Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
128/03.5TACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA PENA
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
SENTENÇA CONDENATÓRIA
REGISTO CRIMINAL
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 40ºE 58ºDO CP E 17.º DA LEI N.º 57/98, DE 18 DE AGOSTO.
Sumário: Para efeitos da não transcrição da sentença condenatória conforme o disposto no artigo 17º da Lei nº17/98 de 18/08 o que releva é a pena de substituição aplicada.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. Após haver sido condenado na pena única de quinze meses de prisão, substituída por quatrocentas e cinquenta horas de trabalho a favor da comunidade, porquanto autor, em concurso real de infracções, de um crime de insolvência negligente, previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, do Código Penal (pena de oito meses de prisão), e, de um crime de favorecimento de credores, previsto e punido pelo artigo 229.º, n.º 1, do mesmo diploma (pena de onze meses de prisão), mostrando-se em cumprimento de tal pena, requereu o arguido M. já devidamente identificado nos autos, e com fundamento ao estatuído pelo artigo 17.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, a não transcrição da sentença que assim o punira nos certificados a que se referem os artigos 11.º e 12.º do mesmo diploma (cfr. requerimento ora certificado a fls. 49/51)
Sobre tal pretensão recaiu despacho (vd. fls. 67/8) denegando o requerido, isto no entendimento essencial de que “a condenação do arguido foi numa pena de 15 meses de prisão, que foi substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade e não numa pena não privativa da liberdade, como defende o arguido.
1.2. Desavindo com o teor do assim decidido, recorre o dito arguido, extraindo do requerimento de interposição da impugnação, a seguinte ordem de conclusões:
1.2.1. Após a respectiva condenação, o ora arguido requereu a emissão de um registo criminal para efeitos de exercício de actividade profissional no Estrangeiro e constatou que tal condenação se encontra transcrita no mesmo.
1.2.2. Esta transcrição acarreta-lhe avultados prejuízos, nomeadamente por obstar à obtenção dos necessários vistos para se deslocar a Angola, país onde desenvolve a sua actividade.
1.2.3. Nos termos legais (artigo 17.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto), para que seja determinada a não transcrição para o registo criminal é necessária a observância de dois requisitos: a condenação do arguido em pena não privativa da liberdade e que não se possa induzir, das circunstâncias que acompanharam o crime, o perigo de prática de novos crimes.
1.2.4. No despacho ora sindicado, o Tribunal a quo sustentou o indeferimento da pretensão do recorrente no primeiro dos pressupostos, sustentando que o arguido foi condenado em pena privativa da liberdade superior a um ano.
1.2.5. Sucede que ao considerar a pena de prisão – em detrimento da pena de substituição efectivamente aplicada – para efeitos de não transcrição no registo criminal, o M.mo. Juiz a quo fez tábua rasa dos fundamentos que presidiram à substituição, olvidando as razões que tomaram ingente a aplicação de pena não privativa de liberdade.
1.2.6. Pelo que a pena a tomar em consideração terá de ser a pena de trabalho a favor da comunidade – a efectivamente aplicada ao recorrente.
1.2.7. Acaso assim se não sufrague, a decisão em recurso surgirá em clara colisão com aquela inserta na sentença condenatória que considerou adequada e suficiente a condenação do ora recorrente numa pena não privativa da liberdade.
1.2.8. De facto, a partir do momento em que se procede à substituição da pena de prisão pela pena de trabalho a favor da comunidade, esta passa a ser a única a considerar, no que respeita a todos os efeitos e consequências associados à condenação.
1.2.9. Por outro lado, no que concerne ao segundo requisito contido no encimado artigo 17.º da Lei n.º 57/98, já o despacho recorrido se mostra totalmente omisso.
1.2.10. O aqui recorrente sempre procurou pautar a sua vivência por critérios de verticalidade ética, moral e social, designadamente no meio socioprofissional onde se insere, bem como na sua vida particular.
1.2.11. De acordo com o disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, no qual se alicerça o apontado artigo 17.º, “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”
1.2.12. Apesar de o efeito ressocializador da pena ter sido logrado de forma imediata, certo é que se continuam a fazer sentir efeitos reflexos dessa mesma condenação, que obstam a uma plena integração na sociedade, nomeadamente limitando as oportunidades profissionais do ora recorrente.
1.2.13. Decidindo pela forma em que o fez, o despacho recorrido violou, pois, o disposto nos referidos artigos 17.º e 40.º, n.º 1.
Terminou pedindo a revogação do despacho em causa, e sua substituição por outro que anuindo ao peticionado determine, então, o cancelamento da transcrição da referida decisão condenatória no certificado de registo criminal do arguido.
1.3. Cumprido o estatuído pelo artigo 411.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público, sustentando o improvimento da impugnação.
1.4. Proferido despacho da sua admissão, e depois de devidamente instruído, foram os autos remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico improvimento.
1.6. Dado acatamento ao disposto pelo artigo 417.º, n.º 2, do mencionado diploma adjectivo penal, nenhuma réplica se mostra oferecida.
1.7. No exame preliminar a que alude o n.º 6 do último inciso legal, consignou-se não ocorrerem pressupostos determinantes à rejeição do recurso, e, nada obstando ao seu conhecimento de meritis, colhidos os vistos devidos, deverem os autos ser submetidos à presente conferência.
Urge, então, ponderar e decidir.
*
II – Fundamentação.
2.1. Mostra-se pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, in Código de Processo Penal, II, 2.ª edição, Editorial Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ, de 24 de Março de 1999, in Colectânea de Jurisprudência (STJ), ano VII, tomo I, pág. 247. no sentido em que o âmbito do recurso se define através das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo, todavia, das questões de conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1; 123.º, n.º 2; 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), todos do CPP, e Ac. para fixação de jurisprudência de 19 de Outubro de 1995, publicado sob o n.º 7/95, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28 de Dezembro de 1995..
In casu, percorrendo as ofertadas pelo recorrente, resulta centrar-se o thema decidendum na questão de aquilatarmos se mal andou o despacho sindicado ao denegar a sua pretensão, desde logo, como sufragou, por inobservância ao primeiro dos pressupostos elencados no aludido artigo 17.º, n.º 1.
Vejamos:
2.2. Preceitua o normativo em causa que: “Os tribunais que condenem em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharem o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os art.ºs 11.º e 12.º deste diploma.”
Isto é, dois são os pressupostos conducentes ao deferimento da faculdade concedida por tal normativo: primeiro, não se mostrar o arguido condenado em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade; segundo, das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes.
Atenta a tese sufragada relativamente ao primeiro deles, o Tribunal a quo sequer ponderou da (in) verificação do segundo.
E, posição aquela sustentada no entendimento de que, para os efeitos em causa, deve prevalecer a pena principal aplicada ao arguido na sentença que o condenou nos autos – pena única de 15 meses de prisão –.
Ressalvado o devido respeito, não colhe tal entendimento.
Na verdade, o nó górdio da solução há-de buscar-se na natureza a atribuir às penas de substituição (aplicada no caso e correspondente a 450 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, relembra-se), e, nessa perspectiva, distinta será a sorte da lide.
A propósito, deixemos discorrer o Prof. Figueiredo Dias In Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, §s 8; 79 e 80., nomeadamente quando escreveu:
O estudo institucional das penas abrange as penas principais (a pena privativa da liberdade ou pena de prisão e a pena pecuniária de multa) e as penas acessórias (isto é, aquelas que não podem ser cominadas na sentença condenatória sem que simultâneamente tenha sido aplicada uma pena principal).
(…)
Com as mencionadas penas principais e acessórias não se esgota, porém, o catálogo das penas, havendo que considerar ainda os institutos (…), das chamadas penas de substituição.
Nelas se trata de penas que são concretamente aplicadas em vez das penas principais legalmente previstas para os crimes da PE do CP (maxime, das penas de prisão).”
Ensaiando precisar a determinação conceptual que a tais tipos de pena se deve atribuir, inicialmente arrimada à sua restrita e dupla consideração enquanto penas principais ou penas acessórias, prossegue o mesmo Autor:
Parece todavia, (…), que o nosso CP recebeu um conceito diferente e mais amplo de penas principais, abrangendo (…), para além das penas de prisão e das de multa, a suspensão da execução da pena, o regime de prova, a admoestação e a prestação de trabalho a favor da comunidade.
(…)
A uma visão mais próxima deve, no entanto, acabar por concluir-se não ter sido intenção nem do ProjPG de 1963, nem do CP, contestar por esta via os critérios definitórios das penas principais que começámos por apresentar. Antes sim chamar, por este modo, a atenção para que, segundo o seu pensamento político-criminal, também as «novas» penas, diferentes da de prisão e multa, são «verdadeiras penas» – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (art.º 72.º) –, que não meros «institutos especiais de execução da pena de prisão» ou, ainda menos, «medidas de pura terapêutica social». E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena.”
O que sucede é que estas outras penas não relevam tanto da divisão entre penas principais e penas acessórias, quanto conformam uma categoria nova, com o seu sentido e a sua teleologia próprias: a categoria das penas de substituição. Penas estas que, podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas, radicam, todavia, tanto histórica como teleologicamente, no (…) movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas da liberdade, nomeadamente de penas curtas de prisão. Estas penas de substituição, se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador as não previu expressamente nos tipos de crime), não são obviamente penas acessórias: não só porque estas se assumem num enquadramento histórico e teleológico que nada tem a ver com o das penas de substituição (…), como porque uma coisa são as penas que só podem ser fixadas conjuntamente com uma pena principal (como é o caso das penas acessórias), outra diferente as penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição).”
A decisão condenatória sufragou dever aplicar-se ao arguido a pena única de 15 meses de prisão. Acto contínuo, discorrendo no sentido em que dos autos emergia porém prova conducente à salvaguarda das necessidades de prevenção geral e especial, mesmo que lhe fosse aplicada uma pena de substituição, acabou por lhe impor a mencionada prestação de trabalho a favor da comunidade.
Ora, atento o acima transcrito do Mestre de Coimbra, olvidar agora que esta é a pena aplicada em vez da primitiva seria diminuir o alcance da pena que se entendeu ser a adequada e proporcionada aos fins que a reacção criminal deve sempre comportar.
Menosprezar os efeitos que da substituição operada podem decorrer redundaria em “fraude” que o legislador não pode tolerar.
Seja, a aludida conclusão de que com tal fundamento não poderia/deveria ter sido indeferido o requerido pelo arguido.
Vimos antes que o despacho recorrido sequer sopesou da eventual (in) verificação do segundo dos pressupostos exigíveis. Cabe suprir tal omissão, ao menos de forma a salvaguardar o exercício do contraditório relativamente à posição que se considerar ser de sufragar.
Vale por dizer, da necessidade de remessa dos autos à 1.ª instância, a fim de que aprecie o requerimento do arguido a esta nova luz.
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III – Decisão.
São termos em que no provimento do recurso, se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que considerando verificado o primeiro dos pressupostos elencados no citado artigo 17.º, n.º 1, pondere da verificação ou inverificação do segundo deles (das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática pelo arguido de novos crimes).
Sem custas.
Notifique.
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Coimbra, 29 de Setembro de 2010

Brízida Martins (Relator)
Orlando Gonçalves