Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
494/18.8T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
AJUDAS DE CUSTO
Data do Acordão: 05/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.239 Nº 3 B) CIRE
Sumário: I – O rendimento disponível para efeitos de cessão ao fiduciário no âmbito da exoneração do passivo restante integra todo e qualquer rendimento auferido pelo devedor, independentemente da sua natureza, incluindo, portanto, remunerações do trabalho ou de outra natureza, subsídios e suplementos de qualquer natureza ou ajudas de custo, sendo apenas excluídos os rendimentos que se enquadrem nas alíneas e subalíneas do nº 3 do art. 239º do CIRE.

II – Ainda que as ajudas de custo ou suplemento de residência se destinem, em abstracto e por definição, a compensar determinadas despesas, esse rendimento não se considera, só por isso e independentemente da efectiva realização dessas despesas, excluído do rendimento disponível; o que é excluído do rendimento disponível não é o valor das ajudas de custo e do referido suplemento (que, para efeitos de apuramento do rendimento disponível, são rendimentos como qualquer outro), mas sim a parcela do conjunto de todos os rendimentos auferidos pelo devedor que seja necessária para assegurar as despesas referidas nas subalíneas da alínea b) do nº 3 do citado art. 239º e, designadamente, as despesas que comprovadamente foram efectuadas e que aquelas ajudas de custo ou suplemento visavam compensar.

III – Estando em causa ajudas de custo e suplemento de residência auferidos pelo devedor pela sua deslocação para a Madeira no âmbito e no exercício da sua actividade profissional, apenas se considera excluído do rendimento disponível o valor correspondente às despesas comprovadamente efectuadas com essa deslocação ou por causa dela; o eventual acréscimo de despesas com o sustento do devedor por força daquela deslocação (que aquelas ajudas de custo também visam compensar) só poderá ser excluído do rendimento disponível ao abrigo da subalínea i) da alínea b) da citada disposição e, portanto, mediante alteração do valor que, por decisão proferida nos autos, foi reservado para o sustento do devedor e respectivo agregado, caso se conclua que aquela deslocação implica uma efectiva alteração do valor que, em termos de razoabilidade, é necessário para prover a esse sustento.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 494/18.8T8CBR-B.C1[1]

Tribunal recorrido: Comarca de Coimbra - Coimbra - Juízo Comércio - Juiz 2

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Freitas Neto

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito do processo de insolvência de T (…), cuja insolvência foi declarada por sentença proferida em 06/02/2018, foi proferido – em 26/04/2018 – despacho inicial referente à exoneração do passivo restante que havia sido requerida pelo devedor onde se declarou que a exoneração seria concedida, uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), mais se determinando que, “…durante o período de cessão, a iniciar apos o encerramento do processo, fica excluída da cedência ao fiduciário o valor igual a um salário mínimo nacional e meio, devendo o insolvente ceder o remanescente do seu vencimento ao fiduciário” e que, durante o período da cessão, o devedor deveria “…entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão”.

Na mesma data – 26/04/2018 – foi declarado o encerramento do processo por insuficiência da massa.

Em 27/06/2019, a Sr.ª Administradora veio apresentar requerimento, dizendo que, apesar de tal lhe ter sido solicitado, o devedor não havia entregue quaisquer documentos comprovativos dos rendimentos auferidos e requerendo a notificação do devedor para entregar a documentação que lhe havia sido pedida (recibos de vencimentos desde Abril de 2018 a Maio de 2019 e/ou outros comprovativos de recebimentos, declarações de IRS e respectivas notas de liquidação relativas a 2017 e a 2018, e estando em situação de desemprego, comprovativo da inscrição no Centro de Emprego, com data da inscrição e duração da situação e, ainda, docs comprovativos dos recebimentos inerentes).

Na sequência da apresentação desses documentos, a Srª Administradora veio apresentar relatório referente ao 1º ano do período da cessão, dizendo que o devedor entregou o valor de 3.474,90€ e que, tendo em conta os rendimentos auferidos, faltava entregar o valor de 2.467,48€ (esclarecendo, contudo, que entendia nada requerer por ora, uma vez que o devedor continua a fazer entregas, pelo que o valor em falta poderia vir a ser reposto com a continuidade da cessão de rendimentos).

O Insolvente veio, então, apresentar requerimento, dizendo que não havia obrigação de entregar o valor que a Sr.ª Administradora dizia estar em falta, sendo certo que não havia sido tomado em consideração que o valor recebido no mês de Abril de 2019 não correspondia a rendimento mas a ajudas de custo por o requerente estar deslocado na Ilha da Madeira desde o mês de Janeiro de 2019, o que lhe dava o direito de receber mensalmente um suplemento de residência de valor aproximado de 138,88€, tendo recebido em Abril os suplementos referentes aos meses de Janeiro a Abril bem como o valor de ajudas de custo de mudança de residência no valor de 1.194,93€, mais alegando que tais valores se destinaram a suportar despesas anormais e que, como tal, não devem ser considerados rendimento.

Em resposta, a Sr.ª Administradora veio dizer que, com referência ao 1º ano da cessão, apenas deve ser excluído o valor de 350,70€ correspondente ao valor das despesas extraordinárias (com a deslocação para a Madeira por razões profissionais) que foram comprovadas e o que tudo o mais deve ser objecto de cessão.

Na sequência desses factos, foi proferido – em 17/01/2020 – o despacho com o seguinte teor:

Nos termos do artigo 239.º, n.º 3, do CIRE cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, definir casuisticamente o rendimento do trabalho do insolvente excluído da cessão aos credores, o qual tem por limite mínimo aquele montante que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

A retribuição integra todas as prestações que, em contrapartida da atividade laboral desenvolvida pelo trabalhador, o empregador está obrigado a satisfazer regular e periodicamente, dela se excluindo, nomeadamente, as importâncias recebidas pelo trabalhador e se destinam a compensar custos aleatórios, como sejam as ajudas de custo.

No entanto, tais importâncias apenas devem ser excluídas da remuneração na medida em que efetivamente se destinem a ressarcir o trabalhador por gastos efetuados no exercício da atividade laboral.

Assim, ao abrigo do preceituado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, as quantias recebidas a título de ajudas de custo pelo insolvente devem ser excluídas do rendimento a ceder ao fiduciário desde que se destinem efetivamente a compensá-lo por despesas efetuadas em benefício da sua entidade patronal, devendo essa verificação ser efetuada pelo fiduciário, mediante a apresentação dos respetivos comprovativos pelo insolvente.

Neste sentido, entre muitos outros, vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.12.2016 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2018, ambos publicados na internet, em www.dgsi.pt.

Visto isto, e uma vez que a senhora Fiduciária, da informação datada de 04.12.2019, já excluiu os valores das despesas comprovadas pelo insolvente que se referem a custos que efetivamente suportou com a sua deslocação em trabalho para a Madeira, notifique o mesmo, no prazo de 10 dias, comprovar a cedência do rendimento disponível de 2.116,78€, atinente ao 1.º ano de cessão, conforme decorre do artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE, sob pena da eventual recusa da exoneração antes ainda de terminado o período da cessão (cf. artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE)”.

Discordando dessa decisão, o Insolvente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) O despacho recorrido, enferma de vício, e viola quer a lei substantiva, quer a lei adjetiva

B) O Tribunal a quo proferiu despacho que condenou o recorrente a entregar á fiduciária o valor recebido a título de ajudas de custo, violou não só o artigo artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, mas também o artigo 122.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro bem com o disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/90, de 14 de Fevereiro, e ainda o regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, conjugado com o Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro

C) A Srª Administradora não teve em conta que o valor recebido no mês de Abril de 2019 não corresponde a rendimento mas sim a ajudas de custo por o recorrente estar deslocado na Ilha da Madeira, erro cometido igualmente pelo Tribunal a quo.

D) O Recorrente no mês de Janeiro de 2019, foi colocado a exercer funções na ilha da Madeira, conforme documentos juntos aos autos

E) Por esse facto, tem direito a receber mensalmente um suplemento de residência no valor aproximado de €138,88, valor que passou a receber mensalmente no mês de maio de 2019, conforme documentos juntos aos autos

F) Os valores de suplemento de residência foram pagos no mês de abril, correspondentes aos meses de Janeiro a Abril de 2019, conforme doc. igualmente junto aos autos

G) Para além desse valor foi igualmente pago o valor de ajudas de custo de Mudança de Residência de € 1194,93, conforme documento igualmente junto aos autos.

H) O Decreto-Lei n.º 172/94 de 25 de Junho, regula a atribuição de alojamento aos militares dos quadros permanentes, quando colocados em localidade situada fora do local da sua residência habitual. O que é o caso.

I) “O cumprimento das missões das Forças Armadas, incluindo a missão primordial da defesa militar do País, implica que uma das características da condição militar seja a permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais dos militares, implicando esta o afastamento dos militares da sua residência habitual, por vezes necessário em resultado das suas colocações de serviço.”

J) No sentido de minorar os inconvenientes resultantes do afastamento da residência habitual, o artigo 122.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, determina a atribuição aos militares dos quadros permanentes de alojamento condigno para si e para o seu agregado familiar ou, quando tal não seja possível, de uma quantia a título de suplemento de residência. O referido artigo 122.º, no seu n.º 3, prevê ainda a atribuição de um abono compensatório das despesas resultantes da deslocação por efeito da nova colocação, para além do transporte da bagagem.

K) Tal diploma vem regular a atribuição dos referidos direitos. Fá-lo em plena consonância com o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, que determina, no seu artigo 19.º, serem os suplementos remuneratórios atribuídos em função das particularidades específicas da prestação de trabalho, e com o disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/90, de 14 de Fevereiro, que, no âmbito do regime remuneratório específico dos militares, prevê igualmente a atribuição de suplementos.

L) Tendo tal ajuda de custa e suplemento de residência fundamento nos arts. 1º; 2º nº 1 e 2.

M) Assim, ao abrigo do preceituado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, as quantias recebidas a título de ajudas de custo pelo insolvente, devem ser excluídas do rendimento a ceder ao fiduciário pois destinam efetivamente a compensá-lo por despesas efetuadas em benefício da sua entidade patronal, o que foi o caso.

N) Pois, é publico e notório que alguém temporariamente deslocado para a ilha da Madeira, tem despesas entre outras, com deslocações, residência e alimentação acrescidas.

O) Encontrando-se o valor recebido, claramente justificado na lei, que se trata de ajudas de custo.

P) Tendo o recorrente a profissão de militar, sendo CABO - NIM: (…) – COMNAV – Ministério da defesa Nacional – Marinha

Q) Tendo sido movimento temporariamente para a ilha da Madeira cfr. doc. junto aos autos, com data de referência a 02-01-2019

R) Assim, o recorrente direito a receber, sem ser obrigado a entregar à fiduciária - O suplemento de residência que tem a natureza de ajuda de custo para todos os efeitos legais.” (sublinhado nosso)

S) Dado tratar-se de suplemento que se destina a compensá-lo de despesas efetuadas e a efetuar no interesse da sua entidade patronal, o Estado Português.

T) Pelo que o tribunal a quo, ao proferir o despacho que proferiu violou não só o artigo artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, mas também o artigo 122.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro bem com o disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/90, de 14 de Fevereiro, e ainda o regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, conjugado com o Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro

U) Deve, assim, no estrito cumprimento da Lei ser proferida decisão ao abrigo do preceituado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, a revogar o despacho recorrido e que declare que as quantias recebidas a título de ajudas de custo pelo recorrente devem ser excluídas do rendimento a ceder ao fiduciário dado que se destinam efetivamente a compensá-lo por despesas efetuadas em benefício da sua entidade patronal.

V) Sendo, as mesmas pagas nos termos do artigo 122.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro bem com do disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/90, de 14 de Fevereiro, e ainda o regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, conjugado com o Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro

Termos em que deve o presente recurso se recebido, julgado procedente e o despacho recorrido revogado e substituído por outro que declare que as quantias recebidas a título de Ajudas de Custo e Suplemento de Residência pelo recorrente devem ser excluídas do rendimento a ceder ao fiduciário dado que se destinam efetivamente a compensá-lo por despesas efetuadas em benefício da sua entidade patronal, sendo pagas nos termos do artigo 122.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro bem com do disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/90, de 14 de Fevereiro, e ainda o regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, conjugado com o Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se as ajudas de custo e suplemento de residência recebidos pelo devedor estão (ou não) excluídos da cessão de rendimentos ao fiduciário no âmbito da exoneração do passivo restante.


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III.

Coloca-se no presente recurso a questão de saber se os valores recebidos pelo devedor/insolvente a título de ajudas de custo pela deslocação para a Madeira no exercício de funções profissionais e a título de suplemento de residência devem (ou não) ser considerados para efeitos de cessão ao fiduciário.

A decisão recorrida considerou – e decidiu – que, com excepção do valor correspondente às despesas comprovadamente efectuadas com a deslocação do devedor para a Madeira, todos os demais valores devem ser considerados para efeitos de cessão ao fiduciário.

O Apelante entende que esses valores – porque correspondem a ajudas de custo que se destinam a compensá-lo pelas despesas acrescidas para quem está temporariamente deslocado no exercício das suas funções profissionais – não correspondem a rendimento e devem ser excluídos do rendimento a ceder ao fiduciário, sustentando que, ao entender de outro modo, a decisão recorrida violou o art. 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea iii), do CIRE, bem como as demais disposições legais que cita e que regulam a atribuição daquelas ajudas de custo.

Salvo o devido respeito, pensamos não assistir razão ao Apelante.

Vejamos.

No que diz respeito ao apuramento do rendimento disponível que deve ser cedido ao fiduciário nos termos do nº 2 do art. 239º do CIRE, o nº 3 do mesmo artigo dispõe nos seguintes termos:

Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor”.

Significa isso que o rendimento disponível integra todos os rendimentos que sejam auferidos pelo devedor a qualquer título e independentemente da sua natureza, incluindo, portanto, remunerações do trabalho ou de outra natureza, subsídios e suplementos de qualquer natureza ou ajudas de custo, sendo apenas excluídos os rendimentos que se enquadrem nas alíneas e subalíneas da citada disposição legal.

Pondo de lado a alínea a) – que não está aqui em causa – apenas são excluídos do rendimento disponível os rendimentos que sejam razoavelmente necessários para assegurar as despesas mencionadas nas subalíneas da alínea b), ou seja, as despesas necessárias para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar (i) e as despesas que não se reportam a esse sustento mas são igualmente necessárias no sentido de assegurar o exercício pelo devedor da sua actividade profissional (ii) ou no sentido de assegurar a satisfação de necessidades de outra natureza que não se integram nas duas subalíneas anteriores e que sejam devidamente ressalvadas pelo juiz a requerimento do devedor.

Significa isso, portanto, que a exclusão de rendimentos do rendimento disponível, ao abrigo da citada alínea b), não assenta nunca na natureza dos rendimentos, mas sim nas concretas despesas ou necessidades do devedor que têm que ser salvaguardadas.

Nessas circunstâncias, ainda que as ajudas de custo ou suplemento de residência se destinem, em abstracto e por definição, a compensar determinadas despesas, esse rendimento só se considerará excluído do rendimento disponível na medida em que ele seja efectivamente necessário para a satisfação de qualquer uma das necessidades a que alude a citada disposição legal. Dizendo de outro modo: o que é excluído do rendimento disponível não é o valor das ajudas de custo e do referido suplemento (que, para efeitos de apuramento do rendimento disponível, são rendimentos como qualquer outro), mas sim a parcela do conjunto de todos os rendimentos auferidos pelo devedor que seja necessária para assegurar as despesas a que aludem as subalíneas da alínea b) do nº 3 do citado art. 239º e, designadamente, as despesas que comprovadamente foram efectuadas e que aquelas ajudas de custo ou suplemento visavam compensar.

A decisão recorrida já salvaguardou – excluindo esse valor da cessão – as concretas despesas que foram comprovadas com a deslocação do Apelante para a Madeira e não foram alegadas ou comprovadas quaisquer outras despesas que possam e devam ser ressalvadas ao abrigo das subalíneas ii) e iii).

Por outro lado, ainda que se possa admitir – como sustenta o Apelante – que a deslocação temporária na Madeira importa um acréscimo de despesas com residência e alimentação, a verdade é que tais despesas reportam-se ao sustento do devedor e inserem-se no âmbito de previsão da subalínea i) da citada disposição legal e, como é evidente, não coincidem necessariamente com o valor das ajudas de custo que são pagas. Nesse contexto e admitindo que existam efectivamente despesas acrescidas com o seu sustento, o que o Apelante podia – e devia – ter feito era requerer, com fundamento nessa circunstância, a alteração do valor que lhe havia sido fixado para prover ao seu sustento, o que não fez.

Com efeito – reafirmamos mais uma vez –, o Apelante não tem o direito de reter o valor das ajudas de custo e suplemento de residência pelo simples facto de estar em causa um rendimento que se destina a compensar o devedor pela realização de determinadas despesas e independentemente da efectiva realização das despesas que aquelas ajudas de custo visam compensar; as ajudas de custo correspondem a um rendimento como qualquer outro que, juntamente com o demais rendimento auferido, tem que ser cedido ao fiduciário, com exclusão (apenas) do valor que se considere razoavelmente necessário para prover ao sustento do devedor e agregado familiar e do valor que seja necessário para assegurar outras despesas que, não se relacionando com aquele sustento, são igualmente essenciais, seja porque se destinam a permitir ou são efectuadas no normal exercício da actividade profissional, seja porque se destinam a satisfazer qualquer outra necessidade premente e indispensável do devedor ou do seu agregado familiar. Nessas circunstâncias, poderemos dizer – como se disse no Acórdão da Relação do Porto de 21/02/2019 (processo nº 1920/14.0TBMAI.P1) e no Acórdão da Relação de Guimarães de 15/12/2016 (processo nº 1270/12.7TBFAF-B.G1)[2] – que as ajudas de custo apenas poderão ser excluídas do valor a ceder ao fiduciário na estrita medida em que elas se destinem efectivamente a compensá-lo por despesas que ele, comprovadamente, tenha efectuado; tais despesas (que as ajudas de custo pretendem compensar), desde que efectivamente realizadas, correspondem a despesas inerentes ao exercício pelo devedor da sua actividade profissional e, nessa medida, inserem-se no âmbito da subalínea ii) da alínea b) do nº 3 do art. 239º, pelo que o rendimento necessário para fazer face a essas despesas fica excluído do rendimento disponível.

No caso em análise, apenas foram comprovadas as despesas (extraordinárias) que o Apelante suportou com a sua deslocação para a Madeira e essas despesas já foram ressalvadas. Não foi alegada nem comprovada qualquer outra despesa ou necessidade concreta (relacionada ou não com a actividade profissional do Apelante) que possa ser incluída no âmbito de previsão das subalíneas ii) e iii) do nº 3 do citado art. 239º e o eventual acréscimo de despesas com o sustento do devedor só poderá ser considerado ao abrigo da subalínea i) com eventual alteração do valor a reservar para esse sustento, mediante requerimento que nesse sentido seja apresentado pelo devedor o que, até à data, não aconteceu.

Assim sendo, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O rendimento disponível para efeitos de cessão ao fiduciário no âmbito da exoneração do passivo restante integra todo e qualquer rendimento auferido pelo devedor, independentemente da sua natureza, incluindo, portanto, remunerações do trabalho ou de outra natureza, subsídios e suplementos de qualquer natureza ou ajudas de custo, sendo apenas excluídos os rendimentos que se enquadrem nas alíneas e subalíneas do nº 3 do art. 239º do CIRE.

II – Ainda que as ajudas de custo ou suplemento de residência se destinem, em abstracto e por definição, a compensar determinadas despesas, esse rendimento não se considera, só por isso e independentemente da efectiva realização dessas despesas, excluído do rendimento disponível; o que é excluído do rendimento disponível não é o valor das ajudas de custo e do referido suplemento (que, para efeitos de apuramento do rendimento disponível, são rendimentos como qualquer outro), mas sim a parcela do conjunto de todos os rendimentos auferidos pelo devedor que seja necessária para assegurar as despesas referidas nas subalíneas da alínea b) do nº 3 do citado art. 239º e, designadamente, as despesas que comprovadamente foram efectuadas e que aquelas ajudas de custo ou suplemento visavam compensar.

III – Estando em causa ajudas de custo e suplemento de residência auferidos pelo devedor pela sua deslocação para a Madeira no âmbito e no exercício da sua actividade profissional, apenas se considera excluído do rendimento disponível o valor correspondente às despesas comprovadamente efectuadas com essa deslocação ou por causa dela; o eventual acréscimo de despesas com o sustento do devedor por força daquela deslocação (que aquelas ajudas de custo também visam compensar) só poderá ser excluído do rendimento disponível ao abrigo da subalínea i) da alínea b) da citada disposição e, portanto, mediante alteração do valor que, por decisão proferida nos autos, foi reservado para o sustento do devedor e respectivo agregado, caso se conclua que aquela deslocação implica uma efectiva alteração do valor que, em termos de razoabilidade, é necessário para prover a esse sustento.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Coimbra, 4 de Maio de 2020.

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Reg. nº 658.
[2] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.