Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14359/09.0TDPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: RECURSO PARA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO
RENOVAÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 03/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL - RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 430.º DO CPP
Sumário: A renovação da prova prevista no artigo 430.º, n.º 1, do CPP, visando a supressão dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo diploma, só é possível quando a prova cuja renovação se requer tenha sido, de alguma forma, produzida em 1.ª instância, pois, de outro modo, o recurso para a Relação deixaria de ser um remédio para suprir deficiências da decisão daquela instância e passaria a ser um segundo julgamento, um novo julgamento, desvirtuando o regime recursivo em processo penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5º Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I) Em 10/12/2013, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.º 7, al. b), do CPP, foi proferida o seguinte Despacho:

“O recorrente A..., no recurso interposto, invocando os artigos 410.º, n.º 2, al. c) e 430.º, n.º 1, ambos do C.P.P., veio requerer, nos termos de fls. 3275, a renovação da prova -ver, ainda, o ponto n.º 26 e o ponto n.º 27, das Conclusões.

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Sobre a epígrafe de “Renovação da Prova”, dispõe o art. 430.º, n.º 1, do C.P.P. que:

1 - Quando deva conhecer de facto e de direito, a relação admite a renovação da prova, se se verificarem os vícios referidos nas alíneas no n.º 2 do art.º 410.º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo.)

Sem entrarmos na exegese do artigo, problemática extensa, sem dúvida, dada a evolução por que passou, desde a entrada em vigor do Código, a matéria relativa ao conhecimento da matéria de facto pelas relações, nomeadamente no que respeita ao conhecimento da matéria de facto nos acórdãos do tribunal colectivo – atente-se na variabilidade de situações legalmente compatíveis com a redacção do art. 363.º, a que se somou a discussão sobre a finalidade da documentação na acta, no mesmo prevista –, o certo é que é requisito de admissibilidade da renovação de prova que se verifiquem, no caso, os vícios referidos nas alíneas do n.º 2, do art.º 410.º, do C.P.P.

O recurso da matéria de facto, que se funda na existência de um erro de julgamento detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1ª instância e implica que o tribunal “ad quem” reaprecie essa prova, não se confunde com a mera invocação dos vícios da sentença enunciados no n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, que devem resultar sempre do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Neste último caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.

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Conforme resulta do estatuído no n.º 2, do artigo 410.º, do C.P.P., e como nunca é demais realçar, os vícios previstos nas alíneas a), b) e c) têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos. São vícios intrínsecos da decisão, não sendo lícito afirmar-se a sua existência recorrendo a elementos que lhe sejam exteriores, designadamente depoimentos e declarações prestados, quer durante o inquérito, instrução, quer até na audiência de julgamento.

O vício previsto na al. a), do nº 2 do citado art.410º, do C.P.P., trata consabidamente de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, no “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pag.325/326 «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.”

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.

Ora, uma decisão incorre em tal vício, quando o tribunal recorrido podendo fazê-lo deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.

Tal insuficiência determina a formulação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas, ou seja, quando os factos provados forem insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada.

Estamos na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado.

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Só existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quando há oposição entre os factos provados, entre estes e os não provados ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ocorre ainda, quando segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados. Ainda numa outra formulação, pode afirmar-se que existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quando sobre a mesma questão há posições antagónicas e inconciliáveis, sendo tal contradição naturalmente insanável.

Este vício não pode ser confundido com uma qualquer contradição entre partes de alguns depoimentos prestados na audiência de julgamento realizada na 1ª Instância., ou sequer entre um depoimento prestado em audiência ou noutra fase do processo.

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Por último, o erro notório na apreciação da prova, como vício relevante em processo penal, é segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

O vício de erro notório na apreciação da prova só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

O erro tem assim de aferir-se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (sem recurso, por exemplo, a declarações ou depoimentos prestados durante o inquérito, instrução ou julgamento), tendo ainda que resultar desse texto de forma tão patente que não escape à observação do homem de formação média.

O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do recorrente.

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Dito isto, caberia, agora, apreciar se existe o alegado vício de erro notório na apreciação da prova, enquanto pressuposto material para a admissão da renovação da prova.

Acontece que, e como aspecto lógico prévio a tal abordagem, importa reter que os factos a provar e as provas a renovar teriam de estar intrinsecamente ligados ao vício detectado.

Este é o critério material para a fixação dos “termos” e da “extensão” da prova a renovar.

Ora, se bem reparamos, a renovação da prova pretendida pelo recorrente assenta em depoimentos e declarações.

Simplesmente, a renovação da prova não é o mesmo que repetição da prova, tendo em vista obter esclarecimentos sobre certos factos.

Mais, renovar não é repetir, pela simples razão de que não há dois depoimentos iguais da mesma pessoa.

Assim sendo, estamos no domínio dos tais elementos exteriores acima mencionados (para lá do teor da decisão recorrida), pelo que não há base legal para a invocação de qualquer um dos vícios aludidos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., nomeadamente, o do erro notório na apreciação da prova, o que afasta a hipótese de ser admitida a requerida renovação.

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Assim, a impugnação da matéria de facto trazida aos autos terá de ser decidida em sede de erro de julgamento, em função da documentação da prova feita na audiência de julgamento em 1.ª instância mediante a respectiva gravação, cotejando-a com os demais elementos de prova passíveis de valoração, reapreciando esta, mas não renovando-a.

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Face ao exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 417.º n.º 7, al. b), e 430.º, n.º1, e n.º 2, ambos do C.P.P., não se admite a renovação da prova requerida pelo recorrente.

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Notifiquem-se recorrente e Ministério Público e, transitada esta decisão, voltem os autos conclusos.”

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II) Inconformado com o referida despacho, em 6/1/2014, o recorrente veio reclamar para a conferência, nos seguintes termos:

A..., recorrente nos autos acima referidos, tendo sido notificado do, aliás, mui douto despacho que não admite a renovação da prova requerida pelo recorrente, por não se conformar, dele vem reclamar para a conferência, nos termos do artigo 417.º, n.º 8, do CPP, nos termos e pelos fundamentos seguintes:

O recorrente admite que a questão é muito complexa, como é patente no douto despacho proferido, cujo sentido da doutrina, ali citada, no entender do recorrente, salvo o devido e muito respeito, aponta em sentido contrário ao decidido no despacho proferido.

Por tais razões e por se entender estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se torna necessário acórdão, para uma melhor aplicação do direito.

Pelo que, além do mais, salvo o devido respeito por opinião diversa, se considera dever ser proferida decisão que admita a requerida renovação da prova.

Termos em que, e nos demais de direito, doutamente supridos, requer a V. Exas. seja revogado o despacho proferido, decidindo-se pela admissibilidade da renovação da prova requerida.

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III) Notificado da reclamação, em 22/1/2014, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nada veio dizer aos autos.

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IV) Cumpre apreciar:

O Recorrente pretende que se proceda à renovação da prova, nos termos do artigo 430.º, do CPP, por ter ocorrido erro notório na apreciação da prova.

Para tanto, refere que “está, hoje, o arguido arrependido de não ter prestado declarações, pelo menos, no final da audiência, quando a Mma. Juíza presidente lhe perguntou se o queria fazer. Mas, na busca da verdade material, ainda falará, perante esse Superior Tribunal, na audiência, a ter lugar, nos termos dos artigos 421.º e 430.º, n.º 4, do PP.

Além disso, coloca em causa, independentemente das questões de direito a eles associadas, os depoimentos das testemunhas B..., C..., D... e E..., agentes da PSP, e, ainda, os depoimentos dos ofendidos, em geral, no que diz respeito à autoria dos telefonemas em causa.

Em resumo, a pretensão do recorrente visa que, nesta Relação, sejam ouvidos o arguido e diversa prova testemunhal.

O Despacho ora em crise refere os casos em que é possível proceder à renovação da prova.

Acrescentar algo seria redundante.

Assentemos, pois, que a renovação da prova pressupõe o seguinte:

1) A prova cujo renovamento se requerer deve ter sido já objecto de produção de prova em 1.ª instância;

2) A decisão recorrida tem de padecer de algum dos vícios indicados nas alíneas do n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal.

Assim sendo, a renovação da prova na Relação é inadmissível quando a prova cuja renovação se requer não tenha sido, de alguma forma produzida, em 1.ª instância, pois, de outro modo, o recurso para a Relação deixaria de ser um remédio para suprir deficiências da decisão daquela instância e passaria a ser um segundo julgamento, um novo julgamento, desvirtuando o regime recursivo em processo penal – ver Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, edição de 2011, página 1180, onde pode ser lido «Não podem ser requeridos (…) novos meios de prova, isto é, meios de prova distintos dos “produzidos em primeira instância”»

Acresce que, como já sabemos, a renovação da prova só faz sentido caso se detecte na decisão recorrida algum dos vícios indicados nas alíneas do n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, sendo que os factos a provar e as provas a renovar devem dizer respeito a tais vícios e visarem o suprimento destes, evitando o reenvio

«Não padecendo a decisão recorrida dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, o recurso em matéria de facto pode ser conhecido cabalmente em face da documentação da prova produzida na audiência diante do tribunal recorrido. Isto é, o TR deve fazer uso do seu poder previsto no artigo 431.º, al. b)», fazendo, uma vez mais, apelo a Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, edição de 2011, página 1182 - no mesmo sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.02.2007, Processo n.º 8815/2006-3, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.07.2008, Processo: 46/04. GTLRA.C1, in www.dgsi.pt.

Revertendo ao nosso caso, é evidente que a requerida tomada de declarações ao Arguido constitui prova inteiramente nova, pelo que estranha ao instituto de renovação da prova em apreço.

Por outro lado, a decisão recorrida não padece do vício indicado na alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

O Recorrente assenta a sua pretensão naquilo que foi dito pelas testemunhas, afastando-se, assim, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, divergindo apenas da valoração da prova feita pelo Tribunal a quo.

Para si, há factos que se encontram julgados de modo errado, face à prova produzida em audiência de julgamento.

Logo, a sua crítica deve ser analisada em sede de erro de julgamento.

Como tal, face à ausência dos pressupostos de que o artigo 430.º, n.º 1, do Código de Processo Penal faz depender a «renovação da prova», não assiste razão ao Recorrente,

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D) DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente a reclamação.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


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Notifique.

Transitado, conclua, de novo, os autos.

Coimbra, 19 de Março de 2014

(José Eduardo Martins - relator)

(Maria José Nogueira - adjunta)