores seja referida no próprio documento de aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.//Só nesses termos a aquisição com bens próprios oferece prova bastante, aos olhos da lei (art.º 1723º, c)) – vide Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, 1987, pág. 440.   

[9] AUJ publicado no DR, 1ª série, n.º 200, de 13.10.2015, justificando-se o aí sufragado, além do mais, “por ser mais consentâneo com a igualdade dos cônjuges no plano material e garantir maior equidade na repartição do património conjugal quando ocorrer a dissolução do casamento”.
[10] Na verdade, a recorrente deixou de mencionar as benfeitorias efectuadas no prédio urbano sito em V (...) , inscrito na matriz predial sob o art.º 3420 e descrito na CRP de Leiria sob o n.º 5538/P (...) – cf. II. 1. alíneas b) e e), supra.
[11] Atendendo à “informação” da certidão permanente junta aos autos (fls. 45 verso e seguinte).

[12] Diga-se que nenhuma dúvida se suscita quanto à realidade subjacente e respectivo enquadramento normativo, de resto, em conformidade com a posição (unânime) da doutrina e da jurisprudência – vide, v. g., os Autores supra referidos e, de entre vários, os acórdãos da RP de 11.7.2012-processo 1579/10.4TBMCN.P1 e 09.12.2013-processo 480/10.6TVPRT.P1 e da RC de 23.10.2012-processo 1058/09.2TBTMR-A.C1, 13.5.2014-processo 1068/08.7TBTMR-B.C1 e 20.4.2016-processo 663/15.2T8CLD.C1 (também subscrito pelos aqui relator e 1ª adjunta), publicados no “site” da dgsi.

[13] Cf. o citado acórdão da RP de 11.7.2012-processo 1579/10.4TBMCN.P1.
[14] Ibidem.
   Lembrando o expendido no dito AUJ, “O cônjuge que pretenda demonstrar que os valores utilizados na aquisição de um bem provieram do seu património tem de oferecer qualquer prova capaz de afastar a qualificação do novo bem como comum - qualificação que resulta da inobservância dos requisitos estabelecidos no art.º 1723°, al. c), e que assenta, em última análise, na presunção de comunhão do art.º 1724º, b) do Código Civil”.
   Em idêntico sentido, cf., entre outros, o acórdão da RL de 19.11.2009-processo 478/08.4TVLSB.L1-2 [assim sumariado: “Não havendo interesse de terceiros em jogo, o cônjuge que pretenda demonstrar que os valores utilizados na aquisição de um bem provieram do seu património tem de oferecer prova qualquer capaz de afastar a qualificação do novo bem como comum, qualificação que resulta da inobservância dos requisitos estabelecidos no art.º 1723º, alínea c), e que assenta, em última análise, na presunção de comunhão do art.º 1724º, presunção essa legal e ´iuris tantum` susceptível de prova em contrário pela parte nisso interessada, em conformidade com o disposto nos art.ºs 350º, 344º e 342º, do Código Civil”], publicado no “site” da dgsi.
[15] Cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 05.3.2009-processo 08B3677, publicado no “site” da dgsi.
[16] Cf. o citado acórdão da RC de 20.4.2016-processo 663/15.2T8CLD.C1.
[17] Cf. a “nota 10”, supra.