Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
802/11.2TMGR-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
CONTRATO DE OCUPAÇÃO
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1340º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I - A construção de um conjunto de edifícios num prédio rústico alheio, iniciada e desenvolvida ao abrigo de um contrato de permuta com os donos desse prédio, por ter na sua génese um vínculo ou negócio jurídico não permite ao autor da construção a aquisição da propriedade do mesmo prédio com base no instituto da acessão imobiliária, nos termos do art.º 1340º, nº 1, do C. Civil.

II - Declarando o autor das benfeitorias que nada tem a receber dos proprietários do imóvel onde foram feitas pelas obras ali realizadas, não pode a respetiva massa insolvente reclamar dos adquirentes daquele qualquer valor a esse título.

Decisão Texto Integral:











Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Por apenso aos respectivos autos de insolvência, a correr termos na comarca de Leiria, MASSA INSOLVENTE DE D..., LDA, instaurou uma acção declarativa sob a forma de processo comum contra J... e mulher M..., e C... e mulher M..., alegando o seguinte:

Entre 2003 e Setembro de 2009, a sociedade D..., Lda, declarada insolvente por sentença de 11.11.2011, construiu um conjunto de edifícios que foi implantado num prédio rústico propriedade dos 1ºs RR., inscrito na correspondente matriz de ... sob o artigo ... e descrito na respectiva CRP sob o nº ..., e bem assim também no prédio rústico adjacente, este pertencente à sociedade construtora, descrito na respectiva CRP sob o nº ... e inscrito naquela matriz rústica sob o artigo ...; tal construção teve lugar em virtude de em 24.10.2003 entre aquela D..., Lda e os 1ºs RR., então donos do aludido prédio rústico inscrito na matriz rústica de ... sob o artigo ... e descrito sob o nº ..., ter sido outorgado um contrato promessa de permuta, mediante o qual, cedendo esse prédio, os referidos 1ºs RR. receberiam duas moradias a edificar pela D..., Lda, com as especificações que ali ficaram consignadas; no entanto, porque aquela sociedade não cumpriu a prestação a que se obrigara, deixando a obra inacabada, este contrato viria a ser “resolvido” por um documento outorgado pelas mesmas partes em 01.05.2010, por elas intitulado de “Acordo de Resolução de Contrato-Promessa de Permuta”; sucede que, nessa mesma data, os 1ºs RR. logo celebraram com “M...- Construção Civil, Compra e Venda e Revenda de Imóveis, Lda”, sociedade que havia sido constituída em 20.05.2009, então representada por D..., um contrato promessa de compra-e-venda, tendo precisamente por objecto a venda daquele aludido prédio descrito sob o nº ... pelo preço de €275.000,00; entretanto, a D..., Lda, celebrara já vários contratos promessa de compra-e-venda de diversas “fracções”, integradas nos imóveis já construídos no prédio descrito sob o nº ...; tendo cessado a construção em Setembro de 2009, numa altura em que se achavam efectuadas 60% das obras projectadas para aquele prédio, cujo custo importou para ela em €563.000,00; acontece que também a dita M..., Lda viria a ser declarada insolvente por sentença de 12.01.2012, tendo aí sido apreendidas para a respectiva massa todas as edificações/obras implantadas no mencionado prédio; em face disso, instaurou a A. uma acção de restituição e separação de bens da massa insolvente da M...,Lda, pedindo a restituição de 60% das benfeitorias que alegou ter efectuado, e, subsidiariamente, 60% do produto da respectiva venda, mas tal acção foi julgada improcedente por sentença de 12.02.2014[1]; contudo, por escritura pública de 31.07.2012, já os 1ºs RR. haviam vendido aos aqui 2ºs RR., pelo preço de €200.000,00, o aludido prédio nº ...; as obras de edificação da D..., Lda, no período em que decorreram – entre Outubro de 2003 e Setembro de 2009 – foram realizadas de boa- em terreno dos RR., nele se incorporando com um valor muito superior; pelo que deve ser declarada a aquisição da totalidade do prédio pela devedora, agora representada pela A., com base na acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento do valor do terreno antes da incorporação; se tal não se entender, terá a A., pelo menos, direito a receber dos RR. o custo que teve com as edificações, que orçou em €563.000,00.                

Remata com o seguinte pedido, na parte que ora interessa:

“Devem: A) os 1.ºs e os 2.ºs Réus ser condenados solidariamente a reconhecer a aquisição por parte da A. através da figura da acessão imobiliária, do prédio inscrito na matriz predial rustica sob o artigo ..., da freguesia de ..., composto por terra de semeadura e pastagem, e descrito na C.R.P. de... sob o n.º..., ou se assim não se entender, em virtude da propriedade daquele prédio ter sido transmitida pelos 1.ºs Réus aos 2.ºs Réus, através da compra e venda que celebraram por escritura pública datada de 31-07-2012, e serem estes últimos, os legítimos donos e deterem a presunção do registo a seu favor, então que sejam os 2.ºs Réus condenados a reconhecer a realização das benfeitorias supra referidas por parte da A. no seu prédio, cujo custo delas ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, e concomitantemente o preço é de valor superior ao do prédio acima referido, que ascende a 200,000 Euros, e portanto em valor superior ao que aquele detinha antes da realização das benfeitorias em causa, para o caso de assim não se entender, B) serem os RR. (nos termos expostos no pedido anterior) condenados a pagar á A., o custo das benfeitorias erigidas por si a expensas suas, por constituírem benfeitorias úteis, e cujo preço ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, assistindo-lhe o direito de retenção sobre o imóvel até que esta indemnização seja paga”.

Citados, contestaram os RR. C... e mulher M..., excepcionando a sua ilegitimidade e defendendo-se por impugnação, concluindo pela improcedência da acção e pela respectiva absolvição do pedido.

Tendo-se constatado o falecimento dos RR. J... e M..., viria a ser admitida a intervenção principal da respectiva herdeira I..., a qual, citada, acompanhada pelo marido A..., apresentou contestação, onde excepcionando a respectiva ilegitimidade, se defendeu por impugnação, concluindo pela respectiva absolvição do pedido.

Respondendo às excepções, e após pugnar pela sua improcedência, viria a A. a requerer a habilitação de C... CRL como adquirente do prédio objecto do litígio após a propositura da acção, vindo, no entanto, a mesma a ser admitida como interveniente principal ao lado dos restantes RR.. Esta interveniente, uma vez citada, não contestou.

Foi então requerida pela A., e admitida, a alteração/adequação do pedido inicial nos seguintes moldes:

“«“A) Serem os 1.ºs e os 2.ºs Réus, e a Ré chamada (C... C.R.L, com o NIPC ...) serem condenados solidariamente a reconhecer a aquisição por parte da A. através da figura da acessão imobiliária, do prédio inscrito na matriz predial rustica sob o artigo ..., da freguesia de ... composto por Condomínio Habitacional com Três Moradias unifamiliares, Bloco I, Bloco II e III, e dois edifícios de habitação colectiva Bloco IV e V, constituídos por cave para garagem, rés-do-chão e primeiro andar para habitação, arruamento passeios, estacionamentos, zonas de espaços verdes, zona de equipamento (piscina) e casa de condomínio de utilização colectiva, descrito na C.R.P de ... sob o n.º ... “ ou se assim não se entender, “em virtude da propriedade daquele prédio ter sido transmitida pelos 1.ºs Réus aos 2.ºs Réus, através da compra e venda que celebraram por escritura pública datada de 31-07-2012, e dos 2.ºs Réus à sociedade chamada (C... C.R.L, com o NIPC...) por escritura de compra e venda datada de 13/02/2015 e serem estes últimos, os donos e deterem a presunção do registo a seu favor, então que seja a Ré chamada condenada a reconhecer a realização das benfeitorias supra referidas por parte da A. no seu prédio, cujo custo delas ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, e concomitantemente o preço é de valor superior ao do prédio acima referido, que ascende a 200,000 Euros, e portanto em valor superior ao que aquele detinha antes da realização das benfeitorias em causa, “ para o caso de assim não se entender, B) “ serem os RR. e a Ré, chamada (nos termos expostos no pedido anterior) condenados a pagar solidariamente á A., o custo das benfeitorias erigidas por si a expensas suas, por constituírem benfeitorias úteis, e cujo preço ascendeu a pelo menos 563.000,00 Euros, assistindo-lhe o direito de retenção sobre o imóvel até que esta indemnização seja paga.“

Na sequência de convite ao aperfeiçoamento da p.i., veio a A. alegar que o valor do prédio que foi dos 1.ºs RR., após a incorporação das construções levada a cabo pela devedora, passou a ser de € 763.000,00.

No saneador julgaram-se improcedentes as invocadas excepções de ilegitimidade dos RR..

A final foi prolatada sentença em que se julgou a acção improcedente por não provada, e, em função disso, se absolveram os RR. e a interveniente C... de todos os pedidos formulados.

Inconformada, deste veredicto recorreu a Autora, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida, sem qualquer espécie de impugnação:

...

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a recorrente e Autora MASSA INSOLVENTE DE D..., LDA, suscita as seguintes questões:

Se estão preenchidos os requisitos para a aquisição pela insolvente D..., Lda do terreno integrante do prédio então descrito sob nº ... por via do instituto da acessão industrial imobiliária;

Assim, não se entendendo, se a A. tem direito a ser indemnizada pelo valor das benfeitorias úteis correspondentes às edificações que levou a efeito nesse prédio até Setembro de 2009.

Contra-alegou a interveniente batendo-se pela confirmação do sentenciado.

Apreciando.

Sobre a aquisição da propriedade do prédio descrito sob o nº ... por via da acessão industrial imobiliária.

Entende a A. e recorrente que estão demonstrados e, por isso, reunidos todos os requisitos para que, em relação a ela, se declare a aquisição por acessão industrial imobiliária do prédio inscrito na matriz predial rústica de ... sob o artigo ... descrito na CRP ... sob o nº ...

Será assim?

Vejamos.

Na sentença agora recorrida ponderou-se, a propósito dos requisitos necessários a esta forma de aquisição originária do direito de propriedade, o seguinte:

“ (…) Atenta a factualidade apurada a este respeito, conclui-se que na situação em apreço não se verifica integralmente, em relação à Autora, o requisito supra mencionado sob a alínea a), pois resulta manifestamente da conjugação dos factos provados sob os pontos 4. a 9. com os factos provados sob os pontos 10., 12., 29. e 30. que a D..., Lda. não foi a única autora da incorporação das obras em causa, pois as mesmas foram prosseguidas a partir de Setembro de 2009 (apenas) pela “M..., Lda.”. Ou seja, no caso em apreço não existe apenas um autor da obra (que deve ser considerada na sua totalidade), mas dois. Não se provou, portanto, que a D..., Lda. tivesse sido a única dona da obra, a única responsável pela construção incorporada, facto constitutivo do direito da A., por isso onerada com a produção da respectiva prova, nos termos do art. 342º, nº 1, do CC - cfr. Henrique Mesquita, em anotação ao Acórdão do STJ de 23/01/1999, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Nº 3871, de 01/02/1997, págs. 309 a 342.”

Reportava-se a dita alínea a) à “incorporação consistente no acto voluntário da realização da obra, sementeira ou plantação”.

Mas neste segmento não acompanhamos a decisão recorrida.

Na verdade, é insofismável que em Setembro de 2009, no prédio rústico então descrito sob o nº... da CRP de ..., havia uma obra, obra que se traduzia na construção inacabada de seis edificações, construção iniciada e prosseguida até aí apenas pela insolvente D..., Lda, encontrando-se nessa altura no estado descrito em 7 e 8 dos factos provados. Como também decorre desta materialidade, essa obra dizia, pelo menos, respeito a parte do chamado Bloco A, aos Blocos C e D e às denominadas Moradias 1 e 2. Sendo que, de acordo com o provado em 22 e 23, tendo como referência o ano de 2009, só o “valor do custo” das edificações levadas a efeito no imóvel era de 549.949,85, valor no qual cabia então ao terreno (óbviamente sem essas edificações) a parcela de €225.000,00.

Preceitua o art.º 1340º, nº 1, do C. Civil que “Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações».

À luz deste inciso legal, para haver acessão industrial imobiliária basta que se demonstre que se construiu uma obra em terreno alheio, que tenha sido absorvido na incorporação e com a obra passe a formar um todo. Já não sendo condição sine qua non que essa obra consubstancie um edifício completo ou acabado.

Parece-nos que a lei não exclui que sobre o mesmo terreno possa ocorra mais do que uma incorporação, em momentos diferentes, e até com diferentes autores, sendo certo que, sendo a aquisição por acessão potestativa e não automática, pode haver ou não manifestação de vontade de adquirir por acessão por banda de qualquer deles.

O que para a lei importa é que o terreno seja alheio, que o autor da incorporação esteja de boa-fé, por ignorar que o terreno é alheio ou ter sido autorizado pelo dono do terreno, que aquela integre materiais da sua pertença, que se tenha formado um todo único, e que a obra tenha trazido um valor superior àquele que o terreno tinha anteriormente.

Em rigor, deve até observar-se que, no caso sub judice, não ficou evidenciado que outrem além da insolvente, designadamente a dita M..., Lda, tenha produzido uma segunda incorporação no prédio em causa.

Embora em certo passo a sentença afirme que “as mesmas [obras] foram prosseguidas a partir de Setembro de 2009 (apenas) pela M..., Lda”, manda a verdade que se diga que em ponto algum do acervo da matéria provada podemos colher tal factualidade. Note-se que provado só ficou o que está plasmado em 29 deste acervo: ou seja, que “A M..., Lda, foi constituída exclusivamente para prosseguir a obra em questão”, o que é totalmente distinto de se asseverar que a obra da D..., Lda, foi efectivamente prosseguida por aquela M..., Lda.

Aliás, não ficou sequer demonstrado que “A partir da data da constituição da M..., Lda, toda a actividade de construção em apreço foi desenvolvida em nome desta sociedade comercial” (cfr. o facto não provado em F).

O que antes está demonstrado é que o representante legal da D..., Lda, Sr. D..., efectuou “vários contratos promessa de compra e venda em nome e representação da D..., Lda, e após a constituição da M..., Lda, em representação desta” (cfr. os factos provados em 24 e 25).

Neste quadro, na linha de raciocínio da sentença, pareceria que, pagando a A. Massa Insolvente da D..., Lda, o valor que o prédio tinha antes das obras tudo se conjugaria para que o tribunal pudesse finalmente declarar a aquisição do imóvel com base na acessão industrial imobiliária em função da constatação da verificação de todos os pressupostos enunciados na lei.

Só que a obra em questão assumiu a natureza de uma mera benfeitoria útil no prédio dos faalecidos 1ºs RR., não sendo por isso viável a aquisição da propriedade do prédio onde foi incorporada por via do instituto da acessão.

Com efeito, enquanto a insolvente D..., Lda, procedeu à construção (ainda que incompleta) até Setembro de 2009 de seis edificações no prédio que foi propriedade daqueles RR., como se retira do provado em 9., entre estes e aquela, vigorou o “Contrato Promessa de Permuta”, outorgado em 24.10 2003 (cfr. fls. 239-240), contrato que só seria dado por extinto com o denominado “Acordo de Resolução” de 01.05.2010 (cfr. fls. 50-51).

De harmonia com o convencionado neste último documento, os já falecidos RR. M... e J..., na qualidade de donos e legítimos possuidores do prédio rústico então descrito na CRP ... sob o nº ... e inscrito na matriz de ... sob o artigo..., declararam dá-lo de permuta à D..., Lda, atribuindo-lhe o valor de €200.000,00, recebendo em troca as duas fracções correspondentes a duas moradias da tipologia T4 melhor identificadas na respectiva cláusula terceira.

Ora, neste contexto, havendo indiscutívelmente um negócio ou vínculo jurídico ao abrigo do qual a D..., Lda, recebeu dos 1ºs RR. o prédio em causa e nele iniciou a construção de um conjunto de edificações, não é possível a acessão.

Como escrevem P. de Lima e Antunes Varela (C. C. Anotado, 1972, V. III, p. 148), "A benfeitoria e acessão, embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento por quem está ligado à coisa, em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela"[2].

Em consequência, excluída que está a possibilidade de declarar a acessão (industrial) imobiliária no que concerne ao edificado pela D..., Lda, no prédio em questão, resta apenas apurar se há algum direito de crédito da A. relativo às benfeitorias inegavelmente úteis por si efectuadas.

Donde a improcedência da questão da acessão.

Sobre o direito de indemnização da apelante por força das benfeitorias por ela levadas a cabo.

Reclama a A. e apelante, em sede recursiva, e a título subsidiário, a condenação solidária dos RR. e da chamada C... no pagamento da quantia de €563.000,00 pelas benfeitorias erigidas no imóvel, “assistindo-lhe o direito de retenção até que esta indemnização seja paga”.

Na sentença recorrida o direito de indemnização pelo valor das benfeitorias da A. foi afastado porquanto esta “não alegou, logo não provou, que era possuidora do imóvel” dos 1ºs RR., sendo quando muito “mera detentora ou possuidora precária de tal imóvel por mera tolerância dos respectivos proprietários, os ora falecidos J... e mulher”. E, além disso, porque “as edificações efectuadas pela D..., Lda, nos termos referidos no facto provado sob o ponto 8. importaram para tal sociedade um custo que não foi concretamente apurado”.

Vejamos cada uma das objecções.

No que concerne ao problema da não demonstração do custo das edificações levadas a cabo pela insolvente D..., Lda, afigura-se-nos que a sentença não tem razão.

Nos termos do art.º 216 do C. Civil “Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar coisa (nº 1), sendo consideradas úteis as que “não sendo indispensáveis para a sua conservação lhe aumentam todavia o valor (nº 3)”.

Deflui da factualidade já citada e descrita 12, 21, 22 e 23, que se verificou um considerável aumento de valor do mencionado prédio dos RR. após as construções levadas a cabo pela insolvente D..., Lda, - isto sem embargo de alguma equivocidade ligada à expressão “valor de custo” que surge nºs 22 e 23pelo que é incontroverso que esta sociedade realizou naquele um conjunto de benfeitorias úteis.

Relativamente às benfeitorias operadas pelo possuidor, de boa ou má-fé, estatui o art.º 1273, nº 2, do CC que “quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa [3].

Deste modo, o que para a lei é imediatamente relevante para a determinação da importância a satisfazer pelo dono do imóvel benfeitorizado é o custo do empobrecimento (que coincidirá com o das benfeitorias), sem embargo do “tecto” da medida do locupletamento mencionado no nº 2 do art.º 479 do CC.

Ora, para além do custo das edificações para a D..., Lda, o valor final do prédio, reportado a Setembro de 2009, ou seja até ao final da intervenção da D..., Lda, – sem prejuízo da espúria alusão a “valores de custo das edificações” – também acaba por estar espelhado no facto provado em 23 através da subtracção do valor do terreno ao valor do imóvel edificado (€774.494,85 - €225.000,00).

Assim sendo, diversamente do que se afirma na sentença, nenhum outro custo importaria averiguar.

Já no que se atém à posse, a posição da sentença recorrida não merece crítica da nossa parte.

No contrato promessa, a lei não concede aos promitentes, diferentemente do que se passa, p. ex., com o comodatário ou com o arrendatário, qualquer equiparação ao possuidor de boa ou -.

É necessária uma posse e não uma mera detenção.

E, na verdade, não foi alegada nenhuma materialidade que pudesse configurar uma posse em nome próprio por parte da insolvente D..., Lda. Nem, tão pouco, essa posse poderá ser extraída do já falado “Contrato promessa de permuta” de 24.10.2003, uma vez que ali se previu que seriam os proprietários J... e M... a “assinar todos os documentos necessários à entrada dos diversos projectos na Câmara Municipal (…)”, nada se dizendo sobre a “traditio”, ou seja, sobre a entrega material ou simbólica do prédio que é a forma típica de aquisição derivada da posse (art.º 1263, alínea b) do CC), única que pode ser aqui esgrimida.

Claro que, subsidiariamente, a remoção do empobrecimento do autor de uma benfeitoria útil que não seja possuidor nunca poderia escapar às malhas da válvula de segurança que é o enriquecimento sem causa dos art.ºs 473 e ss. do C. Civil.

Todavia, no quadro factual dos autos existe um obstáculo, este de tomo, que sempre se atravessaria a qualquer pretensão indemnizatória da Massa insolvente recorrente.

Reside esse obstáculo no “Acordo de Resolução do Contrato Promessa de Permuta” celebrado em 1 de Maio de 2010.

Com efeito, o sócio-gerente e representante da aí segunda outorgante, D..., Lda, D..., declarou expressamente na cláusula 5: “os primeiros nada lhe devem em consequência das obras que foram já efectuadas no aludido prédio”. E, certamente para melhor compreensão desta declaração e da respectiva causa ou motivação, ficou exarada na cláusula 7 a declaração de que “as obras e benfeitorias efectuadas no terreno indicado na cláusula 2ª ficam a pertencer à sociedade M..., Lda (…)”.

Temos para nós que, só por si, semelhante declaração não pode ser havida como uma transmissão/cessão de um crédito para a referida M..., Lda,. Ela serviu simplesmente para expressar a intenção da outorgante D..., Lda, transferir as benfeitorias para aquela sociedade, sob uma forma que não está ali minimamente definida, e que, nessa data, provavelmente, também não estaria ainda concretizada.

Acresce que, mesmo a entender-se que há ali a confissão da transmissão de um crédito, isso nunca poderia dispensar a demonstração da aceitação do hipotético cessionário (cessionário que seria a M..., Lda, sendo certo que não há qualquer indicação de tal aceitação se tenha verificado).

De resto, na mesma data foi outorgado um contrato-promessa de compra-venda em que os falecidos 1ºs RR. declararam vender à M... o prédio rústico correspondente ao descrito sob o nº..., mas sem a mínima alusão às edificações que nessa data já se encontravam construídas.

Por conseguinte, a declaração constante da cláusula 7 do Acordo de 01.05.2010 de que “as benfeitorias (…) ficam a pertencer à sociedade M (…)”, dado que nem sequer materializa um qualquer contrato entre os hipotéticos cedente e o cessionário (que não participou no acordo) não pode, em si mesma, configurar a cessão de um crédito nos termos e para os efeitos do art.º 577, nº 1, do CC.[4]

Contudo, é no restante clausulado, que o mesmo Acordo contém uma inequívoca manifestação abdicatória por parte do representante da D..., Lda : é que este reconhece e declara que “os primeiros [outorgantes] nada lhe devem em consequência das obras que foram já identificadas no mencionado prédio”.

Trata-se de uma declaração que se aproxima da figura da remissão (art.º 863 do CC), na sua modalidade puramente abdicatória, uma vez que, com a aquiescência do devedor, o credor, sem animus donandi, renuncia/abdica ao direito de exigir a prestação[5].

Independentemente do crédito ter sido ou não transmitido na mesma ocasião ou posteriormente, é apodíctico que, com a aludida declaração, a D..., Lda – como, naturalmente, a Massa Insolvente aqui Autora – deixou de poder exigir o crédito de benfeitorias, sob qualquer forma, não apenas dos já falecidos 1ºs RR., como dos sucessivos adquirentes do imóvel (como é o caso com os restantes RR. e a interveniente C...).

Pelo que, embora por fundamentos inteiramente diversos, soçobra igualmente o pedido subsidiário formulado pela A. atinente à condenação solidária dos RR. e da interveniente C... no pagamento do custo das benfeitorias por si erigidas no imóvel que pertenceu aos RR. J... e M...

Pelo exposto, e ainda que com diversa fundamentação, confirmam a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Sumário:
1. A construção de um conjunto de edifícios num prédio rústico alheio, iniciada e desenvolvida ao abrigo de um contrato de permuta com os donos desse prédio, por ter na sua génese um vínculo ou negócio jurídico, não permite ao autor da construção a aquisição da propriedade do mesmo prédio com base no instituto da acessão imobiliária, nos termos do art.º 1340º, nº 1, do C. Civil.
2. Declarando o autor da das benfeitorias que nada tem a receber dos proprietários do imóvel onde foram feitas pelas obras ali realizadas, não pode a respectiva massa insolvente reclamar dos adquirentes daquele qualquer valor a esse título.

                                            Coimbra, 8 de Outubro de 2019


***


[1] Resultando do texto da decisão junto aos autos que aí se considerou que aquelas benfeitorias eram “insusceptíveis de levantamento” podendo apenas ser objecto de reclamação como crédito indemnizatório sobre a insolvência.
[2] Já na vigência do Código de Seabra era debatida a marca decisivamente diferenciadora entre benfeitoria e acessão imobiliária, tendo sido triunfante, no domínio daquele diploma, a fileira dos que colocavam o acento tónico da acessão na natureza substantivamente inovatória das obras, no que se refere à identidade da coisa em que se produziam - a tendência objectivista, encabeçada por Manuel Rodrigues e, de certo modo, também por Manuel de Andrade, em boa parte sustentada no art.º 2306 daquele Código, que também requeria a prova da posse para a acessão. Com o Código de 1966 veio no entanto a ganhar força, com o novo desenho da acessão decorrente do respectivo art.º 1340, a tendência subjectivista, que punha agora em destaque a inexistência no instituto da acessão de uma relação ou vínculo jurídico entre o autor da intervenção e a coisa beneficiada. Disto nos dá justamente conta o Cons. Quirino Soares, no seu Estudo sobre Acessão e Benfeitorias, in CJ, Ano IV, T. I, p. 11 e seguintes, autor que embora aplauda os termos da dicotomia estabelecidos por P. Lima e Antunes Varela, defende, no entanto, que sempre que esteja em causa uma mera relação real de posse, não compreendendo um vínculo bilateral mas antes universal, “a acessão ocupará o regime das benfeitorias sempre que, por efeito daquela, se opere a aquisição pelo interventor do domínio da coisa incorporadora.”

[3] Estruturalmente, as benfeitorias úteis são uma despesa, de sorte que, não podendo ser reavidas, integram um crédito para o benfeitorizante - art.º 216, nº 1 do CC – tendo o montante desse crédito de ser calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Face ao que se mostra exigido pelo art.º 479 do C.C o objecto da restituição terá o seguinte conteúdo:
1. Deve ser determinado o que foi obtido à custa do empobrecido, isto é, a medida do empobrecimento, que equivale ao dispêndio ou perda patrimonial efectivamente sofrida pelo benfeitor;
2. A restituição (medida do empobrecimento do autor da benfeitoria) tem como limite máximo a medida do locupletamento ou enriquecimento auferido pelo beneficiado com a benfeitoria (isto é, do incremento de valor da coisa benfeitorizada).

[4] É certo que os autos dão conta (fls. 89 e ss) da improcedência de uma acção de restituição e reparação de benfeitorias da massa insolvente da M..., Lda instaurada pela aqui A. Massa Insolvente de D..., Lda., mas daí nada se poderia inferir sobre qualquer negócio entre esta sociedade e aquela M..., Lda, antes da declaração de insolvência da D..., Lda. Como se extrai da factualidade provada em 24, 25, e 26, D..., que foi representante legal da D..., Lda, continuou efectuar contratos promesssa de compra e venda em nome e representação da M..., Lda, recebendo o dinheiro de todos os promitentes-compradores.
Simplesmente, não é possível consolidar qualquer conexão entre o Acordo de Maio de 2010 e a entrada dos edifícios construídos pela D..., Lda no património da M..., Lda.  
[5] Sobre a distinção entre os dois tipos de remissão – a remissão/doação e a remissão/abdicação – escrevem P. De Lima e Antunes Varela (C. C. Anotado, 1972, II, p. 109) que “Pode o credor pretender fazer uma liberalidade ao devedor. (…) Pode, porém, o credor ter um intuito meramente abdicatório, como no caso da concordata. O credor não pretende beneficiar o devedor, mas, por qualquer motivo, liberar-se apenas do crédito ou de parte dele. (…)”. “ Na remissão é o próprio credor que, com a aquiescência do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse qua a lei lhe conferia”.