Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1925/21.5T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: EXECUÇÃO BASEADA EM REQUERIMENTO DE INJUNÇÃO
FUNDAMENTOS DE OPOSIÇÃO
EFEITO COMINATÓRIO DA FALTA DE DEDUÇÃO DA OPOSIÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 857.º DO CPC E ARTIGO 14.º-A DO ANEXO AO DECRETO-LEI N.º 269/98, DE 1 DE SETEMBRO
Sumário: A falta de oposição ao requerimento de injunção não preclude, em sede de oposição à execução, a alegação de que a dívida exequenda é inexistente e que as facturas respectivas são falsas, por nenhum fornecimento ter sido realizado, tudo não passando de uma situação de conluio entre um dos sócios gerentes da sociedade executada e um seu filho (exequente), no intuito de prejudicarem tal sociedade, tendo até ocultado a carta de notificação para oposição à injunção, com o fim de obterem um título executivo fácil e rápido, visto os factos em questão configurarem matéria de excepção peremptória de conhecimento oficioso do tribunal, na medida em que atentam gravemente contra o princípio da boa fé.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por apenso aos autos de execução sumária para pagamento de quantia certa, fundada em título de injunção, que lhe move AA, com os sinais dos autos,

veio a executada “F..., Ld.ª”, também com os sinais dos autos,

deduzir oposição mediante embargos de executado,

peticionando a sua absolvição da execução, com cancelamento da penhora efetuada sobre o crédito que detém junto da sociedade “S..., S. A.”.

Para tanto, excecionou a inexequibilidade do título executivo, alegando, em resumo, assim:

- o Exequente é filho de um dos sócios da sociedade Executada, BB;

- o representante da sociedade executada não foi citado de qualquer ação declarativa, fosse de que género fosse;

- tendo sido enviada alguma carta de citação ou de notificação, a mesma foi retirada da caixa de correio pelo sócio BB ou pelo seu filho – ora Exequente – dado que quem residia na morada sede da sociedade era o sócio BB e quem tinha acesso à mesma era ele próprio e o Exequente;

- aquele sócio BB esconde as notificações ao outro sócio, prejudicando, assim, a sociedade, pelo que o sócio CC, faltando-lhe o conhecimento de ações em tribunal contra a sociedade, especificamente esta, não teve a hipótese de representar a sociedade para que ela pudesse exercer o contraditório;

- a sociedade executada impugna todos os factos contra si alegados, sendo que não existe, nem nunca existiu, qualquer dívida desta para com o Exequente;

- ninguém da Executada, incluindo o sócio em conflito com a sociedade, assinou qualquer contrato ou quaisquer faturas com o Exequente;

- ocorreu que o sócio BB, a fim de fazer baixar os lucros da sociedade, solicitava faturas a vários fornecedores, que nunca tinham fornecido nada, pagando apenas o respetivo IVA;

- assim aconteceu também com o Exequente, na qualidade de filho do sócio BB;

- perante a dita inexequibilidade do título, é nula a penhora efetuada sobre bens propriedade da executada, nomeadamente o referido crédito penhorado.

Foi determinada a notificação da Embargante para se pronunciar sobre a eventual inadmissibilidade da oposição e o respetivo indeferimento liminar, nos termos do disposto no art.º 732.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv., tendo a mesma tomado posição no sentido de não se verificar fundamento para tal indeferimento.

Em despacho liminar, datado de 23/10/2021, foi decidido assim na 1.ª instância: «Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art.º 732.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente os embargos de executado (…).».

Inconformada, a Embargante recorre do assim decidido, apresentando alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

«1ª O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não andou bem na interpretação e aplicação das normas jurídicas fazendo uma errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente no que concerne à interpretação e aplicação do que dispõem os seguintes artigos: 729º, 732º e 857º todos do CPC e artº 14º - A do DL nº 269/98 de 1 de setembro tendo, tal circunstância, levado a uma decisão errónea.

2ª Com o presente recurso, pretende a executada/recorrente a revogação ou reformulação da decisão proferida pela Sra. Juiz do Tribunal a quo por verificação de erro na interpretação e aplicação do direito.

3ª A ação executiva para pagamento de quantia certa de que estes autos de embargo são oposição, tem por base um requerimento de Injunção ao qual foi aposta força executória.

4ª O que está verdadeiramente em causa é saber se um simples requerimento de Injunção ao qual foi aposta uma fórmula executória por um Sr. Secretário Judicial é ou não título exequível e sendo-o, o que parece pacífico, se deve levar a que os embargos sejam liminarmente indeferidos.

5ª A questão em concreto que importa decidir é a da admissibilidade dos fundamentos de oposição à execução, nos termos previstos no artº 732º nº 1 do CPC.

6ª A executada tem dois sócios que são também seus gerentes: BB e CC. O primeiro é pai do exequente e o segundo é tio.

7ª Exequente e o seu pai, mancomunados os dois, acordaram que o exequente intentasse requerimento injuntivo contra a sociedade, dado que tinham a certeza que o outro sócio – CC, não saberia da citação da sociedade, pelo facto de o outro sócio a ter escondido e assim não haveria dedução de Oposição e obteriam facilmente um título executivo.

8ª As faturas que foram referidas no requerimento de Injunção são simuladas, dado que o exequente nunca vendeu rigorosamente nada à executada.

9ª O enquadramento jurídico deste caso passa por analisar o título executivo que dá fundamento à execução para, de seguida apreciar os fundamentos que lhe podem ser oponíveis por parte da executada.

10ª Da contextualização feita, não restam dúvidas que a executada não teve a oportunidade de deduzir Oposição, dada a estratégia montada entre o exequente e o seu pai.

Os embargos de executado seriam a única forma de a executada, depois de conhecidos os fundamentos da execução, poder deduzir a sua oposição.

11ª O indeferimento dos embargos faz com que a executada fique sem possibilidades de se defender assim se violando o princípio da confiança e do contraditório.

12ª O título dado à presente execução não é uma decisão, é um requerimento injuntivo ao qual foi aposta a fórmula executória e há, efetivamente, uma grande diferença entre o requerimento de injunção com fórmula executória, que é o caso dos autos de execução e a decisão judicial a conferir força executiva à petição.

13ª O Tribunal Constitucional concluiu que a restrição dos fundamentos de Oposição à execução baseada em requerimento de injunção com fórmula executória não pondera devidamente o direito de defesa que assiste ao executado e afeta de forma desproporcional a garantia de acesso ao direito e aos tribunais.

14ª O mesmo Tribunal alerta para o facto de que o Secretário Judicial, que apõe a fórmula executória não ser um Juiz, pois enquanto que a sentença implica o exercício de uma função jurisdicional, o mesmo já não acontece com a aposição de fórmula executória.

15ª Tendo por base estes argumentos o citado tribunal declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, o artº 814º nº 2 do CPC (atual 729º) na parte em que limita os fundamentos de oposição à execução com base em requerimento de injunção ao qual foi aposta fórmula executória, vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 388/2013 de 9 de junho, disponível em www.tribunalconstitucional.pt

16ª A decisão do Meritíssimo Juiz do tribunal “a quo” ao não permitir que a executada deduza a sua oposição por embargos, além de ser a apologia da indefesa, e a consequente inversão do princípio do contraditório é também lesivo do princípio da economia processual.

17ª Na ação executiva e suas condições, existem a exequibilidade do título e a exequibilidade da pretensão exequenda ou, o que vale o mesmo, entre exequibilidade da pretensão incorporada no título (exequibilidade extrínseca) e validade ou eficácia do ato ou negócio nele titulado (exequibilidade intrínseca). No caso sub judice entendemos que não se verifica a exequibilidade da pretensão nem a validade ou eficácia do ato ou negócio nele titulado.

18ª A douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” deverá ser revogada, dado que fez uma errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente no que concerne à interpretação e aplicação do que dispõem os seguintes artigos: 729º, 732º e 857º todos do CPC e artº 14º - A do DL nº 269/98 de 1 de setembro. Efetivamente, em nosso entender deveria ter considerado que os fundamentos da oposição, no que tange à inexequibilidade do título e à inexequibilidade da pretensão do exequente, deveriam ter sido aceites, na esteira do que dispõe o artº 729º al. a) do CPC. Nesta sequência também, não deveria o Meritíssimo Juiz do tribunal “a quo”, ter considerado haver motivo para indeferimento liminar com base no artº 732º al. b) e 857º do CPC.

Nestes termos, devem V. Ex.ias decidir pela reformulação da sentença recorrida, após a análise dos fundamentos supra elencados considerando, que a mesma fez errada interpretação e aplicação do direito e, assim,

farão V. Ex. ias a devida JUSTIÇA.».

Foi junta contra-alegação de recurso, pugnando o Recorrido pela intempestividade da apelação ou, assim não se entendendo, pela sua total improcedência.

O recurso – considerado tempestivo ([2]) – foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([3]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados ([4]). 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber:

a) Se, sendo o recurso tempestivo, o decidido indeferimento liminar dos embargos deixa a Executada/Embargante/Recorrente sem possibilidades de defesa, assim se violando o princípio da confiança e do contraditório;

b) Se ocorre (ou não) preclusão, por falta de oposição à injunção, quanto aos meios de defesa suscitados na oposição por embargos de executado, obrigando ao decretado indeferimento liminar.

III – Questão prévia

Da (in)tempestividade do recurso

O Apelado, na sua contra-alegação recursiva (cfr. as respetivas conclusões 1.ª a 4.ª), pugnou, como dito, pela intempestividade da apelação, o que não foi acolhido pela 1.ª instância, que admitiu o recurso.

E já se viu que o Relator formulou despacho inicial no sentido de o recurso ter sido “apresentado (…) tempestivamente, dentro do prazo de trinta dias a que aludem as disposições conjugadas dos art.ºs 638.º, n.º 1, e 644.º, n.º 1, al.ª a), ambos do NCPCiv., constituindo o despacho de indeferimento liminar uma decisão que põe termo à causa, por o seu efeito ser «a extinção total da instância» – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 149.”.

Posição esta com que se concorda, sendo, por isso, o recurso tempestivo.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, improcedem as conclusões do Recorrido em contrário.

IV – Fundamentação

            A) Matéria de facto

Os factos a considerar são os que resultam do antecedente relatório, a que se acrescentam os seguintes ([6]):

1. - O requerimento de injunção ostenta data de entrega de 09/12/2020 e data de aposição da fórmula executória de 03/02/2021;

2. - O valor ali pedido corresponde à quantia total de € 162.518,75, sendo € 144.000,00 a título de capital, reportando-se a invocada obrigação a diversos fornecimentos de mercadoria (maçãs), com emissão das respetivas faturas, encontrando-se por pagar o valor peticionado, com os correspondentes juros de mora;

3. - O Exequente instaurou a execução (sumária) com base naquele título de injunção, dando à execução o valor de € 167.287,45, tendo em conta os juros de mora entretanto vencidos, e pretendendo ainda juros vincendos até integral pagamento.

B) Matéria de direito

1. - Se o decidido indeferimento liminar deixa a Executada/Embargante em situação de indefesa, com violação dos princípios da confiança e do contraditório

Após o indeferimento liminar dos embargos de executado apresentados – oposição deduzida à execução sumária, fundada em título de injunção (a que foi, pois, aposta a fórmula executória) –, vem a Embargante, em recurso, invocar erro de julgamento de direito, motivo pelo qual pede a revogação da decisão em crise.

Argumenta que a «questão em concreto que importa decidir é a da admissibilidade dos fundamentos de oposição à execução, nos termos previstos no art.º 732.º n.º 1 do CPC.» (conclusão 5.ª), concretizando que «não teve a oportunidade de deduzir Oposição» (à injunção), por, tendo a Executada apenas «dois sócios que são também seus gerentes», um desses sócios ter maquinado com um seu filho (o aqui Exequente) prejudicar a sociedade, simulando uma dívida que não existe, com emissão de faturas falsas, âmbito em que aqueles (pai e filho) «acordaram que o exequente intentasse requerimento injuntivo contra a sociedade, dado que tinham a certeza que o outro sócio – CC, não saberia da citação da sociedade, pelo facto de o outro sócio a ter escondido e assim não haveria dedução de Oposição e obteriam facilmente um título executivo» (cfr. conclusões 6.ª a 10.ª).

Assim, os «embargos de executado seriam a única forma de a executada, depois de conhecidos os fundamentos da execução, poder deduzir a sua oposição», cujo indeferimento in limine lhe retira quaisquer «possibilidades de se defender assim se violando o princípio da confiança e do contraditório» (conclusões 10.ª e 11.ª).

Em visão diametralmente oposta, foi exarado na fundamentação da decisão em crise (com o aplauso do Recorrido):

«(…) a ação executiva (…) tem como título executivo um requerimento de injunção no qual foi aposta força executiva, onde é requerida a sociedade F..., Ld.ª e onde é requerente AA.

Nos termos do artigo 857.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º, aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual.”.

Assim, para além dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, o legislador permite, ainda, ao embargante, basear-se nos fundamentos previstos no n.º 2, do artigo 14.º-A, do D.L. n.º 269/98, de 1 de setembro, considerando-se, porém, precludidos os meios de defesa que poderia ter invocado em sede de oposição à injunção, quando não o fez e foi devidamente notificado para o efeito.

Ora, se atentarmos no teor do requerimento inicial de embargos, verifica-se que a embargante (sociedade) não põe em causa a regularidade da sua notificação/citação no âmbito do processo de injunção, referindo, até, que a carta de notificação foi remetida e recebida na morada correspondente à sua sede e por um dos sócios gerentes (artigo 246.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Também não põe em causa os termos da notificação para a dedução de oposição a injunção, sendo certo que os sócios-gerentes não tinham que ser notificados a título individual, por não serem os requeridos naquele procedimento.

O que a sociedade executada agora invoca, prende-se com a alegada atuação de um dos sócios gerentes – o que rececionou a carta de notificação – no sentido de prejudicar a mesma, não desenvolvendo os procedimentos que o sócio gerente que agora vem a juízo em representação da executada considera pertinentes à defesa dos seus interesses.

Esta questão não é suscetível de pôr em causa a regularidade da citação/notificação no âmbito do processo injuntivo, de molde a permitir agora a defesa que deveria ter sido exercida no âmbito daquele procedimento e não [foi], encontrando-se, por isso, precludida.

As razões expostas poderão, antes, servir de fundamento a ação a propor nos termos dos artigos 77.º e 79.º, do Código das Sociedades Comerciais, onde o gerente poderá ser responsabilizado por ter prejudicado o interesse e património da sociedade e dos sócios, indemnizando-os em conformidade com os danos causados.» (itálico e sublinhado aditados).

Que dizer?

Desde logo, dir-se-á que é certo ter a Embargante alegado, quanto ao ocorrido em sede de procedimento de injunção, pelo seguinte modo:

«21º

À imagem do que era a conduta do sócio BB e do seu filho, ora exequente, tendo sido enviada alguma carta de citação ou de notificação, a mesma foi retirada da caixa de correio pelo sócio BB ou pelo seu filho – ora exequente – dado que quem residia na morada sede da sociedade era o sócio BB e quem tinha acesso à mesma era ele próprio e o exequente.

22º

Esta situação não é a primeira, pois o sócio CC noutras ocasiões só sabia de dívidas da sociedade quando as ações já se encontravam em Tribunal.

23º

O sócio BB escondia as notificações ao outro sócio, prejudicando, assim, a sociedade.

24º

Do que vem de ser dito, resulta claramente que o sócio CC ao não ter conhecimento de ações em Tribunal contra a sociedade, especificamente esta, não teve a mínima hipótese de representar a sociedade para que ela pudesse exercer o contraditório.» (cfr. articulado de oposição à execução).

 Ora, o invocado art.º 246.º, n.º 2, do NCPCiv. ([7]), referente à citação das pessoas coletivas, dispõe que a carta referida no n.º 1 do art.º 228.º [carta registada com aviso de receção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência/domicílio, incluindo a que se refere o art.º anterior e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o faz incorrer em responsabilidade] é endereçada para a sede da citanda.

E, como visto, a Embargante admite que a carta de notificação, no quadro do procedimento injuntivo – isto é, para dedução de oposição à injunção –, foi remetida e recebida na morada correspondente à sua sede e por um dos seus sócios gerentes.

Daqui só pode concluir-se – como concluiu o Tribunal a quo – que a dita “carta de notificação”, para exercício do contraditório em sede de procedimento de injunção, chegou à sociedade destinatária, a qual, por isso, só pode ter-se por notificada.

Recebida, assim, a carta na sede da sociedade, cumpriu-se/consumou-se a notificação, a tal não obstando o alegado circunstancialismo posterior, que apenas ao foro interno dessa sociedade diz respeito.

Com efeito, se, completada a notificação, o sócio gerente não corresponde aos seus deveres para com a sociedade, tal apenas diz respeito à vida societária e à relação entre sócios gerentes e sociedade.

Uma tal conduta, consumada a notificação do ente coletivo, na pessoa de um seu sócio gerente, pode constituir este último em responsabilidade, como referido na decisão recorrida, para com a sociedade (e o outro sócio), mas em nada obsta àquela anterior notificação, nada tendo o credor ou o Balcão de Injunção a haver com uma tal situação do domínio interno da sociedade notificada, a que são inteiramente alheios.

Em suma, a notificação resultou consumada/realizada, apenas à sociedade notificada (e seus sócios gerentes) respeitando as opções/decisões (internas) posteriores, mormente a de deduzir oposição à injunção ou de não o fazer, suportando as legais consequências.

Mas, assim sendo, notificada a sociedade contra a qual foi movida a injunção, e cabendo a esta, no seu âmbito interno – que somente a si própria respeita –, decidir sobre a dedução de oposição à injunção, líquido se torna que não foi inobservado o princípio do contraditório.

A sociedade, depois de notificada para, querendo, deduzir oposição à injunção, ficou em condições de se defender, podendo deduzir oposição, pressupondo-se que dispunha de todos os meios para tal, ainda que a não dedução de tal oposição fosse imputável à conduta descrita do sócio gerente e este atuasse em prejuízo dessa sociedade.

Não sendo invocada qualquer anomalia no conteúdo da notificação, designadamente quanto ao teor do requerimento de injunção, ao prazo para oposição e às consequências da não dedução de oposição – nos moldes legalmente previstos –, mas apenas aquela posterior atuação, que em nada interfere na consumação da notificação do ente coletivo, de um sócio gerente em prejuízo da sociedade notificada, tem de concluir-se, manifestamente, pela inexistência de situação de indefesa ou, em qualquer perspetiva, de inobservância dos princípios da confiança e do contraditório, que não resultam violados.

Se violação houve, ela é posterior à notificação da sociedade e é imputável, com consequências apenas no foro interno da pessoa coletiva, ao dito sócio gerente.

2. - Se ocorre (ou não) preclusão, por falta de oposição à injunção, quanto aos invocados meios de defesa em sede de oposição por embargos

Esgrime ainda a Apelante que, no caso, não se verifica «a exequibilidade da pretensão nem a validade ou eficácia do ato ou negócio nele titulado» (conclusão 17.ª), devendo considerar-se «que os fundamentos da oposição, no que tange à inexequibilidade do título e à inexequibilidade da pretensão do exequente, deveriam ter sido aceites, na esteira do que dispõe o artº 729º al. a) do CPC.» (conclusão 18.ª).

Outro caminho seguiu, como visto, o Tribunal recorrido, ao considerar que ocorre preclusão quanto a estes meios de defesa no âmbito dos embargos, uma vez que deveriam ter sido deduzidos – e não o foram – em sede de oposição no procedimento de injunção, pelo que ficou perdida a possibilidade de os fazer valer mais tarde.

Ora, cabe dizer, quanto às formas de processo executivo, que o processo comum para pagamento de quantia certa é ordinário ou sumário (cfr. art.º 550.º, n.º 1, do NCPCiv.), empregando-se o processo sumário nas execuções baseadas em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória [vide n.º 2, al.ª b), do mesmo dispositivo legal], o que nos remete para os art.ºs 855.º e segs. do NCPCiv., os respeitantes ao dito processo sumário.

Assim, quanto aos atuais fundamentos de oposição à execução baseada em requerimento/título de injunção, rege o art.º 857.º do NCPCiv. – na redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, com entrada em vigor em 01/01/2020 ([8]), a aplicável ao caso, visto o requerimento de injunção em discussão ter data de entrega posterior (apresentação em 09/12/2020) – e não diretamente os art.ºs 729.º a 731.º do mesmo Cód., por referentes ao processo ordinário.

E é seguro que aquela Lei n.º 117/2019, no seu art.º 6.º, veio alterar o art.º 13.º do «regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual», passando a contemplar, quanto ao conteúdo e efeito das notificações em procedimento de injunção [art.º 13.º, n.º 1, al.ª b)]:

«b) A indicação do prazo para a oposição e a respetiva forma de contagem, bem como da preclusão resultante da falta de tempestiva dedução de oposição, nos termos previstos no artigo 14.º-A;» ([9]).

E o aditado art.º 14.º-A (aditamento pelo art.º 7.º da mesma Lei n.º 117/2019) veio dispor assim:

«Artigo 14.º-A

Efeito cominatório da falta de dedução da oposição

1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:

a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;

b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;

c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;

d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.» (destaques aditados).

Assim, à luz deste dispositivo legal – e do art.º 857.º, n.º 1, do NCPCiv., que para este regime normativo remete –, não ocorre preclusão quanto à alegação/meio de defesa do uso indevido do procedimento de injunção ou, do mesmo modo, quanto a alguma exceção perentória que fosse invocável na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.

Ora, a sociedade Embargante veio alegar matéria fáctica que visa consubstanciar, de algum modo, um uso abusivo/censurável do procedimento de injunção.

Com efeito, ao invocar que o Requerente do procedimento de injunção, conluiado com o seu pai, um dos sócios gerentes da Executada/Opoente – este que (alegadamente) recebeu a notificação e a ocultou à sociedade –, engendrou um esquema de faturas falsas, para titular uma dívida inexistente, que visou cobrar de quem nada lhe devia (a sociedade) através do procedimento de injunção, a que a visada não pôde opor-se por, assim conluiado, o sócio gerente referido a tal ter obstado (escondendo a carta de notificação), no sentido da obtenção fácil e rápida de título executivo referente a montante pecuniário consideravelmente elevado, tal pode configurar um uso abusivo, claramente ilícito e, assim, censurável/reprovável do procedimento de injunção.

Porém, é de admitir e acolher uma interpretação – menos ampla – no sentido de o «uso indevido do procedimento de injunção» ser reservado a outra tipologia de casos, as situações de “ausência das condições de natureza substantiva que a lei impõe para a decretar” ([10]), quando, pois, não estão verificados os pressupostos de que a lei faz depender o acesso/recurso à injunção (atendendo, designadamente, ao tipo de contrato/transações comerciais e de obrigação cujo cumprimento se pretende).

Isto é, o «uso indevido do procedimento de injunção» não se reporta a um uso abusivo/censurável do procedimento, mas a uma utilização processualmente inadequada, por não estarem verificados os pressupostos legais de adoção do procedimento injuntivo ([11]) ([12]), como, por exemplo, no caso de se pretender a cobrança de uma obrigação decorrente de responsabilidade civil (logo, indemnizatória), em vez de uma dívida (“obrigação pecuniária”) diretamente emergente de um contrato ([13]).

Pode até defender-se que neste sentido interpretativo milita a circunstância, em termos literais, de na mesma alínea da lei se contemplar, para além daquele «uso indevido do procedimento de injunção», a «ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso» (itálico aditado), o que parece reconduzir o conjunto para o campo dos pressupostos legais/processuais, aqueles que dão causa à absolvição da instância, em vez de questões substantivas, que já se prendem com o mérito da causa.

Ora, a questão aludida que a Recorrente levanta é, inegavelmente, uma questão com dimensão substantiva, que se prende, desde logo, com a (in)existência do direito de crédito invocado.

Resta, então, a previsão normativa do aludido art.º 14.º-A, n.º 2, al.ª d), que se reporta, como dito, a qualquer exceção perentória que fosse invocável na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.

Ora, é patente que a materialidade fáctica alegada – aquela a que se vem fazendo referência – é suscetível de configurar exceção perentória (de direito material) que poderia ter sido invocada em sede de oposição à injunção.

E também se trata de matéria que o tribunal pode conhecer oficiosamente, uma vez que a conduta descrita do aludido sócio gerente, conluiado com o seu filho (Exequente), é claramente, a provar-se, lesiva para a sociedade e atentatória das mais elementares exigências da boa-fé objetiva, que postula um padrão de conduta, nas relações contratuais e interpessoais – maxime, no exercício de posições jurídicas –, marcado pela lealdade, correção e honestidade, bem como pela transparência e proporcionalidade, vedando comportamentos de deliberado e desnecessário sacrifício dos interesses legítimos de outrem ([14]).

Obviamente, a imputada conduta do Exequente e de seu pai, este último um dos sócios gerentes da Executada/Embargante, configurará, a resultar provada, um uso claramente reprovável do procedimento de injunção, manifestamente lesivo e, como tal, censurável e violador do princípio da boa-fé, matéria esta de conhecimento oficioso do tribunal, sabido ainda que este é livre na indagação, interpretação e aplicação do direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.).

Assim, salvo o devido respeito, está preenchido, in casu, o requisito «qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente», ficando vedada, pois, a preclusão deste fundamento de oposição à execução.

Assim sendo, por não ocorrer, nesta parte, salvo o devido respeito, a dita preclusão, deveriam os autos ter prosseguido para que a Embargante pudesse exercer, neste alegado âmbito, o seu direito de defesa.

Em suma, os autos, em vez do aludido indeferimento liminar total, deverão prosseguir, se a tal nada mais obstar, para apuramento desta matéria alegada, que não é objeto de preclusão.

Donde que tenha de conferir-se razão, nesta perspetiva, à aqui Recorrente, devendo revogar-se, em consonância, a decisão recorrida, para que os autos de embargos prossigam em conformidade, neste âmbito alegado.

Procede, pois, a apelação.

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(…)
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VI – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, para que os autos de embargos prossigam os seus legais termos – se a tal nada mais obstar –, para apuramento/decisão quanto à matéria alegada referente ao meio de defesa não precludido, nos moldes supra explanados.

Custas da apelação a cargo do Embargado/Apelado.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 17/03/2022

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Que se deixam transcritas.
([2]) Foi entendido ser aplicável o disposto no art.º 644.º, n.º 1, al. a), do NCPCiv., tratando-se «de um recurso de decisão de indeferimento liminar dos embargos deduzidos e não, como defende a parte contrária, decisão de não admissão de um articulado nos autos».
([3]) Com subida imediata, nos próprios autos de embargos e efeito meramente devolutivo.
([4]) O Relator, por despacho de 07/03/2022, entendeu que, “Contrariamente ao invocado pelo Recorrido, o recurso foi apresentado – como também vincado pelo Tribunal a quo no seu despacho de admissão – tempestivamente, dentro do prazo de trinta dias a que aludem as disposições conjugadas dos art.ºs 638.º, n.º 1, e 644.º, n.º 1, al.ª a), ambos do NCPCiv., constituindo o despacho de indeferimento liminar uma decisão que põe termo à causa, por o seu efeito ser «a extinção total da instância» – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 149.”.
([5]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([6]) Extraídos da certidão judicial junta pela 1.ª instância em 25/02/2022.
([7]) Aplicável ao procedimento de injunção ex vi art.º 12.º, n.º 2, do Anexo ao DLei n.º 269/98, de 01-09 (e ao processo executivo por força do disposto no art.º 551.º, n.º 1, NCPCiv.).
([8]) Cfr. art.º 15.º daquela Lei n.º 117/2019, dispondo que «A presente lei entra em vigor em 1 de janeiro de 2020».
([9]) Preocupações notificatórias estas (designadamente quanto a questões de preclusão e de indefesa) que não são alheias à anterior e reiterada jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC) em matéria de procedimento de injunção e ulterior execução (relativamente a limitações legais aos fundamentos de oposição à execução), com diversas decisões de inconstitucionalidade, duas delas com força obrigatória geral.
Assim, primeiramente foi proferido, com força obrigatória geral, o Ac. TC n.º 388/2013, de 09/07/2013, publicado no D. R., I Série, de 24/09/2013, declarando “a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 814.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), na redacção do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro, quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta a fórmula executória, por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da constituição”.
E, depois, já perante nova formulação legal, foi proferido o Ac. TC n.º 264/2015, de 12/05/2015, em D. R., I Série, de 08/06/2015, que veio declarar a inconstitucionalidade, também com força obrigatória geral, do art.º 857.º, n.º 1, do NCPCiv., aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, nos seguintes termos:
«(…) decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 857.º, n.º 1 (…), quando interpretada "no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta a fórmula executória", por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.».
Ainda sobre a matéria (com perspetiva evolutiva), cfr., entre outros, o Ac. TRP de 10/02/2020, Proc. 4013/07.3YYPRT-A.P1 (Rel. Fernanda Almeida), em www.dgsi.pt.
([10]) Cfr. Ac. TRL de 23/11/2021, Proc. 88236/19.0YIPRT.L1-7 (Rel. Edgar Taborda Lopes), em www.dgsi.pt.
([11]) Situação que pode ser perspetivada como de erro na forma de processo – cfr., inter alia, o Ac. TRL de 28/10/2021, Proc. 68890/20.YIPRT.L1-8 (Rel. Carla Mendes), em www.dgsi.pt – ou como exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso [vide, sobre a matéria, entre outros, o Ac. TRL de 25/05/2021, Proc. 37398/20.6YIPRT.L1-7 (Rel. Diogo Ravara), também em www.dgsi.pt].
([12]) Veja-se ainda o Ac. TRL de 05/02/2019, Proc. 70173/17.5YIPRT.L1-7 (Rel. José Capacete), também em www.dgsi.pt, significando que «aferir se o procedimento injuntivo constitui o meio processual adequado com vista ao pagamento coercivo da concreta quantia nele indicada» se reporta à «questão da propriedade ou impropriedade da forma do processo utilizada».
([13]) Cfr., entre outros, o Ac. TRL de 25/05/2021, Proc. 113862/19.2YIPRT.L1-7 (Rel. Cristina Coelho), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «Só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil». Neste âmbito, ali se considerou que a situação era de erro na forma de processo.
([14]) Como dito no Ac. TRC de 20/06/2017, Proc. 96/14.8TBSRE.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt (subscrito por este mesmo coletivo), «o princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé, a qual deve estar presente no âmbito das tarefas valorativas e aplicativas aos casos concretos, tendo em conta a natureza e função económico-social do contrato a que se visa aplicar e da relação jurídica estabelecida entre as partes».