Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10066/15.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
SISTEMA CONVENCIONADO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 09/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE Z (...) - Z (...) - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.212CRP, 1, 4 Nº1 H) ETAF, PORTARIA Nº 1450/2004 DE 25/11, PORTARIA Nº 45/2008 DE 15/1
Sumário: 1.- O legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, tendo esta distinção deixado de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

2. Assim, o novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; pelo que, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, g), do ETAF).

3. Mas, igualmente, lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, h), do ETAF).

4. A função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas que a estas estejam ligadas.

5. Estão, assim, integrados na função administrativa os actos médicos praticados num hospital que colabora com o Serviço Nacional de Saúde e a prosseguir as tarefas que legalmente a este estão confiadas.

6. Daí que sejam os Tribunais Administrativos os competentes para julgarem a acção proposta contra dois médicos e uma Clínica que colabora com o SNS, no âmbito do SIGIC, e prestou cuidados a utente deste sistema, com fundamento em actos médicos deficientemente prestados.

Decisão Texto Integral:








I – Relatório

1. J (…), residente em x (...) , intentou acção contra S (…) com sede em y (...) , A (…), residente em y (...) e R (…), com domicílio profissional na 1ª R., peticionando a condenação solidária dos RR a pagar-lhe a quantia de 2.263,33 € a título de danos materiais, em danos futuros e em 250.000 € de danos morais.

Fundou a sua pretensão em responsabilidade médica contratual, bem como extracontratual.  

Todos os RR contestaram, tendo o 2ª e 3º RR, além do mais, arguido a incompetência material do tribunal, que afirmam pertencer aos tribunais administrativos.

A A. e a 1ª R. responderam, defendendo que o tribunal judicial é o competente.

Foi admitida a intervenção acessória das seguradoras A (…) SA, e T (…), SA. Todas elas intervieram, tendo, além do mais, a 1ª e 3ª arguido, também, a referida incompetência material do tribunal.

De novo a A. e a 1ª R. responderam, mantendo a sua posição.

*

Foi proferido despacho saneador (em 18.10.2017), no qual se declarou o tribunal judicial materialmente incompetente, por a competência pertencer ao tribunal administrativo, e se absolveu os RR da instância.

*

2. A A. interpôs recurso (mantendo alegações anteriormente apresentadas), tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª Considerando que:

(a) Tal como acima se refere, toda a factualidade apresentada na causa de pedir e no pedido, refere-se a entidades privadas;

(b) A autora não imputa a nenhuma entidade pública qualquer responsabilidade;

(c) No caso vertente, tal como se demonstra a própria Ré S (…)L, não atuou, no caso, investida de quaisquer poderes públicos mas privados;

(d) Conforme acima se referiu na doutrina da Juíza Desembargadora do Tribunal Central Administrativo que, a questão da competência dos Tribunais Administrativos passará pela natureza das pessoas envolvidas e pelo objeto do litígio tal como apresentada pela autora na ação e totalmente ignorada na R. decisão recorrida.

(e) É a estrutura da causa apresentada pela parte que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material e a competência se afere – doutrina e jurisprudência citada acima e que não foi considerada sequer na R, decisão.

(f) Tal como aliás se decidiu no Ac. do TRL de 16/05/2013, proferido no P.º 2199/08.9TVLSB.L1-2 em situação semelhante à dos autos e dentro do mesmo quadro normativo e factual.

 (g) Bem como o Ac. desde “STJ” de 01/10/2015 no P.º 2104/05.4TBPVZ.P.S1, Ac. de 22/’5/2003 – P.º 03P912 e de Ac. de 29/10/2015 proferido no P.º 2198/05.2TBFG.S1, com a particularidade de, no caso, envolver três hospitais e clínicos dentro do mesmo quadro factual e jurídico.

(h) Nem o facto da Ré S (…) ter aderido ao Protocolo do SiGic do Sistema Nacional de Saúde, posto que:

- Para haver lugar à aplicação do regime da responsabilidade extracontratual do Estado é necessário e fundamental que o Estado tenha o controlo dos meios necessários à prestação do serviço ou tenha delegado o “poder público” a entidade privada – o que não ocorreu nem ocorre, conforme consta aliás do disposto no art.º 126.º da Portaria 45/2008 de 15 de Janeiro que imputa à entidade privada toda a responsabilidade decorrente do evento;

- O Tribunal Administrativo só seria competente para conhecer e decidir a ação se o ato clínico tivesse ocorrido em Hospital público – o que não é o caso, posto que em momento algum a clínica S (…) – ora Recorrida, tal como aliás consta dos autos, atuou ou foi investida das prerrogativas de poder público ou ao abrigo de disposições de direito administrativo nem como representante do “SNS”, mas simplesmente como entidade privada.

2.ª A conclusão a extrair de tais factos, é a de que a competência para julgar a acção pertence aos Tribunais comuns e não ao Tribunal Administrativo, em face do disposto no artigo 64º, do C.P.C. e artigo 4º, do ETAF, a contrario.

3.ª No entendimento da Recorrente, a R. decisão, violou o disposto no art.º 64º, 607.º, n.º 3 e 4 do CPC, e artigo 4º, do ETAF, a contrario.

4.ª (… agora irrelevante).

Em face do exposto,

Requer a V. Ex.ªs:

1) Que se decida que a competência para conhecer da ação é do Tribunal comum;

2) Consequentemente, se revogue a R. decisão recorrida, com as legais consequências.

Assim decidindo-se fará:

J U S T I Ç A

3. Não existem contra-alegações. 

II – Factos Provados

1) A autora demanda, na sua petição inicial, em coligação passiva, os réus clínica S (…), e dois médicos - Drs. A (…) e R (…), alegando:

que em 2009 começou a ser acompanhada clinicamente por médico de família na localidade da sua residência [ art. 1º da p.i], que a encaminhou para o Hospital w (...) [unidade hospitalar que integra o Serviço Nacional de Saúde], em x (...) , para ser analisada por um especialista de Urologia- no caso o 2º réu que ali presta consulta de tal especialidade clinica [assim, no âmbito do mesmo Serviço Nacional de Saúde] [ art. 4º da p.i.];

que se foram repetindo tais exames, nos anos de 2009 a 2011, para evolução de cálculo renal, chegando este clínico a fazer, em final de 2011, um tratamento por laser, sem êxito [ art. 5º da p.i.]; que ante a impossibilidade de a nível publico poder ser operada obteve autorização administrativa do Serviço Nacional de Saúde para poder fazer tal intervenção em clinica privada [ art. 6º da p.i.] ;

que no ano de 2012, dado o aumento do volume do cálculo renal, o 2º réu, que dá consultas da especialidade de Urologia, nos hospitais de x (...) e z (...) , entre outros locais, aconselhou a autora a fazer uma TAC, na qual veio a ser detectado que tinha um cálculo renal e após exames, o 2º réu encaminhou a autora, para intervenção cirúrgica em clinica onde presta serviços clínicos, nas instalações da 1ª ré, onde exerce medicina e integra o corpo clinico desta [ art. 8º e doc. 3 da p.i para o qual remete];

após, foi convocada pela clínica e submetida a uma intervenção, realizada na clínica da 1ª ré, através do 2º e 3º réus- especialistas e com os demais auxiliares.[ art. 14º da p.i.];

2) A Autora era utente do Hospital w (...) , em x (...) (em resultado de diagnóstico do Dr. (…), médico de família no Centro de Saúde de x (...) , que para aquele Hospital a encaminhou para aí ser estudada e acompanhada pela especialidade de Urologia), sendo ambos os estabelecimentos de saúde (i.e., Centro de Saúde de x (...) e Hospital w (...) ) componentes do Sistema Nacional de Saúde (SNS);

3) Dada a necessidade de a Autora ser submetida a intervenção cirúrgica foi a mesma colocada na Lista de inscritos para cirurgia – naquela unidade hospital.

4) A Autora, beneficiária do SNS, foi objecto de uma autorização administrativa para realização de intervenção cirúrgica, nas instalações da 1.ª Ré, com o número (…) conforme Doc. 4.1. junto à petição inicial;

5) Como se extrai de tal doc. 4.1 a S (…), aqui 1.ª Ré, sociedade anónima e ente privado, celebrou convenção destinada a regular as relações que tenham por objecto a prestação de cuidados de saúde no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia.

6) A ré S (…) consta da lista das entidades sociais e privadas convencionadas com a Administração Regional de Saúde do Norte, I.P no âmbito do SIGIC [Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgias (SIGIC)]- cf. Despacho n.º 24110/2004 de 23 de Novembro de 2004 e doc. 4.1 de fols. 77.

7) A S(…)celebrou com a Administração Regional de Saúde do Centro, I.P. (ARS), convenção no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgias (doravante «SIGIC»), sistema que foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 79/2004, sendo essa convenção regulada nos termos da Portaria n.º 45/2008, de 15 de Janeiro.- sendo nesse âmbito que recebeu a autora nas suas instalações.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Competência material do tribunal judicial.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“A questão da competência dos tribunais administrativos passará quer pela natureza das pessoas envolvidas quer pela natureza do objecto do litígio, considerando designadamente a fonte da obrigação de indemnização e respectivo facto constitutivo, - o que naturalmente envolve o quadro jurídico subjacente à relação material regulamentadora daquela relação, criador das respectivas obrigações e direitos.

E a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, seja quando aos seus elementos objectivos (natureza da pretensão ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes), sendo a estrutura da causa apresentada pelas partes que fixa o tema decisório para efeitos de competência material- assim, é pelo “quid decidendum” que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o “quid decisum” [cf. MANUEL DE ANDRADE, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91.

Da factualidade vertida resulta a natureza extracontratual da responsabilidade civil inerente, uma vez que, esta cirurgia foi realizada ao abrigo do SIGIC, inexistindo qualquer contrato entre a autora e qualquer os réus. Assim, e do mesmo modo resulta que a S(…), 1.ª Ré, ente privado, celebrou convenção destinada a regular as relações que tenham por objecto a prestação de cuidados de saúde no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia, sendo que as entidades convencionadas no âmbito do SIGIC –nas quais a 1.ª ré se acha inserida – se assumem, indiscutivelmente, como parceiros do Estado na prossecução do interesse colectivo de acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde, desempenhando, pois, enquanto tal, uma verdadeira função administrativa; e tais convenções - verdadeiras parcerias público privadas - configuram verdadeiros contratos administrativos, mediante os quais o Estado contrata com os particulares o desempenho de uma actividade de serviço público; outrossim como referem as partes e intervenientes que pugnam pela falta de competência material do tribunal, os procedimentos adoptados por tais entidades, na execução das funções públicas que lhes foram confiadas, estão sujeitos aos “processos de garantia de qualidade definidos pelas entidades competentes do Ministério da Saúde” (Cf. Cláusula 6.ª do clausulado tipo de convenção aprovado pelo Despacho n.º 24 110/2004), bem como ao acompanhamento e controlo realizado pelas Administrações Regionais de Saúde, nos termos do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 97/98, de 18 de Abril, com vista a garantir a qualidade e acessibilidade dos cuidados de saúde prestados; assim, igualmente se lhes impõe a observância do Estatuto do SNS, por o mesmo se aplicar às “entidades particulares e profissionais em regime liberal integradas na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, quando – como no presente caso, as mesmas se encontram – articuladas com o Serviço Nacional de Saúde”.

Assim, inexiste um vinculo contratual privado entre a ré S (…) e a ARS, mas uma relação de convenção, no âmbito do SIGIC - [ relação que nenhuma das partes pôs em questão].

Irreleva, neste particular, que o Estado não seja o proprietário dos equipamentos de saúde, o empregador e/ou o regulador dos recursos, mas sim a própria entidade privada, a quem foi solicitada a prestação de um serviço; ou que a ré S(…)L, enquanto «hospital de destino», tenha recebido o utente em causa, e prestado serviço à mesma com recurso aos seus equipamentos e ao seu corpo clínico, que não elabore o diagnóstico do utente nem defina o tratamento aplicável, pelo facto do diagnóstico e da terapêutica aplicável serem definidas pelo hospital de origem; nem que os utentes tenham direito de escolher livremente a entidade convencionada, de entre os constantes da relação das entidades convencionadas; ou que os utentes em causa possam recusar a transferência do seu hospital para outros hospitais para a realização da cirurgia de que carecem, não sendo obrigados a aceitar a sugestão que lhes é feita, pelo SNS, de recorrerem ao sistema de saúde privada….

O Regulamento deste SIGIC foi aprovado pela Portaria n.º 1450/2004 de 25 de Novembro e, de novo, pela Portaria n.º 45/2008 de 15 de Janeiro, e dele se infere a por nós referida extensão de poderes administrativos, e obediência a princípios de direito administrativo.

Bastará a leitura do seu nº 58 e ss., que na parte que nos interessa rege nos seguintes termos: “A programação cirúrgica dos utentes deve obedecer aos seguintes critérios, partindo do mais importante:

a) Prioridade clínica estabelecida pelo médico especialista em função da patologia de base, gravidade, impacte na vida do utente e velocidade de progressão da doença; b) Antiguidade na LIC; em caso de igual prioridade clínica será seleccionado em primeiro lugar o utente que se encontre inscrito na lista há mais tempo….58 – A transferência do processo de utentes para outras unidades hospitalares integradas no SNS ou unidades convencionadas é obrigatória sempre que o hospital de origem, com os seus recursos, não possa garantir a realização da cirurgia dentro do tempo máximo de espera.59 – A obrigação prevista no número anterior cessa exclusivamente quando se verificar uma das seguintes circunstâncias: a) Vontade do utente expressa nos termos previstos neste Regulamento; b) Quando o hospital de origem proceda à marcação da cirurgia até ao limite de 100% do tempo máximo de espera. 60 – Sem prejuízo do disposto no n.º 59, decorrido 75% do tempo máximo de espera sem que tenha sido marcada a cirurgia pelo hospital de origem, a UCGIC selecciona outro hospital do SNS com capacidade para realizar a cirurgia, de acordo com os seguintes critérios:…..63 – O utente pode recusar a transferência do seu processo para outra unidade hospitalar, através de documento escrito a enviar para a UCGIC no prazo de 10 dias úteis a contar da notificação da transferência, presumindo-se a sua aceitação caso nada seja informado.64 – A oponibilidade pode ser comunicada através de qualquer meio escrito: carta, telefax ou correio electrónico.65 – Verificando-se a oponibilidade do utente nos termos do número anterior, o respectivo processo mantém-se na LIC do hospital de origem, reiniciando-se a contagem do tempo de espera a partir da data em que é comunicada a oponibilidade do utente. 66 – A oponibilidade à transferência é da responsabilidade do utente. 67 – Aceite a transferência, a UCGIC informa a UHGIC do hospital de destino dos dados pessoais e clínicos do processo do utente a transferir e, simultaneamente, dá instruções à UHGIC do hospital de origem para proceder ao envio do processo do utente para o hospital de destino. 68 – Após a conclusão do episódio no hospital de destino, o processo do utente deverá ser devolvido ao hospital de origem e completado com toda a informação pessoal e clínica eventualmente recolhida sobre o utente no hospital de destino num prazo máximo de cinco dias. 68.1 – O hospital de destino deverá ficar com cópia dos elementos do processo necessários ao acompanhamento do doente até à sua completa recuperação num mínimo de dois meses após alta hospitalar. 69 – A UHGIC do hospital de destino, em articulação com os serviços respectivos, procede à marcação da cirurgia, aplicando-se os procedimentos previstos neste Regulamento para a fase de admissão à cirurgia. 70 – O disposto nos n.os 62 a 68 aplica-se, com as devidas adaptações, à situação decorrente da emissão do vale-cirurgia. 71 – Decorridos 100% do tempo máximo de espera sem que tenha sido realizada a cirurgia pelo hospital onde o processo do utente se encontra activo, a UCGIC emite um vale-cirurgia a favor do utente. 72 – O vale-cirurgia também pode ser emitido nos casos em que, tendo decorrido 75% do tempo máximo de espera, não existe nenhum hospital integrado no SNS com capacidade disponível para agendar a intervenção cirúrgica até ao limite do tempo máximo de espera. 73 – O vale-cirurgia habilita o utente a marcar a cirurgia directamente numa das entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde convencionadas para o efeito. 74 – O vale-cirurgia é um documento pré-numerado, pessoal e intransmissível e só pode ser utilizado para a realização da cirurgia proposta ou equivalente. 75 – O vale-cirurgia é válido pelo período correspondente a 25% do tempo máximo de espera…..77 – Ao enviar o vale-cirurgia ao utente, a UCGIC: a) Identifica as entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde convencionadas com capacidade para realizar a intervenção cirúrgica;

b) Especifica que o utente é livre de escolher qualquer das entidades privadas convencionadas indicadas;

c) Indica a validade do vale-cirurgia; d) Explicita as consequências da não utilização do vale-cirurgia. 78 – A não utilização do vale-cirurgia dentro da sua validade implica o cancelamento do processo do utente na LIC do hospital de origem….80 – O hospital de destino antes de proceder à marcação da cirurgia efectua a avaliação da situação clínica do utente e realiza os exames complementares de diagnóstico, os tratamentos pré-operatórios e as consultas pré-anestésicas necessárias. 81 – O hospital de destino realiza a intervenção cirúrgica no prazo máximo de 25% do tempo máximo de espera. 82 – O hospital de destino, após a realização da intervenção cirúrgica e de todos os procedimentos pós-operatórios, verifica se todos os registos informáticos estão correctos e emite dois certificados de alta destinados um ao utente e outro à URGIC; se não tiver havido lugar a uma intervenção, deve notificar a URGIC e a UCGIC de tal facto, respectiva justificação e certificar-se que foram efectuados os respectivos registos informáticos. 83 – O hospital de destino é responsável pelos tratamentos e intercorrências até à alta hospitalar, pela continuação dos tratamentos, após a alta do internamento, de todas as intercorrências de sua responsabilidade ocorridas durante o internamento, assim como de quaisquer complicações identificadas no período de dois meses após a alta.84 – Salvo o disposto no número anterior, todos os tratamentos ou consultas posteriores são realizados no hospital de origem.

Ademais, refere-se nessa mesma portaria: “85 – No âmbito da gestão das transferências, as URGIC e UCGIC: a) Adoptam as acções necessárias para fomentar a adequação da oferta dos serviços das unidades convencionadas com a procura de procedimentos cirúrgicos dos hospitais da rede do SNS; b) Garantem o cumprimento das transferências emitidas para cada um dos hospitais; c) Monitorizam os fluxos de transferências, quer entre os hospitais da rede SNS como para a rede convencionada; d) Supervisionam a actividade dos hospitais da rede SNS e das unidades convencionadas no que concerne a transferências de utentes e produção cirúrgica contratada.

E como se prossegue no nº 86 –: “A URGIC e a UCGIC estabelecem os mecanismos adequados para assegurar:….b) A realização dos procedimentos cirúrgicos por parte dos hospitais do SNS e das entidades convencionadas dentro do prazo admissível;…d) O controlo de qualidade do circuito estabelecido.

Assim, as unidades regionais de gestão de inscritos para cirurgia (URGIC) existentes nas Administrações Regionais de Saúde (ARS) detêm competência para supervisionar os processos de transferência e os utentes devem recorrer a estas entidades para nomeadamente apresentar as reclamações referentes às transferências ou ao atendimento nos hospitais convencionados.

Nas palavras de Benjamim Magalhães Barbosa [ apud AS ENTIDADES PRIVADAS COM FUNÇÕES PÚBLICAS E O DIREITO À INFORMAÇÃO PROCEDIMENTAL NO ÂMBITO DOS CUIDADOS DE SAÚDE, disponível para consulta em http://www.amjafp.pt/images/phocadownload/Interven%C3%A7%C3%B5es/coloquio2010_benjamimbarbosa.pdf > acesso m 22/672016: “a natureza das tarefas que no âmbito do SNS são prestadas por entidades privadas, não perdem natureza administrativa: se é certo que as prestações são feitas por entidades de direito privado, não é menos verdade que as mesmas correspondem a prestações administrativas em sentido objectivo, ditadas pela satisfação directa de necessidades públicas e que, portanto, integram a função administrativa. De resto, o recurso à colaboração de entes privados não se esgota nas chamadas áreas da administração económica ou social, como sucede no fornecimento de bens ou serviços essenciais, podendo estender-se a áreas outrora tradicionalmente tidas como inseparáveis da função estadual, em função do exercício dos poderes de autoridade que lhes eram inerentes. Neste caso a prossecução das tarefas pelas entidades privadas acarreta a transferência do exercício de tais poderes, conferindo a tais entidades a natureza de entidades administrativas privadas”.

Desta feita, embora a S (...) seja entidade privada, a actuação levada a cabo na ré não pode ser dissociada da referida circunstância de tal assistência ter sido prestada no âmbito do SIGIC - como configurado pela autora na sua p.i. e aceite pelas partes, decorrendo do regime normativo aludido a consideração de que lhe é aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Ademais e como decorre do nº 2 desse art. 4º do ETAF: “ pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”

Vidé, neste sentido o AC RC proferido nos autos nº 10810/15.9T8CBR C1)”.

Cremos que se decidiu bem, aderindo-se à fundamentação jurídica apresentada.

Adicionalmente, temos por pertinente acrescentar mais 4 observações jurídicas:

- no art. 2º da referida Portaria 45/2008, o âmbito de aplicação do SIGIC é alargado às entidades do sector social e do sector privado que prestam cuidados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde ao abrigo dos acordos, contratos e convenções celebrados. Isto é, estendem-se a tais entidades que prestam cuidados aos utentes do SNS poderes administrativos, e obediência a princípios de direito administrativo;
- a jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP).
Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.
Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa segundo o entendimento de J. C. Vieira de Andrade, quando, depois de afirmar que à justiça administrativa só interessam «as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo», acentua que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» - em A Justiça Administrativa - Lições, 3ª Ed., 2000, pág. 79.
É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, tendo esta distinção deixado de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.
Assim, o novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Pelo que, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, g), do ETAF).
Mas, igualmente, lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, h), do ETAF) – (vide Ac. Rel. de Coimbra de 21.10.2008, Proc. 163/05.9TBFCR, em www.dgsi.pt);
- como se menciona no Ac. de 2.10.2008 (Proc.012/08) do Trib. Conflitos (disponível no mesmo sítio), é sabido que a função administrativa compreende o conjunto de actos de execução de actos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer as necessidades colectivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder do Estado – colectividade” (M. Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, pg. 12, com sublinhado nosso.) e que essa função é “desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, entre as quais o Estado – Administração, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública. As primeiras formam o cerne da Administração Pública e exercem a função administrativa do Estado – colectividade de forma imediata, necessária a por direito próprio, em obediência a opções prévias, que se traduziram no exercício da função legislativa daquele Estado, função principal ou primária. As segundas assumem uma posição secundária dentro da Administração Pública, exercendo a função administrativa por delegação daquelas. Assim, as pessoas colectivas privadas que se encontram nesta posição exercem a função administrativa do Estado por efeito de decisão prévia de uma pessoa colectiva pública, decisão essa que se insere no exercício da função administrativa por parte da pessoa delegante.” (Idem a pg. 148, com sublinhado nosso.).
O que quer dizer que a função administrativa do Estado tanto pode ser praticada directamente pelos organismos e serviços integrados na sua pessoa sob a gestão imediata dos seus órgãos, como por pessoas colectivas que lhe são exteriores, públicas ou privadas, mas que a ele estão ligadas (M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.º ed., vol. I, pg. 187.), o que tem como corolário que as relações jurídicas decorrentes da função administrativa delegada a estas pessoas colectivas se desenvolvem a coberto dos poderes de autoridade necessários ao cumprimento da função que lhes foi confiada e a serem reguladas por normas de direito administrativo visto se dirigirem à satisfação do interesse público.”
E se assim é, como é, a conclusão que se pode retirar é a de que os actos praticados por tais entidades, enquanto elas estiverem integradas na administração indirecta do Estado e esses actos se direccionarem à satisfação do interesse público, devem ser considerados praticados a coberto de normas de direito administrativo;  

- Á data dos factos regulava o Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei 27/2002 de 8.11. Como se menciona no Ac. de 21.4.2016 (Proc.06/15) do Trib. Conflitos (disponível no mesmo sítio) “Por seu turno o Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei nº 27/2002 de 08/11 dispõe no seu artº 1º, nº 2: «A rede de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, os estabelecimentos privados que prestam cuidados aos utentes do SNS nos termos de contratos celebrados ao abrigo do disposto no Capítulo IV e os profissionais com quem sejam celebradas convenções».

E no nº 1 do artº 2º do referido Regime Jurídico dispõe-se: «Os hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde podem revestir uma das seguintes figuras jurídicas: a) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira, com ou sem autonomia patrimonial; b) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial e natureza empresarial; c) Sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos; d) Estabelecimentos privados, com ou sem fins lucrativos com quem sejam celebrados contratos, nos termos do nº 2 do artigo anterior» - sub. nosso.

No que respeita ao regime a que estão sujeitos os estabelecimentos privados, estabelece o artº 20º [capítulo IV do RJGH]:

«1º. Os hospitais previstos na al. d) do nº 1 do artº 2º, regem-se:

a) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas com fins lucrativos pelos respectivos estatutos e pelas disposições do Código das Sociedades Comerciais;

b) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, pelo disposto nos respectivos diplomas orgânicos e subsidiariamente, pela lei geral aplicável;
2. O disposto no número anterior não prejudica o cumprimento das disposições gerais constantes do capítulo I»

Temos assim que as normas que constituem o capítulo I do RJGH, aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (artº 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (artº 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (artº 6º a 8º).
E da observação destas normas extrai-se que os hospitais que revistam a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, que estejam integrados na rede de prestação de cuidados de saúde, por força de contratos celebrados ao abrigo do disposto no capítulo IV do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, anexo à Lei nº 27/2002
de 02/11 têm a respectiva actividade disciplinada por um conjunto de regras que decorrem do facto da entidade privada ter sido chamada a desenvolver, em colaboração com o Estado, uma tarefa de interesse público.”.

Concluindo, agora, podemos dizer que atendendo à narrativa dos factos constantes da causa de pedir, verifica-se que os mesmos foram praticados no âmbito de uma relação jurídica de prestação de cuidados de saúde em que o hospital privado – S (…)– em virtude do contrato celebrado com a Administração Regional de Saúde, tem a sua actividade disciplinada por normas de direito administrativo.

Deste modo, e atento o disposto no art. 4º, nº 1, h) do ETAF, cremos que a competência, em razão da matéria, para conhecer da presente acção radica na jurisdição administrativa.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):
i) O legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, tendo esta distinção deixado de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa;
ii) Assim, o novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; pelo que, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, g), do ETAF);

iii) Mas, igualmente, lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, h), do ETAF);

iv) A função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas que a estas estejam ligadas;

v) Estão, assim, integrados na função administrativa os actos médicos praticados num hospital que colabora com o Serviço Nacional de Saúde e a prosseguir as tarefas que legalmente a este estão confiadas.

vi) Daí que sejam os Tribunais Administrativos os competentes para julgarem a acção proposta contra dois médicos e uma Clínica que colabora com o SNS, no âmbito do SIGIC, e prestou cuidados a utente deste sistema, com fundamento em actos médicos deficientemente prestados.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.    

*

Custas pela recorrente.

*

Coimbra, 17.9.2019

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias