Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
48849/20.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE NELAS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 258.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I São pressupostos da representação voluntária: a) «Contemplatio domini», i. é, realização do negócio em nome do representado; b) Declaração, em maior ou menor escala, de uma vontade própria do representante.

II - A facturação é, em regra, uma operação unilateral efectuada pelo vendedor dos bens facturados, que não traduz qualquer consenso ou acordo por parte da pessoa em nome de quem os bens são facturados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       




            I. V..., Lda., intentou contra M..., Lda., procedimento injuntivo, convertido em processo especial de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 9 968 acrescida de juros de mora vencidos desde 10.11.2018 até 25.6.2020, no valor de € 1 526,07 e da indemnização de € 40 pelos custos de cobrança da dívida.

            Alegou, em síntese: forneceu à Ré diversos bens e serviços, a pedido desta, emitindo a fatura FA 2018/130, de 01.8.2018, no montante de € 19 968,80, com vencimento a 31.8.2018; na data de emissão da fatura, foram entregues pela Ré à A., para pagamento daquela quantia, dois cheques pré-datados, emitidos por entidade terceira, nos montantes de € 10 000 e € 9 968,80, o primeiro, depois substituído por dois cheques; em 10.11.2018, o cheque no montante de € 9 968,80 foi devolvido por falta de provisão e a Ré não pagou essa importância, os juros moratórios e a indemnização pelos custos com a cobrança da dívida.

            A Ré opôs-se, sustentando, em síntese: apenas contratou com AA, que se intitulou perante si como representante, além de outros, da A., propondo-se vender-lhe vinho a granel, o que aconteceu; pagou ao tal AA, a cada fornecimento feito, o vinho que lhe foi entregue, e sempre aquele prometendo (sem nunca identificar quem surgiria como vendedor/credor) que após a última entrega e pagamento emitiria a respetiva fatura global, admitindo a Ré que seria em nome de uma das suas empresas ou outra com quem tivesse uma qualquer relação comercial; não manteve qualquer relação comercial com a A.; desconhece os fornecimentos alegados pela A.; os cheques invocados no requerimento injuntivo não foram por si emitidos.

            Terminou pedindo: a) a sua absolvição da instância, por ilegitimidade passiva; b) a intervenção principal do dito AA c) ou, se assim não se entender, a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.

            Na sequência de despacho, a A. respondeu e explicitou o alegado “negócio” celebrado entre as partes - referindo, inclusive, haver interpelado a Ré para pagamento do valor devido, tendo BB e CC, seus representantes, garantido que iriam regularizar a situação, o que nunca fizeram -, não se opôs à pretendida intervenção principal provocada e juntou diversos documentos.

            Foi indeferido o incidente de intervenção principal.

            Realizada a audiência de julgamento, o Mm.º Juiz a quo, por sentença de 18.6.2021, julgou improcedente a exceção de ilegitimidade processual da Ré e julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Das declarações prestadas pelas testemunhas DD e EE deveria resultar provado que “AA contactou a autora dando nota que a ré estaria interessada na aquisição de produtos referida em 1.

            2ª - Como resulta dos depoimentos supra indicados, a Recorrente, ainda que admita ter realizado o negócio por intermédio do AA, reconhece a Recorrida como real compradora.

            3ª -  Não é necessário verificar-se a existência de um vínculo formal entre AA e a Recorrida, para que se admita a possibilidade de este contrato ter sido negociado por intermédio do referido Sr..

            4ª - Para além disso, segundo a testemunha DD, o representante da Recorrida, CC, quando por ele confrontado quanto a essa questão, não negou a existência da dívida a favor da Recorrente, tendo, pelo contrário, dito que “depois se veria isso”.

            5ª - Deve ser ainda realçado que foram negociados novos contratos entre a Recorrida e a Recorrente, posteriores ao contrato aqui em causa, o que significa que a relação entre elas se manteve e, inclusivamente, se fortaleceu, provando que nenhuma das partes questionou a legitimidade do negócio do contrato em discussão.

            6ª - De acordo com o depoimento da testemunha EE, a encomenda destinava-se, segundo AA, à Recorrida.

            7ª - Nas palavras da mesma testemunha, “a fatura normalmente é sempre passada à pessoa que comprou”, pelo que inevitavelmente a Recorrida deve ser considerada compradora.

            8ª - Tendo a Recorrida recebido a aludida fatura, dela não tendo reclamado, e nada disse da carta que a Recorrente lhe enviou relativamente à falta de pagamento da fatura em crise.

            9ª - Da conjugação dos depoimentos de DD e EE, resulta que a Recorrida, por intermédio do AA, comprou à Recorrente os 32 130 litros de vinho de mesa branco a granel que esta lhe forneceu.

            10ª - Com base na factualidade descrita, é seguro afirmar que um declaratário normal, colocado na posição da Recorrente, não teria dúvidas de que a sua contraparte era a Recorrida e não AA, que, na verdade, atuou como um mero intermediário na negociação.

            11ª - Assim, e por força da “teoria da impressão do destinatário” consagrada no art.º 236º, n.º 1 do Código Civil (CC), e segundo o entendimento da jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do STJ de 20.12.2017-processo n.º 396/13....(dgsi), a Recorrida deve ser considerada parte no contrato de compra e venda e, consequentemente, devedora da quantia pedida pela Recorrente.

            12ª - Se assim não entendesse, a Recorrida deveria atempadamente ter informado a Recorrente dessa mesma situação, quer no momento em que recebeu o fornecimento de vinho, quer no momento da entrega da fatura, ou quer ainda perante a carta de interpelação enviada pela Recorrente.

            13ª - Não o tendo feito, não restará outra hipótese senão a de considerar a Recorrida como a real compradora e, consequentemente, real devedora.

            14ª - Assim, julgou mal o tribunal a quo, quer na parte em que dá como não provado o facto de AA ter contactado a Recorrente no sentido de realizar uma encomenda a pedido da Recorrida, quer na parte em que não reconhece a Recorrida como parte no contrato de compra e venda.

            15ª - Deverá a decisão proferida pelo tribunal a quo ser revogada e alterada por outra que julgue procedente o pedido, reconhecendo o direito de crédito da Autora e condenando a Ré ao pagamento da quantia pedida.

A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, cuja modificação depende da eventual alteração da decisão de facto.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) AA contactou a A., dando nota que estaria interessado na aquisição dos seus produtos (vinho de mesa branco a granel).

            2) O negócio consistia no fornecimento de 32 130 litros de vinho de mesa branco a granel pelo preço de € 19 968,80.

            3) No dia 01.8.2018, os 32 130 litros de vinho de mesa a granel saíram das instalações da A. na Rua ..., em ..., e foram entregues na sede da Ré em ..., ....

            4) O transporte ficou a cargo da empresa P..., Unipessoal, Lda., com sede em ..., ..., com a guia de transporte n.º 2306058.

            5) Tendo, nessa sequência, sido emitida em nome da Ré a fatura n.º ...30, datada de 01.8.2018, no valor de € 19 968,80.

            6) A referida fatura foi enviada à Ré na mesma data, com data de vencimento a 31.8.2018.

            7) A fatura foi emitida e enviada à Ré uma vez que AA forneceu à A. os dados da Ré constantes da dita fatura, dando-lhe indicação para ser emitida em nome da Ré.

            8) AA entregou à A. dois cheques da sociedade D..., Lda., para o pagamento da quantia em dívida, a saber:    - cheque ..., n.º ...06, no valor de € 9 968,80, com data de 10.11.2018; outro cheque, no valor de € 10 000.

            9) O pagamento do segundo cheque foi recusado por falta de provisão, tendo AA pedido a substituição do mesmo por dois cheques, a saber: - cheque ..., n.º ...65, no valor de € 5 000, com data de 30.9.2018; - cheque ..., n.º ...66, no valor de € 5 000, com data de 30.9.2018; ambos obtiveram pagamento.

            10) Em setembro de 2019, através de carta, a A. solicitou à Ré o pagamento da quantia de € 9 968,80.

            11) Apesar de ter recebido a carta de interpelação, a Ré nada disse.

            12) A funcionária da A., EE, encetou contactos telefónicos com os responsáveis da Ré com vista ao pagamento do valor em dívida.

            13) Um responsável da A., DD, encontrou-se com CC, da Ré.

            2. E deu como não provado:

            a) AA contactou a A. dando nota que a Ré estaria interessada na aquisição de produtos referida em 1.

            b) Logo que se deu o vencimento da fatura em crise, os responsáveis da A. contactaram AA no sentido de obterem o respetivo pagamento.

            c) Nos contactos referidos em 12), BB e CC garantiram que iriam regularizar a situação.

            d) Com referência ao facto 13), os responsáveis da Ré, CC e BB, acordaram que a Ré liquidaria o valor remanescente: “Nós pagamos o valor em dívida e acertamos depois contas com o Sr. AA”, referiu BB nessa conversa.

            e) A Ré foi abordada nas suas instalações por AA, o qual se identificou como representante, além de outros, da A. e propôs a venda de bens, designadamente, vinho a granel.

            f) AA, conhecido na região como comerciante de produtos para agricultura e seus frutos, dirigiu-se às instalações da Ré e propôs a venda de vinho a granel.

            g) Alegando ser justo representante de alguns agricultores e de algumas empresas dedicadas à comercialização de vinhos engarrafados, a granel e derivados, tal como a A..

            h) Comprometendo-se, para o efeito, a entregar nas instalações da Ré diversas quantidades de vinho a granel, a troco do justo montante acordado entre as partes.

            i) AA entregou diversas quantidades de vinho a granel nas instalações da Ré, a troco de montantes que as partes estipularam em cada entrega.

            j) A cada entrega, a Ré concretizava o correspondente pagamento, sendo que AA sempre foi prometendo que após a última entrega e pagamento seria emitida a respetiva fatura com o montante global pago pela mesma a troco daquele vinho a granel, porém, sem nunca identificar quem surgiria como vendedor/credor.

            k) O que, à data, a Ré achou normal, assumindo que seria emitida por uma das empresas de AA ou outro, com quem tivesse uma qualquer relação comercial, pelo não estranhou a fatura remetida pela A..

            l) A Ré liquidou todos os montantes devidos a AA.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

a) A A./recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, sendo que da sua eventual modificação poderá resultar diferente desfecho dos autos.

Importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo, principalmente, quanto à factualidade aludida em II. 2. alínea a), supra, pugnando a A. que a mesma seja dada como provada, face ao depoimento de duas testemunhas, o que, se atendido, poderá igualmente determinar diferente resposta à factualidade dada como provada em II. 1. 1), supra.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[1], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obsta a que se verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[2], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) O Mm.º Juiz a quo apresentou a seguinte motivação da matéria de facto, de que se destacam, atento o objecto do recurso, os seguintes excertos:

«(…) Os factos 1 a 13 resultaram dos testemunhos de:

            - EE (administrativa ao serviço da autora desde abril de 2018), que conhece o Sr. AA, com quem o negócio do vinho foi efetuado, tratou dos diversos documentos que acompanharam o transporte e entrega do vinho nas instalações da ré (os docs. de fls. 41 e 42, constituídos por fatura, guia de expedição de vinho – Instituto da Vinha e do Vinho -, guia de remessa e guia de transporte), escreveu a carta de interpelação da ré (fls. 45 e 46) e encetou contactos telefónicos com a ré com vista à cobrança do valor remanescente em dívida (€ 9 968,80);

            - DD [Eng.ª Mecânico, diretor técnico da autora e titular da maioria do capital, como se afere da certidão permanente junta aos autos em audiência de julgamento, sendo gerente o seu pai DD - fls. 79 a 83], que conhece o Sr. AA (com alcunha “...”), pessoa que encomendou o vinho fornecido, tendo a testemunha contactado telefonicamente os responsáveis da ré e chegado a encontrar-se com estes, por duas vezes, nas instalações da demandada; (...)

            Não há dúvida, tal como referido pelas duas primeiras testemunhas, que o Sr. AA é que efetuou a encomenda do vinho branco, a granel.[3] A testemunha EE refere até que a autora já havia efetuado um negócio anterior com aquele AA e tudo tinha corrido bem (entenda-se que houve pagamento do fornecimento). Ainda de acordo com a mesma testemunha, foi aquele AA que forneceu todos os dados da ré para emissão da fatura. Também temos por seguro que o vinho foi entregue nas instalações da ré, pois nesse sentido milita toda a documentação que acompanhou a mercadoria (fatura e guias de fls. 41 e 42, embora se note que a guia de transporte não está assinada pelo destinatário – fls. 42 verso), bem como os contactos encetados posteriormente pelas duas primeiras testemunhas junto da ré, que nunca opôs a falta de entrega do vinho, sequer o fez na oposição apresentada nos autos. A testemunha EE confirma ainda que o Sr. AA entregou os cheques da “D..., Lda.” para pagamento do fornecimento, ambos devolvidos por falta de provisão (assim o cheque cujo pagamento ainda está em falta, no valor de € 9 968,80, como se afere do doc. 43), tendo o outro sido substituído pelo Sr. AA por dois cheques daquela sociedade, que obtiveram bom pagamento (fls. 44).

            Como se afere das certidões permanentes da ré (fls. 84 a 86) e da “D..., Lda.” (fls. 77 e 78), aquele Sr. AA é sócio desta última sociedade, não se descortinando qualquer ligação dele à ré, por si ou sequer por interposta pessoa (pelo menos ao nível da gerência e titularidade do capital social).

            Além disso, todos os cheques mobilizados para pagamento, ainda que com dois deles devolvidos por falta de provisão, foram sacados pela “D..., Lda.”.

            Ou seja, na encomenda e negociação do vinho não interveio qualquer legal representante da ré ou seu funcionário, em nome desta. Antes o referido AA, cuja única ligação que se conhece é com a sociedade “D..., Lda.” (de que é sócio) e cujos cheques usou para proceder ao pagamento de toda a mercadoria, mas apenas lograram efetivo saque monetário o valor total de € 10 000, como tudo explicou a testemunha EE.

            Nos contactos telefónicos da testemunha EE com a ré [e só estes contactos foram determinados pela obtenção do pagamento em falta, o que, como veremos infra, não aconteceu com os contactos de FF com a ré], a pessoa que se identificou como GG [(...) gerente e sócia da ré, como se afere da certidão permanente de fls. 84 a 87] recusou qualquer responsabilidade pela dívida (antes a imputou ao Sr. AA) e, mais tarde, referiu que tinha negócios e contas a acertar com este e, nesse contexto, seria equacionado o crédito da autora. Ainda a testemunha EE refere que a autora não recebeu da ré qualquer resposta à sua carta de interpelação de fls. 45 e 46, pelo que se seguiram os contactos telefónicos.

            Por seu turno, a testemunha DD, além dos contactos telefónicos com a ré, refere dois encontros nas instalações desta. No primeiro encontro não falou à ré acerca da dívida e, no segundo, motivado pela apresentação de amostras de vinhos, falou ao Sr. CC (sócio da ré, como se afere da certidão permanente de fls. 84 a 87) acerca da dívida, o que fez já na fase final do encontro, tendo aquele sócio da ré dito que iria ver das amostras de vinho e depois se veria da dívida.

            Ou seja, não existem evidências de que o Sr. AA negociou a aquisição do vinho em nome da ré [al. a) dos factos não provados] ou sequer a assunção por parte desta da dívida do Sr. F..., Lda.” [als. c) e d) dos factos não provados]. Não por acaso, os quatro cheques mobilizados para pagamento do preço do vinho foram entregues pelo Sr. AA à ré[4] e pertencem à “D..., Lda.”, de que aquele é sócio. E aqui reside, como veremos na fundamentação de direito, o cerne da ação.

            Que a autora emitiu a fatura em apreço em agosto de 2018 é o que resulta da junção das faturas que antecederam aquela ((...) – fls. 62 verso a 64 verso) e a sucederam ((...) – fls. 65 a 67-frente). (...)»

e) A descrita análise crítica da prova é inteiramente correta.

Vejamos alguns excertos dos depoimentos produzidos em julgamento:

            - EE (fls. 88 verso):

            Efetua, na A., “tudo o que implica trabalho de escritório; (...) foi-nos contratado a entrega de um vinho, (...) emiti a documentação, foi feito o transporte…; (...) [quem lhe forneceu os elementos para a faturação] foi o Sr. AA que era de uma empresa que é a ´D...`. (…) A fatura, normalmente, habitualmente, segue com o transporte, vão os documentos todos respeitantes ao transporte; vai o documento de acompanhamento que é um documento obrigatório pelo Instituto do Vinho. E, normalmente, a fatura segue também com essa documentação toda.” Redigiu a carta reproduzida a fls. 45 e esclareceu que a A. interpelou a Ré para pagamento do fornecimento em causa, mas a Ré, ou quem a representava, recusou pagar dizendo, nomeadamente, que “não nos tinha encomendado o vinho” e que “não era devedora”. (...) o que a D.ª GG (legal representante da Ré) me disse foi que tinha umas outras contas a fazer..., o Sr. AA, supostamente, acho que lhe vendia uvas, na altura das vindimas, e, ela, quando fosse esse acerto do pagamento das uvas, então que ia reter o montante que estava em falta e que nos ia entregar esse montante (...) se ele (AA) até lá não nos fizesse o pagamento...”; para o pagamento do preço foram entregues cheques da “D...”, “eu não sei o que está por detrás!; (...) já tínhamos realizado outros negócios com o Sr. AA, (...) e tinham corrido bem... (...)”

            - DD (fls. 89; sócio A. desde o ano de 2010 - cf. doc. de fls. 79; trabalha na adega como “diretor de serviços”):

            “(...) conheci um Sr. (AA) que era da ´D...`, que era de ..., e por intermédio dele é que eu tive acesso a esta empresa (Ré). Pediu-me esse vinho. (...) Ele é que me deu os elementos (da sociedade Ré) (...).  Eu fiz (chamadas telefónicas) e fui lá pessoalmente. (...) O que se falou foi que o Sr. (CC/sócio da Ré – cf. doc. de fls. 84) até me pediu umas amostras de vinho. (…) E eu até lá fui e depois levei-lhe umas amostras. Ele pediu-me um vinho com umas certas características, e da segunda vez levei-lhe as garrafas, umas amostras de vinho. Disse ´olhe, preciso destes vinhos` e tal e eu levei-lhas (…). Eu falei quando vinha a sair, disse-lhe ´olhe, o senhor tem aqui uma dívida, veja lá se regulariza isso que está ma fazer falta o dinheiro`, [respondendo-lhe aquele] ´(...) Vamos ver isto, vamos ver as amostras, se isto serve ou não e depois a gente vê isso.`

            Referiu ter ido duas vezes à sede da Ré, a primeira, no ano de 2019, não foi “para cobrar a dívida”, mas “para tentar vender...”. “Esta fatura (em dívida) foi por intermédio do Sr. (...), foi por intermédio do outro”; Antes, não conhecia a empresa Ré.  Sabe que a “D...” “teve cheques devolvidos (...)”. O AA “portou-se mal” com a A.. Quando se deslocou pela 1ª vez à sede da Ré “nunca” trabalhara com a mesma.

            f) A prova documental foi adequadamente concretizada e analisada (na decisão sob censura).

4. A descrita fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pelo Mm.º Juiz a quo, não suscita o menor reparo!

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, sujeita à livre apreciação do julgador, apenas se poderá dizer que a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[5], o Mm.º Juiz não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[6]

            O Mm.º Juiz analisou criticamente as provas e especificou (clara e exaustivamente) os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do Código de Processo Civil (CPC), sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Improcede a pretensão da apelante quanto à modificação da decisão de facto.

            5. Nenhuma dúvida se suscita quanto à existência de um contrato de compra e venda e às obrigações e efeitos que a lei prevê (cf. os art.ºs 874º, n.º 1 e 879º do CC); é também evidente que a A. entregou o vinho que consta da fatura, pelo que lhe é/era devido o preço correspondente.

            Mas teremos de apreciar com quem foi celebrado o negócio em causa e, assim, se é à Ré que incumbe o cumprimento da obrigação de pagar o preço (art.º 879º, alínea c) do CC).

            6. A A./recorrente estava ciente de que uma diferente decisão de mérito envolveria, pelo menos, uma resposta positiva à factualidade indicada em II. 2. a), supra, e, assim, nomeadamente, a demonstração de que a venda do bem/produto (vinho) em causa foi solicitado pela Ré ou em sua representação (“por intermédio” do referido AA, atuando, este, na “veste de intermediário[7]).

            7. São pressupostos de existência (conceituais) da representação: a) «Contemplatio domini», isto é, realização do negócio em nome do representado, para que a contraparte saiba ou possa saber com quem negoceia (na dúvida, negoceia-se em nome próprio; a ligação ao dono do negócio deve ser reconhecível); b) Declaração, em maior ou menor escala, de uma vontade própria do representante, e não, pura e simplesmente, de uma vontade do representado.

            É pressuposto de eficácia da representação a circunstância de o acto dever estar integrado nos limites dos poderes que competem ao representante; deve existir, por parte do representante, legitimação representativa, que pode ser originária (existente ao tempo do negócio) ou conferida, posteriormente, através de uma ratificação do negócio (legitimação representativa subsequente).[8]

            8. A fatura junta aos autos foi emitida em nome da Ré [cf. II. 1. 5) supra], mas, por si só [ainda que conjugada com a circunstância da entrega do produto na sede da Ré - cf. II. 1. c), supra][9], não permite concluir que esta é parte no contrato; e não existe mais nenhum elemento de onde se possa retirar que foi a Ré a emitir a declaração de vontade nesse sentido, ou seja, que tenha sido ela a fazer uma proposta de compra e que o bem tenha sido entregue em consequência da aceitação dessa proposta[10].

            9. A fatura é um mero documento particular com um escopo eminentemente contabilístico e fiscal (dada a obrigação que impende sobre os contribuintes de emitirem ou de exigirem faturas ou faturas/recibo), utilizado no exercício da atividade comercial e na prestação de serviços, no qual deverão ser discriminados os bens fornecidos/transmitidos e os serviços prestados, bem como o respetivo preço (cf. os art.ºs 3º, n.º 1; 4º; 29º, n.º 1, alínea b) e 36º, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado).[11]

            10. Prosseguindo.

             Não tendo sido a Ré a emitir a questionada declaração de vontade, não pode concluir-se que foi com ela que foi celebrado o contrato de compra e venda e, consequentemente, obrigá-la a responder pelo seu cumprimento, porquanto só o devedor se encontra obrigado a responder pelo cumprimento (satisfação da obrigação), nos termos do art.º 406º do CC.

            Na verdade, não se poderá dizer que o referido AA «atuou como um mero intermediário na negociação» (cf., por exemplo, a “conclusão 10ª”, ponto I., supra) ou «se apresentou como intermediário neste contrato, tendo negociado com a Recorrente e fornecido todas as informações necessárias para o cumprimento do contrato, em nome da Recorrida/ (...) contraparte no contrato».

            Não será de concluir que a Ré/recorrida fez a sua proposta por interposta pessoa, nos termos do disposto no art.º 258º do CC, porquanto não resulta que o referido AA, ao contratar com a A. a venda do vinho de mesa a granel, tenha atuado em nome daquela (sendo manifestamente insuficiente o simples facto de haver solicitado a emissão da fatura em nome da Ré).

            Acresce que não se demonstra (nem foi alegada) a existência de poderes de representação ou que, posteriormente, a Ré haja ratificado “o acordo” pretensamente celebrado em seu nome.[12]

            11. A A. não logrou provar que a Ré tenha sido a compradora do vinho de mesa a granel aludido em II. 1. 2) e 3), supra.

            A emissão de fatura em nome da Ré e com a indicação do n.º de identificação fiscal da mesma não constitui qualquer vinculação da Ré ao pagamento do preço do produto assim faturado, nem significa qualquer acordo ou aceitação da Ré da obrigação de pagamento do preço a que respeita a fatura emitida.

            A faturação é, em regra, uma operação unilateral efetuada pelo vendedor dos bens faturados e não traduz qualquer consenso ou acordo por parte da pessoa em nome de quem os bens são faturados.

12. Acresce que se desconhece a razão de ser da “supressão” daquele AA e/ou da sociedade pagadora (de parte) do preço na cadeia de transmissões do vinho a granel..., e se terá havido, ab initio, o propósito de enganar a A. e/ou qualquer outro intuito com repercussão no domínio contabilístico e tributário/fiscal.

13. Correta, pois, a fundamentação de mérito apresentada pelo Mm.º Juiz a quo, mormente quando refere: «Não ficou provado que foi a ré quem negociou e encomendou à autora 32 130 litros de vinho de mesa a granel, antes o Sr. AA, apesar de tal mercadoria ter sido entregue nas instalações da ré – factos provados 1 a 3 e al. a) dos não provados. / De resto, o próprio pagamento (embora no parcial de €10 000) foi efetuado pelo Sr. AA, com cheques da “D..., Lda.”. / Por isso, a ré é terceira em relação a este contrato, em razão do que não lhe pode ser exigido o preço acordado. / Por outro lado, a ré não assumiu o pagamento do preço (assunção de dívida – art.º 595º do CC) devido à autora - als. c) e d) dos factos não provados.»

            14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela A./apelante.         


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14.6.2022


               


[1] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[2] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[4] Existe lapso manifesto, já que se trata da A..
[5] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[6] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.

[7] Recorrendo à expressão do acórdão do STJ de 20.12.2017-processo 396/13.4TBALR.E1.S1, publicado no site da “dgsi”, citado pela recorrente, que, contrariamente ao que esta defende, teve por objeto situação bem diversa da dos presentes autos...
[8] Vide C. A. da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição (2ª reimpressão), Coimbra Editora, 2012, págs. 539 e 548; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, págs. 239 e 248 e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 1974, págs. 285 a 287 e 301 a 303.

[9] E na ausência de melhores elementos sobre o contexto das relações negociais havidas com vista à satisfação da encomenda da Ré... - cf. o cit. acórdão do STJ de 20.12.2017-processo 396/13.4TBALR.E1.S1.
[10] Lembrando a noção de contrato como “o acordo por que duas ou mais partes ajustam reciprocamente os seus interesses, dando-lhes uma regulamentação que a lei traduz em termos de efeitos jurídicos” [vide Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 54] ou “o acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizadas entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses” [vide Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I., 4ª edição, Almedina, 1982, pág. 201 e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II ., cit., págs. 42 e seguintes].

[11] De resto, para efeitos probatórios, não é sequer indispensável à validade ou prova das respetivas transações (maxime, do objecto e execução de determinado contrato), matéria sujeita ao princípio da liberdade de prova e da prudente convicção do julgador (no art.º 607º, n.º 5 do CPC) - cf., entre outros, o acórdão do STJ de 22.10.2008-processo 07S3787, publicado no “site” da dgsi.

[12] Veja-se que o art.º 268º do CC preceitua que o negócio realizado em nome de outrem fora dos limites dos poderes de representação ou com ausência total deles será ineficaz em relação ao representado, se não for por ele ratificado [estabelece o seu n.º 1: «O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.»; e prevê o n.º 2 do mesmo art.º «A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroativa, sem prejuízo dos direitos de terceiro»].

   Sobre a matéria, cf., de entre vários, os acórdãos da RC de 29.5.2007-processo 604/04.2TBMMV-A.C1 [constando da respetiva fundamentação: «A declaração negocial pode não ser feita pela própria parte, mas antes por um terceiro que age em nome dela, através de poderes de representação (…). O poder de representação consiste na faculdade ou poder jurídico do representante em produzir efeitos jurídicos na esfera do representado, de forma imediata e automática (art.º 258 do CC), e é esta especificidade que distingue a representação de outras figuras afins, como, por exemplo, a representação imprópria (mandatário sem poderes de representação), o contrato para pessoa a nomear, a gestão de negócios, a mediação./ A validade da representação pressupõe os seguintes requisitos: a) - Uma actuação em nome e por conta de outrem – o representante deve agir esclarecendo a contraparte que os efeitos da sua intervenção se refletem na esfera do representado, logo terá que invocar expressamente essa qualidade, atuando como o próprio representado o poderia licitamente fazer; b) - Dispor o representante de poderes de representação (legal ou voluntariamente concedidos pelo representado)./ (…) Quando o acto é praticado em nome e por conta de outrem, sem que para tanto existissem os necessários poderes de representação, estamos perante uma representação sem poderes (art.º 268 do CC). Neste caso, o negócio é ineficaz em relação do dominus, se o não ratificar, na forma devida para a procuração (art.ºs 262º, n.º 2, 217º, 219º e 268º, n.ºs 2 e 3 do CC).»] e da RL de 02.6.2016-processo 266/14.9TJLSB.L1-2 [assim sumariado: «1. A representação traduz-se na prática de um acto jurídico, em nome de outrem, para na esfera desse outrem se produzirem os respetivos efeitos. 2. A subscrição de um acordo em nome de outrem exige que o representado tenha atribuído poderes de representação ao representante para a celebração e assinatura do mesmo, mediante procuração ou, se assim não acontecer, que o representado venha posteriormente ratificar o acordo.»], publicados no “site” da dgsi.