Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/10.4IDCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: CRIME FISCAL
AVALIAÇÃO INDIRECTA
RENDIMENTO
BENS
TRIBUTAÇÃO
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 103.º E SS. DO RGIT; ARTIGOS 83.º E SS. DA LGT
Sumário: A avaliação indirecta dos rendimentos ou bens tributáveis, embora seja permitida para efeitos tributários, se observados os pressupostos do artigo 87.º da Lei Geral Tributária, não pode determinar, no âmbito de um processo penal, a condenação do arguido pela prática de um crime de natureza fiscal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                            

I. Relatório:                                                  

            A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 61/10.4IDCBR que corre termos no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, 1º Juízo, em 30/8/2013, foi proferida Sentença, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:

            “Por todo o exposto, o Tribunal julga a acusação provada e procedente e, consequentemente:

a) Condena o arguido A... como autor material de um crime de Fraude Fiscal, previsto e punido pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3 e 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

b) Suspende a pena de prisão em que o arguido A... vai condenado pelo período de 1 anos e 6 meses sob condição de o arguido proceder ao pagamento à Administração Tributária do valor de € 16.233,69 e acréscimos legais no mesmo lapso temporal em conformidade com o disposto no artigo 50.º do Código Penal e 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, o que deverá comprovar nos autos;

c) Condena a arguida B..., Lda., como autora de um crime de Fraude Fiscal, previsto e punido pelo artigo 7.º, n.º 1 e 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias na pena de 200 dias à taxa diária de € 7,50;

d) Condenam-se os arguidos nas custas do processo em conformidade com o disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC – n.º 5 do artigo 8.º e Tabela III constante do Regulamento das Custas Processuais;

e) Ordena a remessa, após trânsito, de boletim ao registo criminal;

Proceda-se ao depósito desta sentença nos termos do disposto no artigo 372º n.º 5 do Código de Processo Penal.”

                                                                        ****

            B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, em 20/9/2013, o arguido A..., pedindo: 1) a declaração de nulidade da sentença por violação do princípio da equidade e da proporcionalidade; 2) se assim se não entender, a nulidade da sentença recorrida; 3) caso ainda assim se não entenda, a sua absolvição; 4) se nenhum dos anteriores pedidos formulados  for atendido, a condenação em pena de multa, extraindo da motivação as seguintes conclusões:      

            1. (…).

            2. (…).

            3. (…).

            4. (…).

            5. (…).

            6. (…).

            7. (…).

            8. (…).

            9. (…).

            10. O Meritíssimo Juiz não ponderou a capacidade do Arguido em pagar a quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão.

            11. Conforme ficou provado em audiência de julgamento, o Recorrente não tem meios económicos para proceder ao pagamento da quantia de € 16.233,69, visto que o mesmo se encontra desempregado, não auferindo quaisquer rendimentos, bem como não possui nenhum bem móvel ou imóvel em seu nome.

            12. O Meritíssimo Juiz, ao decidir como decidiu, nomeadamente, a suspensão da pena de prisão pelo período de 1 ano e 6 meses, mediante a condição de proceder ao pagamento do valor de € 16.233,69, no mesmo período, é o mesmo que empurrar o Recorrente para a prisão.

            13. Se o Recorrente tivesse possibilidades de proceder ao pagamento de tal quantia já o teria feito.

            14. O recorrente apenas recusou prestar trabalho a favor da comunidade, em virtude de ser uma pessoa doente crónica, estando o mesmo em processo de pedido de reforma por invalidez – vide depoimento prestado em sede de julgamento.

            15. O Recorrente não aceitou prestar trabalho a favor da comunidade, não por não querer, mas apenas por não poder, em virtude dos seus problemas de saúde.

            16. Deve ser a Sentença recorrida revogada, com todas as consequências legais, o que, desde já, e aqui se requer.

            17. A pena concreta aplicada de 1 ano e 6 meses, apesar de suspensa na sua execução pelo mesmo prazo, na condição de o Recorrente pagar à Administração Tributária o valor de € 16.233,69, é injusta.

            18. Quer a pena aplicada quer a condição imposta são excessivas, de cumprimento inviável e, portanto, violadoras da lei.

            19. Face à situação económica do Recorrente, nomeadamente, da situação de desemprego, vivendo apenas com a pensão de viuvez da sua sogra, no valor de € 280,00, bem como o seu estado de saúde, nunca virá este a conseguir reunir os meios necessários para pagar o montante a que se encontra subordinada a condição de suspensão da execução da pena privativa da liberdade a que foi condenado.

            20. O previsível incumprimento da condição imposta não advém de opção própria do Recorrente mas, antes, de impossibilidade de facto em consequência da sua insuficiência económica como impeditiva e, até por razões conjunturais, alheias à sua vontade.

            21. O Tribunal não pode exigir ao Recorrente o cumprimento de qualquer reparação que lhe seja de todo impraticável. Não pode deixar de exigir apenas o razoável, sob pena de violar o princípio da equidade e proporcionalidade.

            22. Por outro lado, o regime da suspensão da execução da pena enquadra-se na filosofia consagrada no sistema punitivo do Código Penal, no sentido de que a pena de prisão constitui a ultima ratio da política criminal, devendo sempre que possível ser aplicada pena não detentiva da liberdade.

            23. O STJ tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o Tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão.

            24. De acordo com o disposto no n.º 2, do artigo 52.º, do Código Penal, os deveres impostos para a suspensão não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

            25. A norma legal acima referida consagra o princípio da razoabilidade a que tem de obedecer a imposição dos deveres.

            26. Ao impor a condição de pagamento da quantia de € 16.233,69, o Meritíssimo Juiz sabia da impossibilidade de cumprimento do dever imposto ao Arguido.

            27. Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente, o de pagar a quantia de € 16.233,69, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres.

            28. No caso dos autos, o Tribunal a quo, para além de averiguar a situação pessoal e económica do Arguido, conhecendo totalmente a capacidade financeira do mesmo, e verificando que o mesmo não tem condições para cumprir a injunção que condiciona a suspensão da prisão em que foi condenado, violou o princípio da razoabilidade e da equidade.

            29. Tendo em conta o acima exposto, não se poderia ter decidido como se decidiu.

            30. Facto pelo qual deve ser revogada a Sentença recorrida, com todas as consequências legais, o que, desde já, e aqui se requer.

            31. Nunca poderia ter sido concedido um prazo de pagamento de apenas 1 ano e 6 meses.

            32. Tendo em conta a situação económica e de saúde do Recorrente, tal condição mostra-se impossível de realizar e, consequentemente, empurra o Recorrente para a prisão.

            33. Deve ser dado um prazo para pagamento superior, visto que a lei diz que pode ir até ao limite máximo de 5 anos.

            34. A realização de tal condição tem de ser razoável para o recorrente.

            35. Não poderia o Meritíssimo Juiz ter dado como provado que a sociedade obteve proveitos no valor de € 190.068,80, quer o valor de € 124.609,00, a título de custos indispensáveis para a realização daquela facturação, bem como o valor de € 16.233,09, a título de tributo, tendo em conta que os mesmos foram apurados através de métodos indirectos.

            36. Conforme não se pode dar como provado o crime de Fraude Fiscal apenas com base em presunções que resultaram da aplicação de métodos indirectos pela Administração Tributária, como foi o caso nos presentes autos.

            37. Não foi averiguado com toda a certeza absoluta que o valor apurado pela Administração Tributária corresponde à realidade, em virtude de não possuir documentos que comprovem esse valor.

            38. O Meritíssimo Juiz deveria ter em conta o princípio do “in dubio pro reo”, constitucionalmente consagrado.

            39. O Meritíssimo Juiz, ao decidir como decidiu, violou os preceitos constantes nos artigos 32.º, n.º 2, da CRP, 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e 6.º, n.º 2, da Convenção europeia dos Direitos do Homem.

         40. Deixando o Meritíssimo Juiz de se pronunciar sobre estas questões que devesse apreciar, nomeadamente as já alegadas nesta peça processual, ou apreciando-as superficialmente, e com bastantes lacunas, como acima já se disse.

            41. Lendo, atentamente, a Sentença recorrida, nesta parte, ou noutra parte qualquer, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação do verdadeiro motivo da condenação do arguido.

            42. A Sentença recorrida viola.

            a) Artigos 374.º, 375.º, 377.º, 379.º, n.º 1, al. c), e 410.º, do CPP;

            b) Artigos 13.º, 32.º, 205.º, 207.º e 208.º, da CRP;

            c) Artigos 40.ª, 50.º, 70.º, 71.º, do CP;

            d) Artigos 14.º e 103.º, do RGIT;

            e) Artigo 11.º, n.º 2, da Declaração Universal dos direitos do Homem;

            f) Artigo 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos;

            g) Artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

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            C) O recurso foi, em 9/10/2013, admitido.

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D) O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, em 4/11/2013, defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes conclusões:

1. Não há qualquer dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

2. Existe prova do crime de fraude fiscal quando (além do mais) assente nos métodos indirectos de tributação, pelo que se justifica a condenação do ora recorrente.

3. É justa a pena de prisão (suspensa na sua execução) aplicada ao arguido A..., sendo pertinaz o condicionamento de tal suspensão ao específico regime consagrado, para os crimes fiscais, no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.

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Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 13/12/2013, emitiu douto parecer, no qual defendeu a improcedência do recurso

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

            “I. RELATÓRIO

1. Nos presentes autos de Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi proferido a fls. 436 despacho instrutório por intermédio do qual se pronunciaram os arguidos

a) B..., Lda., pessoa colectiva n.º 506.403.696, com sede na Rua (...), Figueira da Foz,

b) A..., casado, nascido em 19 de Outubro de 1953 na freguesia de (...), concelho da Figueira da Foz, filho de (...) e de (...), residente na Rua (...), Figueira da Foz,

Pela prática de factos susceptíveis de integrarem a comissão, em autoria material, de um crime de Fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea b), 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias.

2. O arguido A... apresentou contestação escrita a fls. 467, tendo indicado testemunhas. Argumentou, além do mais, que, pendendo no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra sob o n.º 480/10.6 BECBR Oposição à execução instaurada pela Administração Tributária contra a sua pessoa, deveriam os presentes autos quedar suspensos porquanto a decisão a proferir nesta sede influirá sobre a temática da sua responsabilidade criminal. Questão que foi já apreciada pela Mma. Juíza de Instrução a fls. 433 e 436, considerando-se oportunamente que os valores em causa neste processo são de natureza diversa dos valores a cobrar na mesma execução, a qual não obsta, por conseguinte, à definição da tipicidade criminal da actuação do arguido A... e à subsequente punição que se possa impor. Posição com a qual concordamos, aliás, integralmente. 

3. Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, como se alcança das respectivas actas das sessões da audiência

Nessa sequência, foi proferida a sentença de fls. 573 a operar condenação dos arguidos A... e B...l, Lda., como autores de um crime de Fraude Fiscal nas penas, respectivamente, de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução sob condição de pagamento à Administração Tributária do valor de € 16.233,69 e de 200 dias de multa à taxa diária de € 75,50.

            Interposto recurso de tal decisão pelo arguido A... para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, foi proferido o douto Acórdão de fls. 706 e em conformidade com o qual

“Julga-se nula, por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal], a sentença recorrida, determinando-se o reenvio parcial para novo julgamento restrito à questão da determinação da sanção.”

Isto porquanto se considerou que este Tribunal omitiu o “juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal [pagamento da importância de € 16.233,69] por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica” imposto pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012, de 12 de Setembro, do Supremo Tribunal de Justiça. Entendeu-se, assim, superiormente que – e não obstante o silêncio a que o arguido A... se remeteu quando às suas condições pessoais e económicas – se impunha a devida perscrutação das suas capacidades para observar a condição de suspensão decorrente do funcionamento do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Com o que foi neste Tribunal proferido despacho de 27 de Maio de 2013 a designar data tendente à produção de prova quanto á questão da determinação da sanção, tendo-se, simultaneamente, determinado a materialização das diligências de prova descriminadas a fls. 724 e 838.

4. Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância verificados no momento da prolação do despacho que designou dia para a audiência de julgamento, sendo que, supervenientemente, não ocorreram quaisquer circunstâncias com virtualidade de impedir o conhecimento do mérito da causa.

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.1 - FACTOS PROVADOS

Da instrução e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

a) A arguida B..., Lda., é uma sociedade por quotas registada na Conservatória do Registo Comercial da Figueira da Foz com a matrícula n.º (...) e com o capital social de € 50.000,00,

b) A qual se constituiu em 2002 com o objecto de construção civil e obras públicas, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, comércio de materiais de construção, administração de condomínios, prestação de serviços de carpintaria, canalizações, estucagem e instalações eléctricas e de gás,

c) Tendo a sua sede social sita na Rua (...), Buarcos,

d) E apresentando como gerente, desde a data da correspondente constituição, o arguido A...,

e) Obrigando-se a arguida B... nos negócios realizados com a assinatura do sobredito arguido A...,

f) O qual tomava, nesse sentido, todas as decisões tendentes ao normal funcionamento da arguida B... e, designadamente, ao cumprimento das suas declarações e obrigações para com a Administração Tributária com a colaboração do correspondente contabilista;

g) No ano de 2006, a arguida B... achava-se enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável para efeitos de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas,

h) Não tendo, no entanto, remetido à Administração Tributária a declaração periódica de rendimentos modelo 22 de Imposto sobre o Rendimento Colectivo referente ao período relativo ao mesmo ano fiscal,

i) O que motivou a Administração Tributária, em face da paralela falta de exibição da contabilidade que havia sido peticionada à arguida B..., a apurar os valores devidos a título de imposto a liquidar por intermédio do recurso a métodos indirectos e da análise das declarações periódicas de Imposto sobre Valor Acrescentado reportadas ao 1.º, 2.º e 3.º trimestre de 2006;

j) Constatou assim a Administração Tributária que a arguida B... obteve, quanto a tal exercício, proveitos de € 190.068,80 decorrentes dos serviços por si prestados aos correspondentes clientes,

k) Computando, além do mais e por intermédio do recurso a métodos indirectos, o dispêndio da importância de € 124.609,11 em matéria de custos indispensáveis para a realização daquela facturação,

l) Concluindo desta forma que, com a omissão da declaração de proveitos sujeitos a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas respeitante ao exercício de 2006, a B... deixou de entregar à Administração Tributária um concreto tributo no valor de € 16.233,69,

m) O qual corresponderia, nesta senda, à incidência da taxa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas sobre a matéria colectável de € 65.459,69;

n) A não apresentação da declaração periódica de rendimentos modelo 22 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e a consequente ocultação das informações que dela deveriam constar apresentou-se como propósito formulado pelo arguido A... com vista a obstar a que a Administração Tributária fiscalizasse, determinasse, avaliasse ou controlasse a matéria colectável devida,

o) Visando com isso a não liquidação, entrega ou pagamento dos respectivos quantitativos à Administração Tributária por forma a obter uma correspondente vantagem patrimonial para a arguida B... com paralela diminuição da receita fiscal,

p) O que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta lhe estava legalmente vedada, actuando, não obstante, de forma livre, deliberada e consciente;

q) A arguida B... cessou a sua actividade em momento não posterior ao ano de 2010;

r) O arguido A... é tido pelos que com ele privam como pessoa trabalhadora e séria;

s) Foi elaborado o relatório social de fls. 817 por reporte ao arguido A... e em conformidade com o qual se constatou, designadamente o seguinte:

(…)

O arguido reside com a esposa C..., de 61 anos de idade, doméstica. Faz igualmente parte do sistema familiar a sogra do arguido.

O casal tem 2 filhos, actualmente com 40 e 38 anos, com vida familiar e profissional organizadas, estando o mais velho a residir na Polónia.

A... reside em casa própria, que segundo refere construiu num terreno que foi dado pelo sogro. Trata-se de uma moradia de r/chão e 1.º andar que oferece boas condições de habitabilidade.

O único rendimento do agregado decorre da pensão de viuvez da sogra no valor de cerca de € 280,00. Salienta que tem tentado obter a reforma por invalidez, tendo presente problemas de obesidade e apneia do sono, mas ainda não lhe foi concedida.

Salienta uma situação de económica de grandes dificuldades, não beneficiando de qualquer apoio de carácter social. Verbaliza um discurso de desesperança face à sua situação actual, desempregado e sem recursos financeiros, que influencia o estado depressivo em que parece encontrar-se.

(…)

t) Na Base de Dados da Segurança Social não consta que o arguido A... ostente actividade laboral, não se encontrando o mesmo, ademais, a receber prestação social ou pensão;

u) O arguido A... não detém veículos em seu nome;

v) Na Base de Dados da Direcção Geral dos Impostos, não constam bens imóveis registados em nome do arguido A...;

w) Nas declarações de IRS – Modelo 3 referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011, o arguido A... declarou a obtenção de rendimentos a cifrarem-se, respectivamente, em € 4.500,00, € 533,33 e € 0,01;

x) Não se lograram apurar valores depositados em instituições bancárias pelo arguido A...;

y) O arguido A... ostenta a qualidade de sócio da firma G..., Lda., a qual apresentou resultados negativos para efeitos fiscais no ano de 2010 e não evidencia actividade por reporte ao períodos de 2011 e 2012,

z) Sendo que a última declaração de remunerações apresentada pela mesma G... se reporta ao ano de 2009;

aa) A G... possui registados em seu nome os veículos de matrículas (...)HZ e (...)RC;

ab) O arguido A... não consente em trabalhar a favor da comunidade;

ac) O tributo descrito na alínea l) dos factos provados não foi liquidado, até à presente data, à Administração Tributária;

ad) Do registo criminal da arguida B... nada consta;

ae) Do registo criminal do arguido A... consta que:

i. Foi condenado em 14 de Julho de 2001 por sentença transitada em julgado em 25 de Outubro de 2001 no processo n.º 172/98.2 TCLRA por reporte a factos concretizados em 31 de Maio de 1993 e susceptíveis de conformar a prática de um crime de Fraude fiscal na pena de três anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e sob condição de o arguido proceder, no lapso temporal de 18 meses, à liquidação do imposto em falta, a qual foi declarada extinta em 9 de Junho de 2011;

ii. Foi condenado em 17 de Dezembro de 2011 por sentença transitada em julgado em 14 de Janeiro de 2002 no processo n.º 1547/99.2 TBFIG por reporte a factos concretizados em  9 de Novembro de 2009 e susceptíveis de conformar a prática, em concurso real e efectivo, de um crime de Condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de Homicídio por negligência na pena única de 12 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e e sob condição de o arguido frequentar um curso de condução segura, a qual foi declarada extinta em 26 de Fevereiro de 2004;

iii. Foi condenado em 10 de Maio de 2006 por sentença transitada em julgado em 27 de Março de 2007 no processo n.º 778/05.5 PBFIG por reporte a factos concretizados a 24 de Julho de 2005 e susceptíveis de conformar a prática, em concurso real e efectivo, de dois crimes de Desobediência na pena única de 150 dias de multa à taxa diária de € 7,00 e na sanção acessória de 6 meses de inibição de conduzir, as quais foram declaradas extintas em 19 de Dezembro de 2007;

iv. Foi condenado em 26 de Fevereiro de 2007 por sentença transitada em julgado em 18 de Outubro de 2007 no processo n.º 629/05.0 GBAND por reporte a factos concretizados a 28 de Outubro de 2005 e susceptíveis de conformar pela prática, em concurso real e efectivo, de dois crimes de Desobediência na pena de 170 dias de multa à taxa diária de € 3,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 6 meses, sanções que foram declaradas extintas, respectivamente, em 23 de Setembro de 2009 e em 3 de Agosto de 2009;

v. Foi condenado em 3 de Outubro de 2007 por sentença transitada em julgado em 7 de Abril de 2008 no processo n.º 128/07.6 GAMMV por reporte a factos concretizados a 24 de Fevereiro de 2007 e susceptíveis de conformar a prática de um crime de Condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 115 dias de multa à taxa diária de € 10,00 e na sanção acessória de conduzir pelo período de 7 meses, as quais foram declaradas extintas em 30 de Maio de 2011;

vi. Foi condenado em 7 de Novembro de 2007 por sentença transitada em julgado em 9 de Junho de 2008 no processo n.º 331/04.0 TAFIG por reporte a factos concretizados a 14 de Março de 2002 e susceptíveis de conformar a prática de um crime de Abuso de confiança contra a segurança social na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 5,00, a qual foi declarada extinta em 30 de Setembro de 2011;

vii. Foi condenado em 6 de Outubro de 2008 por sentença transitada em julgado em 14 de Abril de 2009 no processo n.º 199/08.8 TAMMV por reporte a factos concretizados a 7 de Fevereiro de 2011 e susceptíveis de conformar a prática de um crime de Desobediência na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de multa à taxa diária de €10,00, a qual foi declarada extinta em 7 de Fevereiro de 2011.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

III.2 - Factos não provados
Não resultou provado, com relevo para a boa decisão da causa e por reporte à contestação, que:
1. A arguida B... não laborou no exercício fiscal no ano de 2006,
2. Não tendo obtido efectivo rendimento passível de ser tributado.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.3 - Motivação da matéria de facto

A convicção do Tribunal na decisão respeitante à matéria de facto foi formada dialecticamente na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida em audiência, com recurso às regras de experiência de vida. Em concreto, o Tribunal teve em consideração:

1. O extracto de conta titulado pela firma D... por reporte à arguida B... tal como constante de fls. 40;

2. As facturas e documentos de fls. 41 a 44 e 46 a 62;

3. A declaração da Técnica Oficial de Contas F... a fls. 94;

4. A informação referente às Declarações Periódicas de IVA de fls. 84 a 86;

5. A certidão de registo comercial de fls. 137;

6. O Contrato de Sociedade da arguida B... constante de fls. 137;

7. Os Certificados de Registo Criminal de fls. 500 e 501.

Como se constata do cotejo entre a factualidade provada e o libelo acusatório, o objecto do processo quedou na sua totalidade demonstrado. Efectivamente, ainda que com alterações de pormenor em função de uma técnica de redacção distinta entre o vertido naquele despacho e o Tribunal, divisa-se que o circunstancialismo plasmado na acusação foi integralmente transposto em sede de tipicidade subjectiva e objectiva para a factualidade delineada na sentença.

E importa esclarecer que a convicção do Tribunal se mostra linear e de simples compreensão. Temos, nesse sentido, que uma análise minimamente cuidada da documentação supra posta em relevo – e, designadamente, a informação referente às Declarações Periódicas de IVA de fls. 84 a 86 e as facturas constantes de fls. 41 a 42 e 46 a 58 (pois que as demais dizem já respeito ao exercício de 2007) – forçam a automática constatação que a arguida B... facturou aos seus clientes no ano de 2006 um valor total de € 196.997,07. Note-se, para tal efeito, que as Declarações Periódicas de IVA remetidas pela arguida B... referentes aos 3.ºs primeiros trimestres do mesmo período documentam uma facturação global de € 157.076,58 – o qual se desdobra nas importâncias de € 51.463,77 por reporte aos meses de Janeiro a Março de 2006 (fls. 84), de € 69.687,22 por reporte aos meses de Abril a Junho de 2006 (fls. 85) e de € 35.925,59 por reporte aos meses de Julho a Setembro de 2006 (fls. 86) –, constando-se, complementarmente e no que respeita ao 4.º trimestre – período por referência ao qual omitiu a declaração de IVA –, que a mesma cobrou ainda as grandezas de € 9.172,17 ao cliente D...e de € 30.748,43 à cliente E....

Temos, por igual forma, que, não obstante tal facturação, a arguida B... não apresentou a correspondente declaração de IRC a documentar perante a Administração Tributária as receitas globais – bem como os custos indispensáveis para a sua formação – do mesmo período de 2006. O que legitimou a Administração Tributária a peticionar a contabilidade da mesma arguida para efeitos de determinação da matéria colectável (a fls. 77 e seguintes), tendo a correspondente não exibição motivado o apuramento do lucro tributável por intermédio de métodos indirectos em conformidade com o artigo 57.º do Código do IRC.

Operação na qual a Administração Tributária descortinou os precisos documentos supra postos em relevo – ou seja, a existência de Declarações Periódicas de IVA referentes aos 3 primeiros trimestres de 2006 e a facturação documentada a fls. 41 a 42 e 46 a 58 – e que a levaram a concluir seguramente pela existência de proveitos na grandeza de € 190.068,80[1]. Com o que, cruzando tais valores com a importância de € 124.609,11 decorrente da estimativa concretizada dos custos indispensáveis para a formação do proveito por intermédio a métodos indirectos – que se indexa à média de encargos declaradas pelas das demais empresas do mesmo sector e que, no caso sub judice, se traduz em 65,56% atenta a indexação da margem de lucro à grandeza de 34,44% –, alcançou a Administração Tributária um rendimento colectável de € 65.459,69.

Rendimento sobre o qual irá, pois, incidir a taxa de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, sendo que este, à data dos factos, se cifrava em 25%. O que permite computar em € 16.364,92 o valor do imposto que carecia de ter sido declarado à Administração Tributária e liquidado por referência ao exercício de 2006.

Todo este raciocínio acha-se, aliás, cristalinamente materializado no parecer de fls. 121 e foi, aliás do mais, reafirmado por H... enquanto inspector tributário responsável pela correspondente elaboração. Testemunha que narrou de forma objectiva e equidistante – tendo recolhido toda a credibilidade do Tribunal – os diversos esforços por si encetados com vista a descortinar a realidade fiscal da arguida B... no mesmo período fiscal e a sua constatação que a mesma já não laborava por ocasião da actuação inspectiva.

E compreende-se, assim e na sua totalidade, a convicção do Tribunal por reporte à factualidade provada. É que a mesma decorre de forma primacial da documentação junta aos autos…

Já no que se reporta ao circunstancialismo não provado, temos que este flui, naturalmente, da sua contrariedade com os próprios factos assentes e com os elementos de prova constantes no processo. Efectivamente, é de conclui necessariamente em face de todo o exposto que a arguida B... laborou no exercício de 2006… É que só conquanto estivesse em actividade é que poderia a mesma firma prestar os serviços cuja facturação se encontra documentada nas declarações periódicas de IVA e na facturação posta em relevo! Acresce que a própria prova produzida pelo arguido não se acha apta a pôr em crise tal constatação. Efectivamente é a própria depoente por si arrolada, I...., que evidenciou que “trabalhei na B... no passado. Em 2006, acho que trabalhava para a empresa”. Também J... avançou que “conheço o A... há 30 anos e sei que ele foi gerente da B.... Não sei até quando esta laborou”. Note-se, por outro lado, que é pela circunstância de ambos terem narrado que a contabilidade se achava concretizada com a ajuda de uma contabilista – a qual, à luz de fls. 94, cessou a sua colaboração em 13 de Outubro de 2006 e, por conseguinte, em momento prévio à obrigatoriedade de apresentação da declaração de IRC que funda os presentes autos – que se introduziu a precisão constante da alínea f) dos factos provados.

É certo que o sobredito J... esclarece ainda que “tenho a ideia que a B... não teria possibilidade de pagar os montantes do imposto”. O que, ainda assim, se apresenta absolutamente inócuo para a convicção do Tribunal ou para a boa decisão da causa. É que o ilícito imputado ao arguido – e, por conseguinte, o juízo de censura – se centra num crime de Fraude fiscal e não de Abuso de confiança fiscal. Acresce que a mera ideia mantida por tal depoente pouco permite esclarecer se ocorria tal efectiva impossibilidade e a forma de processamento de laboração da arguida B... contemporaneamente à consumação do crime. Isto tanto mais que o arguido exerceu o seu legítimo direito ao silêncio por referência a todas as perguntas que lhe foram dirigidas – e, nomeadamente, as referentes às suas condições pessoais –, tendo, no entanto e com isso, renunciado identicamente à possibilidade de contextualizar a falta constatada e, com isso, oferecer um quadro atenuante do ilícito.

Os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram da análise das circunstâncias que envolveram os elementos objectivos em harmonia com as regras da experiência e do senso comum.

As condições pessoais do arguido A... decorreram das declarações por este prestadas e da documentação de fls. 739, 736, 783, 797, 799, 812, 815, 821, 824 a 829, 856, 847 a 858 e 959. É certo que o Tribunal não ficou convencido do retrato de penúria económica delineado pelo arguido A.... Temos, naturalmente e para tal efeito, que um agente que assume como timbre a prática de crimes patrimoniais atentatórios de interesses públicos – e a cifrarem-se, ademais, em Fraude fiscal – tenderá, com grande probabilidade, a camuflar o seu património. Isto quando se notou ao arguido A..., por diversas vezes, um esforço de encobrir um conjunto de informações da actividade investigatória do Tribunal, tendo sido apanhado em falta, a título de exemplo,  quando evidenciou que a G... se encontraria já insolvente – dado que foi contrariado na pesquisa à Base de Dados do Tribunal – e que a mesma sociedade já não disporia do veículo de matrícula (...)HZ em virtude de o mesmo ter sofrido um acidente há uns 7 ou 8 anos. Isto quando se constata que o correspondente registo de aquisição por tal firma se reporta a 13 de Novembro de 2008. Acresce que surpreende que um indivíduo com as dificuldades pecuniárias evidenciadas pelo arguido A... não recorra ao apoio judiciário com vista a quedar isento das custas judicias e dos honorários de defensor, nessa senda, nomeado.

Sucede que, não obstante tais desconfianças, a realidade é que o Tribunal não logrou apurar um qualquer activo ao arguido A.... Com o que, independente da maior ou menor bondade das dúvidas assumidas quanto ao estado financeiro do arguido A..., carece o signatário, naturalmente, de tomar aquele como indivíduo sem posses de relevo para efeitos da decisão a materializar.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

a) Conforme se referiu, os arguidos B..., Lda., e A... vêm acusados da prática de factos susceptíveis de integrarem a comissão de um crime de Fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Há pois que apurar se os arguidos praticaram o crime pelo qual vêm acusadas.

Determina o artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que:

1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária

Temos que o mesmo preceito se apresenta como um tipo legal que se dirige não apenas à tutela do Erário Público na vertente contributiva – ou seja, do património colectivo titulado pela Segurança Social[2] –, mas também, e ainda que reflexamente, à protecção das relações de colaboração que se estabelecem entre o contribuinte e o credor contributivo.

Na verdade, e como refere Augusto Silva Dias, “os crimes fiscais são estruturados em torno do perigo ou do dano, referentes às receitas fiscais do Estado, causados pela violação de deveres de colaboração do contribuinte respeitantes à obrigação tributária principal. Esta estrutura encerra, pois, níveis e conteúdos distintos: o bem jurídico protegido é constituído pelo património fiscal do Estado como instrumento da política financeira e distributiva (artigos 81.º e 103 da C.R.P.) enquanto os deveres de colaboração formam o suporte normativo que assegura a protecção do bem. Deste modo, o primeiro aspecto prende-se com o desvalor do resultado, significando o segundo o desvalor da acção das incriminações fiscais[3].

Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2000 tem o cuidado de explicitar que o crime de fraude fiscal tutela o bem jurídico da verdade nas relações entre os contribuintes e o Fisco, consumando-se independentemente de qualquer enriquecimento efectivo do agente[4]. Trata-se, pois, de um crime de resultado cortado que se exaure ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha efectivamente a ocorrer e carecendo a mesma apenas de ser desejada.

Constata-se, por outra via, que o iter criminis do ilícito contido no artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias se identifica com toda e qualquer actividade obediente a um dolo específico de obtenção de benefícios fiscais ou de vantagens patrimoniais. Isto sendo certo que a consumação de tal crime ocorre logo que o agente materializa a lesão da verdade e da transparência exigidas nas relações fisco/contribuinte, ficando, pois, o resultado lesivo sobre o património fiscal – conquanto o mesmo ultrapasse o limiar da condição objectiva de punibilidade ínsita no n.º 2 do preceito transcrito – para ser considerado em sede de medida da pena[5].

Assim, é inequívoco que os arguidos preencheram o tipo incriminatório matricial supra descrito no artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. Na verdade, resultou da instrução e discussão da causa que o arguido A..., actuando como gerente da arguida B..., não remeteu à Administração Tributária a declaração periódica de rendimentos modelo 22 reportada ao ano de 2006. Com o que omitiu da mesma Administração Tributária os proveitos auferidos pela sociedade e obstou, subsequentemente, o controlo da matéria colectável com consequente definição do imposto devido.

Por outro lado, e por referência ao tipo subjectivo do crime, conclui-se que o arguido A... agiu, enquanto gerente da arguida B..., com dolo directo, tendo agido de forma livre, intencional e consciente e tendo pleno conhecimento que se achava obrigado a apresentar declaração de IRC conforme com a sua realidade tributária. O que, ainda assim, não concretizou com vista ao propósito, específico e alcançado, de obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito e que, in casu, se cifrou no valor de € 16.364,92 que logrou não entregar a título de imposto à Administração Tributária com consequente diminuição das receitas tributárias.

Assim, ao agir da forma narrada, o arguido A... adoptou uma conduta apta a preencher os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de Fraude fiscal tal como o mesmo ilícito se encontra previsto e punido no artigo 103.º, n.º 1, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias. Crime que cuja consumação se mostra também imputável à arguida B... à luz do disposto no artigo 7.º do mesmo diploma legal.

IV. ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Logrado que está o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, importa agora determinar a medida da sanção a aplicar. E para desempenhar tal tarefa fornece o artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias a moldura penal de punição em pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias. Sanções que carecem de ser ajustadas – atento, além do mais, o disposto nos n.º 3 do artigo 12.º do mesmo diploma legal – em face da sociedade arguida B... e que, nesse sentido, conhecem um agravamento para pena de multa até 720 dias.

Por outro lado, atenta a alternatividade do tipo legal em causa e da consequente faculdade de aplicação ao arguido A... de pena de prisão ou de pena de multa, impõe-se a obtenção de um critério que nos auxilie na escolha de uma das mesmas sanções. Esse critério é-nos dado pelo legislador no artigo 70.º do Código Penal, preceito que acolhe abstractamente um princípio pragmático de preferência pela aplicabilidade de sanção não privativa de liberdade em face da pena de prisão sempre que aquela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição tal como estas se encontram previstas no artigo 40.º do Código Penal.

Assim, e se é inequívoco que são exigências preventivas – e não de compensação da culpa – que presidem à aludida tarefa de escolha da natureza da pena, resta ainda determinar as relações mútuas que se estabelecem entre prevenção geral positiva e prevenção especial com vista a tal fim, maxime quando aqueles entrem em conflito na tarefa de escolha da pena principal. A esta questão responde Anabela Rodrigues considerando que é um “orientamento de prevenção – e esse é o de prevenção especial – que deve estar na base da escolha da pena pelo juiz; sendo igualmente um orientamento de prevenção – agora de prevenção geral, no seu grau mínimo – o único que pode (deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial”[6].

E importa, nesta vertente, evidenciar que o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012 tece algumas considerações adicionais que não a mera necessidade de formulação de um juízo de prognose favorável quanto à possibilidade de cumprimento da condição da suspensão. Efectivamente, pugna o mesmo aresto que

“Concluindo-se pela inviabilidade, num juízo prognóstico de razoabilidade, da satisfação da condição legal, será de repudiar a substituição da prisão por «suspensão» (pois que esta, sem o pagamento integral da prestação tributária não realiza de forma adequada e suficiente – na perspectiva do próprio RGIT – as finalidades da punição), haverá que se retroceder, revendo-se porventura a solução a seu tempo provisoriamente adiantada, à questão da opção entre a «prisão» (ainda que «suspensa») e a «multa» (que, numa primeira abordagem, se rejeitara no pressuposto que a «suspensão» – se condicionada – satisfaria adequada e suficientemente «as finalidades da punição»).”

Discordamos, no entanto e com o devido respeito, de tal possibilidade. Isto tanto mais que tal argumento não consta do dispositivo do Acórdão Uniformizador, não assumindo, pois, a vinculação neste ínsita. É que a definição se a pena de multa alcança as finalidades da punição apresenta-se como juízo claramente autónomo e estranho à ulterior sopesação da substituição da pena de prisão. Temos, para tal efeito, que a operação de escolha da pena envolve uma primeira fase – livre de quaisquer considerações substitutivas – em que se sindica da adequação da pena de multa. E se se considera que o arguido ostenta exigências ressocializadoras que demandam a aplicação de uma pena de prisão – aferindo-se, após, se esta será efectiva ou substituída –, não vemos como se poderá, em tal ponderação, «atenuar» tais exigências em função da inviabilidade da suspensão da pena. Ou seja, o aplicador, quando opta entre pena de multa e pena de prisão, carece de assumir a percepção que esta, ab initio ou supervenientemente, pode vir a ser concretamente observada. Com o que pugnar que a frustração do juízo de prognose deverá conduzir a uma reponderação da opção entre as penas principais significa que se estão a ficcionar menores exigências de ressocialização sem que estas, efectivamente, ocorram. Ou seja, a inexistência de património conhecido do agente com vista ao pagamento à Administração Tributário dos montantes objecto de apropriação não minora, como é óbvio, o seu passado criminal, a gravidade do ilícito ou a sua personalidade anti-social. 

Com o que se é de considerar que o arguido A... não ostenta condições financeiras que lhe venham, previsivelmente, a viabilizar o cumprimento da condição plasmada no artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, temos, ainda assim, que tal factor não pode influir na tarefa de eleição da pena principal. Mas ainda que assim não fosse – ou seja caso fosse de atender desde já quanto à inviabilidade do pagamento do montante indemnizatório previsto naquele preceito em face da posição assumida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012 –, temos que a eleição da pena de prisão sempre se continuaria a impor. 

Na verdade, afigura-se que a pena de multa não terá aptidão para realizar in casu, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição na vertente de prevenção geral e especial positiva. O que se afirma, desde logo, em face do passado criminal do arguido A..., o qual revela uma personalidade com uma franca tendência criminógena. Isto tanto mais que, não obstante a maioria dos ilícitos penais se processar no âmbito da criminalidade estradal, o arguido denota já duas condenações anteriores por crimes contra o erário público na vertente fiscal. Condenações que, ainda assim, não convenceram o arguido A... a inverter o percurso trilhado na concretização de ilícitos fiscais, sendo, por conseguinte, de antever que uma condenação em multa não se mostrará suficiente para evitar uma recidiva em tal domínio. É, assim, particularmente alto o receio que o arguido venha a reincidir na prática criminosa. Receio este que, quer na perspectiva do condenado, quer na perspectiva da comunidade – que não compreenderia a mera aplicação de uma pena de multa em face de uma falta de colaboração com a Administração Tributária centrada nos valores em questão atenta a consciência que o comportamento relapso de alguns contribuintes e a economia paralela foram alguns dos factores francamente desestabilizadores da nossa economia a acarretar os sacrifícios actualmente impostos –, urge suprir com a aplicação de uma sanção detentiva.

Acresce que o ilícito dos autos ostenta uma gravidade já considerável. Temos, para tal efeito, que a circunstância de o legislador ter erigido o montante de € 15.000,00 como condição objectiva de punibilidade não legitima a conclusão que a retenção de um imposto de IRC no montante de € 16.233,69 se apresenta como dotada de menor danosidade. Não nos podemos, para tal efeito, olvidar que o proveito efectivo não declarado pelo arguido A... ascende à grandeza de € 190.068,80 e que a consequente matéria colectável a comunicar se cifrava em € 65.459,69. Tratam-se, nesta senda, de valores elevados e que, em conjugação com o passado criminal do arguido, não comportam, por qualquer forma, a aplicação de uma pena de multa. O que se afirma mesmo com a noção de impossibilidade de suspensão da aludida sanção.

Importa agora proceder à determinação concreta da pena.

Sublinhe-se, desde já, que a realização desta tarefa surge indissociavelmente conexionada com as finalidades que se adscrevam à pena criminal. Desta forma, terá o julgador como ponto de referência o próprio programa político-criminal que se encontra consagrado no artigo 40.º do mesmo diploma legal.

Determina o n.º 1 deste preceito que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Desta forma, a finalidade que a pena visa, primacialmente, alcançar traduz-se na necessidade de tutela da confiança e do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime ou, acolhendo a formulação da Jakobs, na “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada[7]. Por sua vez, lograda que esteja esta finalidade de prevenção geral positiva, à pena preside ainda, por igual forma e em segunda linha, um escopo de prevenção especial. Prevenção esta que será pensada preferencialmente em ordem à reinserção comunitária do delinquente sempre que este se revele carente de socialização, mas já apenas de advertência quando esta carência não exista ou de inocuização quando não seja de esperar qualquer êxito na mesma tarefa de socialização.

No entanto, e porque, quando comandada por este duplo propósito surge o risco de instrumentalização da pena e do respectivo agente ao serviço de finalidades meramente preventivas e duma sequencial violação da dignidade da pessoa humana, determina ainda o n.º 2 do referido preceito que em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da culpa.

É este pois o quadro de fins da pena criminal que se encontra plasmado legislativamente e que recolhe uma aceitação quase consensual quer em sede jurisprudencial, quer em sede doutrinal.

Por outro lado, e como se disse há pouco, o programa político-criminal que se reconheça como subjacente à finalidade das penas não poderá deixar de influenciar de forma determinante a concreta tarefa de determinação daquelas. Assim, e à semelhança do que sucede com a demais jurisprudência e doutrina maioritária, tendemos a aceitar que é a teoria da moldura de prevenção defendida por Figueiredo Dias[8] e Anabela Rodrigues[9] a orientação de determinação da pena que se acha mais conforme com o propósito do nosso legislador.

Desta forma, e aceitando que as exigências de prevenção geral positiva não se traduzem numa pena exacta dentro da moldura penal abstracta dada pelo legislador, mas antes se reflectem numa moldura concreta de prevenção cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, temos que a pena concreta será encontrada dentro desta moldura em função de exigências de prevenção especial – em regra positiva ou de socialização –, mas sempre com a medida da culpa como seu limite máximo.

Assim sendo, a pergunta que o julgador deve colocar ao operar a tarefa de determinação concreta da pena à luz do artigo 71.º do Código Penal é a seguinte Qual o mínimo de pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, lograr eficazmente a ressocialização do agente e mostrar-se ainda comunitariamente suportável à luz da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e que não ultrapasse, além do mais, o concreto juízo de censura que deve ser dirigido ao agente?

Será, pois, à luz deste quadro que iremos perspectivar os concretos factores de medida da pena encontrados por referência ao artigo 71.º do Código Penal.

Determina o n.º 1 de tal preceito quea determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Assim, importa apurar quais as concretas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do arguido ou contra ele, quer em sede de culpa, quer em sede de prevenção. O que deverá ser realizado com recurso ao elenco exemplificativo de factores de medida da pena previstos no n.º 2 do artigo 71.º CP e tendo sempre presente a proposição já avançada por Zipf de que “a clara distinção entre culpa e prevenção é a chave para a compreensão da doutrina da medida da pena[10]. Cumpre, todavia, realçar que o artigo 13.º do RGIT aponta ainda para a consideração de um facto adicional de medida da pena e que se traduz no prejuízo causado pelo crime.

Desta forma, e com directa relevância para a determinação da medida da pena da culpa, resultam os seguintes factores:

I. Atinentes ao facto

            1. Importa referir, pressupostas as diferentes configurações que o crime de Fraude Fiscal assume e a moldura penal que o legislador lhe associa, a gravidade média do ilícito praticado pelos arguidos. Desta forma, a potenciar a gravidade dos factos praticados pelos arguidos, releva-se i) a dosimetria global dos valores envoltos em matéria de proveitos e rendimento colectável acha-se já elevado; ii) o período por reporte ao qual se mantém situação de falta de pagamento e que atinge um lapso temporal de 6 anos sem que os arguidos tenham cuidado de diligenciar pela liquidação do tributo em apreço nos autos. Já a jogar a favor dos arguidos, divisamos a circunstância de os mesmos terem, no mesmo período referente ao exercício de 2006, ostentado colaboração preambular com a Administração Tributária ao remeter as Declarações Periódicas de IVA referentes aos três primeiros trimestres.

2. O dolo do arguido A... que reveste a forma de dolo directo e específico, tendo o arguido percepção da ilicitude da sua conduta e, não obstante, almejou concretizá-la com vista a obter vantagem patrimonial indevida para a sociedade.

Já com pertinência para ajustar a medida da pena preventiva, descortinamos os seguintes factores:

            I. Atinentes ao agente

1. A circunstância de o arguido A... se encontrar integrado socialmente;

2. O passado criminal do arguido A..., o qual traduz já uma postura de desconformidade recorrente para com valores primários da ordem jurídica e uma particular susceptibilidade para a renovação do crime;

3. A circunstância de a arguida B... ter já cessado a sua laboração e de não se mostrar, como tal, expectável uma renovação do ilícito.

            Ora, tendo em conta as delineadas molduras penais e os factores referentes à prevenção especial positiva para a determinação da sanção concreta, cremos ser de emitir um juízo de prognose favorável da arguida B... na prevenção da sucumbência ao crime. Isto tanto mais que a mesma já não actua no comércio jurídico. Com o que, atentos os factores relevantes para a medida da pena da culpa já referidos, considera-se sanção adequada e necessária para lograr a reinserção da arguida B... a pena de 200 dias de multa.

Quanto ao quantitativo diário da multa há, por igual forma – sublinhando-se que o artigo 90.º-B do Código Penal não se achava ainda em vigor à data do ilícito –, que atentar ao disposto no artigo 12.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. Sublinhe-se, com relevo para a determinação deste valor, que a sociedade arguida se encontra sem laboração. O que significa que deverá este Tribunal tratar tal situação de forma análoga à de pessoa carente de rendimentos próprios e, por conseguinte, fixar o quantitativo diário no mínimo legal plasmado no citado preceito de € 7,5.

Já quanto ao arguido A..., tendo em conta as delineadas molduras de prevenção geral positiva e especial para a determinação da sanção concreta e em cômputo global dos factores atrás explanados – onde não intervém, uma vez mais, a temática de o arguido ter ou não capacidade para a liquidação da indemnização prevista no artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias –, cremos ser de fixar como sanção adequada e necessária para lograr a sua reinserção a pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

IV. 1 Da Suspensão da Execução da Pena de Prisão

Este Tribunal depara-se, nesta vertente, com uma dificuldade de difícil superação na tarefa de eleição da pena principal. Isto em face da decisão alcançada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2012 e em função da qual se estabeleceu

“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”

Note-se, no entanto, que tal aresto não inviabiliza nos seus termos literais – pelo menos no âmbito do dispositivo – a suspensão da execução da pena mesmo quando o juízo de prognose vá no sentido de uma provável ou certa impossibilidade de pagamento ulterior dos montantes devidos ao Estado. É certo que a lógica obrigaria, aparentemente, a divisar tal propósito ou teleologia como subjacente a exigência da formulação de tal juízo de ponderação. Efectivamente, só terá sentido impor a concretização de um juízo de prognose caso esta tenha virtualidade para influenciar a temática da eleição de uma pena substitutiva.

Sucede que do texto do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência afigura-se ter sido outro o propósito dos Venerandos Juízes Conselheiros. Efectivamente, assume-se em tal decisão que

“Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

(…)

A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção.

(…)

Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha da pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada com boa solução.”

Fica, pois, a percepção que o propósito do Supremo Tribunal de Justiça não foi o de vedar em absoluto a suspensão da execução da pena – indissociavelmente ligada ao artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – mesmo quando seja antecipável a sobredita impossibilidade de cumprimento da condição imposta. Temos, inversamente, que o desejo do Tribunal Superior terá sido apenas o de assegurar que o aplicador, quando opta entre pena de prisão e pena de multa, pondere aturadamente que a eventual suspensão ulterior daquela primeira quedará automaticamente condicionada a uma condição cuja inobservância se apresenta já claramente previsível. Isto por forma a que tal noção antecipada de frustração da condição da suspensão seja, em si mesmo, um factor a atender na definição da pena principal a aplicar.

Parece-nos, na verdade, ser esta a única interpretação admissível do teor e razão de ser de tal Acórdão Uniformador de Jurisprudência. Efectivamente, caso se considerasse que o mesmo veda a aplicação da pena suspensa quando o juízo de prognose de observância da condição se mostra desfavorável, temos que tal aresto seria potenciador da aplicação de penas de prisão efectivas. O que, em si mesmo, traduziria uma violência inadmissível e postergadora do paradigma que perspectiva a pena de prisão como ultima ratio de defesa da sociedade.

Na verdade, situações há em que a aplicação de uma pena de multa a título principal se revela incomportável em face das exigências de ressocialização do arguido e de protecção geral positiva. O caso sub judice é, aliás, disso emblemático, não sendo, por qualquer via, defensável que uma pessoa com os antecedentes criminais que o arguido A... ostenta e com a gravidade do ilícito praticado se veja apenas condenado em multa. Tal potenciaria a mensagem ao arguido A... e à comunidade que a eventual prática ou reincidiva no crime não seria objecto de resposta adequada do sistema penal.

Mas tal não significa, por igual forma, que se considere que se impõe o cumprimento efectivo da pena de prisão. Efectivamente, excluída que está a pena de multa, mostra-se ainda viável evitar o ingresso do arguido na comunidade prisional mediante a aplicação das penas substitutivas que ainda se mostrem consentâneas com a dosimetria da sanção alcançada. Isto sendo certo que, no caso sub judice – como sucederá em muitas outras situações –, a única medida substitutiva ainda possível se esgota na suspensão da execução da pena. Com o que excluir está em função de um juízo de prognose desfavorável de cumprimento da condição equivaleria a impor desde já uma pena de prisão. E não terá sido essa com toda a certeza a perspectiva do Supremo Tribunal de Justiça, não é esta a lição que emana do seu teor literal e não é este o comando ínsito no dispositivo.

Termos em que o juízo de prognose desfavorável que é já de elaborar quanto à eventual liquidação dos montantes previstos no artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias não pode, em nossa perspectiva, obstar à suspensão. Isto tanto mais que a única opção que se mantém nos autos – pois que a pena definida é superior a 1 ano (e o arguido sempre haveria recusado a substituição da pena por trabalho a favor da comunidade) – será a de opção entre prisão efectiva e a prisão suspensa obrigatoriamente condicionada.

Isto posto…

Determina o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Refere Figueiredo Dias em anotação à figura em causa que “a finalidade que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanoia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência[11].

Significa o exposto que é por referência às expectativas de reinserção social do arguido que se afere da pertinência da suspensão da execução da pena de prisão. E a conclusão que se lograr nesta sede será, pois, determinante na decisão que a final vier a ser proferida, só se devendo declinar então a suspensão se um juízo de prevenção geral assim o impor. Efectivamente, e como refere Anabela Rodrigues, é um “orientamento de prevenção – e esse é o de prevenção especial – que deve estar na base da escolha da pena pelo juiz; sendo igualmente um orientamento de prevenção – agora de prevenção geral, no seu grau mínimo – o único que pode (deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial”[12].

Ora, temos que o arguido A... não revela ainda uma carência de socialização a reclamar a aplicação de pena privativa da liberdade. Na verdade, atenta a sua integração social e a circunstância de a maioria dos seus antecedentes criminais se esgotar no plano estradal, cremos que a censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição. Além do mais, não sobressai qualquer razão excepcional que leve a pensar que a aplicação de tal suspensão resulte, aos olhos da comunidade, insuportável tal decisão. Pelo que se considera adequado suspender a pena de prisão em que o arguido vai condenado, à luz do disposto no número 1 do artigo 50.º, pelo período de 1 ano e 6 meses.

Determina, no entanto, o artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que

“1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.”

Com o que vai a mesma suspensão condicionada ao pagamento do imposto devido à Administração Tributária no valor de € 16.233,69 e acréscimos legais, o que deverá ser concretizado pelo arguido A... em período equivalente ao tempo de suspensão. Pagamento que deverá fazer prova nos autos.”

****

III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

- Saber se:

1. há nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, em conjugação com o disposto no n.º 2, do artigo 374.º, do CPP;

2. a prova baseada na aplicação de métodos indirectos pela Administração Tributária é válida em processo penal;

            3. a sentença padece dos vícios a que se refere o artigo 410.º, do CPP;

            4. a pena aplicada é excessiva e viola os princípios da equidade, proporcionalidade e razoabilidade.

                                                                       ****

1) Da nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, em conjugação com o disposto no n.º 2, do artigo 374.º, do CPP:

            Por força do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

            E determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença que: ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

            O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, portanto, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 14/6/2007, Processo n.º 1387/07, 5ª Secção.

            Antes da vigência da Lei n.º 59/98, de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador pormenorizasse o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão, nos termos do artigo 379.º, do CPP – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/1/1997, C.J., Acs. do STJ, V, Tomo 1, pág. 172, e Ac. do S.T.J., de 27/1/1998, B.M.J. n.º 473, pág. 166.                                                                                                    Actualmente, face à nova redacção do n.º 2, do artigo 374.º, do CPP, - aditamento à redacção do preceito: exame crítico das provas – é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 7/7/1999, C.J., Acs. do S.T.J., VII, Tomo 2, pág. 246.

            Foi a referida Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou a exigência do exame crítico das provas, sendo certo que a revisão de 2007 levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nada alterou nesta matéria.

            Pois bem, o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareça quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”, conforme resulta do Ac. do S.T.J., de 1/3/2000, B.M.J. n.º 495, pág. 209.

            Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, tal exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo essencial que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de base ao respectivo conteúdo.

            Sem receio de errar, podemos afirmar que a fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do julgador o exame crítico das provas que consiste na sua descrição e no respectivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.

            Por outras palavras, é necessário que a decisão contemple a crítica por que razão umas provas merecem credibilidade e outras não, sendo imperioso que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/5/2007, Processo n.º 247/07, 3ª Secção.

             Ora, não basta uma mera referência dos factos às provas, torna-se obrigatório um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.

            Em resumo, “a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (de um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 31/10/2007, Processo n.º 3280/07, 3ª Secção.

                                                                       ****                                                                           Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, afigura-se-nos muito mais do que suficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo Tribunal, no que tange aos factos provados e não provados, ou seja, pela motivação, onde é patente a presença de exame crítico, é possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o Tribunal a quo formasse a sua convicção.                                                                                    Na realidade, a motivação da decisão de facto não coloca em causa a racionalidade e a coerência do juízo ou do processo lógico que conduziu à convicção do tribunal a quo no tocante à convicção sobre os factos.

            Por sua vez, a motivação de direito, nomeadamente quanto á pena aplicada é clara.

            Evidentemente que isto não significa que não possa ser alvo de reparos a fundamentação apresentada.

            Simplesmente, ao enveredar por aí, o recorrente situa-se já num outro plano, isto é, passa a estar focado numa apreciação, de índole subjectiva, sobre o que foi o processo de convicção formulado pelo Tribunal. 

            Aliás, a censura que o recorrente apresenta, quanto a este aspecto da sentença, acaba por ser sintomático de que houve uma fundamentação exaustiva. De outra forma, aquela não se justificaria.

            Assim sendo, tem que improceder, nesta parte, o recurso.

                                                                       ****                                                   

            2) Da validade da prova feita com base em métodos indirectos:

            Relembremos os nºs 35 a 39 das Conclusões:

            “35. Não poderia o Meritíssimo Juiz ter dado como provado que a sociedade obteve proveitos no valor de € 190.068,80, quer o valor de € 124.609,00, a título de custos indispensáveis para a realização daquela facturação, bem como o valor de € 16.233,09, a título de tributo, tendo em conta que os mesmos foram apurados através de métodos indirectos.

            36. Conforme não se pode dar como provado o crime de Fraude Fiscal apenas com base em presunções que resultaram da aplicação de métodos indirectos pela Administração Tributária, como foi o caso nos presentes autos.

            37. Não foi averiguado com toda a certeza absoluta que o valor apurado pela Administração Tributária corresponde à realidade, em virtude de não possuir documentos que comprovem esse valor.

            38. O Meritíssimo Juiz deveria ter em conta o princípio do “in dubio pro reo”, constitucionalmente consagrado.

                                                                       ****

No nosso caso, a contribuinte “ B...”, no ano de 2006, não remeteu à Administração Tributária a declaração periódica de rendimentos modelo 22 de IRC nem exibiu a respectiva contabilidade, conforme resulta, a fls. 121/126, do parecer elaborado nos termos do artigo 42.º, n.º 3, do RGIT:

(…) Os proveitos omitidos, em sede de IRC, no exercício de 2006, totalizaram o montante de € 190.068,80 (vide ponto V do relatório da inspecção – fls. 15 dos presentes.

Este valor corresponde à soma dos valores declarados pelo sujeito passivo nas declarações periódicas (DP) de IVA do 1º, 2º e 3º trimestres de 2006 (€ 157.076,58) – fls. 66, 67 e 68) e à facturação indicada nos anexos P da IES (Informação Empresarial Simplificada) pelos seus clientes D... e E... (€ 32.992,22) e não declaradas em sede de IVA – vide facturas a fls. 23 e 24 relativas ao cliente D... e facturas a fls. 28 a 40 relativas ao cliente E....

Atenta a falta de apresentação das declarações de rendimento mod. 22, para os exercícios de 2006 e 2007, e recusa de exibição da contabilidade e tendo em conta que para obter os respectivos proveitos foi necessário suportar custos, procedeu-se ao apuramento dos mesmos, com recurso a métodos indirectos (vide ponto V.1.2 do relatório da inspecção, a fls. 15 e 16 dos presentes).

Foi apurado o valor de € 124.609,11 referente a custos omitidos no exercício de 2006.

Em suma, no procedimento inspectivo foram apurados valores de lucro tributável em falta (proveitos apurados com base nos elementos recolhidos junto dos clientes da sociedade e nas declarações periódicas enviadas pelo sujeito passivo) que originaram imposto (IRC) em falta no valor de € 16.364,92, conforme discriminado no quadro seguinte:

(…)

Na resposta ao recurso trazida aos autos pelo Ministério Público, a fls. 990, pode ler-se que “a ausência de cooperação do contribuinte na realização da fiscalização, designadamente no que respeita ao fornecimento de informações solicitadas e exibição de registos, livros e demais documentação, poderá constituir fundamento para aplicação de métodos indiciários, mas somente nos termos da lei, isto é, nos termos previstos no artigo 87.º, da LGT.

O incumprimento dos deveres de cooperação impossibilita o apuramento do rendimento líquido efectivo e dos lucros reais efectivos, impondo, numa última ratio fisci, o recurso aos métodos indirectos, os quais são utilizados sempre que se verifique qualquer um dos pressupostos previstos no mencionado artigo 87.º, da LGT.

A alínea b), do artigo citado consagra a possibilidade do recurso à avaliação indirecta nas situações em que não há elementos necessários para comprovar e quantificar directa e exactamente a matéria tributável, o que nos remete para o disposto no artigo 88.º, da LGT, cujo teor é o seguinte:

A impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável para efeitos de aplicação de métodos indirectos, referida na alínea b) do artigo anterior, pode resultar das seguintes anomalias e incorrecções quando inviabilizem o apuramento da matéria tributável:

a) Inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais;

b) Recusa de exibição da contabilidade e demais documentos legalmente exigidos, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação;

c) Existência de diversas contabilidades ou grupos de livros com o propósito de simulação da realidade perante a administração tributária e erros e inexactidões na contabilidade das operações não supridos no prazo legal;

d) Existência de manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado de bens ou serviços, bem como de factos concretamente identificados através dos quais seja patenteada uma capacidade contributiva significativamente maior do que a declarada.

                                                           ****

É líquido para nós que, sempre que a escrita do sujeito passivo não permite um correcto apuramento do montante do imposto devido em face da verificação de determinadas circunstâncias como seja erros, omissões ou falsidades existentes naquela e não seja possível, através de elementos objectivos recolhidos pela Administração Tributaria, o seu apuramento, a Lei Geral Tributária permite que tal apuramento se faça através do recurso a métodos indiciários que hoje se denominam de indirectos.

Na verdade, o artigoº 85, da LGT, veio estabelecer uma preferência absoluta pela utilização de métodos de avaliação directa para a fixação da matéria tributável, o que se compreende por serem maiores as garantias de rigor que este método fornece.

Assim só se poderá recorrer à avaliação indirecta para fixação da matéria tributável quando não for possível proceder a tal fixação através de avaliação directa e, mesmo nestes casos utilizar-se-ão na avaliação indirecta, na medida do possível, as regras da avaliação directa - Diogo Leite de Campos, Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, 2ª edição,2000, p. 360.  

Tal tipo de avaliação, conforme estabelecido no citado artigo 83º, nº 2, da LGT, é sempre de carácter subsidiário em relação à avaliação directa, que pretende a determinação real dos rendimentos e bens sujeitos a tributação.

Estabelece de facto o nº 1 do artigo 81º, da LGT, que a matéria tributável é avaliada ou calculada directamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder à avaliação indirecta nos casos e condições expressamente previstos na lei.

                                                           ****

Assim sendo, e numa primeira aproximação ao problema, seríamos tentados a considerar que nada obsta à utilização dos elementos obtidos por meio dos métodos indirectos, tanto mais que a lei penal não os considera, de modo expresso, como prova proibida.

Contudo, após melhor ponderação, face aos princípios subjacentes ao processo penal, devemos ter em consideração que a testemunha H...foi muito clara no sentido de que não puderam confirmar os valores encontrados nos autos (nomeadamente quanto aos custos e àqueles que se reportam aos clientes D... e E...), o que significa que os mesmos correspondem a valores presumidos para efeitos de jurisdição fiscal

Estamos na presença de valores que não correspondem a valores reais, ou seja, a algo que consiste numa quantificação presuntiva decorrente de determinados indicadores.

            Todos sabemos que, em processo penal, é admissível a prova por presunções.

            Porém, quanto tal acontece, há sempre que ter em atenção o princípio in dubio pro reo.

Partilhamos a convicção de que, em processo penal, o recurso a presunções só pode ser admitido como forma de conduzir  a convicção do julgador em relação a certo facto real, mas não como forma de ficcionar determinado resultado, em que o julgador tem de admitir que pode não ter correspondência com a realidade, hipótese em que estamos perante uma verdadeira presunção de culpa que, o artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, proíbe.

Os princípios válidos para a jurisdição administrativa não são os mesmos para o processo penal, em que o silêncio ou falta de colaboração do arguido não afasta o ónus da acusação de provar todos os elementos constitutivos do crime.

A este propósito, considera Nuno Pombo, “A Fraude Fiscal – a norma incriminadora, a simulação e outras reflexões”, Almedina, 2007, o seguinte:

A ser assim, como nos parece, uma pergunta se impõe. Têm a mesma virtude, para efeitos de incriminação, a avaliação directa e a avaliação indirecta?

Segundo nos parece, não. Pode a administração tributária pôr em causa a declaração do contribuinte, apurar por métodos indirectos colecta superior, por ocultação de facturas de serviços presta­dos pelo contribuinte, por exemplo, e, sem mais, afirmar-se a existência de um crime de fraude fiscal, quando a diferença for igual ou superior a 15.000 Euros? Uma vez mais pronunciamo-nos negativamente.

A avaliação indirecta, nos termos do n.º 2 do artigo 83.º da LGT, visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tri­butária disponha.

Esta modalidade de avaliação, nos termos n.º l do artigo 85.º do mesmo diploma, e como não podia deixar de ser, é subsidiária da avaliação directa, daquela que visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação.

Daí que a sua realização seja permitida em termos limitados e sempre excepcionais. Contudo, mau grado a confessada excepcionalidade, é permitida. E, desde que verificados os respectivos pressupostos, deve, para todos os efeitos tributários, ser tida como boa a determinação quantitativa que dela resulte. Para todos os efeitos tributários, sublinhe-se.

Quer-se com esta afirmação evidenciar que a vocação das normas que permitem outra avaliação que não a directa não vai para além da genuína relação jurídico tributária, não podendo relevar, segundo nos parece, enquanto tais, para o apuramento de uma eventual responsabilidade penal.

Admitir a aptidão da avaliação indirecta para o reconhecimento de uma responsabilidade penal é abrir uma brecha profunda no sistema jurídico-penal.

Na verdade, receber como bom, para efeitos criminais, o resultado de uma presunção tributária, é, ao cabo e ao resto, conceder que possa haver quem seja condenado com base nela, o que não podemos, de forma alguma, aceitar.

Repita-se que não pretendemos pôr em causa a bondade dos métodos indirectos.

Do que se cuida é tão-só de afirmar peremptoriamente que essa presunção não desempenha qualquer outro papel para além do que se lhe possa reconhecer no âmbito das relações jurídicas tributárias.

Esta leitura, de resto, é perfeitamente compatível com a distinção que entendemos dever fazer-se entre o Direito Fiscal e o Direito Penal. Por não ter aquela natureza sancionatória, a validade das presunções não choca. Já no Direito Penal, o discurso terá, necessariamente, de ser outro.

A responsabilidade penal dos arguidos deve ser aferida à luz dos princípios gerais de direito criminal e esses, segundo cremos, não podem ser, nem são, afastados pelo RGIT, que recebe, como legislação subsidiária, no que respeita aos crimes, o Código Penal.

Assim, os valores apurados através dos métodos indirectos, por serem presumidos ou meramente indiciários, não podem servir de base a uma condenação penal, uma vez que no processo criminal vigora presunção de sentido contrário, como resulta do n.º 2 do artigo 32.º da CRP.”

                                                             ****

Sem dúvida que admitimos que, como no caso dos autos (o contribuinte não cumpre as obrigações fiscais ou contabilísticas), a necessidade de fazer apelo aos métodos indirectos por parte dos inspectores tributários é a única possível, pois não lhes resta outra alternativa.

E também não questionamos que tudo se passa nos termos da lei quer ao nível dos métodos, quer ao nível dos critérios, quer ao nível das contas e cálculos efectuados e que toda a actividade de investigação e recolha de prova exige aturado esforço.

Simplesmente, tal não pode servir para deitar por terra os princípios fundamentais do processo penal, motivo pelo qual, pelas razões atrás expostas, consideramos que não podem ser considerados os valores constantes dos factos dados como provados para efeitos de condenação penal do arguido, sem que isso implique a consideração de que há factos julgados erradamente, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP.

Na verdade, está provado que, através de métodos indirectos, foram obtidos certos valores.

Acontece que os mesmos apenas não devem ser valorados, em sede de matéria de direito.

                                                             ****

            Aqui chegados, importa deixar claro que, embora o recurso tenha sido interposto apenas por A..., não pode deixar de considerar-se que a co-arguida (pessoa colectiva) tem de ser abrangida nos respectivos efeitos.

            Com efeito, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do RGIT, “as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.

            Não podendo o recorrente ser punido criminalmente, pelas razões atrás expostas, também não o pode ser a “ B..., Lda.”

                                                             ****

Fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.

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          IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, indo os arguidos, em consequência, absolvidos.    

Sem custas.


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Coimbra, 26 de Março de 2014



(José Eduardo Martins - relator)


(Maria José Nogueira - adjunta)

[1] Valor que, ainda assim, prima por defeito… É que a análise da precisa documentação tomada em consideração pela Administração Tributária conduz à constatação supra exposta de que a facturação global ascende a € 196.997,07. Temos, nesse sentido, que o responsável pelo inquérito à arguida B... incorreu em manifesto lapso de cálculo quando alcança a grandeza de € 32.992,22 (fls. 123) na decorrência da soma das facturas de fls. 41, 42 e 46 a 58. Isto porquanto a correspondente operação aritmética de adição das mesmas facturas conduz a um resultado de € 39.920,60.

Discrepância que, ainda assim, nenhum relevo produz nos presentes autos. O que se afirma não só porque os valores alcançados pela Administração Tributária – não obstante acarretarem um imposto irrisoriamente menor – preenchem já a condição objectiva de punibilidade prevista no n.º 2 do artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, mas também na medida em que a factualidade constante das alíneas i) a m) do circunstancialismo provado se acha necessariamente construída em função da perspectiva da mesma entidade. Com o que apenas na eventualidade de o proveito real se apresentar inferior ao apurado pela Administração Tributária – e a conduzir a um imposto a pagar menor – se justificaria uma qualquer intervenção correctiva sobre a perspectiva em que é ancorada a construção das mesmas alíneas.
[2] Neste sentido, veja-se Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, in O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Tributário Português, RPCC, Ano 6 (1996),  n.º 1, página 91
[3] Augusto Silva Dias, Crimes e Contra-Ordenações Fiscais, Direito Penal Económico e Europeu, Volume II, Coimbra Editora, 1999, página 444
[4] In Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VIII, tomo III, página 194
[5] Perspectiva enunciada no Acórdão do Tribunal do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2001 e citado por Leal Henriques e Simas Santos,  in Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2ª edição, Áreas Editora 2003, página 640
[6] Anabela Miranda Rodrigues, in Critérios de escolha das penas de substituição, Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1984, página 41
[7] Apud Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte ..., página 77
[8] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal, As Consequências ..., página 227 e seguintes e Direito Penal, Parte  ...., página 76 e seguintes
[9] Anabela Miranda Rodrigues, Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, página 620
[10] Apud Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências ..., página 220
[11] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, página 343
[12] Anabela Miranda Rodrigues, in Critérios de escolha das penas de substituição, Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1984, página 41