Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
172/15.0GTLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
INTERESSE PREPONDERANTE
Data do Acordão: 11/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Decisão: INDEFERIDO
Legislação Nacional: ART. 135.º DO CPP
Sumário: I - O princípio que rege a decisão a proferir, de determinação da prestação de depoimento com quebra do segredo profissional ou do indeferimento do pedido, é o da prevalência do interesse preponderante, que se aferirá, nomeadamente, por reporte à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção de bens jurídicos.

II - Nem sempre o interesse do Estado em realizar a justiça penal, com observância de todos os princípios jurídico-constitucionais que o integram, prevalece.

Decisão Texto Integral:












Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.

Nos presentes autos foi deduzida acusação imputando ao arguido A... a prática de um crime de denúncia caluniosa, dos arts. 365º, nº 1 e 2, e 14º do Código Penal.

Quanto aos factos consta que foi levantado auto de contra-ordenação ao arguido por ser o proprietário do veículo (...) e por este, no dia 11-5-2013, circular no IC2, km. 131,6, em excesso de velocidade.

Por carta de 10-4-2014 o arguido comunicou à ANSR que quem conduzia a viatura, na altura dos factos, era B... e na sequência foi instaurado processo de contra-ordenação contra esta.

A informação prestada pelo arguido era falsa e o arguido sabia disso.

Na audiência de julgamento, que teve lugar em 14-6-2017, o Ministério Público formulou o seguinte requerimento: «… por se afigurar necessário à boa decisão da causa e ao abrigo do art. 340º do C.P.P., promovo que … se determine a inquirição da Srª Drª Advogada C... com domicílio profissional em Coimbra».

De seguida foi proferido o seguinte despacho: «… Por ser útil à boa decisão da causa e ao abrigo do disposto no art. 340º do C.P.P., determina-se que se proceda em tudo conforme promovido. Assim, interrompe-se a audiência e designa-se para a sua continuação … o próximo dia 4 de Julho … Notifique, sendo a Ilustre Advogada Drª C... , com cópia da acusação deduzida … para que, sendo caso disso, solicite junto da Ordem dos Advogados, o levantamento do dever de sigilo profissional».

Em 4 de Julho foi decidido adiar a audiência, dada a falta de C... e por o Ministério Público não ter prescindido do seu depoimento.

 Foi determinada a sua notificação, de novo, nos termos do anterior despacho.

Por carta de 28-7-2017 C... , advogada, informou o processo que havia sido notificada para depor em julgamento na qualidade de testemunha e que, por essa razão, havia solicitado à Ordem dos Advogados o levantamento do sigilo profissional para o poder fazer.

Informou, também, que o pedido havia sido indeferido e que, por esse motivo, iria escusar-se de depor.

Juntou cópia da decisão da OA.

           

            2.

            Realizada a audiência C... não prestou depoimento invocando o seu dever de sigilo profissional.

            Perante isto o Ministério Público requereu que fosse levantado o sigilo profissional invocado, alegando o seguinte:

«Ouvida na qualidade de testemunha a Sra. Dra. C... , na qualidade de advogada e no seguimento da posição tomada pela Ordem dos Advogados quanto ao não deferimento do levantamento do sigilo profissional, vem a mesma invocar o sigilo não prestando declarações.

O segredo profissional não é um segredo absoluto inafastável, contudo a razão de ser da sua existência impõe que apenas, excepcionalmente, o advogado o possa quebrar.

O advogado apenas deixará de estar sujeito a esse mesmo segredo profissional, entre o mais, em face do incidente processual da quebra de sigilo profissional previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal.

Importa, relativamente ao referido incidente, atender, como dispõe o artigo 135º nº 3 do Código de Processo Penal, ao princípio da prevalência do interesse preponderante, segundo o qual e na senda do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra do 04 de Março de 2015, impõe-se ao Tribunal Superior "a realização de uma atenta, prudente e aprofundada consideração dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, em concreto, prevalecer."

No caso dos autos, mostram-se conflituantes o interesse na realização da justiça penal e o interesse tutelado com a existência do sigilo profissional do advogado.

A imprescindibilidade do depoimento da Sra. Dra. C... , advogada do arguido, segundo declarações do mesmo, à data dos factos, reside no facto de o arguido A... se encontrar acusado da prática de um crime de denúncia caluniosa por, alegadamente, ter indicado o nome B... como a condutora do veículo com a matrícula (...) , que sabia não o ter conduzido mas que fez constar tal informação na sua impugnação junto da A.N.S.R, por indicação da ora testemunha. Na verdade, ouvido em declarações, o arguido referiu que outorgou procuração a favor da ora testemunha e que a mesma lhe disse que "tratava de tudo".

Em face do exposto, considera o Ministério Público, que perante as declarações do arguido e o silêncio profissional imposto à testemunha, tão só ouvindo-a poderá o Tribunal apurar se os factos ocorreram tal como alegados pelo arguido, demonstrando-se assim a imprescindibilidade do depoimento da Sr. Dra. C... .

Em face do que se deixa escrito, e porque a sua não audição impossibilitará o Tribunal de apurar a verdade do factos e, porque apenas o arguido e a ora testemunha terão presenciado a alegada conversa entre ambos, o Ministério Público promove o levantamento do sigilo profissional da Sra. Dra. C... .

Para tal, mais se promove a extracção de certidão integral dos presentes autos com vista à constituição de apenso respectivo e remessa dos mesmos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra».

            Sobre o pedido o tribunal decidiu suscitar o presente incidente, por o arguido ter declarado, em audiência, que não tinha praticado os factos, que assinou em branco a carta enviada à ANSR, onde consta que quem conduzia a viatura no dia referido no auto de contra-ordenação era B... , e que tinha passado procuração à sua advogada para que resolvesse o assunto.

3.

Suscitado o incidente, foi solicitado parecer à Ordem dos Advogados, nos termos do art. 135º, nº 4, do C.P.P., que se pronunciou pelo indeferimento do pedido.

Realizada a conferência cumpre decidir.



DECISÃO

Nos termos do nº 1 do art. 135º do C.P.P., que versa sobre o segredo profissional, «os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».

O dever de sigilo profissional dos advogados consta, também, do respectivo Estatuto, que estabelece, no nº 1 do art. 92º, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções.

Diz, depois, o nº 3 do art. 135º do C.P.P. que o tribunal «pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos …».

O princípio que rege a decisão a proferir, de determinação da prestação de depoimento com quebra do segredo profissional ou do indeferimento do pedido, é o da prevalência do interesse preponderante, que se aferirá, nomeadamente, por reporte à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção de bens jurídicos.

Este é, portanto, o pressuposto substancial da quebra do segredo profissional.

Sobre o conteúdo desta norma, lê-se no Comentário do C.P.P., de Paulo Pinto de Albuquerque, 4ª ed., 379 e segs., que a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa que esta não pode ser alcançada a não ser pelo depoimento sobre os factos abrangidos pelo segredo e a necessidade de protecção de bens jurídicos significa que a quebra do sigilo só é justificável se corresponder a um interesse social premente, pelo que não há, conclui, justificação para a quebra em casos de existência de meios alternativos para a descoberta da verdade, em casos de causas de isenção de responsabilidade, de extinção do procedimento e quando se trate de crime particular ou de crime punível com prisão até 3 anos.

Sobre a mesma questão disse Costa Andrade, no Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2ª ed., pág. 1156 e segs., que a fórmula da prevalência do interesse preponderante significa:

- que a lei afastou as teses extremadas, de o segredo prevalecer sempre e de a prestação de depoimento com quebra do segredo prevalecer sempre;

- que a lei consagrou a tese mitigada, admitindo a violação do segredo quando o alarme social o justificar, derivada da gravidade do crime a perseguir, vinculando o julgador a padrões objectivos e controláveis, o que significa que «a realização da justiça pena, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir), não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo». Este critério objectivo está bem patente no facto de a lei não conceder ao profissional em causa o direito de prestar depoimento com quebra de segredo.

No caso dos autos, e como sempre acontece nestas situações, os interesses conflituantes são, por um lado, o dever de sigilo dos advogados, cuja função é essencial à administração da justiça, conforme refere a nossa Constituição no art. 208º, essencial ao bom desempenho da sua função e essencial para a defesa e preservação das relações entre o advogado e o seu cliente e, por outro, o interesse do Estado em realizar a justiça penal com observância de todos os princípios jurídico-constitucionais que o integram.

            O arguido está acusado da prática de um crime de denúncia caluniosa, do art. 365º do Código Penal, que pune com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias quem perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de contra-ordenação, com intenção de que contra ela se instaure procedimento.

Este crime integra o capítulo dos crimes contra a realização da justiça e a realização da justiça é um dever central de qualquer Estado de direito e para que esta alcance o seu objectivo, de defesa da legalidade e pacificação social, é imprescindível que o Estado garanta a credibilidade e seriedade do procedimento criminal, disciplinar ou contra-ordenacional e que faça justiça.

E à realização da justiça é essencial a descoberta da verdade.

Partindo destas palavras poderíamos dizer, então, que sendo o interesse na realização da justiça tão preponderante, o interesse do Estado prevalece sempre.

Pois não é assim, como vimos.

E no caso concreto entendemos que é a regra que deve prevalecer.

O crime imputado ao arguido é punível com prisão até 1 ano.

Este facto, por si só, demonstra que para a lei este é um crime de pouca gravidade e, portanto, onde a necessidade de protecção de bens jurídicos não se impõe.

Para além disso, também não resulta que o depoimento pretendido seja imprescindível para a descoberta da verdade, porque ignora-se sobre que factos se pretende que a senhora advogada deponha.

Finalmente, e supondo ser verdade que o conteúdo da carta enviada à ANSR fosse da exclusiva responsabilidade da advogada do arguido na altura, então a prestação de depoimento sobre a questão sempre poderia redundar em desfavor da advogada.


*

Por todo o exposto, decide-se indeferir o pedido quebra do segredo profissional com vista à prestação de depoimento sobre factos relacionados com o objecto do processo por parte de C... , advogada.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2017-11-22

                                                                      

(Olga Maurício – relatora)

(Luís Teixeira – adjunto)