Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
191/09.5EACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TIC COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 68º E 115º DA LEI DO JOGO E 109º CP
Sumário: 1.- Para efeitos do preenchimento do tipo do crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115º da Lei do Jogo, por material e utensílios caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar deve entender-se todo o material e utensílios cujo modo de ser das suas características próprias, aponta inequivocamente para a sua utilização na prática de tais jogos;
2.- Vinte conjuntos compostos, cada um, por uma mala com os dizeres impressos «Maletin de póquer – Set Gioco – Poker», contendo, além do mais, dois baralhos de cartas e vários conjuntos de fichas semelhantes às utilizadas nos locais de jogo autorizado, colocados à venda ao público em loja com o letreiro «CONJ. DE POKER EM MALA (Cada conj.) 19,99 €», apontam imediata, direta e inequivocamente no sentido de se destinarem à prática do póquer sendo por isso, material caracterizadamente destinado à prática de jogos de fortuna ou azar;
3.- A circunstância de se ter concluído pela falta de consciência da ilicitude dos arguidos não impede a declaração de perdimento a favor do Estado de tais conjuntos, sem prejuízo de a sua proprietária juntar aos autos a necessária autorização da Inspeção-Geral de Jogos, devendo para tal efeito, ser-lhe fixado prazo razoável.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO


No inquérito 191/09.5EACBR, que corre termos na 2ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Coimbra, no qual são arguidos A... & Cia., B... e C..., a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, em 13 de Janeiro de 2011.

Em 25 de Março de 2011, os arguidos requereram a devolução dos bens apreendidos nos autos – vinte conjuntos de poker, acondicionados em três caixas de cartão – à sua proprietária, a arguida A... & Cia., e a destituição da arguida C... das funções de depositária dos mesmos.

Em 31 de Março de 2011, o Digno Magistrado do Ministério Público remeteu os autos ao Tribunal de Instrução Criminal com a seguinte promoção:
“ (…).
Remeta os autos ao TIC, promovendo-se que sejam declarados perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos, pois que se trata de material caracterizadamente destinado à prática de um jogo de fortuna ou azar, pese embora tenha sido proferido despacho de arquivamento, por se indiciar que os arguidos agiram em erro sobre as proibições – art. 116º do DL 422/89, de 02.12, alterado pelo DL 10/95, de 19.01.
(…)”.
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Em 14 de Abril de 2011, a Mma. Juíza de Instrução proferiu o seguinte despacho:
“ (…).
Tal como promovido a fls. 150, declaro perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos, face ao teor da dita promoção.
(…)”.
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Inconformados com a decisão, dela recorrem os arguidos, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
A. O presente processo tem por base uma acção de fiscalização levada a cabo no dia 21 de Dezembro de 2009, pela ASAE, em diversos estabelecimentos comerciais da titularidade da Arguida A... em todo o território nacional, nos quais se incluiu o estabelecimento sito na …. , em Coimbra,
B. Apesar de no presente processo ter sido proferido despacho de arquivamento, foi dado como verificado o tipo objectivo do ilícito criminal ora em crise e considerado que os produtos aprendidos oferecem sério risco de serem utilizados na prática de novos factos ilícitos.
C. Tendo o Ex.mo Senhor Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra decidido, através de despacho proferido em 14 de Abril de 2011, que os mesmos sejam declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal.
D. Sucede que não estão reunidos os pressupostos para que sejam declarados perdidos a favor do Estado os produtos apreendidos no âmbito do presente processo, nomeadamente porque estes não serviram para a prática do crime p.p, no artigo 115.º da Lei do Jogo ou para a prática de qualquer outro facto ilícito.
E. Aliás, refira-se que, na grande maioria dos processos que foram instaurados após a acção de fiscalização concertada levada a cabo pela ASAE no dia 21 de Dezembro de 2009, o entendimento dos Serviços do Ministério Público foi o de concluir pela inexistência de qualquer ilícito criminal, determinando o arquivamento dos mesmos ao abrigo do artigo 277.º, n.º 1 do CPP,
F. A norma prevista no artigo 115.º,° da Lei do Jogo está redigida de uma forma demasiado abrangente sendo necessário interpreta-la de forma restritiva, para que a sua aplicação a situações fácticas concretas seja efectuada com adequação e proporcionalidade ao fim que a norma pretende tutelar e aos interesses que o legislador pretendeu salvaguardar com a sua previsão.
G. Esta norma está incluída na Secção intitulada "Dos crimes", na qual se prevê uma série de ilícitos criminais que estão associados aos jogos de fortuna ou azar.
H. O fim último das normas incluídas nesta Secção da Lei do Jogo não é o de proibir tout court qualquer conduta relacionada com a prática de jogos que sejam caracterizados como de fortuna ou azar, mas o de procurar evitar-se a obtenção ilícita de um proveito ou vantagem económica directa ou indirectamente resultante da exploração de jogos de fortuna ou azar.
I. Impondo-se regras para o exercício da actividade de exploração económica de jogos de fortuna e azar, determinando que esta actividade se realize em locais definidos e limitados, seja conduzida por entidades devidamente licenciadas para o efeito, e seja praticada dentro de determinadas regras e princípios cujo cumprimento possa facilmente ser controlado pelas autoridades administrativas.
J. Sendo que o fim específico do artigo 115.º da Lei do Jogo, cuja violação foi imputada aos ora Arguidos, é o de "privar os potenciais agentes do crime de exploração ilícita de jogo dos meios necessários para o fazer." (cf. cit. Doc. n.º 9).
K. Assim, não constituirá um ilícito criminal a mera venda de objectos que possam ser utilizados na prática de jogos de fortuna ou azar – como os que estão em causa nestes autos –, tal como não será crime, por exemplo, um comerciante vender um baralho de cartas a quem com estas irá jogar "blackjack" , também este um jogo de fortuna ou azar como o "poker".
L. Nos presentes autos não se está perante a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar, porquanto nenhum dos ora Arguidos retirou ou retirará qualquer benefício económico directo ou indirecto da prática do jogo a que se destina o produto em questão.
M. Além de que, nem sequer é verdade que o jogo a que se destina o produto em causa nos presentes autos tenha que ser necessária e obrigatoriamente jogado a dinheiro, ou que dele resulte um qualquer benefício económico para os intervenientes no mesmo ou para qualquer terceiro.
N. Pelo que a mera comercialização do produto em causa nos presentes autos não consubstancia a prática de qualquer crime previsto pela Lei do Jogo, nomeadamente do seu artigo 115.º, não estando portanto verificado o tipo objectivo deste ilícito criminal. O. Os produtos apenas são apreendidos no âmbito de processos de natureza criminal e declarados pedidos a favor do Estado, ordenando-se a sua destruição, nos casos em que tenham servido para a prática de um facto ilícito, estivessem destinados à prática de um facto ilícito ou tenham sido o produto de um facto ilícito e, cumulativamente, constituam um perigo para a segurança, moral ou ordem públicas ou possam ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos.
P. Não estão, portanto, reunidos os pressupostos para que os produtos apreendidos no âmbito dos presentes autos sejam declarados perdidos a favor do Estado, devendo ser revogada a decisão do Ex.mo Senhor Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra e restituídos os produtos apreendidos à Arguida A..., legítima proprietária dos mesmos.
Nestes termos e nos demais de Direito requer-se a V. Exas. se dignem julgar procedente o presente recurso e, em consequência, seja revogada a decisão do Ex.mo Senhor Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra e restituídos os bens apreendidos à Arguida A..., legitima proprietária dos mesmos.
(…)”.
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Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1. Como se disse no despacho de arquivamento proferido nos autos, é nosso entendimento que a situação aqui apurada – a exposição para venda de 20 conjuntos de póquer, compostos por fichas, cartas e dados, acondicionados numa mala – se subsume à ilicitude tipificada no artigo 115º do Decreto-Lei 422/89, de 02.12., alterado pelo Decreto-Lei 10/95, de 19.01.
2. Tal disposição preceitua que "Quem sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos, fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expuser ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática de jogos de fortuna ou azar será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.".
3. Ora, o material em causa, que se encontrava em exposição para venda ao público no estabelecimento da empresa arguida, destina-se à prática do jogo de póquer, qualificado como jogo de fortuna ou azar, não se exigindo na referida disposição legal que essa prática seja ilícita, com contra-partidas em dinheiro ou outras vantagens económicas, ou desenvolvida em locais não autorizados e, assim, que o material seja utilizado em situações de exploração ilícita de jogo.
4. Acresce que tal material faz parte da logística necessária ao desenvolvimento do jogo de póquer, pelo que é caracterizadamente destinado a pratica de jogo de fortuna ou azar, pois que se encontrava em exposição para venda ao público.
5. Assim, indiciando-se nos autos a pratica do crime p. p. pelo artigo 115º do referido Decreto-Lei, é forçoso concluir que se verificam os pressupostos para a apreensão do material de jogo, declaração de perda e sua destruição, como estipulado no artigo 116º do mesmo diploma.
6. Pelo exposto, bem decidiu a Exma. Sr.ª Juiz, sendo que não tendo o despacho recorrido violado qualquer norma legal, deverá o mesmo ser mantido na íntegra.
(…)”.
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Na vista a que refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, aderindo aos fundamentos apresentados pelo Ministério Público junto da 1ª instância aos quais acrescentou ser a declaração de perdimento apenas uma medida preventiva, e concluiu pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal, tendo respondido os recorrentes, reafirmando os argumentos da motivação e concluindo de idêntico modo.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões da motivação constituem pois, como é unanimemente entendido, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, pág. 103).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, a única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se estão ou não verificados os pressupostos de que depende a declaração de perdimento a favor do Estado dos objectos apreendidos.
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Para a resolução desta questão importa ter presentes os aspectos relevantes que se colhem dos autos. Assim:
a) No dia 21 de Dezembro de 2009, inspectores da ASAE efectuaram uma acção de inspecção no estabelecimento de comércio a retalho denominado A..., situado no Arruamento A, Lote 1, da … . Santa Clara, Coimbra, pertencente à A... & Cª, e sendo gerente da loja, C...;
b) No decurso da acção de inspecção foi constatado que no interior do estabelecimento, em exposição para venda ao público, sob um letreiro com os dizeres, «CONJ. DE POKER EM MALA (Cada conj.) 19,99 €», se encontravam vinte conjuntos de «póquer», apresentados sob a forma de uma mala de metal envolta em papel com os dizeres impressos, «Maletin de póquer – Set Gioco – Poker»;
c) A A... & Cª não era, então, titular de autorização emitida pela Inspecção-Geral de Jogos para venda de material de jogos de fortuna ou azar;
d) Os inspectores da ASAE apreenderam os vinte conjuntos de «póquer», contendo cada mala, dois baralhos de cartas, um conjunto de dados e diversos conjuntos de fichas de jogo;
e) O inquérito foi arquivado por despacho de 13 de Janeiro de 2011, com fundamento na falta de consciência da ilicitude e portanto, na falta de dolo e consequente não preenchimento do tipo do crime p. e p. pelo art. 115º do Dec. Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 38/2008, de 8 de Agosto.
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Da verificação ou não dos pressupostos de que depende a declaração de perdimento a favor do Estado dos objectos apreendidos


1. O regime geral do perdimento dos instrumenta sceleris e dos producta sceleris encontra-se previsto no art. 109º do C. Penal. Nos termos do disposto no nº 1 deste artigo, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
O instituto funda-se, hoje, em razões de prevenção de futuros crimes face à sua perigosidade, sendo requisitos da declaração de perda a favor do Estado:
- Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto, o efeito do facto ilícito típico;
- A perigosidade dos objectos.

Relativamente ao primeiro requisito, impõem-se duas notas. A primeira, dizendo que a referência a «estivessem destinados a servir» permite concluir que o perdimento não depende da consumação do facto. A segunda, dizendo que a referência a «facto ilícito típico» em substituição de «crime» explicita que a aplicação do instituto não depende da existência de culpa (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 619, e Cons. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 8ª Edição, pág. 474).

Relativamente ao segundo requisito, já sabemos que são razões de ordem preventiva que estão na base da perda dos instrumentos e do produto do crime. Como decorre da lei, nem todos os instrumenta sceleris e os producta sceleris devem ser declarados perdidos, mas apenas aqueles instrumentos ou produto que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 621).
A perigosidade deve ser considerada sob um ponto de vista objectivo. Há que atender à perigosidade do objecto em si mesmo, em razão das suas próprias características, e desligado da pessoa que o detém.
E deve ser avaliada em concreto, isto é, em função das concretas condições em que o objecto pode ser utilizado. Ora, a relação entre a perigosidade objectiva do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode, como alerta o Prof. Figueiredo Dias, determinar uma referência ao próprio agente implicando, nesta medida, que na avaliação da perigosidade intervenha também um elemento subjectivo (ob. cit., pág. 623).
Assim, o ponto de partida será sempre a perigosidade objectiva do objecto, à qual se juntam as concretas circunstâncias do caso entre as quais, a personalidade do agente para, numa análise global, se concluir a final, pela perigosidade ou não.
Posto isto.

2. Os objectos cuja declaração de perdimento se sindica no presente recurso são os vinte conjuntos de «póquer», apresentados sob a forma de uma mala de metal envolta em papel com os dizeres impressos, «Maletin de póquer – Set Gioco – Poker», contendo cada mala, dois baralhos de cartas, um conjunto de dados e diversos conjuntos de fichas de jogo, conjuntos que se encontravam em exposição para venda ao público, num estabelecimento de comércio a retalho denominado A..., situado em Coimbra, onde foram apreendidos, estabelecimento que pertence à arguida A... & Cª, que não era titular de autorização emitida pela Inspecção-Geral de Jogos para venda de material de jogos de fortuna ou azar.
Entendem os recorrentes que não se encontram reunidos os pressupostos da declaração de perdimento porque os objectos apreendidos não serviram para a prática do crime p. e p. pelo art. 115º da Lei do Jogo, devendo este preceito ser interpretado restritivamente no sentido de que só se verificará o seu preenchimento quando o agente vise obter uma vantagem económica directa ou indirectamente resultante da exploração de jogos de fortuna ou azar, não constituindo por isso qualquer ilícito, a simples venda de objectos que possam ser utilizados na prática de jogos de fortuna ou azar, sendo certo que não se está perante a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar, nenhum deles, recorrentes, obteve ou obterá qualquer benefício económico, directo ou indirecto, da prática do jogo a que se destinam os objectos, e que nem tal jogo tem que, necessariamente, ser jogado a dinheiro, ou dele tem que resultar benefício económico para os respectivos jogadores.
Vejamos se lhes assiste razão.

2.1. O jogo, enquanto comportamento humano, há muito que atrai a atenção do Direito, sendo ao longo do tempo submetido a diversas e distintas disciplinas, em função das perspectivas mais ou menos benévolas com que foi sendo encarado.
No nosso país, o jogo é hoje uma actividade com autorização regulamentada portanto, uma actividade condicionada, em que o propósito do legislador é, não a necessidade de proteger o jogador, mas a necessidade de controlar «uma actividade que constitui objecto de uma significativa reprovação social, do ponto de vista ético, tendo em conta os males e prejuízos da própria sociedade que se considera encontrarem-se-lhe associados (…)» (Ac. do T. Constitucional, nº 99/2002, de 27 de Fevereiro).
O regime legal em vigor, definido pelo Dec. Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro (com as alterações do Dec. Lei nº 10/95, se 19 de Janeiro) – Lei do Jogo – estrutura-se na distinção entre jogos de fortuna ou azar e modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, com a absoluta interdição do jogo clandestino.

Os jogos de fortuna ou azar são definidos no art. 1º da Lei do Jogo como aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
Não obstante, o art. 4º da Lei do Jogo, com a epígrafe, «Tipos de jogos de fortuna ou azar», enuncia no seu nº 1, a título exemplificativo – assim o indica a utilização do advérbio, nomeadamente – a propósito dos jogos autorizados nos casinos, os tipos de jogos de fortuna ou azar, e que são:
- Os jogos bancados [bacará, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa, roleta americana, black-jack, chucluck, trinta e quatro, bacará de banca limitada, craps e keno], alíneas a) a d);
- Os jogos não bancados [bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo], alínea e);
- Os jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas, alínea f);
- Os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte, alínea g).
A esta lista de jogos de fortuna ou azar há que acrescentar, nos termos das Portarias nº 461/2001, de 8 de Maio e nº 217/2007, de 26 de Fevereiro, o póquer sem descarte (jogo bancado), o póquer omaha, o póquer hold’em e o póquer sintético (jogos não bancados).
Em regra, a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo legalmente criadas (art. 3º, nº 1, da Lei do Jogo).

No que respeita às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar o art. 159º, nº 1, da Lei do Jogo define-as como, as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico.”.
Também aqui não deixou o legislador de enunciar, de forma exemplificativa, as modalidades afins, fazendo-o no nº 2 do mesmo artigo, como tal considerando, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos.

A Lei do Jogo fulmina com a ilicitude criminal as actividades e condutas relacionadas com a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar (arts. 108º a 115º), ficando as modalidades afins a coberto do direito de mera ordenação social (arts. 160º a 163º).
Assim, a Lei do Jogo tipifica os seguintes crimes: exploração ilícita de jogo (art. 108º); prática ilícita de jogo (art. 110º); presença em local de jogo ilícito (art. 111º); coacção à prática de jogo (art. 112º); jogo fraudulento (art. 113º); usura para jogo (art. 114º) e; material de jogo (art. 115º).
A repressão do jogo pela via penal radica, em primeira linha, em razões de ordem moral, no reconhecimento das características viciantes desta actividade humana, mas outros fundamentos têm justificado a intervenção do direito penal, tais como, a protecção do património e a defesa da paz social e da ordem pública. Podemos pois dizer que os valores tutelados pelas normas penais que punem o jogo são, os bons costumes, a propriedade e, de certa forma, o interesse fiscal do Estado (cfr. Rui Pinto Duarte, O Jogo e o Direito, Thémis, Ano II, nº 3, pág. 89).
Aqui chegados, atentemos no tipo do art. 115º da Lei do Jogo, crime fundamento do perdimento decretado.

2.2. O Estado visa controlar os efeitos negativos do jogo através da regulamentação, disciplina e sancionamento desta actividade lúdica do homem, estabelecendo os locais onde certos jogos podem ser praticados e respectivas regras de acesso, definindo as entidades que os podem explorar e o seu modo de funcionamento, fixando as regras a observar no desenrolar de cada jogo, e estabelecendo as regras de fabrico e comercialização dos materiais conexos. Sendo por esta via, como se diz no Acórdão nº 4/2010 (DR, I-A, nº 46, de 8 de Março de 2010), que se procura extirpar o jogo clandestino, de características perniciosas e muitas vezes associado à marginalidade.
Neste seguimento, o art. 68º da Lei do Jogo subordina o fabrico, a exportação, a importação, a venda e o transporte de material e utensílios caracterizadamente destinados à exploração de jogos de fortuna ou azar à competente autorização da Inspecção-Geral de Jogos.

E, por sua vez, dispõe o art. 115º da Lei do Jogo, com a epígrafe, «Material de jogo»:
Quem, sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos, fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expuser ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.”.
Trata-se de um crime comum, e de perigo abstracto, que tem como elementos do respectivo tipo:
[tipo objectivo]
- Que o agente fabrique, publicite, importe, transporte, transaccione, exponha ou divulgue material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar;
- A ausência de autorização da Inspecção-Geral de Jogos;
[tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto [em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].

Ainda que o tipo objectivo possa suscitar algumas dificuldades de concretização, não vemos, ressalvado sempre o devido respeito por opinião diversa, que se imponha uma interpretação restritiva do art. 115º da Lei do Jogo, no sentido de se exigir, no preenchimento do respectivo tipo, a verificação de uma vantagem económica directa ou indirectamente resultante da exploração de jogos de fortuna ou azar. Desde logo porque tal se traduziria numa alteração do tipo legal, através do acrescentamento de um novo elemento, nele não previsto. Depois, porque o tipo do art. 115º constitui uma forma de tutela antecipada, relativamente ao tipo do art. 108º, nº 1, da Lei do Jogo.
É claro que, por exemplo, a exposição para venda, de simples baralhos de cartas só por absurdo, poderá ser considerada como conduta preenchedora do tipo objectivo. Por isso, a interpretação razoável e proporcional do preceito vai depender do entendimento a dar ao advérbio caracterizadamente, no contexto legal em que surge integrado.
Para Vilares Roque, o material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar, são os intimamente ligados ao jogo em si, aqueles sem os quais não seria possível o seu desenvolvimento ou funcionamento (A Lei do Jogo e seus Regulamentos, Anotada e Comentada, pág. 725). Trata-se, a nosso ver, de uma acepção demasiado ampla, que necessariamente conduzirá a resultados não desejados, como o supra, referido [na verdade, ao póquer de cartas são essenciais, as cartas].
Assim, cremos que por material e utensílios caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar se deve entender todo o material [e utensílios] cujo modo de ser das suas particularidades, das suas características próprias, aponta inequivocamente para a sua utilização na prática daqueles jogos.

Como atrás vimos, o jogo de póquer, em qualquer uma das modalidades que se deixaram assinaladas, é legalmente classificado como jogo de fortuna ou azar. A arguida A... & Cia., tinha em exposição, para venda, num seu estabelecimento, os referidos vinte conjuntos de «póquer», que foram apreendidos. Cada conjunto era integrado por uma mala, dois baralhos de cartas, um conjunto de dados e diversos conjuntos de fichas de jogo.
Não se trata, portanto, apenas, de estarem em exposição para venda ao público, simples baralhos de cartas, sendo certo que este material, tanto pode ser utilizado no póquer, como em qualquer outro jogo de cartas, e muitos existem que não integram a categoria dos jogos de fortuna ou azar. O que está em causa é antes a exposição para venda ao público, de um conjunto de materiais, onde se incluem alguns que, manifestamente, se destinam à prática do póquer, como sucede com os conjuntos de fichas contidas em cada mala, semelhantes às usadas na prática do jogo nos locais devidamente autorizados.
E tanto assim é, tanto os conjuntos se destinavam à prática do póquer, que é precisamente esse o fim comercialmente anunciado, pela própria vendedora, a arguida A... & Cia., como inequivocamente resulta, quer dos dizeres impressos em cada mala [«Maletin de póquer – Set Gioco – Poker»], quer dos dizeres do letreiro existente na loja [«CONJ. DE POKER EM MALA (Cada conj.) 19,99 €»].
Deste modo, é a forma como cada conjunto, no seu todo, se apresenta – baralhos, fichas, e dizeres impressos na mala –, e que é obtém confirmação no anúncio colocado pela vendedora, que imediata, directa e inequivocamente aponta no sentido de que cada um dos vinte conjuntos se destina à prática do jogo de póquer. E por isso, os conjuntos apreendidos devem ser qualificados como material e utensílios caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar para efeitos do preenchimento do tipo objectivo do crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115º da Lei do Jogo.

2.3. Como se viu, a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito, entendendo que não se mostrava suficientemente indiciado o dolo dos arguidos, por desconhecimento da ilicitude da conduta.
Os vinte conjuntos haviam sido apreendidos pelos inspectores da ASAE ao abrigo, além do mais, do disposto no art. 116º da Lei do Jogo que dispõe que, o material e utensílios de jogo serão apreendidos quando sejam cometidos crimes previstos nesta secção e destruídos, a mandado do tribunal, pela autoridade apreensora, que lavrará o competente auto de destruição.
Na promoção do Ministério Público onde é requerida a prolação de decisão de declaração de perdimento a favor do Estado, é invocado este mesmo artigo, e no despacho recorrido parece aceitar-se, implicitamente, esta razão de direito.

Pois bem, uma vez que foi entendido não estarem indiciados os elementos necessários ao preenchimento do tipo do art. 115º da Lei do Jogo, em rigor, não pode falar-se em qualquer crime cometido, o que, aparentemente, afastaria a aplicação do art. 116º do mesmo diploma. Mas só aparentemente, pois o sentido do preceito há-de ser idêntico ao do art. 178º, nº 1, do C. Processo Penal ou seja, a apreensão é, além do mais, um meio de apreensão e conservação de provas, tendo por campo de actuação preferencial, a primeira fase do processo penal, o inquérito, onde ainda só existem indícios do cometimento de crime.
Por outro lado, o art. 116º da Lei do Jogo não prevê a declaração de perdimento, antes estabelece a competência para a destruição do material e utensílios de jogo apreendidos.

Assim, a questão do perdimento dos conjuntos apreendidos terá que ser solucionada à luz do disposto no art. 109º do C. Penal.

Tal como se encontra desenhado o tipo do art. 115º da Lei do Jogo, a entrega à arguida A... & Cia., dos conjuntos de póquer apreendidos faria incorrer os seus representantes, quase que instantaneamente, na prática do crime de material de jogo ali previsto e punido [o mero transporte do material preenche a acção típica], na medida em que, neste concreto circunstancialismo, deixariam de se verificar os pressupostos de facto que conduziram à falta de consciência da ilicitude.
Por isso, só será possível afirmar-se que não existe uma forte probabilidade, quando não, uma quase certeza, de vir a ser cometido o crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115º da Lei do Jogo, com a entrega dos conjuntos, se for viável a obtenção da necessária autorização pela recorrente A... & Cia., obtenção que, necessariamente, terá que preceder aquela entrega. E competente para deferir ou indeferir tal autorização é, nos termos do art. 68º da Lei do Jogo, a Inspecção-Geral de Jogos.

Por isso, afigura-se-nos como mais razoável que antes de ter sido declarado o perdimento dos conjuntos apreendidos, tivesse sido fixado prazo à recorrente A... & Cia., para que, junto da autoridade administrativa, tentasse obter a autorização de que carecia, só depois devendo decidir-se em conformidade.
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Em síntese conclusiva do que antecede:
- Para efeitos do preenchimento do tipo do crime de material de jogo, p. e p. pelo art. 115º da Lei do Jogo, por material e utensílios caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar se deve entender-se todo o material e utensílios cujo modo de ser das suas características próprias, aponta inequivocamente para a sua utilização na prática de tais jogos;
- Vinte conjuntos compostos, cada um, por uma mala com os dizeres impressos «Maletin de póquer – Set Gioco – Poker», contendo cada mala, além do mais, dois baralhos de cartas e vários conjuntos de fichas semelhantes às utilizadas nos locais de jogo autorizado, colocados à venda ao público em loja com o letreiro «CONJ. DE POKER EM MALA (Cada conj.) 19,99 €», apontam imediata, directa e inequivocamente no sentido de se destinarem à prática do póquer sendo por isso, material caracterizadamente destinado à prática de jogos de fortuna ou azar;
- A circunstância de se ter concluído pela falta de consciência da ilicitude dos arguidos não impede a declaração de perdimento a favor do Estado de tais conjuntos, sem prejuízo de a sua proprietária juntar aos autos a necessária autorização da Inspecção-Geral de Jogos, devendo para tal efeito, ser-lhe fixado prazo razoável.

Impõe-se pois, a revogação da decisão recorrida.
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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso.
Em consequência:

A) Consideram que os vinte conjuntos apreendidos nos autos constituem material caracterizadamente destinado à prática de jogos de fortuna ou azar, para efeitos de preenchimento do tipo do crime p. e p. pelo art. 115º da Lei do Jogo.

B) Revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que fixe à arguida A... & Cia., prazo razoável, para juntar aos autos a autorização da Inspecção-Geral de Jogos para a venda de material e utensílios caracterizadamente destinados à exploração de jogos de fortuna ou azar, decidindo-se depois, em conformidade.
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Sem tributação (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).
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Coimbra, 7 de Março de 2012


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(Heitor Vasques Osório)

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