Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
692/11.5TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL
PESSOA JURÍDICA CANÓNICA
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
NULIDADE DE SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS. 41 CRP, 91, 615, 662 CPC, CONCORDATA DE 18/5/2004, CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO
Sumário: 1. A decisão pode estar mal motivada ou insuficientemente motivada, mas só a absoluta falta de motivação determina a nulidade da sentença, nos termos do artº 615 nº 1 b) do C.P.C.

2. Os tribunais eclesiásticos são os competentes em razão da matéria para determinar a natureza canónica de uma associação de fiéis como pública ou privada. Tal não significa, contudo, que o tribunal a quo seja incompetente para, em concreto, fazer tal apreciação nestes autos, na medida em que a avaliação e qualificação da natureza canónica da Pia União como pública ou privada, surge como questão necessária relativamente à decisão da causa.

3. Por força da extensão da competência estabelecida no artº 91 nº 1 do C.P.C. para o conhecimento dos incidentes e das questões que o réu suscite como meio de defesa, o tribunal sendo competente para a acção, tem competência para apreciar e decidir da natureza canónica da Pia União em divergência nos autos, ainda que, por força do nº 2 da norma mencionada a decisão proferida neste processo não constitua caso julgado fora do mesmo.

4. Para se determinar a natureza jurídico-canónica de uma associação de fiéis, enquanto pública ou privada temos de socorrer-nos do que dispõe para o efeito o Código de Direito Canónico, já que é o mesmo que estabelece as regras necessárias a considerar.

5. Para a distinção entre associação pública e privada de fiéis, é fundamental considerar a forma de constituição da associação de fiéis, bem como os fins prosseguidos pela mesma e forma como são prosseguidos- em nome da Igreja ou em nome próprio.

6. De acordo com o disposto no artº 662 nº 2 al. c) do C.P.C. a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A Diocese de A... e a Pia União das B..., vêm intentar a presente ação declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra a Fundação do C..., pedindo:

- que seja declarada nula ou ineficaz a credencial de 18-10-2005 e, em consequência, a nulidade da procuração da Superiora Geral conferida com base nessa credencial;

- que seja declarada nula a escritura pública outorgada em 22-06-2006, que instituiu a R. e que lhe afetou os prédios que descrevem;

- que seja declarada a nulidade dos atos de registo efetuados com base em tal escritura.

Alegam, em síntese, para fundamentar tais pedidos que a 2.ª A., sendo uma pessoa jurídica ereta canonicamente pelo Bispo de A... e prosseguindo fins religiosos, é uma associação pública de fiéis; que os seus bens – de que fazem parte os prédios que identificou no artigo 44.º da petição inicial – constituem bens eclesiásticos, cuja alienação, transmissão, oneração ou afetação para outros fins que não os religiosos, carecem de autorização da entidade competente, no caso o Bispo de A...; a 2.ª A., representada pela sua Superiora Geral, munida de uma credencial, outorgou procuração notarial a favor de P (…), seu sobrinho, conferindo-lhe poderes para a constituição de uma fundação de natureza social, com fins meramente civis, bem como poderes para administrar e alienar bens; no uso dessa procuração, P (…) em representação da 2.ª A., outorgou escritura pública em que instituiu uma fundação de solidariedade social que denominou de «Fundação do C...” (a ré), à qual afetou todo o património eclesiástico da 2.ª autora, afetação essa a que foi atribuído o valor global de 285.588,81€; tal afetação de património, para ser válida, carecia da audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores, bem como de autorização da entidade competente, no caso o Bispo de A...; a credencial emitida pelo Bispo de A... não foi precedida da audição e parecer do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores, pelo que se encontra ferida de nulidade; a nulidade da credencial fere de nulidade ou ineficácia os atos subsequentes praticados com base nela, nomeadamente a procuração acima mencionada; por outro lado, não podem ser transmitidos bens eclesiásticos “se não se tratar de coisa de somenos importância” aos próprios administradores ou aos seus parentes até ao quarto grau de consanguinidade, sem licença especial da autoridade eclesiástica competente, dada por escrito.

            Citada, a R. deduziu contestação, onde, além do mais, suscita a ilegitimidade da 1.ª A., por não colher qualquer utilidade da procedência da ação, já que a única beneficiária da anulação dos atos impugnados seria a 2.ª A., a cujo património regressariam os bens objeto de afetação à R.; invoca a irregularidade da representação da 2.ª A., sustentando que, tendo esta a natureza de associação privada de fiéis, representada exclusivamente pela sua Superiora, não tem o Bispo legitimidade para a designação de comissários para a representar (poder conferido apenas relativamente às associações públicas de fiéis); por impugnação, alega, em síntese, a natureza privada dos bens em causa, não carecendo a 2.ª A. de qualquer autorização para a instituição da R. ou para a afetação de bens à mesma e, bem assim, a inexistência de qualquer óbice à prática dos atos referidos e a legitimidade da Superiora da 2.ª A., sua única representante, para praticar os referidos atos, que não padecem de qualquer invalidade; alega que a omissão de formalidades no procedimento de autorização constituiria mera anulabilidade e que se mostra decorrido o prazo para a suscitar.

            As AA. responderam, pugnando pela improcedência das exceções de ilegitimidade e de irregularidade de representação invocadas pela R., fundando-se no entendimento propugnado na petição inicial – de que a 2.ª A. é uma associação pública de fiéis. Por outro lado, alegam que os vícios invocados como fundamento do pedido não configuram uma mera anulabilidade, pelo que não estão sujeitos a prazo de caducidade e que, mesmo que assim fosse, tal prazo ainda não se começou a contar.

Realizou-se tentativa de conciliação, no âmbito da qual não se logrou obter o acordo das partes quanto à resolução do litígio.

Foi entendido que os autos dispunham de todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, sem necessidade de produção de outras provas, tendo sido decidido conhecer do pedido e não das excepções de ilegitimidade da 1ª A. e irregularidade de representação da 2ª R., atento o disposto no artº 288 nº 3 “in fine” do C.P.C., por ser a R. a beneficiada com a procedência de tais excepções e sendo a decisão de mérito a proferir favorável à mesma.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. dos pedidos contra ela formulados nestes autos.

É com esta decisão que as AA. não se conformam e dela vêm interpor recurso, pedindo a sua revogação, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões, sintetizadas, após convite deste Tribunal:

1. Como fundamento de facto para a decisão recorrida o Mmo. Senhor Juiz a quo especificou apenas que a Pia União é uma associação privada de fiéis “ …porque votada a piedade, oração e prática de actos de caridade.” E que não lhe é aplicável os cânones 1257, 1 e 2, 1277 e 1292.

2. E nessa medida a “Pia União é livre de administrar os bens que possui, respeitados os respetivos estatutos, bens esses que não são eclesiásticos e, portanto, para que a sua transmissão seja válida, não se exige a autorização da autoridade eclesiástica”.

3. A esse respeito o Mmo Juiz a quo louvou-se nos acórdãos de 17/05/2011 proferidos no âmbito dos processos nº 2047/08.0 TBPDL-D-C1 e de 22/02/2011 no processo nº 332/09.2 TBPDLL1.S1, ambos proferidos no âmbito de procedimentos cautelares e, por isso, não relevando caso como julgado sequer para os processos de que são incidente, também não relevam em nada para os presentes autos, apenas a ilustração do que foi o entendimento neles vertido.

            4. Além de que já foram proferidos Acórdãos pelos Tribunais da Relação de Coimbra e de Lisboa, bem como decisões e sentenças em primeira instancia nos diversos processos em que as mesmas têm vindo ser suscitadas.

            5. Salvo o devido respeito tal decisão padece de nulidade por falta de fundamentação e mesmo quando assim se não entenda sempre enfermaria de nulidade por a decisão estar em oposição com os fundamentos, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b) e c) do CPC.

            6. Esta falta de fundamentação de facto decorre da circunstância de a apreciação e decisão sobre a natureza canónico-jurídica de uma associação de fiéis como pública ou privada, por força da aplicação das relevantes normas do CDC, terá necessariamente de ser feita mediante a averiguação de critérios cumulativos relativos à sua génese, fins prosseguidos, vivência das associadas e autonomia.

            7. O fundamento de facto invocado para a decisão de qualificação da Pia União como associação privada de fiéis releva apenas no que toca aos fins prosseguidos pela Pia União, não se invocando qualquer outro fundamento de facto por onde se pudesse apreciar a natureza jurídico-canónica daquela associação à luz dos restantes critérios distintivos absolutamente essenciais à decisão.

            8. Sendo certo que ainda assim até mesmo aquele fundamento de facto é insuficiente para o critério dos fins prosseguidos, porquanto mesmo à luz deste critério seria necessário averiguar mais factos relacionados com a identidade dos fins prosseguidos pela Pia União com os fins religiosos prosseguidos pela Igreja Católica.

            9. Até mesmo esse fundamento de facto invocado pela decisão, imporia necessariamente decisão oposta daí decorrendo que o fundamento da decisão está em oposição com a decisão proferida relativamente à qualificação da Pia União como associação privada de fiéis nos termos do actual CDC.

            10. Ora o que constata do fundamento invocado pelo Mmo Juiz a quo é que os fins prosseguidos pela Pia União são essencialmente religiosos, porquanto as suas associadas se votam à piedade, oração e prática de caridade, sendo os mesmos substancialmente idênticos aos fins religiosos prosseguidos pela Igreja Católica no âmbito da qual a associação existe.

            11. Identificando-se, pelos fins prosseguidos, com os da Igreja Católica, impunha-se a caracterização da Pia União como associação pública de fiéis.

            12. Por isso e salvo o devido respeito, tendo-se considerado na decisão recorrida que a Pia União é uma associação privada de fiéis, essa decisão não está devidamente fundamentada e está em contradição com os fundamentos invocados, devendo em consequência ser julgada nula por força do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b) e c) do CPC.

            13. Para que fosse legítima a decisão ora colocada em crise era imperioso ao Tribunal a quo averiguar com produção de prova sobre o modo como foi ereta a dita associação de fiéis e, principalmente sobre os fins por ela

prosseguidos.

            14. O que importava, entre o mais, averiguar na instrução do processo, fosse por ulterior prova documental necessária, fosse por auxílio de prova pericial de peritos em direito canónico, fosse por prova testemunhal, as circunstancias e as motivações que levaram à ereção por decreto bispal daquela associação de fiéis e bem assim quais as circunstancias de vida e atividade prosseguidas pelas associadas, nomeadamente se vida religiosa, e se atividade que se integra nos mesmos fins públicos da Igreja Universal com ela se confundindo.

            15. Mas para tanto também se impunha averiguar, à luz de um outro critério distintivo que é o da autonomia, o qual nem sequer foi ao de leve abordado na douta sentença, qual a forma como, ao longo do tempo e mesmo após a entrada em vigor do atual CDC, a Pia União se relacionou com a autoridade eclesiástica no que toca à sua administração, à eleição dos seus órgãos representativos e no que ainda à alienação dos seus bens.

            16. De modo a averiguar se (mesmo após a entrada em vigor do atual CDC) a dita Pia União sempre se pautou pela sujeição à autoridade eclesiástica e se sempre se sujeitou e atuou portanto na obediência ao ordinário do lugar como associação pública de fiéis que era aquando da sua ereção – e ainda é – a Diocese de A... e que continuou a ser quando foi introduzido o novo CDC a figura das associações privadas de fiéis, a quem é facultada uma autonomia que a mesma nunca teve.

            17. Somente mediante a análise criteriosa deste três critérios distintivos que são os essenciais seria legítimo decidir sobre a caraterização da A. Pia União como associação pública ou privada de fiéis.

            18. A circunstância de ter sido proferida decisão de mérito a partir de uma seleção da matéria de fato que é manifestamente insuficiente em face do alegado e sem ter assim dado qualquer relevo aos demais fatos alegados e sem sequer terem sido os mesmos averiguados leva a que tal decisão seja ilegal por quanto o Mmo Juiz a quo não se pronunciou e não tomou decisão sobre toda a matéria de fato relevante e necessária para que uma decisão de mérito pudesse ter sido proferida.

            19. Acresce que, mesmo fosse admissível a consideração de que a Pia União é uma associação privada de fiéis, ainda assim não poderia o Mmo juiz a quo decidir logo do mérito da causa sem necessidade de mais apreciação de outras questões que são relevantes e também determinantes para a prolação de tal decisão.

            20. E isto porque até mesmo as associações privadas de fiéis estão sujeitas à autoridade do ordinário do lugar (no caso o Bispo de A...) quando se trate da aplicação de bens dessa associação privada que lhe tenham sido doados.

            21. Com efeito e por força do disposto no cânone 1301 do CDC é a autoridade eclesiástica que cabe velar pelo cumprimento de vontades pias sendo inválidas quaisquer atos em contrário desse direito e autoridade do ordinário.

            22. Sendo depois expressamente previsto no cânone 325 §2 do CDC que as associações privadas estão sujeitas à autoridade do ordinário do lugar no que concerne a aplicação dos bens que lhe tenham sido doados.

            23. Ora, conforme se alcança das certidões e registos prediais todos os bens pertencentes à Pia União e que foram afetados à recorrida Fundação foram bens que haviam sido doados pelas associadas àquela associação de fiéis para prossecução dos seus fins.

            24. Assim, a aplicação daqueles bens por parte da Pia União, mesmo a ser associação privada, estava sujeita ao controle e direção da autoridade eclesiástica, estando sobejamente provado nos autos que a dita afetação daqueles bens à recorrida fundação, violou essa sujeição ao controle e direção da autoridade eclesiástica.

            25. Ao contrário do decidido, a Pia União reveste-se da natureza de Associação Pública de Fiéis e a sua tutela, a Diocese de A..., sempre considerou e sempre se relacionou com a mesma e com as suas Superioras, como se tratando de uma Associação Pública de Fieis, exercendo sobre a mesma a sua autoridade.

            26. A Pia União foi erecta canonicamente por Decreto de 02/03/1959 emitido pelo Bispo de D... Dom (…), tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de erecção ao Governador Civil de Santarém e registada na Secretaria do Governo Civil de Santarém sob o nº 181 em 06/03/1959.

            27. E foi por a autoridade eclesiástica reconhecer que os fins a prosseguir pelas fiéis que se pretendiam associar eram os mesmos prosseguidos pela Igreja Católica, que veio a mesma a erigi-las por decreto bispal como associação de fiéis.

            28. De onde resulta que a Pia União sempre foi sujeita ao governo e autoridade eclesiástica do ordinário do lugar (Bispo de A...) que era quanto a ela exercido ora directamente pelo Bispo, ora indirectamente pelo capelão ou assistente por ele nomeado.

            29. Indo um pouco mais além e apreciando o outro critério distintivo das Associações Públicas ou Privadas de Fieis – o dos fins que prossegue – há desde logo que atentar nos próprios Estatutos da Pia União.

            30. Com efeito e como decorre dos seus Estatutos (art.º 1º) as “« B...» é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as obras de Caridade.”

            31. A Pia União é assim uma comunidade religiosa, cujo fim “é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; e em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia.”

            32. Foi no reconhecimento desses fins religiosos e da sua “grande utilidade para as almas” que, em 02/03/1959, o Bispo de D... decretou a erecção da Pia União, esperando “confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria, cujas intenções de Misericórdia as B... prometem fazer suas, tomem sob a Sua protecção e amparo esta Pia União e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de Fátima.”

            33. Ainda a este respeito, note-se que as Irmãs que faziam parte da Pia União, tinham e têm Capela nas suas casas, para o exercício do culto religioso, da oração, penitência e celebração eucarística, bem como e essencialmente mantinham nessas capelas o Santíssimo Sacramento.

            34. Tendo sido essa actividade religiosa proclamada e depois vivenciada pelas Irmãs « B...» ao longo dos tempos, sempre na submissão e prossecução dos fins da Igreja, está encontrado o elemento distintivo dos fins religiosos que caracteriza a Pia União como associação pública de fiéis.

            35. Aliás, até mesmo a “prática das Obras de Misericórdia” que seria o meio de, nos termos dos seus Estatutos, a Pia União atingir a finalidade da “evangelização dos pobres” é algo que está indissociavelmente ligado aos fins prosseguidos pela Igreja no sentido mais amplo, pois inscreve-se na matriz que é a essência da Doutrina Social da Igreja.

            36. Mas para além disso e agora no que toca a um outro elemento distintivo que é o da autonomia, também releva a vivência das Irmãs que integravam e integram a Associação, bem como o modo como sempre se consideraram e como se relacionaram com a Autoridade Eclesiásticas no reconhecimento da autoridade e direcção do Bispo de A... e no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fieis.

            37. Tendo ao longo de toda a sua vida cumprido na íntegra todos os trâmites canónicos previstos para as Associações Públicas de Fieis, com vista à regularidade de eleição dos seus membros representativos, com excepção da última eleição.

            38. As circunstâncias de a Pia União ter sido erecta canonicamente e de prosseguir fins religiosos, proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja, são os elementos indissociáveis qualificativos da Pia União como associação pública de fiéis, tal como definido pelas normas do Direito Canónico.

            39. Por força da sua natureza, as Associações Públicas estão sujeitas à direcção da autoridade eclesiástica e os seus moderadores (os representantes legais) estão sujeitos a confirmação e a prestação de contas à Autoridade Eclesiástica e os seus bens são considerados bens eclesiásticos e seguem o regime jurídico estabelecido para eles pelo direito canónico e pelos estatutos da instituição, (Cânones 305, 323. 315, 317, 318, 319, 582, 1009, 1257 e 1276).

            40. A apreciação da natureza pública ou privada da Pia União, à luz do Direito Canónico, é um juízo implícito do que verdadeiramente releva e que é – como se disse - a validade na ordem jurídica civil de um ato de alienação de bens que lhe são pertença, mas apesar de tratar-se de um juízo implícito essa consideração é um pressuposto essencial para a procedência da ação.

            41. Porém esse juízo e consideração sobre a natureza jurídico-canónica da Pia União enquadra-se no âmbito das normas sobre a organização e funcionamento dos organismos da Igreja que, conforme se verá melhor de seguida o Estado Português reconhece ser da competência exclusiva da Igreja Católica.

            42. Estando em causa, no juízo sobre a natureza pública ou privada da Pia União, a apreciação da organização de uma pessoa jurídica canónica com fundamento no Direito Canónico, o mesmo cabe em exclusivo ao ordenamento jurídico canónico, estando essa matéria vedada aos Tribunais Comuns, por força do disposto na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 18 de Maio de 2004 e também por força dos dispositivos constitucionais aplicáveis art.º 41º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

            43. Trata-se aqui da emanação dos princípios da separação entre as Igrejas e o Estado, bem como da liberdade de organização daquelas.

            44. As Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas no conceito de Convenção Internacional e que vigoram na ordem interna com primazia sobre o direito interno, por força do disposto no artigo 10º nº 1 bem como do artigo 11º nº 1 da mesma Concordata.

            45. O que significa, que o Estado reconhece também à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico, quanto à organização das entidades com personalidade jurídica canónica, através de jurisdição ou Órgãos Jurisdicionais próprios.

            46. Daí que, o preceituado no art.º 63º do C.P.C., afasta a respectiva atribuição de competência aos Tribunais Comuns quando a mesma seja contrariada pelo disposto em Convenções Internacionais, como é o caso da supra citada Concordata, o que é salvaguardado em face do disposto nos artigos 62º e 64º ambos do CPC.

            47. Em face do exposto, a decretação da natureza jurídica da Pia União, que é um pressuposto implícito para a procedência da ação, constitui uma questão de competência exclusiva da Igreja Católica, competência essa que o Estado Português reconhece, não sendo sindicável nos tribunais comuns as decisões nestas matérias de organização da vida de pessoas jurídicas canónicas, pois os mesmos carecem de competência em razão da matéria para as julgar.

            48. Admitir o contrário, isto é, colocar em crise a consideração por parte da autoridade eclesiástica de que a Pia União é uma associação pública de fiéis, por aplicação das normas de direito canónico no aspeto organizacional de uma instituição da Igreja, equivaleria a uma errada aplicação e interpretação do regime concordatário em vigor, e uma violação da norma de atribuição de competência em razão da matéria.

            49. Ao proferir a Douta Decisão, o Mmo Juiz a quo fez uma incorrecta delimitação do âmbito de aplicação do direito canónico e do direito civil.

            50. O regime da Concordata de 2004 entre a Santa Sé e a República Portuguesa, por meio de cuja aplicação deverá concluir-se pela falta de competência dos Tribunais Comuns em razão da matéria para decidir sobre a natureza pública ou privada de uma associação de fiéis, resulta do exercício de um direito soberano do Estado Português ao abrigo do disposto no art.º 8º da Constituição e foi celebrada no reconhecimento e efectivação do princípio fundamental de separação entre o Estado e a Igreja e da liberdade de esta se organizar livremente, nos termos do disposto no art.º 41º n.º 4 da Constituição.

            51. Mas há também que ter em consideração que a decretação por parte da autoridade eclesiástica de que a Pia União é uma associação pública de fiéis, tem de ser interpretada no sentido de não beliscar a competência atribuída ao Ordinário pela Concordata, devendo ser entendida como reforçadora do princípio ínsito no art.º 4º da Concordata de 2004, traduzindo-se num acto da Autoridade Eclesiástica relativa à vida e organização de uma pessoa jurídica Canónico-concordatária e como tal sujeita à sua autoridade, pelo que nem poderá considerar-se que a mesma constituiria violação do princípio da liberdade de associação prevista no art.º 46º da Constituição,

            52. Decretação essa que, aliás, não é em nada diferente da competência das autoridades do Estado para, em determinados casos previstos no direito civil, intervir na vida e organização de Associações e Fundações, sem que daí decorra qualquer violação do princípio da liberdade de Associação e da garantia da tutela jurisdicional consagrada no art.º 20º da Constituição.

            53. Por força da sua natureza, as Associações Públicas estão sujeitas à direcção da autoridade eclesiástica e os seus moderadores (os representantes legais) estão sujeitos a confirmação e a prestação de contas à Autoridade Eclesiástica e os seus bens são considerados bens eclesiásticos e seguem o regime jurídico estabelecido para eles - Cânones 305, 315, 317, 318, 319, 582, 1009, 1257 e 1276.

            54. O princípio – proclamado no artigo 10º da CRP - envolve, para além da não confessionalidade do Estado, a garantia da não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções e do culto, «não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas, a não ser na medida em que, por via normativa, regulam a liberdade de organização e associação privada e o direito de reunião e manifestação, e outros direitos instrumentais da liberdade de culto» (CRP Anotada, G: Canotilho e V. Moreira, 1993, pag.244).

            55. Seria, deste modo, solução normativa manifestamente colidente com o referido princípio constitucional a que se traduzisse em outorgar a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto praticado pela competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sob a égide do Direito Canónico – não podendo, por força do referido princípio constitucional, existir zonas de interferência, sobreposição ou colisão entre as competências atribuídas aos órgãos estaduais e as conferidas às autoridades eclesiásticas.

            56. Esta solução em nada colide com o direito de acesso aos tribunais, que naturalmente não implica que tenha necessariamente de ser atribuída aos tribunais portugueses jurisdição e competência para a dirimição de todos os litígios, mesmo daqueles que tenham conexão com outros ordenamentos jurídicos.

            57. Deverá por isso ser declarada a incompetência material dos tribunais comuns e mais concretamente do tribunal recorrido para julgar a decretação da natureza privada da Pia União, devendo por isso ser revogada a decisão que julgou a ação improcedente tendo por base esse pressuposto ordenando-se o prosseguimento dos autos.

            Terminam, referindo que ao julgar, a ação improcedente decidindo-se sobre o mérito da causa sem instrução e sem produção de mais prova, na douta decisão recorrida, o Mmo Senhor Juiz a quo violou e fez uma errada aplicação e interpretação das normas ínsitas nos art.ºs 62º, 63º e 64º, 615º nº 1 alíneas b) c) e d) todos do C.P.C., e também o disposto no art.º 18º n.º 1 da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro (LOFTJ), Cânones 305, 315, 317, 318, 319, 323, 325, 582, 1009, 1257, 1276, 1031 do CDC, art.ºs 10 nº 1 e 11 nº 1 da Concordata, arts. 8º nº 2 e 41º nº 4 da CRP, devendo ser proferido douto Acórdão que, dando provimento ao recurso, revogue a decisão recorrida e ordene o prosseguimento dos autos para selecção da matéria de fato e produção de prova, que decrete a incompetência material dos tribunais comuns para decidir sobre a natureza pública ou privada da A. Pia União e, quando assim senão entenda que decrete que esta associação de fieis se reveste de natureza pública no âmbito do CDC.

A R. veio apresentar contra-alegações pedindo a confirmação da sentença e a subida do recurso per saltum para o STJ, com julgamento ampliado para uniformização de jurisprudência. Alega, em síntese, que os tribunais judiciais são competentes para apreciar e decidir sobre a validade de actos emitidos por autoridade eclesiástica e ao abrigo do direito canónico, nomeadamente quando estes respeitam a bens imóveis sitos em Portugal; que a R. é uma associação privada de fiéis, podendo a sua Superiora administrar livremente os seus bens de acordo com a lei do Estado e que outra interpretação viola o disposto nos artº 2º, 46 nº 1 e nº 2 e 20 da CRP.

As AA. vieram pronunciar-se no sentido da inadmissibilidade do recurso per saltum para o STJ

Foi proferido despacho a considerar que não se verificam as nulidades suscitadas pela Recorrente, não admitindo o recurso per saltum para o STJ por o recurso a apreciar não se circunscrever a matéria de direito.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelas Recorrentes nas suas conclusões - artº 635 nº 4 e artº 639 nº 1 a 3 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- artº 608 nº 2 in fine.

- da nulidade da sentença por falta de fundamentação e por a decisão estar em oposição com os fundamentos, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b) e c) do CPC.;

- da incompetência dos Tribunais Comuns em razão da matéria para decidir sobre a natureza pública ou privada de uma associação de fiéis, competência que cabe aos Tribunais Eclesiásticos e tem de ser apreciado à luz do Direito Canónico;

- dos factos provados serem insuficientes para caracterizar a 2ª A. como uma associação privadas de fiéis;

- de, mesmo a entender-se que a 2ª A. é associação privada de fiéis, a mesma estar sujeita ao controle e direção da autoridade eclesiástica quanto à afectação dos seus bens.

III. Fundamentação de facto

Foram os seguintes os factos que foram considerados provados pelo tribunal a quo, decorrendo dos documentos juntos aos autos e do acordo das partes e que não foram impugnados:

            1.º A 2.ª autora, “Pia União das B...”, foi ereta canonicamente por Decreto de 02-03-1959 do Bispo de D....

2.º A participação da ereção foi feita ao Governador Civil de Santarém e registada na respetiva Secretaria sob o n.º 181, em 06-03-1959.

3.º Nos termos dos Estatutos da 2.ª autora, « B...» é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiserem viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos Pobres, em todas as Obras de Caridade (artigo 1.º) – cfr. estatutos de fls. 31 a 35, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

4.º Pelo menos desde 1991G (…), em religião Irmã M (…)exerceu as funções de Superiora da 2.ª autora.

5.º A sua última eleição ocorreu em 11-06-2005.

6.º Em 19-10-2005, no Cartório Notarial de Ourém, G (…) na qualidade de Superiora Geral da 2.ª autora, constituiu procurador da 2.ª autora P (…), conferindo-lhe poderes para, em nome da 2.ª autora, constituir uma fundação de natureza social, bem como para administrar e alienar bens – cfr. procuração de fls. 84 a 86, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

7.º No dia 22-06-2006, P (…), na qualidade de procurador, em nome e em representação da 2.ª autora, outorgou a escritura pública em que instituiu uma fundação de solidariedade social com a denominação “Fundação C...”, aqui ré – cfr. escritura e respetivo documento complementar de fls. 91 a 102, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

8.º Nessa escritura, P (…) declarou transmitir à ré, em nome da 2.ª autora, e destinar-lhe como património um conjunto de bens móveis e imóveis, propriedade da 2.ª autora, a título gratuito em plena propriedade, no valor atribuído global de 285.588,81€, nomeadamente:

a) o prédio urbano, composto por casa de habitação de rés do chão, primeiro andar e logradouro, sito a (...), freguesia de Fátima, concelho de Ourém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º 3 (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1 (...).º;

b) o prédio misto, composto de casa térrea de habitação, dependência e logradouro, sito em (...), (...), freguesia de Fátima, concelho de Ourém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º 7 (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 4 (...).º e na matriz predial rústica sob os artigos 1 (...).º e 1 (...).º;

c) o prédio urbano, composto de casa de rés do chão e quintal, sito na Rua (...), lugar de (...), freguesia de (...), concelho de Ponta Delgada, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º 2 (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1 (...).º;

d) o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão e quintal, sito na (...) freguesia e concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2 (...)e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 3 (...).º;

e) o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão, sito na (...) freguesia e concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2 (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (...).º;

f) o prédio misto, composto de casa de habitação de rés do chão, 1.º andar, sótão, dependência e de terra de cultura, sito na (...) freguesia e concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2 (...)e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1 (...).º e na matriz predial rústica sob o artigo 7 (...).º;

g) o prédio rústico, composto de terra de cultura, sito na Ribeira de Baixo, (...) freguesia e concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2 (...) e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo 1 (...).º;

h) o prédio rústico, composto de terra de cultura, sito na (...) freguesia e concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2 (...) e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo 7 (...).º;

i) o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão, 1.º andar e quintal, sito na Rua (...) freguesia da (...), concelho da Horta, descrito na Conservatória do Registo Predial da Horta sob o n.º (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (...).º;

j) o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão e pátio, sito em (...), freguesia da (...), concelho da Horta, descrito na Conservatória do Registo Predial da Horta sob o n.º (...)e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (...).º;

l) o prédio misto, composto de casa de habitação com loja térrea, 1.º andar e dependência e de terra de lavradio, sito em (...), freguesia da (...), concelho da Horta, descrito na Conservatória do Registo Predial da Horta sob o n.º(...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (...).º e na matriz predial rústica sob o artigo (...).º;

m) todos os bens móveis que constituem o recheio dos identificados prédios urbanos e mistos, designadamente mobiliário, equipamento e material escolar e didático de diversa natureza, no valor atribuído global de 50.000,00€;

n) a quantia de 150.000,00€.

IV. Razões de Direito

- da nulidade da sentença por falta de fundamentação e por a decisão estar em oposição com os fundamentos, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b) e c) do CPC.

Os Recorrentes começam por invocar a nulidade da sentença por falta de fundamentação no que se refere à caracterização da natureza canónico-jurídica da Pia União, ao concluir que a mesma, por votada à piedade, oração e prática de actos de caridade, é uma associação privada de fiéis, não levando em conta os critérios que se impõem considerar à luz das normas relevantes do CDC para a decisão sobre a natureza canónico-jurídica de uma associação de fiéis como pública ou privada.

Alegam ainda que a decisão se encontra em contradição com os seus fundamentos, ao considerar que a Pia União é votada à piedade, oração e prática de actos de caridade, o que é substancialmente idêntico aos fins religiosos prosseguidos pela Igreja Católica, impondo que se qualifique a mesma como associação pública de fiéis, à luz do direito canónico e não como associação privada de fiéis.

Vejamos então se ocorrem as apontadas nulidades.

O artº 615 nº 1 al. b) do C.P.C. diz-nos que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Conforme tem vindo a ser entendido de forma pacífica, a previsão desta norma dirige-se à total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que se baseia a decisão proferida, não integrando a nulidade em causa a existência de uma indicação deficiente ou incompleta de tais matérias. Assim, é apenas a falta de motivação (de facto ou de direito) que pode determinar a existência de tal vício. A decisão pode estar mal motivada ou insuficientemente motivada, mas só a absoluta falta de motivação determina a nulidade da sentença, nos termos da norma referida.

Com toda a propriedade diz-nos a este propósito o Prof. Alberto dos Reis, in. Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140, que: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”

A sentença sob recurso indicou os fundamentos de facto que usou como suporte para a decisão jurídica, elencando os factos que teve como provados em face dos documentos juntos aos autos e do acordo das partes; na apreciação da questão jurídica, que centrou na questão de saber se a 2ª A. enquanto associação de fiéis tem a natureza pública ou privada, fez depender tal avaliação, fundamentalmente, dos fins prosseguidos pela mesma estabelecidos nos respectivos Estatutos.

A circunstância dos Recorrentes considerarem que os factos levados em conta são insuficientes para a decisão, por não permitirem avaliar outros critérios distintivos e necessários para a qualificação e distinção entre as associações públicas e privadas de fiéis, tem já a ver com a avaliação do mérito da sentença, podendo determinar a sua revogação caso se constate a insuficiência da motivação e não com o vício formal que constitui a ausência absoluta de fundamentação que pode determinar a nulidade da sentença nos termos previstos no artº 615 nº 1 b) do C.P.C. por omissão de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Conclui-se por isso, quanto a esta questão que, no caso em presença, não se verifica omissão de fundamentação na sentença recorrida, já que a mesma especifica os factos que considera provados, aplicando o direito na apreciação do mérito da causa, com menção das normas jurídicas aplicáveis.

Por seu turno, a alínea c) do artº 615 nº 1 do CPC dispõe agora, na versão que lhe é dada pela Lei 41/2013 de 26 de Junho, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Esta disposição vem na sequência do dever que se impõe ao juiz de fundamentar as decisões que profere, nos termos previstos no artº 154 do CPC, de forma a que as decisões possa ser compreendidas pelos destinatários.

A contradição entre os fundamentos e a decisão, verifica-se quando os fundamentos invocados conduzem, de uma forma lógica ou necessária a uma decisão diferente.

Alegam as Recorrentes que o facto de se dar como assente que a 2ª A. é votada à piedade, oração e prática de actos de caridade, fins substancialmente idênticos aos prosseguidos pela Igreja Católica, impunha que se concluísse que a mesma é uma associação pública de fiéis à luz do Direito Canónico, havendo por isso uma contradição entre a decisão e os fundamentos invocados, quando aí se conclui que a mesma tem a natureza de associação privada de fiéis.

Importa, no entanto, ter em conta, que não é apenas o segmento referido pelas Recorrentes que fundamenta a decisão proferida, apresentando as mesmas uma perspectiva redutora da sentença.

Na verdade, a conclusão de que a 2ª A. é uma associação privada de fiéis é motivada de forma mais extensa na sentença recorrida. Aí se refere, designadamente, que : “…embora constituída no seio da Igreja, o seu escopo não é incrementar ou promover o culto público. Por isso não actua “em nome da Igreja”. A finalidade da sua constituição por fiéis cristãos foi o exercício de obras de piedade ou caridade. Daí a sua índole privada. Acresce, outrossim, a circunstância da mesma ter surgido por iniciativa de fiéis (…). Se tivesse sido criada pela autoridade eclesiástica seria do tipo público.”

A decisão proferida é compreensível à luz do raciocínio que é desenvolvido e fundamentado. O tribunal a quo considerou a 2ª A. como uma associação privada de fiéis, em face da fundamentação que apresenta, e daí retira a conclusão da autonomia da mesma para administrar os seus bens, concluindo pela improcedência da acção.

A sentença recorrida segue uma linha de raciocínio e decide em conformidade com a mesma, no que se apresenta como um corolário lógico da fundamentação apresentada. Questão diferente é a de saber se a avaliação feita foi a correcta, o que não se confunde com o vício formal que constitui a nulidade da sentença.

Em face do exposto, não pode falar-se de contradição entre os fundamentos da sentença e a decisão, capaz de integrar a nulidade prevista no artº 615 nº 1 c) do C.P.C., antes os que se verifica é uma discordância dos Recorrentes pela opção seguida na mesma, o que se avaliará mais à frente, em sede própria, do mérito da sentença, porque suscitada.

- da incompetência dos Tribunais Comuns em razão da matéria para decidir sobre a natureza pública ou privada de uma associação de fiéis, o que tem de ser apreciado à luz do Direito Canónico.

Alegam as Recorrentes que a decretação da natureza jurídica da Pia União constitui uma questão da competência exclusiva da Igreja Católica, competência que o Estado Português reconhece, não sendo sindicável nos tribunais comuns as decisões nestas matérias de organização da vida de pessoas jurídicas canónicas, pois os mesmos carecem de competência em razão da matéria para as julgar.

A determinação da natureza jurídica da Pia União como associação de fiéis pública ou privada, assume-se como uma questão prévia e necessária à apreciação do mérito da causa e decisão dos pedidos formulados no processo. O que está em causa nestes autos, em face dos pedidos formulados pelas AA. é, em última análise, a determinação da (in)validade do acto de alienação de diversos bens imóveis pela 2ª A. a favor da R.

Não é questionada pelas Recorrentes a competência dos tribunais comuns para apreciar e decidir a presente acção, até porque são as mesmas que a vêm intentar, sendo certo que em última análise, o que está em causa é uma questão de direito civil e não de direito canónico.

Com interesse para esta questão já se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 68/2004 de 20/04/2004, no sentido de não considerar inconstitucional a norma constante do artº 65-A do C.P.C. (na sua anterior redacção), com equivalência no actual artº 63 al. a) do C.P.C., na medida em que confere competência exclusiva aos tribunais portugueses para apreciar os pedidos que se reportam a matéria de direitos reais sobre imóveis (no caso daquele acórdão, acção de reivindicação de bens patrimoniais), propostos por uma pessoa jurídica ligada à Igreja Católica contra outra pessoa jurídica também ligada à Igreja Católica.

 Verificando-se a competência dos tribunais comuns para apreciar e decidir a presente acção, a dúvida que se põe, em face do que é alegado pelas Recorrentes, é a de saber se estes mesmos tribunais são competentes para avaliar e decidir sobre a natureza canónica de uma associação de fiéis, qualificando-a como pública ou privada, questão que nestes autos surge como pressuposto essencial da decisão, de forma a determinar-se o regime patrimonial a que a Pia União está sujeita, com implicação na decisão sobre os pedidos formulados.

Não subsistem dúvidas que a qualificação da 2ª A. como associação de fiéis pública ou privada tem de ser feita à luz do Direito Canónico.

O princípio da separação entre as Igrejas e o Estado e a liberdade de organização daquelas vem, desde logo consagrado no artº 41 nº 4 da CRP que dispõe que: “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e dos cultos.”

Tal liberdade de organização concedida às Igrejas vem concretizada, relativamente à Igreja Católica, na Concordata de 18 de Maio de 2004 firmada entre a Santa Sé e o Estado Português, reconhecendo o Estado personalidade jurídica e civil às pessoas jurídicas canónicas, que se regem na sua organização pelo Direito Canónico, conforme dispõe o artº 11º nº 1 da Concordata e tendo a Igreja Católica a jurisdição em matéria eclesiástica.

No que se refere à delimitação da competência entre os tribunais eclesiásticos e os tribunais comuns, decidiu a nosso ver com toda a propriedade e com argumentação a que se adere, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/12/2009, in. www.dgsi.pt quando nos diz, fazendo o confronto da diferença de regimes da anterior Concordata com a Concordata de 2004 que actualmente vigora, que: “Situa-se no art. 11º da Concordata de 2004, segundo o qual as pessoas jurídicas canónicas, decorrentes do princípio da livre organização da Igreja Católica proclamado pelo art. 10º - e que inteiramente se mantém e reforça - se regem pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades. Pretendeu-se com esta norma fazer coincidir as regras de jurisdição e competência com as normas de direito material aplicáveis pelo foro eclesiástico e pelos tribunais e autoridades públicas.”

Concorda-se, por isso que, em princípio, a determinação de uma associação canónica como pública ou privada, por dizer respeito a matéria de organização de pessoa jurídica canónica, sendo questão a ser apreciada e resolvida à luz do Direito Canónico é da competência dos tribunais eclesiásticos.

Em face do exposto, considera-se que, são os tribunais eclesiásticos os competentes em razão da matéria para determinar a natureza canónica de uma associação de fiéis como pública ou privada.

Tal não significa, contudo, que o tribunal a quo seja incompetente para, em concreto, fazer tal apreciação nestes autos.

Senão vejamos.

As regras relativas à competência material dos tribunais comportam excepções, também elas previstas, na medida em que o legislador entendeu que há situações especiais que podem justificar e determinar uma extensão ou modificação da competência dos tribunais, como são aquelas que vêm previstas nos artº 91 ss. do C.P.C.

Desde logo, este artº 91 do C.P.C., com a epígrafe “competência do tribunal em relação às questões incidentais” dispõe, no seu nº 1 que: “O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.” O nº 2 deste artigo limita os efeitos da decisão proferida sobre tal questão ao estabelecer que: “A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.”

A este propósito diz-nos o Prof. Alberto dos Reis, in. Código de Processo Civil anotado, Vol. I, pág. 236 que: “O princípio ditado pela lei é este: o tribunal competente para conhecer o mérito do objecto da acção ou do mérito da causa é por isso mesmo competente para conhecer de todas as questões incidentais que nela surgirem. E por «questões incidentais» deve entender-se não só os incidentes propriamente ditos, como também as questões que o réu suscitar como meio de defesa.”

Ora, na situação em presença, e na medida em que a avaliação e qualificação da natureza canónica da 2ª A. como pública ou privada, surge como questão necessária relativamente à decisão da causa, tendo sido suscitada pela R. na sua contestação como meio de defesa e justificativa (no seu entender) da improcedência da acção, já se vê que o tribunal que é competente para a acção é também competente para avaliar e decidir tal questão suscitada neste processo, por força da extensão da competência que a lei prevê no artº 91 do C.P.C.

As AA. na sua petição inicial qualificam a 2ª A. como uma associação pública de fiéis; a R., na sua contestação vem contrapor que a mesma é uma associação privada de fiéis. Para a decisão da presente causa a determinação da natureza canónica da 2ª A. é fundamental, surgindo na sequência de questão suscitada pela R. na sua contestação e no âmbito da sua defesa, já que o regime legal de administração dos bens que importa considerar para a decisão depende de tal qualificação. Aliás, são as próprias Recorrentes que o reconhecem, ao referirem nas suas alegações e conclusões do recurso (ponto 47 das conclusões) que a decretação da natureza jurídica da Pia União é um pressuposto implícito para a procedência da acção.

A propósito de situação semelhante, relativa a questão da competência dos tribunais administrativos, diz-nos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2004, in. www.dgsi.pt que: “ E daí que sendo o tribunal da comarca o competente, em razão da matéria para o conhecimento da "questão" principal ou fundamental pelos AA. submetida ao escrutínio judicial, será também ele o competente para o conhecimento das restantes questões conexas deduzidas na petição inicial e, outrossim, das questões deduzidas pelos RR nas respectivas contestações, ainda que para alguma delas, enquanto isoladamente consideradas, pudesse ser em abstracto competente o foro administrativo.”

Conclui-se assim que, por força da extensão da competência estabelecida no artº 91 nº 1 para o conhecimento dos incidentes e das questões que o réu suscite como meio de defesa, o tribunal a quo enquanto tribunal competente para a acção, tem competência para apreciar e decidir da natureza canónica da 2ª A. em divergência nos autos, ainda que, por força do nº 2 da norma mencionada a decisão proferida neste processo não constitua caso julgado fora do mesmo.

- dos factos provados serem insuficientes para caracterizar a 2ª A. como uma associação privadas de fiéis.

Alegam as Recorrentes que, à luz das normas do Direito Canónico, a apreciação e decisão sobre a natureza canónico jurídica de uma associação de fiéis como pública ou privada tem necessariamente de ser feita mediante a averiguação de diversos critérios cumulativos que se reportam à sua génese, fins prosseguidos, vivência das associadas e autonomia, pelo que se torna necessário averiguar os factos com relevância para a apreciação de tais critérios, havendo por isso que ser produzida prova sobre factos controvertidos alegados pelas partes, não sendo suficiente apenas a menção aos fins por ela prosseguidos para qualificar a Pia União como associação privada, até porque os fins invocados são idênticos aos fins religiosos prosseguidos pela Igreja Católica.

Têm razão as Recorrentes com esta questão, verificando-se uma manifesta insuficiência dos factos assentes, de forma a permitir qualificar a Pia União como associação pública ou privada de fiéis.

Senão vejamos.

Começando por verificar os factos elencados na sentença proferida com relevância para a decisão desta questão, temos tão só aqueles que vêm enumerados nos pontos 1 a 3, com o seguinte teor:

1.º A 2.ª autora, “Pia União das B...”, foi ereta canonicamente por Decreto de 02-03-1959 do Bispo de D....

2.º A participação da ereção foi feita ao Governador Civil de Santarém e registada na respetiva Secretaria sob o n.º 181, em 06-03-1959.

3.º Nos termos dos Estatutos da 2.ª autora, « B...» é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiserem viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos Pobres, em todas as Obras de Caridade (artigo 1.º) – cfr. estatutos de fls. 31 a 35, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

Para se determinar a natureza jurídico-canónica de uma associação de fiéis, enquanto pública ou privada, importa saber quais os critérios distintivos das mesmas. Para tal temos de socorrer-nos do que dispõe para o efeito o Código de Direito Canónico, já que é o mesmo que estabelece as regras necessárias a considerar.

O actual Código de Direito Canónico para a igreja latina (cânone 1), promulgado pelo Papa João Paulo II entrou em vigor a 27/11/1983 e é este novo código que vem estabelecer a diferenciação entre as associações de fiéis públicas e privadas que o anterior CDC não previa.

O CDC vem dispôr especificamente sobre as associações de fiéis, nos cânones 298 a 329, começando pelas normas comuns a todos os tipos de associações de fiéis, dedicando depois os cân. 312 a 320 às associações de fiéis públicas e os cân. 321 a 326 às privadas. Para melhor compreensão, transcrevem-se alguns que se consideram mais relevantes para a questão em discussão.

Importa, desde logo, ter em conta o disposto no cân. 116 que estabelece no § 1 que: “As pessoas jurídicas públicas são universalidades de pessoas ou de coisas constituídas pela autoridade eclesiástica competente para, dentro dos fins que a si mesmas se propuseram, segundo as prescrições do direito, desempenharem em nome da Igreja o múnus próprio que lhes foi confiado em ordem ao bem público; as outras pessoas jurídicas são privadas.” Acrescenta o § 2 que: “As pessoas jurídicas públicas adquirem esta personalidade quer pelo próprio direito quer por decreto da autoridade competente que expressamente a concede; as pessoas jurídicas privadas adquirem esta personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda.”

O CDC anotado, edição a cargo de Pedro Lombardia e Juan Ignacio Arrieta, diz-nos a pág. 126, em anotação aos cân. 116-117 e a propósito da distinção estabelecida entre pessoas jurídicas públicas e privadas que: “O critério diz respeito não ao próprio que têm (pois entende-se que todas elas tendem para o bem comum da Igreja), mas ao modo como o procuram: as públicas, actuando em nome da Igreja e, portanto, comprometendo-a de algum modo como instituição social; as privadas, actuando em nome próprio e sob a exclusiva responsabilidade dos seus membros.”

O § 1º do cân. 298 diz-nos que: “Na Igreja existem associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis, clérigos ou leigos, ou conjuntamente clérigos e leigos, se empenham, mediante esforço comum, para fomentar uma vida mais perfeita, e promover o culto público ou a doutrina cristã, ou para outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade ou caridade, e animação da ordem temporal com espírito cristão”.

O § 1 do cân. 299 dispõe que: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para a obtenção dos fins mencionados no cân. 298 § 1, salva a prescrição do cân. 301 § 1”; acrescenta o § 2 que, “Essas associações, mesmo se louvadas e recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se associações privadas”.

Por seu turno, o cân. 301 § 1 estabelece que: “Cabe unicamente à autoridade eclesiástica competente erigir associações de fiéis que se proponham ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou as que se proponham outros fins, cuja obtenção está reservada, por sua natureza, à mesma autoridade eclesiástica”; o § 3 diz que: “As associações de fiéis erigidas pela autoridade eclesiástica competente denominam-se associações públicas”.

O cân. 312 § 1 dispõe que a autoridade competente para erigir associações públicas é a Santa Sé, a Conferência de Bispos e o Bispo Diocesano consoante se tratem de associações universais, nacionais ou diocesanas.

O cân. 322 § 1 refere que: “Uma associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica mediante decreto formal da autoridade eclesiástica competente mencionada no cân.312.”

Em face deste regime jurídico, temos então um primeiro factor ou critério de distinção: as associações de fiéis que são erigidas pela autoridade eclesiástica são públicas, nos termos do disposto no cân. 301, caso contrário, são privadas.

Um segundo critério diferenciador reside nos fins prosseguidos, as associações públicas têm como fim ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja, promover o culto público ou proporem-se obter outros fins reservados à autoridade eclesiástica, de acordo com o cân. 301; as associações privadas, tal como as públicas têm como finalidade promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho de envangelização, o exercício de obras de piedade ou caridade, conforme refere o cân 298 que é uma norma comum a todas as associações de fiéis, não o fazem, contudo, em nome da Igreja, mas em nome próprio.

A este respeito não pode deixar de chamar-se a atenção para a posição de dois Ilustres Professores manifestada em dois Doutos Pareceres que foram juntos ao processo pelas partes.

O Prof. (…), no seu Douto Parecer junto a fls. 336 ss. dos autos, ensina-nos sobre os critérios de distinção das associações em públicas e privadas, referindo a fls. 338: “O critério que distingue as associações públicas e associações privadas é dado pelo concurso do critério subjectivo e pelo critério objectivo: o sujeito da constituição das associações e a sua finalidade específica.” Por referência ao Canonista Cardeal (…), continua: “Tratando-se de associações que foram erectas: a) se as finalidades destas associações não coincidem com as indicadas no cân. 301, deverão configurar-se como associações privadas. É normal que disponham de personalidade jurídica privada; b) se as finalidades coincidem com as assinaladas no referido cânone, configurar-se-ão como associações públicas. Finalidades segundo o cân. 301: “Pertence exclusivamente à autoridade eclesiástica competente erigir associações de fiéis que se proponham ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou que prossigam outros fins, cuja prossecução pela sua natureza está reservada à mesma autoridade eclesiástica (cân. 301 § 1).” 

Também o Prof. (…), no seu Douto Parecer junto aos autos a fls. 223 ss., especificamente a fls. 229 diz-nos: “Vale por dizer, portanto, que o traço distintivo fundamental entre as associações de direito canónico privado e as públicas resulta da respectiva forma de constituição- as primeiras são sempre da iniciativa dos fiéis, as segundas são da iniciativa das autoridades eclesiásticas ou, pelo menos, são por estas erectas-, mas também e sobretudo, o tipo de actuação- as associações privadas actuam em nome próprio, ainda que louvadas ou recomendadas pela Igreja, enquanto as associações públicas actuam em nome da Igreja ou para a realização de fins reservados à Igreja.”

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/09/2011, in. www.dgsi.pt faz menção a esses mesmos dois critérios distintivos das associações de fiéis públicas e privadas.

Temos assim como certo que são dois os factores fundamentais a considerar para a distinção entre associação pública e privada de fiéis:

- a forma de constituição da associação de fiéis;

- os fins prosseguidos pela associação de fiéis e forma como são prosseguidos (em nome da Igreja ou em nome próprio).

Tendo em conta estas considerações de ordem jurídica, já se vê que factos provados não permitem, desde já, por insuficientes, avaliar e decidir esta questão em litígio e consequentemente o mérito da acção, o que foi feito com alguma ligeireza, não compatível com a complexidade da mesma e desprezando factos alegados pelas partes com interesse para a decisão da causa.

Importa assim, por um lado, averiguar, em concreto, como foi erecta a Pia União como associação de fiéis, circunstâncias e motivações que a determinaram; por outro lado, avaliar os fins por ela prosseguidos, que estão em abstracto previstos nos seus Estatutos e que em concreto resultam da actividade por ela desenvolvida, tornando-se necessário apurar também, desde logo, se a actividade por si exercida no prosseguimento de tais fins, é exercida em nome da Igreja ou em nome próprio.

Refere-se na sentença recorrida: “Ora, dos seus estatutos relevam os três primeiros artigos. Deles ressalta, desde logo, que, embora constituída no seio da Igreja, o seu escopo não é incrementar ou promover o culto público. Por isso não actua em nome da Igreja. A finalidade da sua constituição por fiéis cristãos foi o exercício de obras de piedade ou de caridade, daí a sua índole privada. (…) Em suma, conjugando os cânones citados e os fins prosseguidos pela «Pia União», esta é de considerar como uma associação privada de fiéis, porque votada a piedade, oração e prática de actos de caridade.”

Ora, esta conclusão é indevida, na medida em que o ser votada à piedade, oração e prática de actos de caridade não é característica exclusiva das associações privadas de fiéis, conforme é previsão do cân. 298 que dispõe sobre normas comuns a todas associações de fiéis, podendo ser esses mesmos fins também desenvolvidos por associações públicas de fiéis. Por outro lado, a referência a que o seu escopo não é promover o culto público é uma premissa que, para além de não resultar dos factos provados nos autos, não permite, por si só, concluir que a mesma não actua em nome da Igreja.

No caso, acresce uma dificuldade para a qualificação da Pia União e que é a que resulta de, à data da sua constituição em 1959, o Código de Direito Canónico não fazer a distinção entre associações públicas e privadas de fiéis, o que só veio a verificar-se com o novo CDC. Ora, a Pia União foi erecta canonicamente- forma hoje reservada às associações públicas de fiéis, sendo à data a única forma de uma associação e fiéis obter personalidade jurídica. Importa assim averiguar, em concreto, a forma como surgiu tal associação de fiéis, já que a ter-se em conta apenas a situação da mesma ter sido erigida por Decreto, tal determinaria a sua qualificação como associação pública e não privada.

Verifica-se assim, em face do exposto, que os factos que se encontram apurados neste momento processual, são manifestamente insuficientes para qualificar a Pia União como associação pública ou privada de fiéis, sendo certo que cada uma das partes alega nos seus articulados factos relevantes, que não estão adquiridos para os autos porque impugnados e que são determinantes para se averiguar da integração ou cumprimento dos critérios distintivos referidos, quer no que se refere à constituição da associação, quer no que se reporta não só aos fins por si prosseguidos, mas também ao tipo de actuação desenvolvida.

De acordo com o disposto no artº 662 nº 2 al. c) do C.P.C. a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Em face do que se referiu, conclui-se que para a determinação da natureza canónico-jurídica da Pia União falta apurar matéria alegada pelas partes indispensável à boa decisão da causa, de acordo com os critérios mencionados.

Uma vez que se trata de matéria alegada, alguma não adquirida para os autos, por divergência das partes, e que não foi tida em conta para a decisão, sendo essencial para a mesma, não nos resta outra alternativa senão anular a decisão de facto na parte afectada, impondo-se a remessa dos autos à 1ª instância.

- de, mesmo a entender-se que a 2ª A. é associação privada de fiéis, a mesma estar sujeita ao controle e direção da autoridade eclesiástica quanto à afectação dos seus bens.

A apreciação desta última questão suscitada fica, naturalmente, prejudicada em face do decidido, na medida em que não está apurada nos autos a matéria de facto necessária à determinação da natureza canónico-jurídica da Pia União.

V. Sumário:

1. A decisão pode estar mal motivada ou insuficientemente motivada, mas só a absoluta falta de motivação determina a nulidade da sentença, nos termos do artº 615 nº 1 b) do C.P.C.

2. Os tribunais eclesiásticos são os competentes em razão da matéria para determinar a natureza canónica de uma associação de fiéis como pública ou privada. Tal não significa, contudo, que o tribunal a quo seja incompetente para, em concreto, fazer tal apreciação nestes autos, na medida em que a avaliação e qualificação da natureza canónica da Pia União como pública ou privada, surge como questão necessária relativamente à decisão da causa.

3. Por força da extensão da competência estabelecida no artº 91 nº 1 do C.P.C. para o conhecimento dos incidentes e das questões que o réu suscite como meio de defesa, o tribunal sendo competente para a acção, tem competência para apreciar e decidir da natureza canónica da Pia União em divergência nos autos, ainda que, por força do nº 2 da norma mencionada a decisão proferida neste processo não constitua caso julgado fora do mesmo.

4. Para se determinar a natureza jurídico-canónica de uma associação de fiéis, enquanto pública ou privada temos de socorrer-nos do que dispõe para o efeito o Código de Direito Canónico, já que é o mesmo que estabelece as regras necessárias a considerar.

5. Para a distinção entre associação pública e privada de fiéis, é fundamental considerar a forma de constituição da associação de fiéis, bem como os fins prosseguidos pela mesma e forma como são prosseguidos- em nome da Igreja ou em nome próprio.

6. De acordo com o disposto no artº 662 nº 2 al. c) do C.P.C. a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

VI. Decisão:

Em face de tudo o que fica do exposto, anula-se a decisão recorrida, pela insuficiência de factos provados que permitam conhecer do mérito da acção em sede de despacho saneador, determinando-se a remessa dos autos à 1ª instância para prosseguimento do processo em conformidade.

Custas conforme for devido a final.

Notifique.

                                                           *

                                               Coimbra, 20 de Maio de 2014

                       

Maria Inês Moura (relatora)

Fernando Monteiro (1º adjunto)

Luís Cravo (2º adjunto)