Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
332/09.2TBTNV-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
EXTINÇÃO DO DIREITO
Data do Acordão: 11/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.381, 387, 389 Nº1 E) CPC
Sumário: 1. Tendo sido a providência decretada com vista a evitar a poluição atmosférica de instalação fabril, fundada no receio de lesão do direito à saúde dos requerentes vizinhos, o direito acautelado configura-se como direito de personalidade, inalienável e irrenunciável, não sendo susceptível de extinção e integrável na previsão da citada alínea e) do n.º 1 do artigo 389.º do CPC, pelo simples facto de ter sido eliminada a fonte poluidora.

2. A enumeração constante das alíneas do n.º 1 do artigo 389.º do CPC não tem carácter taxativo, configurando-se para além do elenco de situações geradoras da extinção do procedimento ou da caducidade da providência, enunciado no citado normativo, outras situações (atípicas, porque não previstas na norma em apreço), susceptíveis de justificarem a referida extinção ou caducidade.

3. Acordando as partes em litígio que a colocação de filtros adequados nos emissores, com vista à retenção sólida na unidade fabril da requerida, salvaguardaria o direito dos requerentes tornando inútil a providência, não há fundamento para o despacho de indeferimento liminar da pretensão da requerida, de caducidade da providência baseada na alegação de que colocou os referidos filtros.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
J (…) e M (…) intentaram a presente providência cautelar comum contra A (…), C.R.L., pedindo que seja ordenada a suspensão imediata do exercício da actividade de secagem de milho desenvolvida pela Requerida nas suas instalações.
Alegaram em síntese os requerentes: são proprietários de um prédio onde têm instalada uma carpintaria; nessa carpintaria, os requerentes instalaram um sistema de filtragem, com aspiração de poeiras e raspas de madeira, que são automaticamente depositados num silo, impedindo de forma eficaz as emissões de poeiras e detritos para o ambiente; no prédio vizinho a requerida desenvolve a actividade de secagem de milho; esta actividade gera a contaminação do ar e do ambiente da carpintaria que os requerentes têm instalada no seu prédio; tal perigosa e nociva poluição causa uma gravosa lesão na saúde dos requerentes; apesar de anunciar frequentemente que vai instalar filtros eficazes, de forma a evitar a contaminação do ambiente, a requerida não o fez até ao momento.
Foi determinada a citação da requerida, que não apresentou oposição.
Foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «Face ao exposto, julgo procedente, por provada, a presente providência cautelar comum e, em consequência, ordeno a suspensão imediata do exercício da actividade de secagem de milho desenvolvida pela A (…), C.R.L., nas suas instalações sitas em R (...) .»
Não se conformando, a requerida A (…) C.R.L. interpôs recurso de apelação que confirmou a decisão recorrida.
Nos autos de onde foi extraída a presente certidão (Apenso E - Processo n.º 332/09.2TBTNV), veio a A (…), Crl, requerer que seja declarada a caducidade do procedimento cautelar, ao abrigo do disposto no artigo 389.º n.º1-e) e nº 4 do C.P.C..
Alegou em síntese, como fundamento da sua pretensão: a requerida adquiriu, para a unidade industrial em causa, filtros da nova geração, que garantem uma redução substancial da emissão das partículas decorrentes do processo da secagem de milho que pratica, de forma a não ultrapassar o índice de 10mg/Nm^3; tais filtros de secagem – designados “LAW TYPE SBC13NE EXISTANT” e “FAO EXISTANT” – foram adquiridos no final de Julho de 2011, pelo valor de € 39.000,00, incluindo os acessórios necessários e supervisão da montagem; tais filtros foram instalados na segunda quinzena de Agosto; a empresa fornecedora facultou os manuais dos filtros e assegurou que tais filtros permitem reduzir as emissões de partículas para o índice acima identificado; a Requerida pediu uma avaliação técnica às suas instalações, a qual reconhece que a introdução dos filtros em apreço, devidamente conjugados com os mecanismos de secagem já existentes, designadamente as persianas anti-poeiras e os sistemas de aspiração, assegura uma boa qualidade do ar, reduzindo a emissão de partículas para um montante manifestamente inferior aos limites estabelecidos na lei para a protecção da saúde humana; o equipamento instalado na unidade industrial em causa corresponde à solução tecnologicamente mais avançada a nível mundial, não existindo nenhuma outra que garanta melhor resultado para a qualidade do ar; a unidade industrial em apreço, situada em R (...) , é a mais importante de que dispõe a Requerida, com uma capacidade de secagem substancialmente superior às outras de que dispõe noutros concelhos, as quais não têm capacidade para assegurar a secagem de milho que a unidade de R (...) pode efectuar; a Requerida é uma cooperativa que serve cerca de ¼ da produção nacional de milho, sendo a unidade económica mais importante do país no âmbito da actividade da secagem de milho; sem a secagem, o milho não pode ser comercializado, porque fermentaria; a produção e comercialização do milho é a actividade agrícola mais importante do concelho onde se insere a unidade de R (...) , de que dependem centenas de agricultores e suas famílias; a paralisação da unidade de R (...) implicaria milhões de euros de prejuízo para a Requerida e para os agricultores que a formam e a ela recorrem, que deixariam de poder assegurar em tempo útil a secagem do seu milho e posterior comercialização; a campanha do milho começou no final de Agosto e deve prolongar-se até ao final de Novembro; a presente situação de paralisação da unidade de R (...) está a lesar os agricultores da região, que sentem ameaçada a sua subsistência, o que já levou o Governo a tomar uma posição de apelo a que o problema seja ultrapassado; a unidade de R (...) situa-se numa zona industrial, tendo sido instalada e estando em funcionamento em data anterior à carpintaria dos Requerentes; os filtros instalados evitam os efeitos nocivos que a decisão cautelar pretende evitar, assegurando uma qualidade de ar que é insusceptível de causar qualquer lesão na saúde dos Requerentes e dos seus funcionários; como decorre da decisão da Relação, devidamente conjugada com o teor da sentença da 1ª instância, a presente providência cautelar visa exclusivamente assegurar que a secagem do milho não cause tais efeitos nocivos, o que dependeria da instalação do equipamento de filtragem adequado; tal equipamento está instalado e em condições de funcionamento.
Concluiu que se extinguiu o direito que os requerentes pretendem assegurar.
Juntou documentos e arrolou testemunhas.
A M.ª Juíza indeferiu liminarmente a pretensão da requerente A (…) com fundamentando em síntese a sua decisão nestes termos: «Os argumentos aduzidos pela requerida poderão, eventualmente, no âmbito do processo principal de que esta providência é legalmente dependente serem relevantes (mesmo como factos supervenientes). O certo é que tal factualidade invocada não nos permite concluir que tenha ocorrido a extinção do direito que os requerentes pretenderam acautelar com esta providência cautelar.»
Não se conformando, a requerente A (…), Crl., e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações com as seguintes conclusões:

A) A situação factual presente é a que foi julgada indiciariamente assente na sentença proferida – donde resulta que as operações de secagem de milho levadas a cabo pelo estabelecimento da Recorrente sito em R (...) dão origem à emissão de detritos e poeiras que contaminam o ambiente e o ar respirável –, devidamente aditada dos nºs 3.13 e 3.14 constantes da decisão da Relação, de 15 de Julho de 2011, a saber: 3.13 Os efeitos nocivos produzidos pela actividade da requerida A (…)C.R.L., seriam remediados com a implementação dos filtros adequados nos emissores, com vista à retenção sólida. 3.14 A A (…), C.R.L., não obstante anunciar frequentemente a colocação e entrada em funcionamento de eficazes filtros, não o tem feito, nem o fez até ao momento.

B) Foi assim que – em face da providência decretada e animada do desejo de garantir uma solução tecnologicamente avançada – adquiriu, para a unidade industrial em causa, filtros da nova geração, que garantem uma redução substancial da emissão das partículas decorrentes do processo da secagem de milho que pratica, de forma a não ultrapassar o índice de 10mg/Nm^3.

C) O equipamento instalado na unidade industrial em causa corresponde à solução tecnologicamente mais avançada a nível mundial, não existindo nenhuma outra que garanta melhor resultado para a qualidade do ar.

D) Os filtros instalados evitam os efeitos nocivos que a decisão cautelar pretende evitar, assegurando uma qualidade de ar que é insusceptível de causar qualquer lesão na saúde dos Requerentes e dos seus funcionários.

E) Como decorre da decisão da Relação (cfr. nºs 3.13 e 3.14 acima transcritos), devidamente conjugada com o teor da sentença da 1ª instância, a presente providência cautelar visa exclusivamente assegurar que a secagem do milho não cause tais efeitos nocivos, o que dependeria da instalação do equipamento de filtragem adequado.

F) Tal equipamento está instalado e em condições de funcionamento.

G) Assim sendo, o direito que os Requerentes, ora Recorridos, pretendem assegurar extinguiu-se, o que determina a caducidade da providência, nos termos do art. 389º nº 1-e) do C.P.C.

H) A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento da ora Recorrente, por entender que o facto invocado não é extintivo do direito invocado, pelo que a argumentação deduzida só poderia ser considerada no processo principal.

I) Ressalvado o devido respeito, esta decisão é manifestamente ilegal e profundamente iníqua.

J) Como resulta da decisão da Relação, que confirmou a sentença que decretou a providência, a poluição ambiental que a providência acautela “pode (e deve) ser corrigida, bastando a colocação de filtros” (sic).

K) Assim sendo, é óbvio que a providência só foi decretada porque os filtros não estavam colocados e a funcionar, de forma a evitar os efeitos nocivos em apreço, razão pela qual, instalados os filtros em situação de poderem funcionar e de evitar os efeitos em causa, se extingue o direito que a providência acautela.

L) A Recorrente cumpriu a condição cuja não verificação implicou o decretamento da providência.

M) Admite-se, como também é óbvio, em face da oposição dos Recorridos, que tenha que ser produzida a prova destinada a apurar se os filtros estão instalados, se os filtros estão em condições de funcionar e se o seu funcionamento evita os efeitos nocivos que se quiseram acautelar.

N) Mas o que não se admite é um indeferimento liminar do requerido.

O) A manutenção da providência tem efeitos devastadores na economia da região e na vida de milhares de agricultores, que ficarão sem alternativa para proceder a uma secagem atempada do seu milho, com a consequência provável de afectar a sobrevivência económica de centenas de explorações agrícolas.

P) A decisão em apreço interpreta erroneamente o art. 389º nº 1-e) do C.P.C..

Q) Na verdade, se a providência foi decretada porque os efeitos que pretende acautelar dependem de uma condição que não foi cumprida, verificada a condição, deixa de haver fundamento para que a providências se mantenha, devendo ser levantada.
Os recorridos apresentaram contra-alegações, onde concluem:

I - Os efeitos nocivos produzidos pela actividade da recorrida A (…)serão remediados com a instalação de filtros de aspiração a serem instalados em toda a extensão dos secadores.

II - A aspiração deve ser feita em toda a extensão do silo, de um lado e de outro assim como nas denominadas tramonhas, de carregamento.

III - Nas descargas laterais, existindo as mangas estas devem ser fechadas ou, no caso de não serem fechadas, então que seja instalada nelas a aspiração.

IV - Não está provado nos Autos que os filtros alegadamente instalados, evitam os efeitos nocivos que a decisão cautelar pretende evitar.

V - A providência cautelar foi justamente decretada porque existe a probabilidade seria da existência do direito dos requerentes e do receio da sua lesão.

VI - O direito que os requerentes pretendem assegurar não se extinguiu, pelo que a providência decretada não caducou.

II. Do mérito do recurso

1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se é processualmente admissível o incidente deduzida pela ora recorrente e se deverá ser produzida prova sobre os factos que alega.

2. Fundamentos de facto
A factualidade relevante, para além da que consta do relatório do presente acórdão (onde se descreve a tramitação da providência e do recurso), é a seguinte [factualidade sumariamente provada na providência cautelar, consignada na decisão deste Tribunal, certificada a fls. 29 a 38]:
2.1. A A (…), C.R.L., explora um estabelecimento de indústria de secagem de milho que confronta a norte com o prédio em que se encontra instalada a mencionada carpintaria industrial.
2.2. Em Setembro de 2010, a A (…) C.R.L., deu início a uma nova campanha sazonal de secagem do milho, com a emissão atmosférica de carepas, detritos e afins, e de poeiras cerealíferas.
2.3. Tais detritos e poeiras, especialmente nos dias de orientação norte/sul do vento, depositam-se em todo o espaço oficinal e de atendimento da mencionada carpintaria industrial, contaminado o ambiente e o ar respirável.
2.4. Nesta sequência, no horário de laboração e de abertura ao público da mencionada carpintaria, a atmosfera fica constituída por ar contaminado, saturado das ditas poeiras e detritos vários de origem cerealífera e extraídos através do processo de secagem de milho utilizado pela A (…), C.R.L.
2.5. Tais emissões eliminam a qualidade ambiental mínima e potenciam as doenças de raiz alérgica, bem como causam grave lesão na saúde de J (…) e M (…) e dos funcionários da mencionada carpintaria.
2.6. Na sequência de tal contaminação, M (…) continua a sofrer de forma agravada de doença atmosférica, do tipo asma, e J (…) sofre de profunda depressão nervosa.
2.7. O termo da actividade desenvolvida pela A (…), C.R.L., poderá ocorrer em Novembro de 2010.
2.8. Os efeitos nocivos produzidos pela actividade da requerida A (…) C.R.L., seriam remediados com a implementação dos filtros adequados nos emissores, com vista à retenção sólida.
2.9. A A (…) C.R.L., não obstante anunciar frequentemente a colocação e entrada em funcionamento de eficazes filtros, não o tem feito, nem o fez até ao momento.
2.10. No processo principal, em sede de saneador foi julgada extinta a instância com fundamento em caso julgado, decisão que veio a ser revogada por acórdão proferido nesta Relação em 2.11.2010 (Apelação n.º 332/09.2TBTNV.C1), não tendo sido ainda designada data para julgamento.

3. Fundamentos de direito
3.1. A alegada extinção do direito
O regime da caducidade da providência cautelar encontra-se previsto no artigo 389.º do CPC, nestes termos:

1. O procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca:

a) Se o requerente não propuser a acção da qual a providência depende dentro de 30 dias, contados da data em que lhe tiver sido notificada a decisão que a tenha ordenado, sem prejuízo do disposto no número 2;

b) Se, proposta a acção, o processo estiver parado mais de 30 dias, por negligência do requerente;

c) Se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado;

d) Se o réu for absolvido da instância e o requerente não propuser nova acção em tempo de aproveitar os efeitos da proposição da anterior;

e) Se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido.

2. Se o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, o prazo para a propositura da acção de que aquela depende é de 10 dias, contados da notificação ao requerente de que foi efectuada ao requerido a notificação prevista no nº 6 do artigo 385º.

3. Quando a providência cautelar tenha sido substituída por caução, fica esta sem efeito nos mesmos termos em que o ficaria a providência substituída, ordenando-se o levantamento daquela.

4. A extinção do procedimento e o levantamento da providência são determinados pelo juiz, com prévia audiência do requerente, logo que se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo.
Como refere Abrantes Geraldes[1], a norma transcrita distingue dois tipos de situações: a extinção do procedimento (do processo onde foi requerida e decretada a providência), e a caducidade da providência. A extinção reporta-se à instância procedimental e a caducidade à medida concretamente aplicada.
A recorrente invoca especificamente a caducidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 389.º do CPC.
Prescreve a norma invocada: “1. O procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca: […] e) Se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido. […]».
Para além do objectivo de “acautelar o efeito útil da acção”, previsto na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 2.º do CPC, a providência cautelar visa “assegurar a efectividade do direito ameaçado”, de acordo com a última parte do n.º 1 do artigo 381.º do mesmo código[2].
Para a integração da previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 389.º do CPC, haverá que questionar a que “direito” se refere o normativo em apreço.
A resposta não pode deixar de ser a que é dada pelo citado n.º 1 do artigo 381.º: ao “direito ameaçado”.
Ou seja, a caducidade preconizada pela recorrente ocorrerá, se e na medida em que se verifique a extinção do “direito ameaçado” dos recorridos, tutelado pela providência.
Citando novamente Abrantes Geraldes[3], a relação de instrumentalidade que existe entre o procedimento cautelar e o direito substantivo determina necessariamente que todas as vicissitudes por que passa o direito, interferiram na tutela provisória que lhe tenha sido conferida. Extinto o direito por qualquer das formas legalmente previstas – caducidade, prescrição, cumprimento, etc. – não faz sentido manter a tutela cautelar, justificando-se a cessação dos respectivos efeitos.
Vejamos agora em concreto, qual o direito dos recorridos cuja ameaça de lesão determinou o decretamento da providência.
Tal direito encontra-se definido no sumário da decisão proferida nesta Relação[4], certificada a fls. 81 dos autos, nos termos que se reproduzem:
«[…] I. Na referência genérica à tutela legal dos direitos de personalidade, incluída no n.º 1 do artigo 70.º do Código Civil, integra-se, entre outros, o direito à saúde, considerando-se ilícitos no âmbito das relações de vizinhança, todos os actos que ofendam tal direito.
II. A poluição atmosférica, para além de dano ao ambiente, quando está em causa o interesse público e difuso da protecção ambiental, consubstancia a violação de um direito de personalidade, no âmbito das relações de vizinhança, quando está em causa o interesse privado, traduzido no dano concreto sofrido pelo vizinho do emissor dessa poluição. […]»
O direito de que são titulares os recorridos, tutelado pela providência decretada por se ter provado sumariamente a ameaça de lesão, é um direito de personalidade, traduzido no direito à saúde e a um ambiente de qualidade, sem poluição.
Tal direito não é susceptível de se extinguir com base na factualidade alegada pela recorrente[5] [6].
Poderá ocorrer com a factualidade alegada no incidente, não a extinção do direito - na medida em que os recorridos conservam os direitos de personalidade ameaçados pela conduta da recorrente e tutelados provisoriamente pela providência – mas a extinção dos pressupostos que levaram o tribunal a decretar a tutela cautelar na situação em concreto.
Com efeito, tendo sido a providência decretada com vista a evitar a poluição atmosférica de instalação fabril, fundada no receio de lesão do direito à saúde dos requerentes vizinhos, o direito acautelado configurado como direito de personalidade, inalienável e irrenunciável, não é susceptível de extinção e integrável na previsão da citada alínea e) do n.º 1 do artigo 389.º do CPC, pelo simples facto de ter sido eliminada a fonte poluidora[7].
A enumeração constante das alíneas do n.º 1 do artigo 389.º do CPC não tem carácter taxativo.
Para além do elenco de situações geradoras da extinção do procedimento ou da caducidade da providência, enunciado nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 389.º do CPC, há outras situações (atípicas, porque não previstas na norma em apreço), susceptíveis de justificarem a referida extinção ou caducidade.
Dessa questão nos passamos a ocupar.

3.2. A possibilidade de extinção do procedimento e de caducidade da providência, com outros fundamentos
Conforme refere Abrantes Geraldes[8], para além das situações enunciadas no artigo 389.º do CPC há outros factores susceptíveis de se repercutirem na relação jurídico-processual e na extinção dos seus efeitos.
O autor citado aponta quatro circunstâncias: inutilidade superveniente do procedimento; impossibilidade superveniente do procedimento[9]; transacção efectuada no âmbito do procedimento ou da acção principal; e desistência do pedido de tutela cautelar.
Haverá que equacionar se a factualidade invocada pela apelante se poderá configurar como inutilidade superveniente do procedimento, ou da providência decretada.
Tal problemática deverá ser abordada não perdendo de vista dois pressupostos essenciais do decretamento da providência: a gravidade da lesão (art. 381/1 CPC): a providência só pode ser requerida para obstar a lesão grave ou dificilmente reparável do direito do requerente; e adequação e proporcionalidade (art. 387/2 CPC): deve ser recusada quando o prejuízo decorrente da providência exceda consideravelmente o dano que com ela se pretenda evitar.
Provaram-se sumariamente no procedimento cautelar, entre outros, os seguintes factos alegados pelos requerentes i) os efeitos nocivos produzidos pela actividade da requerida A (…), C.R.L., seriam remediados com a implementação dos filtros adequados nos emissores, com vista à retenção sólida; ii) a A (…) C.R.L., não obstante anunciar frequentemente a colocação e entrada em funcionamento de eficazes filtros, não o tem feito, nem o fez até ao momento.
Em suma, os próprios requerentes da providência alegam que bastava a colocação de filtros nas instalações da requerida, para que a providência se tornasse evitável, reiterando tal alegação nas contra-alegações de recurso, logo na 1.ª conclusão, nestes termos: «I - Os efeitos nocivos produzidos pela actividade da recorrida A (…) serão remediados com a instalação de filtros de aspiração a serem instalados em toda a extensão dos secadores.»
Como fundamento da sua pretensão, a ora recorrente alega em síntese dois tipos de factos: i) é uma cooperativa que serve cerca de ¼ da produção nacional de milho, traduzindo-se a sua paragem de produção num prejuízo insustentável, nomeadamente para os produtores da região; ii) já procedeu à colocação de filtros que evitam as consequências poluidoras que justificaram a providência - emissão atmosférica de detritos e poeiras cerealíferas.
Com mais detalhe, é esta a argumentação em que suporta a pretensão de extinção da providência: adquiriu no final de Julho de 2011, pelo valor de € 39.000,00, para a unidade industrial em causa, filtros da nova geração, que garantem uma redução substancial da emissão das partículas decorrentes do processo da secagem de milho que pratica, de forma a não ultrapassar o índice de 10mg/Nm^3; tais filtros de secagem – designados “LAW TYPE SBC13NE EXISTANT” e “FAO EXISTANT”; tais filtros foram instalados na segunda quinzena de Agosto; a empresa fornecedora facultou os manuais dos filtros e assegurou que tais filtros permitem reduzir as emissões de partículas para o índice acima identificado; pediu uma avaliação técnica às suas instalações, a qual reconhece que a introdução dos filtros em apreço, devidamente conjugados com os mecanismos de secagem já existentes, designadamente as persianas anti-poeiras e os sistemas de aspiração, assegura uma boa qualidade do ar, reduzindo a emissão de partículas para um montante manifestamente inferior aos limites estabelecidos na lei para a protecção da saúde humana; o equipamento instalado na unidade industrial em causa corresponde à solução tecnologicamente mais avançada a nível mundial, não existindo nenhuma outra que garanta melhor resultado para a qualidade do ar; a unidade industrial em apreço é uma cooperativa que serve cerca de ¼ da produção nacional de milho, sendo a unidade económica mais importante do país no âmbito da actividade da secagem de milho; sem a secagem, o milho não pode ser comercializado, porque fermentaria; a produção e comercialização do milho é a actividade agrícola mais importante do concelho onde se insere a unidade de R (...) , de que dependem centenas de agricultores e suas famílias; a paralisação da unidade de R (...) implicaria milhões de euros de prejuízo para a Requerida e para os agricultores que a formam e a ela recorrem, que deixariam de poder assegurar em tempo útil a secagem do seu milho e posterior comercialização; a campanha do milho começou no final de Agosto e deve prolongar-se até ao final de Novembro; a presente situação de paralisação da unidade de R (...) está a lesar os agricultores da região, que sentem ameaçada a sua subsistência, o que já levou o Governo a tomar uma posição de apelo a que o problema seja ultrapassado; os filtros instalados evitam os efeitos nocivos que a decisão cautelar pretende evitar, assegurando uma qualidade de ar que é insusceptível de causar qualquer lesão na saúde dos Requerentes e dos seus funcionários.
A questão essencial que nos ocupa neste recurso e que não podemos perder de vista, é a seguinte: perante esta factualidade (que, como é óbvio, está por demonstrar), justifica-se o indeferimento liminar (com base na inviabilidade absoluta ou manifesta improcedência da pretensão da ora recorrente)?
Salvo o devido respeito, pensamos que a resposta deverá ser negativa.
Com efeito, tendo sido alegado pelos requerentes da providência e ficado sumariamente provado no procedimento cautelar, que “os efeitos nocivos produzidos pela actividade da requerida A (…), C.R.L., seriam remediados com a implementação dos filtros adequados nos emissores, com vista à retenção sólida”, a alegação e prova da colocação de tais filtros, é susceptível de justificar o levantamento da providência.
Tal factualidade, uma vez demonstrada, constituiria uma causa atípica de caducidade da providência, não obstando a esta conclusão o facto de não se encontrar expressamente enunciada em nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 389.º do CPC, considerando que, tal como já se referiu invocando um apontamento doutrinário[10], o elenco constante dessas alíneas não tem natureza taxativa, existindo outras situações geradoras da extinção do procedimento ou da caducidade da providência, não previstas nessa norma.
Acresce uma outra razão.
O processo visa realizar o direito (art. 2.º/2 do CPC), com vinculação ao “apuramento da verdade e à justa composição do litígio” (art. 265/3 CPC), devendo ajustar-se a forma ou procedimento ao fim visado (art. 265.º-A do CPC), não devendo nunca esquecer-se que “a Justiça é um valor ético e que às normas de Direito inere a pretensão de realizar esse valor”[11].
Ora, se os próprios requerentes da providência alegam que “os efeitos nocivos produzidos pela actividade da requerida A (…) C.R.L., seriam remediados com a implementação dos filtros adequados nos emissores, com vista à retenção sólida”[12], vindo a requerida alegar que colocou tais filtros, deixando de ocorrer o dano que justificou a providência, mal seria se o tribunal, perante este acordo de princípio das partes em litígio, não averiguasse se se verifica ou não a factualidade que ambas aceitam que, uma vez demonstrada, tornaria inútil a providência.
Só por esta via se poderá garantir a realização dos princípios já referidos [adequação e proporcionalidade (art. 387/2 CPC)], tanto mais que a recorrente alega um prejuízo decorrente da suspensão da actividade, que afecta centenas de agricultores e suas famílias.
Decorre de todo o exposto, salvo o devido respeito, a conclusão de que não se verificam os pressupostos de indeferimento liminar da pretensão formulada pela recorrente, pelo que deverá ser revogado o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro, que determine o prosseguimento da tramitação do incidente, com vista a apurar se estão em concreto reunidas as condições que em abstracto ambas as partes aceitam como susceptíveis de justificarem a inutilidade superveniente da providência.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, ao qual concedem provimento e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído nos termos a que se alude na última parte do ponto anterior.
Custas do recurso pelos Apelados.
                                                         *


Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 4.ª Edição, 5. Procedimento Cautelar Comum, Almedina, pág. 292
[2] Em coerência com a formulação do objectivo da providência enunciado no n.º 1 do artigo 381.º do CPC, Rui Pinto [in A questão de mérito na tutela cautelar, a obrigação genérica de não ingerência e os limites da responsabilidade civil, Coimbra Editora, Maio de 2009, p. 628], reduz a relação instrumental entre procedimento cautelar e acção a “instrumentalidade material entre os meios de tutela preventiva por dano e os meios de realização do direito”.
[3] Obra citada, pág. 303
[4] Relatada pelo mesmo relator deste acórdão
[5] Os direitos de personalidade vigoram, nalgumas situações, para além da morte do seu titular - art. 71.º do CC – o que constitui um desvio à regra prevista no n.º 1 do artigo 68.º
[6] Os direitos de personalidade são “inalienáveis e irrenunciáveis”, e, em princípio, indisponíveis, sendo certo que a irrenunciabilidade não impede a eventual relevância do “consentimento do lesado”, desde que a mesma seja conforme aos princípios da ordem pública  – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, pág. 211. No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ, de 3.05.2007, proferido no Processo n.º 06B3359, acessível em http://www.dgsi.pt.
[7] O direito de personalidade dos requerentes, traduzido no direito à saúde e ao ambiente saudável, mantém-se para além dessa eliminação da fonte poluidora.
[8] Obra citada, pág. 303
[9] No que respeita à inutilidade superveniente do procedimento, o autor citado dá como exemplo a realização da partilha extrajudicial, posterior ao arrolamento de bens da herança, apontando ainda o exemplo avançado por Teixeira de Sousa, de enriquecimento do arrestado depois do decretamento do arresto (manifestando, no entanto, discordância relativamente a esta tese, por entender que nesse caso deverá, previamente, utilizar-se o mecanismo da prestação de caução ou de consignação em depósito do valor)
[10] António Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 303
[11] João Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 62
[12] Alegação reiterada nas contra-alegações de recurso, nestes termos:

“I - Os efeitos nocivos produzidos pela actividade da recorrida A (…) serão remediados com a instalação de filtros de aspiração a serem instalados em toda a extensão dos secadores.

II - A aspiração deve ser feita em toda a extensão do silo, de um lado e de outro assim como nas denominadas tramonhas, de carregamento.
III - Nas descargas laterais, existindo as mangas estas devem ser fechadas ou, no caso de não serem fechadas, então que seja instalada nelas a aspiração.”