Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3261/14.4TBLRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
APREENSÃO
VENCIMENTO
INSOLVENTE
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 46º, Nº 2 DO CIRE; 738º DO CPC.
Sumário: I – Após a declaração de insolvência, e até ao encerramento da liquidação do ativo, podem ser apreendidos para integração na massa insolvente um terço dos vencimentos a auferir pelo insolvente, mas apenas na medida em que esse terço, líquido de taxas e impostos, não seja inferior ao salário mínimo nacional: art. 46º, nº 2 do CIRE e art. 738º, nº 1, 2 e 3 do CPC.

II - Não obstante, a requerimento do insolvente, essa parte do vencimento pode ainda vir a ser declarada isenta de apreensão, ou reduzido o seu montante, nos termos do nº 6 do art. 738º do CPC.

III - Mesmo no âmbito da apreensão dessa parte de vencimento para a massa insolvente, a ponderação a que alude o art. 738º, nº 6 do CPC poderá/deverá ser suscitada e efetuada a todo o tempo, na medida em que se alterem as circunstâncias de facto, implicando então uma nova decisão.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            Após a declaração de insolvência de C… e S…, o credor A…, SA requereu a apreensão de um terço do seu vencimento em benefício da massa insolvente durante a fase da liquidação.

                Após exercício do contraditório, o M.mº Juiz proferiu decisão ordenando a pretendida apreensão.

2.            Inconformados, dela vêm apelar os Insolventes, de acordo com as seguintes CONCLUSÕES:

3.            O credor Recorrido não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         É o seguinte o teor da decisão recorrida:

«A A…, SA veio requerer a apreensão de 1/3 do vencimento dos insolventes em benefício da massa insolvente durante a fase da liquidação.

Os insolventes opuseram-se, alegando que a apreensão dos rendimentos de trabalho não são susceptíveis de apreensão.

Alegam ainda que têm dois filhos ao seu encargo, nomeadamente um de 23 anos que padece de deficiências que o obrigam a um cuidado e despesas constantes e apenas com os seus rendimentos poderá ser cumprida.

Na eventualidade de assim não se entender, requerem o montante seja reduzido a 1/6.

Decidindo:

A questão que se coloca antes de mais é saber se é ou não possível a apreensão dos rendimentos auferidos pelos insolventes após a sua declaração de insolvência.

A jurisprudência encontra-se dividida. No sentido de que não é possível temos entre outros - os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 24/10/06, 6/3/07, e da Relação do Porto, 25/1/11, de 26/3/09 e de 23/3/09, Ac. da RL de 16/11/10 todos disponíveis in www.dgsi.pt).

Em sentido contrário, isto é, da susceptibilidade de apreensão para a massa insolvente da parte penhorável dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, decidiram, entre outros ( os Acs. do STJ de 15.3.2007, 30.6.2011, os Acs. da RL de 29.7.2010, de 15.11.2011, de 15.11.2011, de 15.12.2011 e os Acs. da RG de 12.7.2006, de 14.9.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Nós aderimos a esta última posição.

Vejamos porquê.

De acordo com o artº 1º do CIRE o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Nos termos do art. 46º, nº 1 do CIRE a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.

E de harmonia com o nº 2 os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.

Resulta, assim, do normativo citado que a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. A massa insolvente é, por isso, o conjunto de bens actuais e futuros do devedor, os quais, a partir da declaração de insolvência, formam um património separado, adstrito à satisfação dos interesses dos credores.

Para além disso, no âmbito do processo de insolvência vigora o princípio de que todos os bens que o insolvente for adquirindo após a declaração de insolvência até ao encerramento do processo (isto é, os bens futuros) revertem para a massa insolvente, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do administrador da insolvência (automatismo este que é determinado pelo carácter universal do processo de insolvência).

A identificação dos bens do insolvente que integram a massa insolvente resulta da aplicação de três preceitos fundamentais, a saber: o art. 601° do CCivil, o art. 46°, n° 2, do CIRE e o art. 735° do CPCivil, que veiculam a mesma ideia.

Assim, o art. 601.° Do CCivil consagra o princípio de que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora.

O art. 735°, n° 1, do CPCivil, refere que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela divida exequenda e, por força do princípio de que todo o património do devedor responde pelas suas dívidas, são penhoráveis não só os bens imóveis (art. 755.° do CPCivil), como também os bens móveis (art. 764° do CPCivil) e os direitos (art. 773.° do CPCivil).

Não obstante a universalidade do processo insolvencial, existem bens absoluta (art. 736° do CPCivil) ou relativamente (art. 737° do CPCivil) impenhoráveis, por um lado, assim como existem bens total ou parcialmente impenhoráveis (art. 737° do CPCivil)( Maria do Rosário Epifânio, Manuel de Direito da Insolvência, pág. 209 e ss).

Aos bens absoluta ou total impenhoráveis refere-se o art. 736º ou seja, aqueles que em nenhuma circunstancia podem ser penhorados. Inclui o preceito não só casos de impenhorabilidade substancial como de impenhorabilidade processual: aos primeiros aludem o proémio e as alíneas a) e b); aos segundos as restantes alíneas.

Refere-se o art. 737.° aos bens relativamente impenhoráveis, ou seja, aqueles que só podem ser penhorados em determinadas circunstâncias ou para pagamento de certas dívidas.

No n° 1 do art. 737.°, contempla-se um caso de impenhorabilidade substancial, enquanto no n° 2 do mesmo preceito se prevê uma hipótese de impenhorabilidade processual.

Os bens parcialmente penhoráveis, ou sejam, aqueles que só podem ser penhorados em parte, encontram-se mencionados no art. 738.°.

A razão desta impenhorabilidade parcial baseia-se em razões que se prendem com a dignidade da pessoa humana, decorrente do princípio do Estado de Direito, vertidos nas disposições conjugadas dos arts. 1º, 59º, nº 2, al. a) e 63º, nº 1 e 3 da CRP. Assim, não podem ser penhorados dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a titulo de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado (738º, nº 1 do CPC).

A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

Por outro lado, da análise do normativo citado (art. 46º) decorre, a nosso ver, e com o devido respeito por opinião contrária, que se excluem da massa insolvente apenas os bens absoluta ou relativamente impenhoráveis, salvo se foram voluntariamente oferecidos pelo devedor.

O que significa como se refere no Ac. do STJ de 30/06/11 in www.dgsi. “que os bens penhoráveis integram a massa insolvente. Ora, a parte penhorável de um vencimento não é um bem relativamente impenhorável. É um bem penhorável. A qualificação de um bem como relativamente impenhorável não resulta apenas da natureza do mesmo bem, como pretende a Relação, mas desta conjugada com uma sua quota. Daqui decorre que, atendendo a que a impenhorabilidade relativa de um vencimento é de 2 terços - art.º 824º nº 1 do C. P. Civil (actual 738º, nº 1 do CPC) - é a esta parte que se refere o nº 2 do citado art.º 46º. E só integrará a massa insolvente se o insolvente quiser. O restante é um bem penhorável que deve obrigatoriamente fazer parte da referida massa, conforme o nº 1 do art.º 46º. Aliás, é esclarecedora a expressão utilizada pelo legislador a fazer a dita ressalva no citado nº 2: os bens isentos de penhora”.

No sentido exposto vide ainda Ac. do STJ de 15 de Março de 2007, in CJ, Tomo I que no seu sumário refere I - os rendimentos do trabalho do falido podem ser apreendidos no processo de falência. II – Porém, a parte dos rendimentos do trabalho do falido que se revele indispensável à sua subsistência permanece intocável, só integrando a massa falida a parte excedente, competindo ao juiz, quanto a esta e em cada caso concreto, determinar, de acordo com a equidade, o quantum sujeito a apreensão.

Refira-se ainda como se refere no Ac. da RL de 20/03/12 in www.dgsi.pt que a não ser possível a apreensão do vencimento do insolvente, este ficaria em injustificada vantagem patrimonial em relação ao executado. O processo de insolvência constituiria a solução para o devedor se eximir ao pagamento aos credores através dos rendimentos do seu trabalho, sem prejuízo e com o benefício do recurso à figura da exoneração do passivo restante.

Assim, entendemos que é possível a apreensão de 1/3 do vencimento dos insolventes até ao encerramento do processo.

Vejamos agora a situação sócio-económica dos insolventes.

Da prova documental junta aos autos, está provado com interesse para a presente decisão que:

- o devedor aufere mensalmente líquidos entre €1.276,41 e €1.360,01;

- a devedora recebe mensalmente líquidos entre €549,22 e €570,07;

- os devedores têm 2 filhos:

- F…, nascido a 15.04.1990;

- L…, nascido a 31.05.2005;

- F… é portador de um grau de incapacidade permanente global de 75%.

- os devedores indicaram o valor das despesas mensais em €1.408,58.

- o AJ reconheceu créditos no montante de €137.416,96;

O vencimento da devedora mulher não pode ser objecto de apreensão de 1/3 na medida em que ele ultrapassa pouco mais o salário mínimo nacional que actualmente se cifra em €505,00 (Decreto-Lei n.º 144/2014 de 30 de Setembro).

Mas o mesmo já não ocorrerá relativamente ao vencimento do devedor marido.

Na verdade, se deduzirmos 1/3 ao vencimento do devedor marido constatamos que este fica com um valor mensal entre €850,94 e €906,68. O agregado familiar fica assim com um montante mensal de cerca de €1400,16 nos meses em que recebe €1.276,41 e a esposa €549,22 porque nos meses em que recebe um pouco mais fica com um montante superior aos €1400,16. Os requerentes vieram alegar que gastavam em média mensalmente €1408,58. Assim, o valor com que ficam mensalmente, depois de deduzido 1/3, bastante aproximado do montante das despesas que têm mensalmente e que em alguns meses é até superior nomeadamente quando o insolvente marido recebe um valor superior a €1.276,41 e insolvente mulher um vencimento superior a €549,22, é suficiente para fazer face a todas as despesas do agregado familiar e acautela o sustento minimamente digno dos insolventes e do seu agregado familiar.

É manifesto que tal montante vai implicar para os devedores e para a sua família uma vida com mais privações, porém, não podemos esquecer que essa é a situação em que se encontram muitos dos portugueses, que vivem exclusivamente do rendimento correspondente ao salário mínimo nacional, sem contar com aqueles que vivem com quantia inferior, como sejam os que vivem do rendimento social de inserção.

O sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder ao sacrifício dos insolventes, tendo como limite uma vivência minimamente condigna e que implica obviamente uma redução forçada e uma limitação dos gastos e que assegure igualmente as necessidades do agregado familiar dos insolventes.

Na verdade, em resultado da supra referida contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, e por forma a se encontrar um equilíbrio entre os dois interesses contrapostos, necessário se torna o empenho e o sacrifício dos insolventes no sentido de comprimirem ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário.

Pelo exposto, defiro o requerido e determino a apreensão a favor da massa de 1/3 do vencimento do insolvente.»

                5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 635º nº 3 e 4, 639º nº 1, 640º nº 1 e 608º n.º 2, ex vi do art. 663º nº 2, todos do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

QUESTÃO A DECIDIR: do bem ou mal fundado da apreensão a favor da massa falida de 1/3 do vencimento do Insolvente marido.

5.1.         APREENSÃO VENCIMENTO

Tendo por pressuposto a incapacidade económico-financeira para cumprir as suas obrigações, o processo de insolvência destina-se a liquidar o património do devedor e repartir o produto obtido pelos diversos credores: art. 1º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE).

                Sobre o conceito de massa insolvente, colhe-se do art. 46º nº 1 do CIRE que ela “abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.

                Porque estamos no domínio de situações de cariz económico, no âmbito da insolvência o conceito de património do devedor deve ser entendido como formado pelo conjunto de todos os bens (materiais e imateriais) de que ele é proprietário e que sejam suscetíveis de avaliação pecuniária, bem como dos direitos de crédito e outros de conteúdo patrimonial.

                Resulta também expressamente do preceito que a lei entendeu incluir na massa insolvente não só os bens e direitos existentes à data da declaração de insolvência, mas também todos aqueles que o devedor “adquira na pendência do processo”.

Ora, por regra, o processo está pendente até ao momento da liquidação e rateio final, ou seja, quando se opera a liquidação do património e se distribui o produto pelos credores: art. 230º nº 1 al. a) e art. 182º do CIRE. [[1]]

                Já o nº 2 desse art. 46º restringe, delimita negativamente os bens e direitos que integram a massa insolvente, estabelecendo não poderem ser integrados na massa insolvente os bens e direitos isentos de penhora, a não ser que o devedor os entregue voluntariamente e desde que não sejam absolutamente impenhoráveis.

                Neste ponto, temos então de tomar em linha de conta com as regras da (im)penhorabilidade dos bens constantes de outros diplomas, o CPC e o Código Civil (de futuro, apenas CC).

                Do art. 735º nº 1 do CPC extrai-se serem “sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora (…), nos termos da lei substantiva, (…)”.

                Já o art. 601º do CC refere como princípio geral que pelas dívidas respondem “todos os bens do devedor suscetíveis de penhora”.

                Porém, a própria lei substantiva estabelece desvios a esta regra da impenhorabilidade, como é o caso exemplificativo do crédito de alimentos (art. 2008º CC).

                É a este tipo de bens (e outros constantes de lei especial) que se deve entender a referência a bens isentos de penhora constante do nº 1 do art. 736º do CPC.

                Para além dos bens isentos de penhora, há que contar com os absoluta, relativa e parcialmente impenhoráveis, descritos nos arts. 736º, 737º e 738º do CPC.

                Ora, aqui se consigna como impenhoráveis dois terços “da parte líquida dos vencimentos”, deduzidos dos “descontos legalmente obrigatórios” e, tendo “como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais (…) e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”: art. 738º nº 1, 2 e 3 do CPC.

                Portanto, a contrario, temos que é penhorável o montante equivalente a um terço da parte líquida (após descontos obrigatórios) dos vencimentos, nas seguintes circunstâncias:

· que esse terço seja superior ao salário mínimo nacional;

· ou quando, ainda que inferior ao salário mínimo nacional, desde que o executado tenha outros rendimentos.

Regressando então à matéria da insolvência.

Não merecem dúvidas que o vencimento de um trabalhador, na medida em que reportado à quantia a auferir em cada um dos meses futuros, constitui um direito de crédito.

Assim, os vencimentos que forem auferidos na pendência do processo de insolvência integram a massa insolvente, por força do art. 46º nº 1 do CIRE.

Porém, há que atender à restrição imposta pelo nº 2 deste mesmo preceito: os vencimentos a auferir após a declaração de insolvência e até ao encerramento da liquidação do ativo só podem ser integrados na massa insolvente na proporção de um terço, e desde que esse terço, líquido de taxas e impostos, não seja inferior ao salário mínimo nacional. [[2]]

Existe, portanto, um termo final e daí que não colha o argumento de que a apreensão do vencimento importaria uma pendência do processo ad eternum, consignando-se expressamente no art. 182º nº 1 do CIRE que “o encerramento da liquidação não é prejudicado pela circunstância de a atividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa”.

Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, «Ora, a disposição da parte final do nº 1 deste art. 182º vem, precisamente, excluir a possibilidade de a liquidação se manter aberta apenas e só pela expetativa dos rendimentos gerados pela atividade do insolvente.

Trata-se, como está bem de ver, de uma medida que visa obstar à eternização dos processos de insolvência, numa altura em que o património do devedor (apreendido para a massa insolvente) se encontra já totalmente liquidado.». [[3]] (negrito nosso)

Neste âmbito, aliás, cremos que quer o juiz, quer o administrador, devem estar atentos aos prazos legalmente consignados e proceder ao cancelamento da apreensão do vencimento do insolvente logo que decorridos os prazos legalmente consignados, sob pena de se estar a fazer recair sobre o insolvente as consequências da inoperacionalidade da justiça e/ou por eventuais atrasos do processo que não lhe sejam imputáveis, o que importaria abuso de direito.

Enquanto princípio geral, não deve estranhar-se/rejeitar-se a integração de parte do vencimento na massa falida com fundamento nos princípios da dignidade humana.

Desde logo, porque nem só as pessoas com parcos vencimentos são passíveis de insolvência, como a recente e atual crise económica vem amplamente demonstrando, atingindo muitas famílias integradas na dita classe média e média alta, cuja insolvência seria impensável há 20 ou 30 anos atrás.

O que importa à insolvência é a correlação entre o deve e o haver, importando uma “impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas” (art. 3º nº 1 do CIRE), situação essa que bem pode ocorrer com vencimentos de montante elevado.

A questão da dignidade humana e outros princípios constitucionais relevará num segundo momento, a averiguar em concreto, caso a caso, tal como acontece no âmbito da penhora em sede de processo executivo.

Ora, nº 6 do art. 738º estabelece que “Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excecionalmente e a requerimento do executado, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora”.

Vejamos então as circunstâncias em concreto do casal de insolventes.

Não sendo objeto de recurso a matéria de facto considerada em 1ª instância, temos que o marido aufere mensalmente um ordenado líquido entre € 1.276,41 e € 1.360,01. A esposa aufere mensalmente, e também líquido, entre € 549,22 e € 570,07. O casal tem 2 filhos, um com 9 anos e outro com 24 anos, o qual é portador de um grau de incapacidade permanente global de 75%. Os insolventes apresentaram como “despesas correntes mensais” um total de € 1.408,58.

Olhada a vivência familiar no seu conjunto, temos portanto um rendimento total de € 1.825,63 (somatório de ambos os ordenados, considerando apenas o seu montante mais baixo) e um volume de despesas de € 1.408,58, o que permite uma poupança média mensal de € 417,05.

Ora, a partir do momento em que existe ainda capacidade de aforro, não pode considerar-se estar a votar-se os insolventes, e respetivo agregado familiar, a uma vivência abaixo dos limiares da dignidade humana.

Aliás, olhados todos os itens considerados como “despesas correntes mensais”, da própria lavra dos insolventes, de forma alguma se pode considerar perigada a vivência dos insolventes a título de dignidade humana.

Atente-se que os mesmos apresentam despesas consentâneas com uma vivência confortável: gás, eletricidade, água, internet, televisão, telemóvel, telefone, alimentação, impostos, “outros”, material escolar, infantário e ATL, almoço escolar, saúde (medicamentos e consultas), outras despesas (roupa, etc.), “outros”, seguro habitação, seguro de vida, seguro automóvel, combustível, manutenção/imposto circulação.

Os vencimentos dos insolventes permitem-lhe custear as despesas com habitação, saúde, alimentação, vestuário e educação e é sob estes parâmetros que deve ser abordada a dignidade humana. Dispõem ainda de algum nível de conforto, como o denotam as despesas, por exemplo, com veículo automóvel, telemóvel e telefone.

Argumentam ainda os Recorrentes com o facto de terem um filho com profundo grau de deficiência, o que, em qualquer altura pode originar despesas não compatíveis com a sua condição económica após o desconto de um terço do vencimento do insolvente marido.

Como já atrás se referiu, este filho tem nesta data 24 anos. Concordamos que em qualquer momento podem surgir despesas não previstas com este filho. Mas também não deixa de ser verdade que isso pode acontecer com qualquer pessoa; quem hoje é saudável, pode no mês seguinte deixar de o ser ou até adquirir também uma qualquer incapacidade que importe elevadas despesas médico-medicamentosas. [[4]]

Na decisão a tomar quanto à apreensão do vencimento não podem relevar circunstâncias imprevisíveis, exatamente por causa dessa sua natureza.

Pode, sim, atender-se a despesas previsíveis, no sentido de que, apesar de ainda não terem ocorrido, já estão planeadas ou que por qualquer razão se sabe que vão acontecer.

Qualquer outra circunstância que venha a ocorrer no futuro, será tida em conta quando ela acontecer.

Não se esqueça que a ponderação a que alude o art. 738º nº 6 do CPC poderá/deverá ser efetuada em qualquer altura, desde que se alterem as circunstâncias de facto (perda de emprego, por exemplo, ou aumento das despesas), obrigando a uma nova decisão.

Olhada a decisão recorrida, à luz dos factos provados, entendemos ser a mesma criteriosa e ponderada.

Desde logo, exclui da possibilidade de apreensão o vencimento da insolvente mulher, por em pouco ultrapassar o salário mínimo nacional.

No tocante ao insolvente marido, ponderou o valor do vencimento depois de operado o desconto, concluindo-se que mesmo assim, e depois de somado ao da esposa, dava para suprir as despesas alegadas; aliás, como aí se refere, “Os requerentes vieram alegar que gastavam em média mensalmente € 1408,58. Assim, o valor com que ficam mensalmente, depois de deduzido 1/3, bastante aproximado do montante das despesas que têm mensalmente e que em alguns meses é até superior nomeadamente quando o insolvente marido recebe um valor superior a € 1.276,41 e insolvente mulher um vencimento superior a € 549,22, é suficiente para fazer face a todas as despesas do agregado familiar e acautela o sustento minimamente digno dos insolventes e do seu agregado familiar.”.

                Em conclusão, a decisão recorrida não contrariou qualquer preceito legal ou constitucional e ponderou de forma equilibrada as necessidades dos insolventes e respetivo agregado familiar em função do quadro factual por eles próprios trazidos aos autos.

                6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)

a) Após a declaração de insolvência, e até ao encerramento da liquidação do ativo, podem ser apreendidos para integração na massa insolvente um terço dos vencimentos a auferir pelo insolvente, mas apenas na medida em que esse terço, líquido de taxas e impostos, não seja inferior ao salário mínimo nacional: art. 46º nº 2 do CIRE e art. 738º nº 1, 2 e 3 do CPC.

b) Não obstante, a requerimento do insolvente, essa parte do vencimento pode ainda vir a ser declarada isenta de apreensão, ou reduzido o seu montante, nos termos do nº 6 do art. 738º do CPC.

c) Mesmo no âmbito da apreensão dessa parte de vencimento para a massa insolvente, a ponderação a que alude o art. 738º nº 6 do CPC poderá/deverá ser suscitada e efetuada a todo o tempo, na medida em que se alterem as circunstâncias de facto, implicando então uma nova decisão.

                III.           DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes (Tabela I-B).

                                                                                              Coimbra, 17/02/2015      


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)


[[1]] Por facilidade de exposição, e porque o caso dos autos não o integra, não cuidaremos aqui das outras hipóteses/momentos de encerramento do processo, constantes das demais alíneas do art. 230º nº 1 do CIRE.

[[2]] Por uma razão de coerência e de unidade do sistema jurídico, em matéria de insolvência não há que ter em conta o segmento do nº 3 do art. 738º do CPC, “quando o executado não tenha outro rendimento”, uma vez que todos esses outros rendimentos já são considerados massa insolvente.

[[3]] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris Sociedade Editora, 2ª edição, 2008, pág. 602, anotação 5ª ao art. 182º.

[[4]] Sob este item, os insolventes apresentaram como despesa corrente mensal com saúde (medicamentos e consultas) de todo o agregado familiar, o montante de € 70,00.