Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5236/17.2T8CBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: POSSE
COMPOSSE
PROCEDIMENTO CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 255, 1251, 1252, 1253, 1261, 1278, 1279, 1286, 1404, 1406 CC, 377, 378 CPC
Sumário: 1.-A posse exercida por qualquer dos cônjuges sobre um bem que integra um património colectivo (um direito uno sobre um bem que é comum do casal) deve ser entendida como exercida pelos dois titulares.

2.- Numa situação de composse, qualquer um dos compossuidores poderá, em princípio, servir-se da coisa por inteiro, não lhe sendo lícito, no entanto, privar os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.

3.-Cada um dos compossuidores já poderá recorrer à acção de restituição contra os demais compossuidores com vista a ser reintegrado na posse da coisa comum a que tem direito e de que tenha sido privado por acção de outro compossuidor,

4.- Existirá esbulho violento sempre que o possuidor seja privado do objecto da posse por via de uma acção ou ameaça dirigida à sua pessoa ou por via de acção física exercida sobre as coisas (por via da sua construção, alteração ou destruição) desde que esta acção funcione como modo adequado de coagir (física ou moralmente) o possuidor a abster-se dos actos de exercício da posse, seja porque essa acção impede, em termos físicos, que o possuidor tenha contacto com a coisa possuída (traduzindo dessa forma uma coacção física por implicar uma total impossibilidade de o possuidor executar a sua vontade de exercer os poderes de facto sobre a coisa), seja porque traduz um acto intimidatório que cria algum receio no espírito do possuidor e que o determina a abster-se de exercer qualquer poder efectivo sobre a coisa (correspondendo, dessa forma, a uma coacção moral em virtude de tal actuação ser determinada pelo receio de um mal que lhe possa advir caso actue de outra forma).

Decisão Texto Integral:










Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

D (…), melhor identificado nos autos, veio instaurar procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra E (…) melhor identificada nos autos, pedindo que lhe seja restituída, de imediato, a posse do imóvel sito na Rua (…), .

Para fundamentar essa pretensão, alega, em resumo: que o direito de propriedade sobre o referido imóvel está em discussão no processo principal, alegando a Requerida que o imóvel lhe pertence em exclusivo – pedindo, por isso, a respectiva entrega – e alegando o Requerente que o imóvel pertence a ambos; que, independentemente da propriedade do imóvel, era o Requerente que tinha a sua posse exclusiva sendo certo que nela habita sozinho há cinco anos e desde a separação do casal e que, não obstante ter instaurado também um procedimento cautelar com vista à entrega do imóvel, a Requerida, no passado dia 05/08, aproveitando a ausência do Requerente e sem aguardar a decisão a proferir no referido procedimento cautelar (cujo julgamento está agendado para o dia 06/09), arrombou a porta da casa e mudou a respectiva fechadura, impedindo o Requerente de aí entrar.

Tal procedimento/pretensão foi liminarmente indeferido(a) por decisão proferida em 08/08/2019.

Inconformado com essa decisão, o Requerente veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pelo Apelante;

• Saber se, em face da matéria de facto provada – eventualmente alterada na sequência da apreciação da questão anterior – estão reunidos os pressupostos necessários para decretar a restituição provisória da posse que é peticionada nos autos, o que se reconduz a saber se o Requerente/Apelante tinha a posse do imóvel em causa nos autos e se dela foi esbulhado com violência.


/////

III.

Matéria de facto

Pensamos não haver dúvida – perante a leitura das alegações – que o Apelante pretende, desde logo, impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto (declarando, aliás, no requerimento de interposição do recurso que este versa sobre matéria de direito e de facto), sustentando que a prova carreada nos autos principais e apenso C não deixa dúvida relativamente ao facto de ser o Apelante quem reside no local (facto que, aliás, sempre foi reconhecido pela Requerida que reside nos EUA) e que a participação criminal que apresentou na PSP era o único meio probatório que podia obter em tempo útil e que é suficiente para julgar demonstrado o esbulho.

Assim e perante o teor das alegações, pensamos ser claro que o Apelante pretenderá impugnar a decisão que não julgou provado que “ele residisse sozinho – ou exclusivamente – no citado imóvel, vivendo a Requerente nos EUA” e a decisão que não julgou provado que “no dia 5 de Agosto de 2019, a aqui Requerida arrombou a porta da referida casa e mudou a fechadura da mesma”.

Analisemos, então, essa matéria.

A decisão recorrida já julgou provado que o Requerente vive no imóvel pelo menos desde 12/02/2016 (data em que, no âmbito do processo de divórcio, lhe foi atribuído, a título provisório, o direito à utilização da casa de morada de família que estava instalada naquele imóvel) e, ainda que o Requerente não tinha aqui indicado qualquer prova, pensamos que os autos fornecem, de facto, elementos suficientes para julgar aqui demonstrado que o Requerente vive aí sozinho, vivendo a Requerente nos EUA. Com efeito, esses factos resultam, com alguma evidência, da acção principal e do apenso C (procedimento cautelar recentemente instaurado pela aqui Requerida), onde a aqui Requerida sempre reconheceu que residia nos EUA e que, pelo menos a partir de Fevereiro de 2016, sempre foi o Requerente a residir sozinho no imóvel em causa nos autos. Só assim se compreende, aliás, que, em 23/04/2019, a Requerida tenha vindo instaurar um procedimento cautelar contra o aqui Requerente solicitando a imediata entrega do imóvel, onde continuou a alegar que residia nos EUA (ainda que também alegasse que iria regressar brevemente a Portugal) e que o ora Requerente vivia ali sozinho (cfr. artigo 16º do requerimento inicial do apenso C).

Temos, portanto, como indiscutível que, desde a data referida, o Requerente/Apelante vive sozinho no aludido imóvel, estando amplamente reconhecido nos autos principais e apensos que não vive com a Requerida e o filho desta (que durante esse período têm estado a residir nos EUA) e não havendo qualquer indício de que viva com qualquer outra pessoa, sendo que, conforme referido, a Requerida reconheceu – no apenso C – que ele vive ali sozinho.

Julgamos, portanto, provado que, desde a data da decisão referida em 18º - 12/02/2016 –, o Requerente vive sozinho no imóvel em causa, vivendo a Requerida, pelo menos até há pouco tempo, nos EUA.

Pretende também o Apelante que se julgue provado que “no dia 5 de Agosto de 2019, a aqui Requerida arrombou a porta da referida casa e mudou a fechadura da mesma”.

A decisão recorrida justificou a decisão de não julgar provado este facto com a seguinte argumentação: “A este propósito existe apenas [foi junto no apenso C] uma cópia de uma denúncia que o aqui requerente apresentou junto da PSP de (...) dando conta desses factos. Mas isto não é mais do que aquilo que o próprio requerente afirma no quadro desta providência cautelar e sendo certo que “A prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das acções serem decididas apenas com as declarações das próprias partes” (V. RG, 18/1/2018, http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/063D12AA03DEAB6480258232003A1AEF )”.

É certo que o Requerente – ora Apelante – não juntou qualquer prova daquele facto, além da denúncia que apresentou no próprio dia em que os factos teriam ocorrido (05/08/2019) e é certo que, conforme se refere na decisão recorrida, essa denúncia corresponde apenas àquilo que foi declarado pelo próprio Requerente perante aquela entidade policial.

É verdade que, conforme se disse na decisão recorrida, as declarações da própria parte – sejam elas proferidas no processo ou fora dele – no sentido de confirmar a verificação de determinados factos que lhe são favoráveis não serão, por regra, suficientes para, só por si, fazer a prova desses factos. Mas essa afirmação não tem carácter geral e não pode ser instituída como princípio em matéria probatória – até porque, em muitos casos, só as declarações das partes poderão ter a idoneidade necessária para fazer a prova de determinados factos que não são do conhecimento de outrem – nem poderá ser levada ao extremo de impedir, em absoluto, que a prova de determinados factos assente exclusivamente em declarações da parte a quem aproveitam ou em documentos que por ela foram produzidos ou que se limitem a reproduzir aquilo que declarou a propósito desses factos. Na verdade e conforme refere Miguel Teixeira de Sousa a propósito das declarações de parte[1], “…a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se”.

Ora, no caso em análise, pensamos que haverá elementos suficientes para, com base num juízo de probabilidade e razoabilidade, julgar sumariamente demonstrado o referido facto.

Sabemos, pelo aludido documento, que, no dia 05/08/2019, às 18h 14m, o Requerente compareceu nas instalações da PSP, denunciando o facto de a Requerida, nesse mesmo dia e sem disso dar conhecimento ao Requerente, ter mudado as fechaduras da porta da casa onde este residia e onde se encontravam todos os seus pertences (roupas, medicamentos e documentos); sabemos também que, ainda no mesmo dia – cerca das 19 horas –, apresentou no Tribunal o requerimento inicial do presente procedimento cautelar pedindo a imediata restituição da posse do referido imóvel. Ora, de acordo com os padrões de comportamento que temos como habituais e razoáveis, ninguém se dará ao trabalho de fazer uma denúncia na PSP e contactar um advogado para interpor um procedimento cautelar com vista à restituição da posse da casa onde reside, suportando os custos inerentes e pagando designadamente a taxa de justiça devida, se não estiver efectivamente “desapossado” da casa, até porque, nenhum benefício poderia retirar dessa situação, já que, na melhor das hipóteses, aquelas diligências apenas poderiam servir para lhe restituir uma posse ou detenção que já tinha e nunca havia perdido; tais diligências apenas serviriam, portanto, para perder tempo e dinheiro. Assim, se o Requerente apresentou aquela denúncia e se veio interpor o presente procedimento cautelar, o que temos como normal e verosímil, de acordo com as regras de experiência e senso comum, é que ele tenha sido efectivamente impedido de entrar na casa onde residia por ter sido mudada a respectiva fechadura.

Por outro lado, ainda que não exista prova efectiva de que tenha sido a Requerida a mudar a fechadura, a verdade é que tudo aponta para esse facto. Com efeito, não existindo indícios de que tal pudesse ter sido feito por outra pessoa nem se descortinando razões para que tal pudesse ter sucedido, tudo leva a crer que tenha sido a Requerida. Efectivamente e conforme resulta do processo principal e respectivos apensos, a Requerida vem, desde há algum tempo, a efectuar diligências no sentido de obter a restituição do referido imóvel do qual se arroga ser proprietária exclusiva; além de notificação judicial avulsa do aqui Requerente que, com aquela finalidade, já havia requerido em momento anterior, a Requerida instaurou – em Junho de 2017 – uma acção contra o aqui Requerente, pedindo o reconhecimento do seu direito e a restituição do imóvel; decorridos quase dois anos sem que tivesse sido proferida decisão em tal acção, a Requerida instaurou – em 23/04/2019 – procedimento cautelar comum, alegando necessitar do imóvel e pedindo que lhe fosse imediatamente entregue sem que até Agosto de 2019 tivesse sido proferida decisão (decisão que só veio a ser proferida em Setembro deste ano). Nessas circunstâncias, admitimos, com grande probabilidade, que, perante o tempo decorrido sem que as suas pretensões tivessem sido apreciadas, a Requerida tivesse recorrido à “acção directa”, tomando posse da casa que entendia ser dela e procedendo à mudança das respectivas fechaduras.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que há elementos suficientes para julgar sumariamente demonstrado que, no dia 5 de Agosto de 2019, a Requerida mudou a fechadura da casa, impedindo o acesso do Requerente.

Poder-se-á dizer – é certo – que a decisão de julgar provado esse facto assenta em elementos probatórios muito frágeis e que, em bom rigor, não foi feita prova objectiva desse facto. No entanto e no sentido e justificar a nossa decisão, faremos ainda as seguintes observações: em primeiro lugar, trata-se de um juízo provisório que poderá vir a ser corrigido em função da posição que, após observância do contraditório, venha a ser assumida pela Requerida relativamente a esse facto e em função dos elementos probatórios que venha a apresentar; em segundo lugar, importa dizer que, caso aquele facto seja verdadeiro, estará em causa uma situação que reclama uma tutela efectiva e imediata uma vez que o Requerente terá ficado impedido de aceder à casa onde habitava e onde tinha os seus pertences, justificando-se, por isso, uma menor exigência em termos probatórios, tanto mais que poderia ser difícil recolher, em tempo útil, prova efectiva daquela situação e, em último lugar, importa referir que, caso aquele facto não seja verdadeiro, a decisão que, com base nele, venha a decretar a restituição da posse ao Requerente não provocará qualquer prejuízo relevante à Requerida, uma vez que, nesse caso e sabendo-se que era efectivamente o Requerente quem ali habitava há vários anos, tal apenas significará que a Requerida não está na detenção da casa – detenção que continuará com o Requerente – e, portanto, a restituição da posse que aqui venha a ser decretada não irá alterar a situação que se verifica na realidade (manterá a posse ou detenção no Requerente) e não afectará, em termos imediatos, a Requerida.

Assim, julgamos provado o referido facto.

Aquilo que não poderemos julgar provado é que a Requerida tenha procedido ao arrombamento da porta, uma vez que, não existindo a mínima prova desse facto, a verdade é que, tendo em conta que aquele imóvel já foi a casa de morada de família, não poderemos deixar de admitir a possibilidade de a Requerida ter em seu poder um duplicado das chaves da casa que lhe permitiram aceder ao seu interior e mudar as fechaduras sem necessidade de proceder a qualquer arrombamento.


*****

Em face do exposto, a matéria de facto provada – com as alterações que agora lhe introduzimos – é a seguinte:

1º Em 30/6/2017, a aqui Requerida instaurou a acção declarativa sob a forma de processo comum contra o aqui Requerente, formulando os seguintes pedidos:

a) declarar-se que o casamento civil contraído entre Autora e Réu, no dia 23.10.2004, dissolvido por sentença que decretou o divórcio em 11.11.2016, transitada em julgado em 19.12.2016, foi celebrado sob o regime da separação de bens;

b) declarar-se que a Autora é a exclusiva proprietária e a legítima possuidora do imóvel urbano descrito no artigo 17.º desta petição, fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar esquerdo para habitação com uma garagem na cave com o n.º 3, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…) concelho de (...) , inscrito na matriz sob o art. 13036 e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7107 daquela freguesia;

c) condenar-se o Réu a reconhecer a propriedade plena da Autora sobre aquele prédio, bem como a inexistência de título legítimo que sustente a manutenção da ocupação desse imóvel, bem como condenar-se o Réu a entregá-lo à Autora livre e devoluto de pessoas e de bens próprios e pessoais do Réu;

d) condenar-se o Réu a pagar à Autora a quantia de €700,00 (setecentos euros) por cada mês de ocupação ilícita, desde a data da notificação judicial avulsa para entrega do dito imóvel que foi efectuada ao Réu em 27.03.2017 e até à sua entrega efectiva, contabilizando-se até à presente data o montante de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).

2º O Réu contestou concluindo que devem as invocadas excepções ser, desde já, julgadas procedentes e provadas e em consequência, absolver-se o Réu da instância e considerar-se que o casamento celebrado entre Autora e Réu o foi sob o regime da comunhão de adquiridos, ou, se assim se não entender, deve a acção ser julgada improcedente por não provada, absolvendo-se o Réu dos pedidos formulados na petição inicial e considerar-se que o casamento celebrado entre Autora e Réu o foi sob o regime da comunhão de adquiridos.

Além de ser, em consequência, declarada a casa em questão como bem comum do casal.

Sendo assim o Réu Absolvido de tudo o que é peticionado.

3º Em 23/4/2019 E (…) veio, a título incidental, instaurar procedimento cautelar comum contra D (…) pedindo que seja ordenada a imediata entrega pelo Requerido à Requerente, livre e devoluta de pessoas e bens, da fracção autónoma supra referida e identificada no art. 17.º da petição inicial da acção principal (fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar esquerdo para habitação com uma garagem na cave com o n.º 3, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrito na matriz sob o art. 13036, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7107 daquela freguesia e aí inscrita a favor da Requerente, casada com o Requerido sob o regime da separação de bens, pela Ap. 378 de 05.02.2010).

4º Em 4/6/2019 o ali Requerido deduziu oposição.

5º O Requerente vive sozinho no imóvel pelo menos desde a data da decisão abaixo referida em 18º, ou seja, desde 12/02/2016, vivendo a Requerida, pelo menos até há pouco tempo, nos EUA.

6.º A Autora, de nacionalidade portuguesa, e o Réu, de nacionalidade norte-americana, contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, no dia 23.10.2004, na cidade de (...) , Massachusetts (MA), EUA – cf. certidão de fls. 9 e 10 do processo principal.

7.º No momento da celebração do casamento, a Autora e o Réu residiam no n.º (…), Massachusetts (MA), E.U.A., havendo aqui fixado o seu primeiro domicílio conjugal.

8º O Réu instaurou contra a Autora a acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que, sob o n.º 5516/15.1T8CBR, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Família e Menores de Coimbra – Juiz 3 - cf. certidão de fls. 65 e ss do processo principal.

9º Em 11.11.2016, no âmbito dos referidos autos, foi proferida sentença que, considerando improcedente o pedido formulado pelo ali Autor e ora Réu mas procedente a reconvenção ali deduzida pela ali Ré e ora Autora, decretou o divórcio com a consequente dissolução do casamento contraído entre ambos.

10º A mencionada sentença que decretou o divórcio de Autora e Réu transitou em julgado em 19.12.2016.

11º Na constância do casamento, em 05.02.2010, a Autora – na qualidade de compradora e ali identificada como casada com o Réu sob o regime da separação de bens -, por título de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (...) – Casa Pronta (proc. 2636-2010), adquiriu o seguinte imóvel – cf. doc. fls. 50 e ss. do processo principal cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais:

Fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar esquerdo para habitação com uma garagem na cave com o n.º 3, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrito na matriz sob o art. 13036 e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7107 daquela freguesia.

12º O Réu interveio na referida compra e venda, ali identificado como casado com a adquirente ora Autora E (…) sob o regime da separação de bens, meramente na qualidade de autorizante, ficando a constar no dito título que o Réu prestou à sua mulher o consentimento necessário à inteira validade da constituição de hipoteca sobre o mencionado imóvel - garantia do mútuo contraído exclusivamente para o efeito pela Autora junto do Banco B (...) (Portugal) S.A. - por se tratar o dito imóvel à data da casa de morada de família.

13º A aquisição do referido imóvel encontra-se inscrita no registo predial a favor da ora Autora, ali identificada como casada com o Réu sob o regime da separação de bens, pela Ap. 378 de 05.02.2010 – cf. doc. fls. 62 vs e ss. do processo principal.

14º Em 12/05/2005 a Autora e o Réu celebraram o denominado acordo pós-nupcial (rasurado pré e manuscrito pós) constante de fls. 11 vs. e 12 do processo principal, cujo teor se dá por reproduzido, do qual consta, na parte aqui relevante:

Todos os bens pertencentes a cada uma das partes à data do casamento são, e para sempre permanecerão, bens patrimoniais pessoais, incluindo todos os juros, rendas e rendimentos que possam acrescer dos referidos bens, e os bens mencionados nunca mais poderão ser reclamados pela outra parte. Todos os bens adquiridos na constância do casamento por uma das partes e pagos com activos ou rendimento próprio permanecem para sempre como bens da parte que os adquiriu”.

15º Em 3/7/2006 o Réu assinou uma declaração com o teor de fls. 14 vs. do processo principal aqui dada como reproduzida da qual consta:

A aquisição de qualquer imóvel, por E (…), casada no regime de Separação de bens, contribuinte fiscal nº (…)portadora do BI (…), emitido em 27-1-2006 pelos Serviços de Identificação de (...) é integral e exclusivamente pago com os bens de que esta era legítima proprietária à data do casamento, entre ambos, realizado no dia 23 de Outubro de 2004, ou resultantes do seu trabalho.

O declarante, reconhece que não tem qualquer direito sobre qualquer imóvel adquirido nestas condições, assim como, não assumirá qualquer dívida, que tenha como origem à aquisição do mesmo, seja a que título for, nomeadamente, por força de eventual separação ou divórcio.

Esta declaração reconhece a existência e a validade do acordo pós-matrimonial assinado por ambos na Embaixada Americana em Lisboa em 12 de Maio de 2005, especificando separação de bens e imóveis”.

16º Em 3/7/2006, o Réu subscreveu a procuração cuja cópia consta de fls. 15 vs. do processo principal aqui dada como reproduzida da qual consta, na parte aqui mais relevante:

D (...) , casado no regime de Separação de Bens, Residente (…) (...) , contribuinte fiscal nº (…), portador do passaporte nº 1(…), emitido em 19-11-1999, pelo Departamento de Emissão de Passaportes em Boston, USA, e válido até 18-11-2009, confere todos os poderes necessários, a E (…); casada no regime Separação de bens, com contribuinte fiscal nº (…), portadora do BI nr. (…) emitido em 27-1-2006 pelos Serviços de Identificação de (...) , e especiais poderes, para a aquisição de qualquer imóvel para habitação, para o que poderá praticar todos os actos necessários para efectuar a aquisição…”.

17º Da mensagem de correio electrónico que o Réu enviou em 19/4/2012 a A (…) cuja cópia consta de fls. 17 do processo principal e se dá por integralmente reproduzido, consta na parte mais relevante:

A E (…) e eu sempre mantivemos as finanças em separado, ativos e passivos. Isto é apropriado uma vez que tenho dois filhos, uma empresa e ela tem muito dinheiro no banco. Antes de casarmos discutimos esta possibilidade, mas acabámos por não tomar nenhuma decisão da forma adequada. Em parte por minha culpa porque eu tinha um documento que me tinha sido dado pela minha ex-mulher de um casamento anterior. Este acordo foi-te enviado pela E (…) Este acordo era suposto ser válido nos E.U.A., mas custou-me cerca de $15000,00 (quinze mil dólares americanos) executá-lo, Nos E.U.A. quer os acordos pré-nupciais, quer os acordos pós-nupciais e mesmo os acordos não nupciais são válidos, embora mais precedentes judiciais em relação a acordos pré-nupciais. O acordo só foi assinado depois de já estarmo casados porque a E (…) não tinha tido tempo suficiente para o analisar e para se aconselhar juridicamente. Nos E.U.A., antes de virmos para Portugal, falou com um advogado e com um mediador acerca do assunto …..”.

18.º Por decisão proferida nos ditos autos de divórcio, em 12.02.2016, foi atribuído ao ali Autor e ora Réu, a título provisório, o direito à utilização da referida casa de morada de família, mencionando-se expressamente na mencionada decisão estar em causa “a fixação de um regime para vigorar apenas durante a pendência do processo de divórcio, a cessar com o trânsito em julgado da sentença final no processo de divórcio” – cf. doc. fls. 73 e ss do processo principal.

19.º A Autora, em 22.03.2017, requereu a notificação avulsa do ora Réu para lhe fosse dado conhecimento de que, face ao trânsito em julgado em 19.12.2016 da dita sentença proferida no âmbito dos supra referidos autos de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, lhe concedia o prazo de 30 dias para desocupar e proceder à entrega à Autora do imóvel supra mencionado, sob a cominação de, não o fazendo no referido prazo, aquela instaurar a competente acção judicial – cf. doc. fls. 75 vs e ss do processo principal cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

20.º Em 23.03.2017 - no âmbito dos autos de notificação judicial avulsa que, sob o n.º 2267/17.6T8CBR, correram termos no Juiz 1 do Juízo Local Cível de Coimbra deste Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – foi proferido despacho que ordenou se procedesse à notificação do ora Réu nos termos requeridos pela aqui Autora.

21.º E, nesse seguimento, foi o ora Réu notificado nos termos requeridos pela aqui Autora por contacto pessoal por agente de execução em 27.03.2017.

22.º No dia 5 de Agosto de 2019, a Requerida mudou a fechadura do imóvel supra mencionado, impedindo o acesso do Requerente à casa onde habitava.

Não resultaram provados os seguintes factos:

- Que a Requerida tenha arrombado a porta da casa supra identificada;

- Que o Requerido esteja neste momento no R/C Direito do prédio onde se encontra o imóvel esbulhado, com a ajuda de um vizinho, com a roupa do corpo e um telemóvel com que conseguiu recorrer a um advogado.


/////

IV.

Direito

Em consonância com o disposto no art. 1279º do CC – onde se estabelece que “o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”– determina o art. 377º do CPC que, “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência” e preceitua o art. 378º do CPC que, verificados aqueles pressupostos, a restituição será ordenada sem citação nem audiência do esbulhador.

É certo, portanto, que a restituição provisória da posse sem audiência do esbulhador, ao abrigo do disposto nas citadas disposições legais pressupõe, além da posse do requerente, um acto de esbulho violento.

A decisão recorrida indeferiu a providência requerida, considerando que o Requerente não era o legítimo possuidor da fracção em causa ou, pelo menos, não havia alegado factos que legitimassem essa conclusão. Argumentou, para o efeito, que, perante a matéria de facto, se impunha concluir – indiciariamente – que o direito de propriedade pertencia à Requerida (uma vez que o havia adquirido, essa aquisição estava inscrita no registo a ser favor e estava casada com o Requerente sob o regime de separação de bens) e que o regime provisório que, no âmbito do processo de divórcio, havia atribuído ao Requerente o direito de ocupar aquela fracção enquanto casa de morada de família cessou com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio. Mais considerou que, em face do disposto no artigo 53º, nº 2, do CC e porque as partes contraíram casamento no Estado de Massachussets nos EUA, onde, à data, estabeleceram residência, era a lei desse Estado que regulava o regime de bens de casamento, devendo, por isso, considerar-se que o casamento foi celebrado sob o regime de separação de bens (facto que, aliás, o Requerente sempre reconheceu em diversos documentos que constam dos autos) e que, nessas circunstâncias, o imóvel em causa é um bem próprio da Requerida

Sustenta, no entanto, o Apelante que o que está agora em causa não é a propriedade do imóvel (essa questão é o objecto da acção principal onde ainda não foi proferida decisão) mas sim a posse que detém sobre o imóvel onde reside e da qual ficou privado por acção da Requerida.

Dispõe, a propósito, o artigo 1278º, nº 1, do CC, que, “No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito”. É certo, portanto, que a protecção conferida ao possuidor por via da restituição de posse apenas se mantém enquanto o possuidor não for convencido na questão da titularidade do direito. Deste modo e conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela[2], “A protecção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada unicamente a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito correspondente”.

Ora, apesar de estar pendente uma acção – o processo principal – cujo objecto consiste em definir o regime de bens do casamento que foi contraído entre as partes (sustentando o aqui Requerente que o casamento foi contraído sob o regime de comunhão de adquiridos por entender que se aplica a lei portuguesa e sustentando a aqui Requerida que o casamento foi contraído sob o regime da separação de bens por entender ser aplicável a lei do Estado de Massachusetts, nos Estados Unidos da América) e apurar, em consequência, se o imóvel aqui em causa é um bem próprio da Requerida (conforme esta sustenta na acção principal) ou se é um bem comum do casal (conforme sustenta o Requerente), a verdade é que tal acção ainda não chegou ao seu termo e, portanto, ainda não foi proferida decisão que defina o regime de bens do casamento e, consequentemente, a titularidade do direito de propriedade relativamente ao imóvel em causa.

Nessas circunstâncias e porque a questão da titularidade do direito nem sequer foi ainda colocada no âmbito do presente procedimento cautelar, não será possível afirmar que o aqui Requerente já tenha sido convencido na questão da titularidade do direito e que, como tal, esteja impedido de reclamar protecção para a posse que, eventualmente, detenha sobre o imóvel em questão.

Resta, portanto, saber, se o Apelante tem a posse do imóvel e se dela foi esbulhado com violência, uma vez que, conforme dissemos, são esses os pressupostos da providência de restituição provisória de posse que veio requerer.

Relativamente à posse, o Requerente – ora Apelante – alegou apenas que a propriedade do imóvel pertence a ambas as partes (por ser um bem comum do casal) e que tem a sua posse exclusiva, sendo certo que habita aí sozinho há cinco anos, residindo a Requerida nos EUA, acrescentando que a prova da sua posse está nos autos principais tendo sido trazida pela própria Requerida que ali reconhece que a posse é do Requerente desde a separação.

Antes de mais, cabe dizer que a Requerida nunca reconheceu – nos autos principais – a posse do Requerente, sendo certo que sempre ali sustentou ser apenas ela a proprietária e possuidora do aludido imóvel. Aquilo que a Requerida reconheceu nos autos principais – conforme referido supra – foi apenas o facto de o Requerente viver efectivamente no imóvel em questão (num primeiro momento e após a separação, por lhe ter sido conferido provisoriamente e durante a pendência do processo de divórcio, o direito à utilização da casa de morada de família que ali estava instalada e, num segundo momento, porque, após o termo do processo de divórcio se recusou a entregar o imóvel, continuando a ocupá-lo de forma ilícita e sem título que o legitime). Mas esse facto – efectivamente reconhecido pela Requerida – não equivale a dizer que o Requerente tem a posse do imóvel em questão.

Com efeito e tendo em conta o disposto no artigo 1251º do CC, a posse corresponde ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, sendo integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi, definindo-se o corpus como o exercício de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados. Assim, a mera circunstância de o Requerente viver no imóvel em questão não é suficiente para concluir pela existência de posse, uma vez que, para que se possa falar em posse será sempre será necessário que essa actuação tenha subjacente a intenção de actuar como titular do direito; é a existência deste elemento subjectivo (animus) que distingue o possuidor do mero detentor ou possuidor precário, já que, apesar de ambos exercerem sobre a coisa o poder de facto que corresponde ao corpus da posse, o primeiro exerce esse poder com a convicção e a intenção de actuar como titular do direito real correspondente, enquanto o segundo actua sem essa intenção e com a convicção de que o direito não lhe pertence e que apenas actua por tolerância ou permissão do titular do direito e, portanto, em nome deste (cfr. art. 1253º do CC).

Todavia e não obstante essas considerações, pensamos que, apesar de tudo, há elementos suficientes para concluir – ainda que em termos sumários e perfunctórios, como é próprio dos procedimentos cautelares e sobretudo quando correm sem audiência prévia da parte contrária – pela posse do Requerente.

O presente procedimento cautelar é instaurado por apenso a uma acção que foi interposta pela aqui Requerida contra o aqui Requerente onde se discute o regime de bens do casamento e a propriedade do imóvel aqui em causa e no âmbito da qual o aqui Requerente se arroga a titularidade desse direito – ainda que em comunhão com a Requerida – sustentando que o imóvel em questão é um bem comum do casal. É certo, portanto, que, como também resulta do requerimento inicial, a posse que o Requerente vem aqui invocar é a posse ou actuação de facto correspondente ao direito de propriedade que alega deter em comum com a Requerida. Ora, apesar de nada ter sido provado a propósito do animus, a verdade é que resulta provado que o Requerente vive efectivamente no imóvel, exercendo, portanto, uma actuação ou poder de facto relativamente a esse imóvel e, portanto, para já, teremos que presumir – até por força do disposto no artigo 1252º do CC – que essa actuação ou poder de facto é exercida com intenção de actuar como titular do direito a que se arroga e cuja posse aqui veio invocar.

É bom que se note, no entanto, que a posse alegada nesses termos não é, ao contrário do que parece pretender o Requerente, uma posse exclusiva, correspondendo apenas a uma situação de composse.

Com efeito, se o Requerente nunca se arrogou titular exclusivo do direito de propriedade e se baseia a posse que aqui veio invocar no direito de propriedade que pertence, em comum, a ambos os ex-cônjuges, é evidente que aquilo que está em causa – e vem aqui invocar – é uma situação de composse que corresponderá ao exercício de poderes de facto correspondentes a uma situação de compropriedade ou outra forma de comunhão (no caso, comunhão conjugal). Importa notar que, conforme dispõe expressamente o artigo 1406º, nº 2, do CC – aplicável à comunhão de quaisquer outros direitos por força do disposto no artigo 1404º - “O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”, devendo considerar-se – como se considerou nos Acórdãos da Relação de Évora de 12/03/2015 e da Relação de Guimarães de 23/06/2004[3]que a posse exercida por qualquer dos cônjuges sobre um bem que integra um património colectivo (um direito uno sobre um bem que é comum do casal) deve ser entendida como exercida pelos dois titulares. Assim, não havendo notícia de qualquer inversão do título, o facto de o imóvel ser usado apenas pelo Requerente não lhe confere qualquer posse exclusiva, sendo, portanto, possuidor em nome de ambos os (ex)cônjuges.

Ora, numa situação de composse, qualquer um dos compossuidores poderá, em princípio, servir-se da coisa por inteiro, não lhe sendo lícito, no entanto, privar os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. Daí que, conforme dispõe o artigo 1286º, nº 2, do CC não seja permitido, nas relações entre possuidores, o exercício da acção de manutenção, já que, “Se qualquer dos compossuidores pode exercer, em relação à coisa, os actos materialmente correspondentes ao direito possuído, os actos turbativos são incaracterísticos[4]. No entanto e tendo em conta o disposto no nº 3 do citado artigo 1286º, cada um dos compossuidores já poderá recorrer à acção de restituição contra os demais compossuidores com vista a ser reintegrado na posse da coisa comum a que tem direito e de que tenha sido privado por acção de outro compossuidor, já que, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[5], “…o exclusivismo de um dos compossuidores, conseguido através do esbulho, afecta a posição jurídica e dos direitos dos restantes”. No mesmo sentido, refere Manuel Rodrigues[6]: “Pode um dos compossuidores esbulhar completamente o outro ou outros, afirmando uma posse exclusiva. Neste caso, cada um destes tem o direito de se manter ou reintegrar na sua posse”. Dizendo de outro modo: nenhum dos compossuidores tem direito a uma posse exclusiva sobre a coisa comum, mas nenhum deles poderá ser privado da posse que a todos pertence e, se tal acontecer, o compossuidor esbulhado pode recorrer à acção de restituição no sentido de ser reintegrado na posse a que também tem direito. Neste sentido se pronunciou, aliás, o Acórdão da Relação de Coimbra de 03/03/2009[7], onde se considerou que “Nas relações de composse sobre um bem comum do casal, é permitido a um dos cônjuges compossuidores, que ficou entretanto privado pelo outro da posse sobre o mesmo, instaurar procedimento cautelar contra ele com vista a ser (novamente) restituído à posse desse bem”.

Em face do exposto, podemos concluir – ainda que em termos sumários – que o Requerente tinha a posse (composse) do imóvel em causa e como tal, tem o direito de ser reintegrado nessa posse caso dela tenha sido esbulhado pela Requerida.

Resta, portanto, saber se há esbulho violento como será necessário para que possa ser decretada a providência cautelar de restituição provisória de posse que é solicitada pelo Apelante.

Como refere Manuel Rodrigues[8], “há esbulho sempre que alguém for privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar”. O esbulho pressupõe, portanto, a prática de um acto por via do qual o possuidor é privado da posse que detinha; um acto que impede a conservação da posse por quem a detinha.

Ora, no caso em análise, não há dúvidas relativamente à existência de esbulho, sendo certo que, conforme se julgou provado, por via da mudança das fechaduras do imóvel efectuada pela Requerida, o Requerente ficou impedido de aceder ao imóvel em questão, ficando, portanto, privado da respectiva fruição nos termos em que o vinha fazendo.

Um pouco mais complexa será a questão de saber se esse esbulho pode ser qualificado como violento, importando recordar que só em caso de esbulho violento está legitimado o recurso ao procedimento cautelar de restituição provisória de posse; se o esbulho não foi violento, o possuidor esbulhado apenas pode obter a reintegração na posse de que ficou privado por via do procedimento cautelar comum (cfr. artigo 379º do CPC).

Apelando ao critério estabelecido no art. 1261º, nº 2, do CC, o esbulho será violento quando o acto de desapossamento é praticado com recurso a coacção física ou coacção moral nos termos do art. 255º. O esbulho será, portanto, violento se resultar do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor, tal como será violento o esbulho obtido mediante ameaça de um mal que tanto poderá respeitar à pessoa, como à honra ou fazenda do esbulhado ou de terceiro.

A caracterização do esbulho como violento ou não violento não tem merecido resposta uniforme, pois há quem entenda que a violência tem que ser exercida contra o possuidor e há quem entenda que ela tanto poderá ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas que constituem obstáculo ao esbulho.

Segundo Orlando de Carvalho[9], “…a violência a que se refere o artigo 1261º tem de exercer-se sobre as pessoas, e não apenas sobre as coisas que constituem um obstáculo à privação da posse. A ameaça, como se disse, pode respeitar às pessoas ou aos bens, mas há-de exerce-se sobre a pessoa do coacto. A violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor”. Parece ser neste sentido que tem decidido, maioritariamente, a nossa jurisprudência (cfr. a título de exemplo os Acórdãos da Relação do Porto de 12/11/2013 (processo nº 1213/13.0TBVRL-C.P1), de 26/02/2008 (processo nº 0820252) e de 08/01/2008 (processo nº 0726374) e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/04/2019 (processo nº 28/19.7T8MBR.C1) e de 24/01/2017 (processo nº 1350/16.0T8GRD.C1)[10].

Nos termos em que está caracterizada na citada disposição legal (o citado artigo 1261º, nº 2), a violência pressupõe uma actuação dirigida contra o possuidor, seja no sentido de lhe retirar qualquer possibilidade real de impedir o acto de desapossamento por via da utilização de força física ou intimidação (coacção física), seja no sentido de o intimidar a acatar aquele acto por via do receio que lhe seja determinado por ameaça que lhe seja dirigida no sentido de lhe provocar um mal na própria pessoa, na honra ou património do próprio esbulhado ou de terceiro (coacção moral). Mas, como também resulta da noção de coacção física ou moral, essa coacção poderá ser executada por via de ameaça ou de acção violenta contra coisas.

Parece-nos, portanto, que a coacção (que está subjacente à noção de violência) terá que ser exercida necessariamente contra uma pessoa, ainda que tal coacção possa ser concretizada através de coisas. Neste sentido, se pronuncia José Lebre de Freitas[11], quando escreve: “Que a coacção tem de ser sempre, em última análise, exercida sobre uma pessoa, não é duvidoso; mas a construção ou destruição de uma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos actos de exercício do direito correspondente”.

Entendemos, portanto, que existirá esbulho violento sempre que o possuidor seja privado do objecto da posse por via de uma acção ou ameaça dirigida à sua pessoa ou por via de acção física exercida sobre as coisas (por via da sua construção, alteração ou destruição) desde que esta acção funcione como modo adequado de coagir (física ou moralmente) o possuidor a abster-se dos actos de exercício da posse, seja porque essa acção impede, em termos físicos, que o possuidor tenha contacto com a coisa possuída (traduzindo dessa forma uma coacção física por implicar uma total impossibilidade de o possuidor executar a sua vontade de exercer os poderes de facto sobre a coisa), seja porque traduz um acto intimidatório que cria algum receio no espírito do possuidor e que o determina a abster-se de exercer qualquer poder efectivo sobre a coisa (correspondendo, dessa forma, a uma coacção moral em virtude de tal actuação ser determinada pelo receio de um mal que lhe possa advir caso actue de outra forma).

Em sentido próximo ao que aqui propugnamos, considerou-se no Acórdão do STJ de 19/10/2016[12] que “A violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia… A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, actuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa…Não pode deixar de se considerar esbulho violento a vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50m executada pelos requeridos como um obstáculo que constrange, de forma reiterada, a posse dos requerentes, impedindo-os de a exercitar como anteriormente faziam, merecendo, por conseguinte, tutela possessória cautelar no âmbito do procedimento de restituição provisória de posse”.

Veja-se também o Acórdão da Relação do Porto de 28/10/2013[13], onde se considerou que “A constituição de um obstáculo físico que impede o possuidor de aceder ao objecto da sua posse, e, consequentemente, inviabiliza totalmente a sua fruição, integra o requisito da violência exigido no normativo citado” ou o Acórdão da Relação do Porto de 26/11/2012[14], onde se escreve que aquilo que releva para efeitos de verificação do esbulho violento, nos casos de acção física exercida sobre as coisas “…é que essa acção seja um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade. Isto é, seja um meio de impedir a continuação da posse, coagindo o possuidor a abster-se dos actos de exercício do seu direito, constituindo, pois, um obstáculo à actuação do possuidor a partir do momento da actuação do esbulhador” ou os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24/01/2017 e de 20/05/2014[15], onde se considerou que “A remissão para o art.º 255.º impõe que a violência, quando exercida sobre as coisas, para ser relevante e qualificar o esbulho, tenha de traduzir-se na intimidação do possuidor, de modo que se quede sem resistência, sujeitando-se ao acto usurpativo, nisto consistindo a coacção moral”.

 No caso em análise, não se provou que a porta tivesse arrombada (já que, conforme se referiu e tendo em conta que o imóvel em causa já foi a casa de morada de família onde a Requerida também residiu, não poderemos excluir a possibilidade de a Requerida ter na sua posse um duplicado das chaves) e apenas se provou que o esbulho foi concretizado mediante a mudança da fechadura da porta.

Pensamos, no entanto e em consonância com as considerações supra efectuadas, que isso é suficiente para concluir pela violência do esbulho na medida em que tal actuação criou um obstáculo físico à entrada do Requerente que, como tal, lhe retirou qualquer possibilidade de continuar a exercer sobre o imóvel os poderes de facto que até aí vinha exercendo. A possibilidade de exercício da posse exigia, em tal caso, o arrombamento da porta, circunstância que, obviamente, funcionou como meio de coacção do Requerente – se não física, pelo menos moral – uma vez que era adequada para o intimidar e para o determinar a suportar o acto de usurpação em função do receio de qualquer mal que lhe pudesse advir da prática do acto de arrombamento da porta que era necessário para retomar a sua posse. O acto praticado – mudança das fechaduras – correspondeu, portanto, a um acto que coagiu, física e moralmente, o Requerente a abster-se, contra a sua vontade, dos actos de exercício da posse e, nessa medida, corresponde a um esbulho violento. Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos da Relação do Porto de 02/03/2006 (proferido no processo nº 0630368) e de 12/09/2011 (proferido no processo nº 83/11.8TBVLC.P1), bem como o Acórdão da Relação de Coimbra 25/05/2010 (proferido no processo nº 1230/09.5T2AVR-A.C1)[16].

Em face de tudo o exposto e porque concluímos pela verificação dos respectivos pressupostos legais, impõe-se determinar a restituição provisória da posse ao Requerente.


/////

V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e julga-se procedente o presente procedimento cautelar, determinando-se, em consequência:
- Que o Requerente seja restituído provisoriamente à posse do imóvel supra descrito;
- Que, após concretização da diligência, a Requerida seja notificada nos termos e para os efeitos dos artigos 366º, nº 6, e 372º do CPC.

Custas a cargo do Requerente/Apelante, sem prejuízo do disposto no artigo 539º, nº 2, do CPC.
Notifique.

Coimbra, 22 de Outubro de 2019

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)

Maria João Areias

Ferreira Lopes


[1] Para que serve afinal a prova por declarações de parte?   https://blogippc.blogspot.com/search?q=declara%C3%A7%C3%B5es+de+parte
[2] Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, revista e actualizada, reimpressão, pág. 49.
[3] Proferidos nos processos nºs 749/14.0TBSSB.E1 e 1227/04-1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição revista e actualizada, pág. 63.
[5] Ob. cit., pag. 63.
[6] A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Almedina, 1981, pág.144.
[7] Proferido no processo nº 2/09.1TBGVA.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Ob. cit., pág. 363.
[9] Direito das Coisas, 2012, Coimbra Editora, pág. 284.
[10] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[11] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág.77.
[12] Proferido no processo nº 487/14.4T2STC.E2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[13] Proferido no processo nº 1880/13.5TBSTS.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[14] Proferido no processo nº 220/12.5TJPRT-B.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[15] Proferidos nos processos nºs 1350/16.0T8GRD.C1 e  84/14.4TBNLS.C1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[16] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.