Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1216/15.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: NEGÓCIO USURÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA, COIMBRA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 282.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: A situação de vulnerabilidade em que se encontrava o autor, que foi, conscientemente, aproveitada pela ré para se apropriar dos bens e valores em causa, mediante a promessa de dele cuidar e com ele manter relações sexuais, configura um negócio usurário e como tal, anulável.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... , viúvo, reformado, residente em (...), intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra B.... , casada, residente na R. (...).

[A fls. 461 v.º, o A. desistiu do pedido formulado inicialmente contra C.... , casado, com domicílio na (...), D... , Ld.ª, com sede na (...) e E... , Ld.ª, com sede na R. (...), tendo a D... desistido da intervenção da Companhia de Seguros P... que foi interveniente nestes autos.]

Por via da presente ação declarativa pretende o A. obter a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 365,150,00, mais € 5.000, 00, de danos não patrimoniais (considera-se a petição aperfeiçoada apresentada a fls. 215 e ss.).

Par tanto alegou ter-se a A. aproveitado da circunstância de o A. ter mais de 80 anos, ser uma pessoa só e deter poupanças, para lhe pedir empréstimos, obter procuração a seu favor com que efetuou transferências para a respetiva conta, levando-o a pagar a compra de uma casa que, na ignorância do A., ficou em nome da Ré.

Em consequência desta atuação, viu-se o A. na dependência de terceiros para sobreviver, chegando a sentir-se marginalizado tendo sido prejudicado no respetivo estado de saúde.

Contestando, disse a Ré ter o R. sabido que a mesma se prostituía, propondo-lhe que dele cuidasse e lhe prestasse favores de cariz sexual, passando a viver em conjunto com aquela, seu marido e filhos do casal. De modo que os primeiros € 10.000,00, foram entregues pelo A. à Ré como contraprestação por aqueles serviços sexuais. No mais, foi o A. que quis comprar a casa para a Ré para a agraciar. Sendo verdade que efetuou levantamentos e transferências de valores da conta do A., fê-lo para pagar despesas com finalização e equipamento da casa, o que fez com o acordo do A., que com eles quis efetuar uma dádiva à Ré e pagar-lhe por dele tratar e com ele manter relacionamento íntimo.

Elaborou-se despacho saneador tabelar e identificou-se o objecto do litígio e os temas da prova, os quais não foram objecto de reclamação.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 478 a 486, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, absolvendo a Ré do demais, condena-se a mesma a pagar ao A. a quantia de € 360.150,00.

Custas pelas partes na proporção do decaimento.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a ré B... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 892), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1.º

O presente recurso versa sobre decisão proferida e a fundamentação utilizada na douta sentença, por se entender que a mesma não se adequa objectivamente à prova produzida e constante dos autos, nem aos princípios orientadores do direito processual civil, impugnando-se a matéria de facto e de direito nela contida, por existirem pontos de facto incorrectamente julgados e erros de julgamento.

2.º

Efectivamente, o Tribunal a quo, fez autêntica tábua rasa de toda a matéria fáctica alegada na contestação e da prova produzida pela Recorrente, quase que impossibilitando-a de poder demonstrar a justiça da sua pretensão, e nem sequer considerando aqueles elementos, com interesse para a decisão da causa, como críveis ou relevantes para a posição reclamada pela ora Recorrente.

3.º

Impugnam-se os pontos 4) a 11), 13) a 16) e 18) a 20) da factualidade dada como provada, bem como os pontos 12), 13) e 14) da matéria de facto não provada, que, salvo o devido respeito, se consideram erradamente considerados, atentos os depoimentos das testemunhas apreciados na globalidade e no seu conjunto com a demais prova, conforme alegações supra expendidas na parte 1) desta peça.

4.º

Salvo melhor entendimento, crê-se que o Tribunal a quo, quer na factualidade dada como provada (e não provada), quer na fundamentação da sua decisão, partiu de um errado pressuposto que inquinou o raciocínio do julgador e a sua decisão, não tendo ficado indiferente às duas versões dos factos apresentadas pelo A. e considerando, erradamente, que, por se tratar de uma pessoa viúva que recorria aos serviços sexuais prestados pela Recorrente, este seria uma pessoa ingénua, ignorante, frágil, pouco esclarecida, etc.

5.º

Não obstante a sua idade, o A. tinha perfeita consciência e conhecimento do alcance das suas escolhas (válidas) … Escolhas estas das quais se poderá ter arrependido com o passar do tempo, mas isto não é, nem nunca poderá ser um pressuposto de responsabilidade civil (quer contratual, quer extracontratual) ou de enriquecimento sem causa.

6.º

Os depoimentos indirectos prestados pelas testemunhas do A., marcados por leveza probatória, assumindo um discurso selectivo, incutidas de incoerência e falta de credibilidade, revelaram uma gritante parcialidade, uma forte animosidade para com a Recorrente, nunca tendo qualquer uma delas ouvido ou presenciado qualquer facto.

7.º

Não consta da prova produzida, em momento algum, que a Recorrente começou a visitar o A. em x(...) por saber que ele vivia sozinho. A Recorrente conheceu o A. através da sua irmã O.... e apenas de deslocava a x(...) a pedido do A. para satisfazer os seus impulsos libidinosos.

8.º

O A. estaria eventualmente a viver sozinho no seu apartamento de x(...) mas tinha alguma relação de proximidade com a sua prima.

9.º

Não resulta da prova produzida que terá sido a Recorrente a propor ao A. para ir viver com ela para y(...).

10.º

Não decorre da prova produzida que terá sido a Recorrente a pedir ao A. para que este a instituísse herdeira. O A. confessou ter feito um testamento a favor da Recorrente porque estava satisfeito com os serviços prestados por esta, revelando que tinha consciência dos seus actos.

11.º

Não foi a própria Recorrente a pedir ao A. a outorga da procuração, a qual cumpre os requisitos de forma legais

12.º

A procuração não concede à Recorrente poderes para celebrar negócios consigo mesma.

13.º

O A. só não assistiu à escritura por sua livre vontade, ninguém o impediu de entrar.

14.º

O A. cedeu validamente a sua posição contratual, através de documento reconhecido pelo notário, pelo que não podia ter alegado que só não assistiu à escritura porque foi impedido.

15.º

A declaração de vontade do A., esta foi livre, esclarecida, real e ponderada, formada de um modo normal e são.

16.º

O A. tinha consciência que estava a ser celebrada a outorga da escritura da casa e nada fez para obstar a tal celebração.

17.º

Não resulta da prova produzida que o A. estava “convencido de que a mesma casa lhe pertencia e estava em seu nome”.

18.º

A Recorrente cuidava do A. com carinho.

19.º

Da prova produzida, não decorre que a saída do A. da casa da Recorrente tenha sido consequência directa daquela querela. Mas se o A. se aborreceu com a Recorrente por alguma razão e se vivesse enganado achando que a casa era sua, teria sido a Recorrente a ter de sair de casa e não o contrário…

20.º

O A. sabia perfeitamente que tinha cedido a sua posição contratual pelo que bem sabia que a casa nunca se encontrou em seu nome.

21.º

Decorre da prova documental que as transferências de “a) € 20.000, 00, em 11.10.2010; b) € 29.000, 00, em 28.10.2010; c) € 4.500, 00, em 29.10.2010; d) € 90.000, 00, em 2.11.2010; (…) [e] g) € 18.000, em 10.11.2010” foram realmente quantias transferidas para a conta da Recorrente, mas também decorre, por exemplo do Doc. 1 junto com a contestação, que tais quantias foram e poderão todas ter sido efectuadas pelo próprio A..

22.º

Com o devido respeito, não se entende como é que o Tribunal a quo pôde concluir que, pelo menos quanto à transferência dos 18.000€, tenha sido a Recorrente a retirar da conta do A. tais valores, quando estamos perante um documento assinado pelo próprio A...

23.º

Não podia ter sido a Recorrente a retirar da conta do A. outros valores (e) € 11.550,00, em 6.11.2010; f) € 2.100, 00, em 8.11.2010; (…) [e] h) € 5.000, em 11.11.2010) transferidos para contas distintas cujos titulares se ignoram. Nesta linha de pensamento, deveriam ter sido considerados todos os movimentos a débito dos extractos de conta do A. e ter responsabilizado a Recorrente por todos eles.

24.º

Acresce que a data de outorga da procuração (recorde-se 27.10.2010) é posterior à data da transferência dos 20.000€ (11.10.2010).

25.º

Todas as testemunhas foram suficientemente esclarecedoras e estavam perfeitamente conscientes da troca de mimos e carinhos que a Recorrente prestava ao A.

26.º

O A. sempre teve consciência que o dinheiro não servia como empréstimo e que o mesmo não lhe ia ser devolvido.

27.º

Não decorre da prova produzida que os valores realmente transferidos para a Recorrente “a) € 20.000, 00, em 11.10.2010; b) € 29.000, 00, em 28.10.2010; c) € 4.500, 00, em 29.10.2010; d) € 90.000, 00, em 2.11.2010; (…) [e] g) € 18.000, em 10.11.2010” tenham sido retirados por esta da conta do A. e que o tenham sido feito em seu proveito exclusivo.

28.º

Das próprias declarações de parte do A., e a serem verdade, é curioso a presente acção (e até o mencionado processo crime) não ter sido intentada contra outros sujeitos processuais, uma vez que quem lhe terá tirado os cartões de crédito foi a O.... , irmã da Recorrente.

29.º

O A. não detinha apenas a conta bancária do Banco..... Efectivamente, como resulta de fls. 363v., 373v., 387v. e 394v., foram efectuadas transferências bancárias para esta conta do Banco...., provenientes do próprio A.

30.º

Ninguém retirou a titularidade das contas bancárias ao A.

31.º

Verificando o extracto de conta de fls. 363v., à data de 28.02.2011, após ter procedido a um levantamento de 20,00€, o A. ficou com um saldo positivo de 107,56€, e no dia seguinte de 609,72€, recebendo pensões de Portugal e de Espanha. Pelo que este saldo era amplamente suficiente se considerarmos o valor do salário mínimo nacional.

32.º

Olhando para o extracto de conta de fls. 363v., verificamos que existem vários levantamentos multibanco, de pequeno montante, nos dias que antecedem e posteriormente à saída do A. da casa da Recorrente.

33.º

Por outro lado, importa salientar que ninguém retirou ao A. a sua casa de x(...) …

34.º

O A. tinha acesso ao seu dinheiro e possuía dinheiro suficiente para arrendar um quarto numa pensão ou voltar para a sua casa de habitação em x(...) .

35.º

Os pontos 3) e 12) da matéria de facto não provada estão em contradição e são incompatíveis com o ponto 11) da matéria de facto apurada.

36.º

Tendo em conta a configuração que as partes deram ao litígio, nomeadamente quanto à causa de pedir e pedidos invocados, decorre que apesar do A. fazer ancorar a sua pretensão somente no instituto da responsabilidade civil extracontratual.

37.º

O Tribunal a quo decidiu ir mais longe e analisar também a questão à luz da responsabilidade civil contratual e do enriquecimento sem causa, pelo que ao abrigo do princípio do dispositivo existe excesso de pronúncia.

38.º

De igual modo, o Tribunal a quo analisou ainda o caso sujeito à sua apreciação, à luz do Código Penal, considerando que “constituindo-se a Ré na posição de autora do crime de burla, cabe-lhe tornar indemne o A. o que significa a restituição do ilicitamente recebido”(sublinhado nosso).

39.º

O A. já tinha apresentado anteriormente contra a aqui Recorrente um processo de natureza criminal (Processo de inquérito n.º 739/11.5TACNT que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Cantanhede), que acabou por ser arquivado pelo facto de se ter concluído “(…) que a respectiva entrega pelo queixoso tenha tido na sua génese um sinalagma, uma contrapartida conhecida e aceite por ambas as partes (…) [e que] não se mostram concretizados indícios suficientes aptos a preencher os elementos do crime em apreço, desde logo, o elemento típico indutor da criação de um estado intelectivo erróneo na pessoa da vítima, importando a verificação de um erro ou engano que tenha sido provocados astuciosamente, isto é, que a conduta do agente comporte a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade que envolve a escolha dos meios idóneos para conseguir criar e obter uma representação distorcida e desfocada da realidade em que a relação estabelecida se deveria ter desenvolvido, mas também o elemento subjectivo, querendo fazer-se referência à vontade dolosa de agir.”

40.º

A Recorrente não praticou qualquer facto ilícito que a constitua na obrigação de indemnizar o A.

41.º

Todos os actos que foram praticados, não só foram sempre do completo conhecimento do A. como foram por si queridos e corresponderam, na altura, à mais pura expressão da sua vontade livre e esclarecida.

42.º

É certo que agora parece estar arrependido de os ter praticado e querido praticar, mas o que não pode é vir agora dizer que os não quis e que não foram do seu acordo ou feitos à sua revelia, pois tal não corresponde minimamente à verdade, pelo que nenhum acto ilícito foi praticado pela Recorrente.

43.º

Não é de menosprezar o facto de o A. pleitear no presente processo (e no processo de natureza criminal supra mencionado) com a constituição de mandatário e sem recurso a qualquer modalidade de apoio judiciário (sinal de que tinha e terá ainda posses económicas e não estará assim em tão má situação como pretendeu fazer crer).

44.º

Alicerça o A. a alegada obrigação de o indemnizar, por parte da Recorrente, no instituto da responsabilidade civil extracontratual. Contudo, falecem todos os pressupostos do referido instituto, mormente, a existência de facto ilícito praticado com dolo ou mera culpa, a violação ilícita do direito de outrem, a existência de dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

45.º

Nunca a Recorrente poderá ficar adstrita ao pagamento de qualquer “quantum” por via deste instituto ou de qualquer outro, uma vez que todos valores monetários ou bens que acabaram por integrar o património pessoal da Recorrente tiveram, na sua génese, o carácter vincadamente sinalagmático do relacionamento havido entre ambos, tal como consta do Processo de inquérito nº 739/11.5TACNT que correu termos pelos Serviços do Ministério Publico de Cantanhede e que acabou por ser arquivado.

46.º

Poderá constituir a posição do A. um verdadeiro abuso do direito.

47.º

No caso dos autos, verifica-se o seguinte: a existência de um comportamento anterior do A. (o factum proprium) que fundou uma situação objectiva de confiança na Recorrente (de boa fé), em contradição com uma conduta actual imputável ao A. de grande, clara e evidente injustiça. Em resumo, é inadmissível e, sem dúvida, contrária à boa fé a conduta por ele assumida, na exacta medida em que traiu a confiança gerada na Recorrente pelo seu comportamento anterior.

Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o Mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deve a douta sentença ser revogada, substituindo-a por outra onde se considerem como não provados os factos ínsitos nos pontos 4) a 11), 13) a 16) e 18) a 20) da factualidade dada como provada, e como provados os pontos 12), 13) e 14) da matéria de facto não provada, absolvendo-se, assim, a R. do pedido, e assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

Contra-alegando, o autor, pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em a prova ter sido bem apreciada e aplicada a lei em conformidade.

           

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos itens 4.º a 11.º, 13.º a 16.º e 18.º a 20.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados e itens 12.º, 13.º e 14.º, dos factos dados como não provados, que devem passar a considerar-se como provados;

B. Se existe contradição entre o que consta dos itens 3.º e 12.º dos factos não provados e o item 11.º dos factos provados;

C. Se a sentença recorrida padece de excesso de pronúncia, ao analisar a questão sub judice, também, à luz da responsabilidade civil contratual e do enriquecimento sem causa;

D. Se não se verificam os pressupostos que façam incorrer a ré em responsabilidade civil extra contratual e consequente obrigação de indemnizar o autor, o que acarreta a improcedência da acção e;

E. Se o autor age em abuso do direito.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1 – O A. nasceu em 20.3.1927, sendo viúvo, vivia sozinho em x(...) , tendo conhecido a Ré em 2010, através da irmã desta que prestava serviços de limpeza na habitação do A.

[doc. de fls. 265 relativo à data de nascimento do A.]

2 – A Ré dedicava-se à prostituição, sendo casada e mãe de dois filhos menores.

3 – Em outubro de 2010, produto das suas poupanças, o A. detinha na sua conta bancária no Banco.... a quantia de € 353.104, 07.

[Doc. de fls. 16 relativo ao aforro do A. no mencionado Banco]

4 – Sabendo que o A. vivia sozinho, a Ré começou a visitá-lo em x(...) , tendo ganho o seu afeto e confiança, com ele mantendo relações íntimas, sabendo que o mesmo, além de sozinho, se encontrava emocionalmente carente.

5 – Em dia não apurado do mês de outubro de 2010, quando ainda vivia em x(...) , o A. entregou à Ré a quantia de € 10.000, 00, que a Ré lhe pediu, invocando a mesma que era para pagar uma dívida e que seria presa se a não liquidasse, o que o A. fez por pensar ser mútuo o afeto que por ela nutria.

[Doc. de fls. 17, tendo a Ré admitido o recebimento desta quantia, afirmando, contudo, que este valor era para pagar favores sexuais – art. 19.º de fls. 116.]

6 – A Ré propôs, depois, ao A. que viesse habitar com ela, marido e filhos, em y(...), dizendo-lhe que dele cuidaria, tratando-lhe da alimentação, saúde e higiene, e continuando a manter com ele relacionamento íntimo.

7 – Em 25 de outubro de 2010, a Ré pediu ao A. que efetuasse testamento, instituindo-a herdeira, ao que este acedeu.

[Doc. de fls. 33, testamento.]

8 – Dois dias depois, a 27.10.2010, a Ré pediu ao A. que lhe outorgasse procuração, o que este fez pelo doc. de fls. 18, datado de 27.10.2010, conferindo-lhe “os mais amplos poderes para em nome dele, Mandante, movimentar todas as suas contas abertas junto do Banco..., proceder a levantamentos e depósitos, à ordem ou não, assinando os correspondentes recibos ou cheques” e, ainda, “os poderes necessários para levantar a correspondência expedida em seu nome, registada ou não, junto dos CTT, bem como assinar avisos de recepção”, bem como “os poderes necessários para intervir junto de qualquer entidade, nomeadamente EDP, Correios de Portugal e ou Serviços Municipalizados, celebrar e assinar…”.

[Doc. de fls. 18.]

9 – Posteriormente, encontrando-se o A. a viver com a Ré, marido e filhos desta, invocando que a Segurança Social lhe retiraria os filhos menores, fato que sabia ser falso, a Ré convenceu o A. de que este necessitava de comprar uma casa onde todos vivessem.

10 – Convencido de que assim era, o A. e a Ré procuraram uma casa para adquirir, tendo o A., para o efeito, a 3.11.2010, celebrado promessa de compra com os vendedores, conforme doc. de fls. 172 e 173, relativo a uma habitação tipo T5, com garagem e logradouro, sita em w(...), com o art. (...) e descrição predial (...) , pelo preço de € 170.000,00, tendo o A. pago de imediato, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 150.000, 00.

[Doc. de fls. 172 e 173 – contrato de promessa, e fls. 25, transferência do montante de € 150.000, 00, da conta do A. para o vendedor, I... .]

11 – No dia da escritura, celebrada a 10.11.2010, interveio como compradora a aqui Ré, não tendo o A. participado no ato, tendo sido deixado por esta no exterior da sala onde se realizou a escritura, tendo o A. subscrito o documento de fls. 467, onde se fez consignar que cedida à Ré a sua posição contratual adquirida no referido contrato de promessa.

[Doc. de fls. 21 e confissão pela Ré do fato vertido no art. 18.º de fls. 5, conforme art. 1.º de fls. 115. Doc. de fls. 467 – declaração da cessão da posição contratual.]

12 - Para pagamento da restante quantia da compra da casa foi a 1.ª Ré que efetuou levantamentos da conta do A. e os entregou ao comprador.

[Fato alegado pelo A., a fls. 5, art. 18, e aceite pela Ré no art. 1.º de fls. 115.]

13 – O A. passou a habitar nessa casa com a Ré, marido desta e filhos até 28.2.2011, convencido de que a mesma casa lhe pertencia e estava em seu nome.

14 – A Ré não prestou ao A., pelo menos, os cuidados de alimentação que lhe prometeu.

[Como veremos adiante, o pequeno-almoço era tomado no café, dando a Ré ao A. 5 euros matinais para que passasse o dia naquele espaço, queixando-se o A. de que, como outro idoso que frequentava a casa da Ré e que a terá também instituído como herdeira, às noite passavam ambos privação.]

15 – A 28.2.2011, a Ré agrediu fisicamente o A. que, por isso, saiu de casa, conforme sentença criminal de fls. 340 e ss.

16 – Veio, depois, o A. a saber que a casa não se encontrava em seu nome, pelo que, a 21.3.2011, revogou o testamento efetuado.

[Doc. de fls. 36.]

17 – A 28.3.2011, a Ré e marido prometeram vender o imóvel referido em 11 pelo preço de € 170.000, 00, negócio que concretizaram por meio de escritura de venda de 17.6.2011.

[Doc. de fls. 134 e 135 – promessa de venda; doc. de fls. 27 – compra e venda.]

18 – No período compreendido entre 11.10.2010 e 11.11.2010, a Ré retirou ainda da conta do A. os seguintes valores que transferiu para si ou para outrem em seu proveito:

a) € 20.000, 00, em 11.10.2010;

b) € 29.000, 00, em 28.10.2010;

c) € 4.500, 00, em 29.10.2010;

d) € 90.000, 00, em 2.11.2010;

e) € 11.550, 00, em 6.11.2010;

f) € 2.100, 00, em 8.11.2010;

g) € 18.000, em 10.11.2010;

h) € 5.000, 00, em 11.11.2010.

[Estas transferências estão documentadas nos documentos de fls. 43 a 45, sendo que o de valor de 20.000, se encontra a fls. 43, para conta cujos algarismos finais são 673 e que é a mesma conta para a qual o A. transferiu os 10, 000, de fls. 17 que a Ré aceita terem sido para si. Do mesmo modo, os 29.000, de fls.44, os 4.500 de fls. 44, os 18.000, de fls. 45, os 90.000, de fls. 41 dos autos apensos. Os 11.550, de fls. 41 dos autos apensos, os 2.100, de fls. 42 dos autos apensos e os 5.000 de fls. 42 dos autos apensos, embora transferidos para contas distintas cujos titulares se ignoram, a verdade é que ocorreram numa época em que a Ré já controlava o A. e dominava as suas contas bancárias, detendo já procuração do A. outorgada nos últimos dias do mês anterior a estes movimentos, pelo que se considera indubitável que estas transferências tenham sido efetuadas em proveito da Ré.]

19 – Durante o tempo em que o A. viveu com a Ré, esta detinha todos os cartões da conta do A., não tendo este acesso à sua conta, e sendo a Ré quem lhe dava dinheiro para os gastos diários daquele.

20 – Quando, a 28.2.2011, deixou a casa onde vivia com a Ré, marido e filhos daquela, o A. não tinha acesso ao seu dinheiro para arrendar um quarto numa pensão, tendo sido auxiliado por terceiras pessoas, mercê do que sentiu marginalizado e humilhado.

[Dos documentos bancários juntos aos autos não resulta que o A. não tivesse, então, dinheiro até porque, como ele próprio referiu no seu depoimento, dispõe de uma pensão mensal, mas o certo é que, conforme resultou dos depoimentos em audiência, em concreto de F... e G... , cuja razão de ciência se explica adiante, a Ré detinha a documentação do A. e seus cartões bancários o que, no imediato e após a agressão, o impediu de aceder aos fundos bancários, nomeadamente para se alojar. O movimento feito pelo punho do A. e que se encontra a fls. 123 não afasta esta motivação, posto que se verifica ter ocorrido no próprio dia da escritura de compra da casa, numa altura em que, como referem as testemunhas que intervieram no ato, o A. foi ao Banco, mas sempre com a Ré, sendo que o controlo das contas passou a ser efetivo pela Ré, já herdeira do A. e já dona de património proveniente daquele, detendo procuração do A. desde o dia 27 do mês anterior.]

Matéria de fato não provada

De relevante para a decisão final não logrou provar-se qualquer outra factualidade.

1 - Designadamente não se demonstrou que o A. tenha emprestado à Ré a quantia de € 10.000, 00, referida em 5, ou qualquer outra quantia, para que ela lha (s) devolvesse.

[Conforme se referiu supra, a quantia foi pedida pela Ré que alegou ter multas para pagar e que, caso contrário, seria presa, no que o A. acreditou dando-lhe o dinheiro por dela gostar, achando ser mútuo o afeto.]

2 - O A. desconhecia o alcance real da procuração de fls. 18.

[Não se demonstrou tal desconhecimento por parte do A.]

3 - O A. foi impedido pela Ré e Notário de entrar no local onde se realizou a escritura de 10.11.2010.

[O impedimento físico pela Ré ou Notário não foi demonstrado, sendo certo ter-se verificado que a porta foi fechada, apercebendo-se disso o A. que aguardou do lado de fora, sem forçar a entrada, até porque, então, já a Ré controlava as suas contas e era sua procuradora.]

4 - O A. revogou a procuração outorgada à Ré.

[Não foi apresentada prova deste fato.]

5 - O A. teve períodos de insónia.

[Esta consequência nos períodos de sono do A. não foi invocada em audiência.]

6 - O A. estava informado pela irmã da Ré de que esta era prostituta.

[Não foi demonstrada esta circunstância que o A. negou no seu depoimento.}]

7 - O A. disse à Ré que a compensaria por lhe satisfazer os instintos libidinosos.

[Circunstância não demonstrada, resultando do cômputo dos fatos e respetiva motivação que, vivendo sozinho e sendo idoso, o A. sentiu poder contar com a Ré para de si tomar conta, pelo que as despesas da casa e outras seriam por si suportadas no pressuposto de ter na Ré uma pessoa que tomaria conta de si e lhe daria afeto.]

8 - O A. solicitou à Ré que deixassem a casa de y(...) e fossem viver para outro local.

[Como já mencionado, a iniciativa foi da Ré sob pretexto falso relativo aos seus filhos.]

9 - Os € 10.000, 00, foram entregues à Ré para pagamento pelos serviços de acompanhamento.

[Ficou mencionada já a razão subjacente à entrega dos € 10.000, 00, e que não é a invocadas pela Ré.]

10 - O A. instituiu herdeira a Ré para fidelizar os serviços da Ré.

[O que resultou demonstrado foi o que já supra se descreveu em 7 dos fatos não apurados, constituindo a instituição da Ré como herdeira uma das formas pelas quais pessoas idosas e sózinhas pretendem assegurar que terceiros que não são sua família de se cuidem no momento de fragilidade correspondente aos últimos tempos de vida.]

12 - O A. quis dar a casa à Ré referindo-lhe que a queria agraciar com a compra da casa em nome dela, tendo sido o A. que, quando marcada a escritura pública, revelou que a compra deveria ser titulada pela Ré, tendo, de motu propriu, decidido não assistir à leitura da escritura.

[Fato já infirmado como anteriormente referido.]

13 - Os levantamentos e transferências efetuadas pela Ré da conta do A. foram feitos a pedido e com ordem expressa do A.

[Fato não demonstrado conforme já mencionado antes, afigurando-se do cômputo geral que o controlo que a Ré obteve da vida do A. em pouco mais de um mês e o contexto da sua atuação é mais compatível com a ausência de consentimento da pessoa – o A. – que dela passou a depender.]

14 - O A. quis presentear a Ré com a compra da casa, móveis, eletrodomésticos, veículos e dinheiro.

[Fato já antes infirmado pelas razões apontadas e que se prendem com a situação de vulnerabilidade do A.]

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos itens 4.º a 11.º, 13.º a 16.º e 18.º a 20.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados e itens 12.º, 13.º e 14.º, dos factos dados como não provados, que devem passar a considerar-se como provados.

Alega a ré, ora recorrente, que o Tribunal incorreu em erro de julgamento ao dar como provados e não provados os factos ora referidos, devendo, na sua óptica, os mesmos serem dados como não provados e provados, respectivamente, estribando-se, para tal nos depoimentos prestados pelas testemunhas F... , G... , C... , H... , I... , J... e L... , bem como no depoimento prestado pelo autor, A... .

Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que, em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, a factualidade posta em causa pelos ora recorrentes, nas respectivas alegações de recurso.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos itens 4.º a 11.º, 13.º a 16.º e 18.º a 20.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados e itens 12.º, 13.º e 14.º, dos factos dados como não provados, que devem passar a considerar-se como provados.

Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tal factualidade:

4 – Sabendo que o A. vivia sozinho, a Ré começou a visitá-lo em x(...) , tendo ganho o seu afeto e confiança, com ele mantendo relações íntimas, sabendo que o mesmo, além de sozinho, se encontrava emocionalmente carente.

5 – Em dia não apurado do mês de outubro de 2010, quando ainda vivia em x(...) , o A. entregou à Ré a quantia de € 10.000, 00, que a Ré lhe pediu, invocando a mesma que era para pagar uma dívida e que seria presa se a não liquidasse, o que o A. fez por pensar ser mútuo o afeto que por ela nutria.

[Doc. de fls. 17, tendo a Ré admitido o recebimento desta quantia, afirmando, contudo, que este valor era para pagar favores sexuais – art. 19.º de fls. 116.]

6 – A Ré propôs, depois, ao A. que viesse habitar com ela, marido e filhos, em y(...), dizendo-lhe que dele cuidaria, tratando-lhe da alimentação, saúde e higiene, e continuando a manter com ele relacionamento íntimo.

7 – Em 25 de outubro de 2010, a Ré pediu ao A. que efetuasse testamento, instituindo-a herdeira, ao que este acedeu.

[Doc. de fls. 33, testamento.]

8 – Dois dias depois, a 27.10.2010, a Ré pediu ao A. que lhe outorgasse procuração, o que este fez pelo doc. de fls. 18, datado de 27.10.2010, conferindo-lhe “os mais amplos poderes para em nome dele, Mandante, movimentar todas as suas contas abertas junto do Banco..., proceder a levantamentos e depósitos, à ordem ou não, assinando os correspondentes recibos ou cheques” e, ainda, “os poderes necessários para levantar a correspondência expedida em seu nome, registada ou não, junto dos CTT, bem como assinar avisos de recepção”, bem como “os poderes necessários para intervir junto de qualquer entidade, nomeadamente EDP, Correios de Portugal e ou Serviços Municipalizados, celebrar e assinar…”.

[Doc. de fls. 18.]

9 – Posteriormente, encontrando-se o A. a viver com a Ré, marido e filhos desta, invocando que a Segurança Social lhe retiraria os filhos menores, fato que sabia ser falso, a Ré convenceu o A. de que este necessitava de comprar uma casa onde todos vivessem.

10 – Convencido de que assim era, o A. e a Ré procuraram uma casa para adquirir, tendo o A., para o efeito, a 3.11.2010, celebrado promessa de compra com os vendedores, conforme doc. de fls. 172 e 173, relativo a uma habitação tipo T5, com garagem e logradouro, sita em w(...), com o art. (...) e descrição predial (...) , pelo preço de € 170.000,00, tendo o A. pago de imediato, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 150.000, 00.

[Doc. de fls. 172 e 173 – contrato de promessa, e fls. 25, transferência do montante de € 150.000, 00, da conta do A. para o vendedor, I... .]

11 – No dia da escritura, celebrada a 10.11.2010, interveio como compradora a aqui Ré, não tendo o A. participado no ato, tendo sido deixado por esta no exterior da sala onde se realizou a escritura, tendo o A. subscrito o documento de fls. 467, onde se fez consignar que cedida à Ré a sua posição contratual adquirida no referido contrato de promessa.

[Doc. de fls. 21 e confissão pela Ré do fato vertido no art. 18.º de fls. 5, conforme art. 1.º de fls. 115. Doc. de fls. 467 – declaração da cessão da posição contratual.]

13 – O A. passou a habitar nessa casa com a Ré, marido desta e filhos até 28.2.2011, convencido de que a mesma casa lhe pertencia e estava em seu nome.

14 – A Ré não prestou ao A., pelo menos, os cuidados de alimentação que lhe prometeu.

[Como veremos adiante, o pequeno-almoço era tomado no café, dando a Ré ao A. 5 euros matinais para que passasse o dia naquele espaço, queixando-se o A. de que, como outro idoso que frequentava a casa da Ré e que a terá também instituído como herdeira, às noite passavam ambos privação.]

15 – A 28.2.2011, a Ré agrediu fisicamente o A. que, por isso, saiu de casa, conforme sentença criminal de fls. 340 e ss.

16 – Veio, depois, o A. a saber que a casa não se encontrava em seu nome, pelo que, a 21.3.2011, revogou o testamento efetuado.

[Doc. de fls. 36.]

17 – A 28.3.2011, a Ré e marido prometeram vender o imóvel referido em 11 pelo preço de €

18 – No período compreendido entre 11.10.2010 e 11.11.2010, a Ré retirou ainda da conta do A. os seguintes valores que transferiu para si ou para outrem em seu proveito:

a) € 20.000, 00, em 11.10.2010;

b) € 29.000, 00, em 28.10.2010;

c) € 4.500, 00, em 29.10.2010;

d) € 90.000, 00, em 2.11.2010;

e) € 11.550, 00, em 6.11.2010;

f) € 2.100, 00, em 8.11.2010;

g) € 18.000, em 10.11.2010;

h) € 5.000, 00, em 11.11.2010.

[Estas transferências estão documentadas nos documentos de fls. 43 a 45, sendo que o de valor de 20.000, se encontra a fls. 43, para conta cujos algarismos finais são 673 e que é a mesma conta para a qual o A. transferiu os 10, 000, de fls. 17 que a Ré aceita terem sido para si. Do mesmo modo, os 29.000, de fls.44, os 4.500 de fls. 44, os 18.000, de fls. 45, os 90.000, de fls. 41 dos autos apensos. Os 11.550, de fls. 41 dos autos apensos, os 2.100, de fls. 42 dos autos apensos e os 5.000 de fls. 42 dos autos apensos, embora transferidos para contas distintas cujos titulares se ignoram, a verdade é que ocorreram numa época em que a Ré já controlava o A. e dominava as suas contas bancárias, detendo já procuração do A. outorgada nos últimos dias do mês anterior a estes movimentos, pelo que se considera indubitável que estas transferências tenham sido efetuadas em proveito da Ré.]

19 – Durante o tempo em que o A. viveu com a Ré, esta detinha todos os cartões da conta do A., não tendo este acesso à sua conta, e sendo a Ré quem lhe dava dinheiro para os gastos diários daquele.

20 – Quando, a 28.2.2011, deixou a casa onde vivia com a Ré, marido e filhos daquela, o A. não tinha acesso ao seu dinheiro para arrendar um quarto numa pensão, tendo sido auxiliado por terceiras pessoas, mercê do que sentiu marginalizado e humilhado.

[Dos documentos bancários juntos aos autos não resulta que o A. não tivesse, então, dinheiro até porque, como ele próprio referiu no seu depoimento, dispõe de uma pensão mensal, mas o certo é que, conforme resultou dos depoimentos em audiência, em concreto de F... e G... , cuja razão de ciência se explica adiante, a Ré detinha a documentação do A. e seus cartões bancários o que, no imediato e após a agressão, o impediu de aceder aos fundos bancários, nomeadamente para se alojar. O movimento feito pelo punho do A. e que se encontra a fls. 123 não afasta esta motivação, posto que se verifica ter ocorrido no próprio dia da escritura de compra da casa, numa altura em que, como referem as testemunhas que intervieram no ato, o A. foi ao Banco, mas sempre com a Ré, sendo que o controlo das contas passou a ser efetivo pela Ré, já herdeira do A. e já dona de património proveniente daquele, detendo procuração do A. desde o dia 27 do mês anterior.]

Matéria de fato não provada

De relevante para a decisão final não logrou provar-se qualquer outra factualidade.

12 - O A. quis dar a casa à Ré referindo-lhe que a queria agraciar com a compra da casa em nome dela, tendo sido o A. que, quando marcada a escritura pública, revelou que a compra deveria ser titulada pela Ré, tendo, de motu propriu, decidido não assistir à leitura da escritura.

[Fato já infirmado como anteriormente referido.]

13 - Os levantamentos e transferências efetuadas pela Ré da conta do A. foram feitos a pedido e com ordem expressa do A.

[Fato não demonstrado conforme já mencionado antes, afigurando-se do cômputo geral que o controlo que a Ré obteve da vida do A. em pouco mais de um mês e o contexto da sua atuação é mais compatível com a ausência de consentimento da pessoa – o A. – que dela passou a depender.]

14 - O A. quis presentear a Ré com a compra da casa, móveis, eletrodomésticos, veículos e dinheiro.”.

[Fato já antes infirmado pelas razões apontadas e que se prendem com a situação de vulnerabilidade do A.]

Como acima já referido e consta da sentença recorrida, a matéria de facto em causa foi considerada como não provada, conforme ora se transcreveu.

É a seguinte a respectiva motivação (cf. fl.s 480 v.º a 482 v.º):

“Para além do que ficou exposto, os fatos acima descritos ficaram também demonstrados pela conjugação dos documentos acima já mencionados a respeito de cada circunstância casuística que demonstram com os depoimentos testemunhais que os coonestaram.

Assim, relevaram-se credíveis, conhecendo as circunstâncias pessoais e circunstanciais de A. e Ré, as testemunhas F... e G... . Estas testemunhas, equidistantes relativamente a ambas as partes, dedicam-se, de igual modo, à prostituição e conviveram com o A., tendo-se apercebido da razão pela qual dele se aproximou a Ré e o que foi sendo o contexto de aproveitamento desta da situação patrimonial desafogada daquele, até culminar na agressão física que determinou o final da convivência. Estes depoimentos, apesar do natural mal-estar manifestado quanto à Ré cujo comportamento censuram, revelaram-se objetivos, informados e credíveis.

F... sabia que o A. vivia em x(...) e tinha enviuvado, tendo recorrido aos serviços de empregada doméstica de O.... , irmã da Ré. Esta O.... disse à Ré que o A. ía receber muito dinheiro (o A. aludiu a negócios de venda de imóveis), tendo a Ré decidido – no dizer da testemunha – aproveitar-se de uma pessoa só e velha. De modo que, mesmo antes de o A. ter vindo viver para a habitação da Ré, já esta comprara um BMW para cujo pagamento conseguiu que o A. lhe desse € 10.000, 00. Sabia que a Ré tinha um cartão bancário do A. e acesso total ao dinheiro dele e que este, depois que passou a viver com a Ré, nenhum acesso tinha às suas contas bancárias. Todas as despesas da casa, onde viviam também o marido da Ré e os filhos do casal, eram suportadas com dinheiro do A. Disse ainda que, “quando se apoderou do dinheiro do A.”, a Ré fê-lo saber a “toda a gente” no meio onde se moviam.

A testemunha revelou saber desta situação por observar o comportamento da Ré quando todas se encontravam no local onde exerciam a predita atividade, ouvindo os comentários que fazia. Acrescentou ter tido conhecimento de mais pormenores pela amiga comum de ambas, Q...., pessoa entretanto falecida e já inquirida no âmbito do processo criminal [Cfr. fls. 70 dos autos cuja cópia se acha apensa. Nesta parte, considerou-se o depoimento indireto, atento o falecimento da testemunha em causa, a qual havia depôs anteriormente em processo criminal de modo coincidente com o depoimento de F... , à semelhança do que sucede com a admissão de tais testemunhos em processo penal (art. 129.º, n.º 1, CPP)]. Nesta sequência, sabia ainda a testemunha F... ter a Ré prometido ao A. que com ele casaria, depois de se divorciar do marido, e ter-lhe ainda pedido que comprasse uma casa para todos viverem pois, caso contrário, “perderia os filhos”, o que não era verdade, pelo que, “iludido”, o A. “deu-lhe tudo!”. Mais tarde, quando foi agredido, o A. pediu ajuda a esta testemunha, em casa de quem se abrigou nos três dias seguintes àquele episódio, até ser acolhido pelas pessoas com quem se encontra a viver até à atualidade.

Por sua vez, a testemunha G... conheceu o A. em casa da Ré porque, apesar de com aquela exercer atividade de prostituição, foi contratada pela Ré para fazer lide doméstica na casa desta quando o A. aí passou a viver, o que aconteceu durante dois meses (a presença desta empregada foi confirmada pela testemunha J... que fez trabalhos de construção civil na nova moradia que foi adquirida, bem como pela testemunha M... , a que se aludirá infa). Disse, pois, que, pela manhã, quando levava os filhos à escola, a Ré levava o A. a um estabelecimento de café local, onde o mesmo passava os dias inteiros, dando-lhe cinco euros para comer e pagar o café. O A. disse-lhe, na altura, que ia comprar uma casa onde viveria com a Ré e que esta tomaria conta dele até à sua morte. Na ocasião, presenciou a Ré dizer ao A. que a casa era necessária para que a Segurança Social não lhe tirasse os filhos, o que sabia não ser verdade. Quando foi comprar a casa, a Ré regressou repetindo “meio milhão já cá canta”. Mais referiu que, além do A., também estava em casa da Ré um outro idoso, de nome R... , pessoa acerca da qual veio a referir-se a testemunha K... a que faremos menção de seguida. A testemunha G... verificou que o A. tinha medo de vir a ficar sozinho, por não ter família, fazendo, por isso, o que a Ré mandava. Esta testemunha assistiu à agressão que motivou a saída do A. da casa onde vivia com a Ré e família desta.

A testemunha K... , sobrinha do mencionado R... , não conhecia a Ré. Porém, quando aquele seu tio faleceu, surgiu um testamento dele instituindo a Ré como sua herdeira, surpreendendo a família daquele.

O Tribunal atendeu ao depoimento prestado pelo A. que, apesar das dificuldades inerentes à idade, esclareceu de forma clara o contexto do seu relacionamento com a Ré. Começou por explicar tê-la conhecido através da irmã dela que trabalhou durante cinco anos prestando serviço de limpeza em casa do A. que nela confiava. Pensou, por isso, poder também confiar na Ré, tratando-a como família, assim como à família desta, ignorando inicialmente a atividade a que se dedicava, situação de que se apercebeu quando passou a viver com ela, afirmando-lhe a mesma que se divorciaria para ficar consigo, no que quis acreditar por gostar dela e por se encontrar só. A Ré deu-lhe a entender que a relação entre ambos era amorosa e, por isso, quando ela lhe pedia, dava-lhe dinheiro, como sucedeu com os € 10.000, 00, que a mesma solicitou sob pretexto de ter multas para pagar, senão ia para a cadeia, e com a compra da casa, que ocorreu por ela afirmar que lhe tirariam os filhos, embora a casa fosse para ser para si, A., que não interveio na escritura porque, no notário, lhe fecharam a porta, apesar de ter sido o promitente-comprador poucos dias antes. Recordava-se de, além de si, também frequentar a casa da Ré um idoso de nome R... e de ambos passarem fome ao jantar. A Ré dominava as suas contas bancárias, dando-lhe cinco euros pela manhã para ir para o café.

A presença dos dois idosos em casa da Ré foi também confirmada pelo testemunho de M... , que ajudou com a colocação de móveis na casa.

A testemunha I... , vendedor da casa sita em w(...), recordava-se de, por ocasião da escritura, ter sido contatado pela imobiliária que intermediou no negócio, expondo que a mesma seria outorgada, do lado do comprador, por pessoa diferente do promitente-comprador, tendo exigido a cessão de posição contratual para não ter problemas, o que foi alvo de reconhecimento notarial, parecendo-lhe que o A. sabia o que estava assinar.

Não obstante a equidistância deste depoimento, não se admitiu como crível que o A. quisesse ceder a posição de comprador à Ré ou soubesse que a casa seria adquirida para ficar desta. É que, como se expôs, apesar de ser pessoa só e idosa, facilmente influenciável, o A. conhecia a sua posição de fragilidade, tanto que interveio na promessa como comprador. Desde tal promessa até à escritura definitiva, escassos dias, não se demonstrou ter ocorrido qualquer fato que motivasse ou determinasse o A. a alterar a sua posição inicial. Ao invés, toda a detenção pela Ré do controlo das contas bancárias e demais vida do A. e a circunstância de este não ter estado presente no ato da escritura em si, como seria natural que sucedesse se pretendesse agraciá-la, como esta alega, demonstram a intenção desta de se aproveitar da situação patrimonial do A. sem a correlativa prestação do esperado cuidado que o A. visava quando com ela passou a viver. Não só esse cuidado lhe não foi prestado, como resulta do fato de ser remetido diariamente para o café com apenas 5 euros, passando fome à noite, como o culminar da convivência plural foi de agressão física.

Demonstrativo da situação de fragilidade, até mental, do A., foi o testemunho de C... , sócio da empresa imobiliária que mediou o negócio, que revelou que A. e Ré se apresentaram como casal, procurando uma casa para venda na zona de (...) , a quem o A. veio a efetuar revelações que demonstram exatamente a situação de fragilidade, carência e vulnerabilidade em que se encontrava, designadamente o fato de partilhar a Ré com terceiro e referir-se de forma ingénua a determinadas intimidades com ela mantidas.

A testemunha H... , sócio daquele, foi quem acompanhou a Ré ao Notário aquando da compra da casa, referindo que o A. também foi, mas permaneceu do lado de fora, ninguém o tendo impedido de entrar, mas ignorando a razão pela qual o A. ali estaria se não era para participar no ato, uma vez que tinha sido promissário, tendo-se apercebido que o preço foi pago com dinheiro do A. porque este e a Ré trouxeram ambos o documento da transferência bancária que o demonstrava. Ter-se-ão apresentado como casal inicialmente, apesar de achar que Ré aparenta idade para poder ser neta do A.

A testemunha N... , amigo da Ré, sabia a forma como A. e Ré se conheceram, tendo-o visto a viver em casa dela, onde também viveu quando esteve acidentado. Afirmou ter o A. querido oferecer o valor da casa à Ré por com ela manter relacionamento sexual, sabendo que a Ré lhe disse que dele tomaria conta até à morte.

Pelo já exposto quanto à fragilidade e dependência do A., pelos valores envolvidos e pela situação dúbia criada pela Ré nos relacionamentos que foi mantendo, não se considera crível ter o A. querido doar-lhe o seu património, menos ainda como remuneração de qualquer favor de natureza intima.]”.

Vejamos, então, se dos depoimentos invocados pela recorrente (bem como dos demais produzidos em audiência), e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supras mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.

Ora, ouvido, na íntegra, o depoimento de parte prestado pelo autor A... , o mesmo reiterou o por si já alegado na p.i., designadamente que a ré, através da irmã, lhe referiu precisar de 10.000,00 €, para não ser presa e ficar sem casa, o que veio a saber não ser verdade e ainda que tinha que ter uma casa, sob pena de a segurança social lhe retirar os filhos, o que, igualmente, mais tarde, veio a saber ser falso.

Especificou as condições em que lhe outorgou a procuração e que ela passou a “tomar conta do dinheiro” e que fez tudo por pensar que “era pessoa na qual se podia confiar”.

Afirmou que “a casa era para mim, foi sempre coisa para mim” e que não se apercebeu que não foi para ele na escritura “porque me fecharam a porta, não me deixaram entrar”. Reiterando que nunca foi sua intenção “dar a casa” à ré.

Saiu de casa por causa da agressão de que foi vítima por parte da ré.

Ainda relativamente ao dinheiro, disse “ela é que ficou com o dinheiro. Ela tinha o “coiso” na mão. Tinha tudo na mão”.

A ré “dizia que se ia divorciar do marido e eu ficava lá com eles”.

Referiu que a ré ia ter com ele a x(...) “ter relações comigo … estava sozinho, caí na esparrela” e mais tarde, ela convenceu-o a vir para (...) .

Mais disse que assinou o testamento porque “estava maluco com ela”.

Reiterou que a B... (ré) lhe disse que tinha que ter casa por causa da segurança social não lhe tirar os filhos e que se divorciava do marido. Mas que a casa que compraram não era para ela. As obras feitas na casa, também foi ele que as pagou.

A testemunha F... , disse que era colega da ré na estrada e anda de mal com ela e que conheceu o autor quando este vivia com a ré.

Referiu que a ré o conheceu porque a irmã efectuava trabalhos de limpeza em casa do autor, que a informou que era pessoa “que ele ia receber muito dinheiro e ela começou a frequentar a casa do Sr. A... através da irmã. Então até que apoderou-se do dinheiro todo”.

Disse que o modus operandi da ré é “começar a ganhar confiança e depois vai”.

Referiu, ainda, que “antes de o Sr. A... vir para cá ela tinha comprado uma BM e foi lá um fim de semana e quando voltou já trazia o dinheiro da BM, que o Sr. A... lhe deu. Logo depois disso, passado um tempo, trouxe o Sr. A... ”.

Mais disse que a ré “dizia que deixava o marido para ficar com o Sr. A... ”.

Referiu que a ré efectuou várias transferências de dinheiro da conta do autor “porque ela tinha o cartão dele, tinha acesso ao dinheiro dele. Ela é que mexia no dinheiro do Sr. A... , não era ele. Ela é que fazia compras e tudo. Nas compras não era o Sr. A... que pagava, era ela”.

Reiterou que “ela é que tinha o dinheiro todo do Sr. A... , o Sr. A... não tinha dinheiro nenhum”.

E que a ré dizia ao autor “que casaria com ele depois de deixar o marido”.

Acerca do modo como soube que a ré se apropriou do dinheiro do autor, disse que a ré “comentava com todo o mundo. Ela quando se apoderou do dinheiro fez questão de todo o mundo saber. Chegou-me a dizer a mim uma vez. Eu lembro-me, que ela estava a comer no Intermarché”.

Relativamente à compra da casa em (...) , referiu que a ré disse ao autor que precisava de casa para não lhe tirarem os filhos “Foi por isso que ela comprou a casa, o Sr. A... lhe comprou a casa, porque ela dizia que se não tinha casa perdia os filhos. Mas ela tinha casa, morava em y(...)”.

“Ela prometia que deixava o marido para ficar com ele. Ainda disse que perdia os filhos. Ele iludido dava-lhe tudo. Ele iludido deu-lhe tudo”.

Questionada acerca da questão de saber se as quantias dadas pelo autor à ré podiam ser vista como pagamento pelos serviços de índole sexual, respondeu que “é capaz de ser bem pago, não é? Mas não esses valores. Nunca na vida. Isso então não havia mulheres na estrada”.

Disse, que os preços cobrados “na estada eram 15/20 euros e em hotel, uma hora, 100 euros”.

Reiterou que a ré quando ia a x(...) “ia para conseguir o dinheiro do Sr. A... , tanto que conseguiu. Nós de estrada, quando queremos ganhar a confiança do cliente temos que agradar o cliente. E era o que a B... fazia e já estava”.

Ainda acerca da “generosidade” do autor na “remuneração” e se não aceitavam que lhes dessem mais do que o normal à ré, disse “Não, não recusamos, mas também não acredito no pai natal, que um cliente pague assim tanto dinheiro. Nenhum cliente paga assim tanto dinheiro”.

Pela testemunha G... , foi dito que trabalhava na estrada com a ré e a anterior testemunha e que não fala com a ré. Conheceu o autor em casa da B... , onde prestou serviços de limpeza durante “dois meses e pouco”.

Referiu que o autor veio de x(...) “com a condição de a B... tomar conta dele” mas que ela o ia levar ao café Central, em (...) e ele ficava lá o dia todo, dando-lhe cinco euros.

Disse, que a B... ia passar os fins de semana a x(...) , a casa do autor “até que um dia ela resolveu trazê-lo para cá”.

Quanto à compra da casa, referiu que “Na altura, ela disse ao Sr. A... que precisava de comprar uma casa porque a segurança social estava a pedir uma casa se não que ficava sem os filhos. Isso é mentira porque ela sempre teve uma casa em (....) . Ela falou, comentou e comentou à frente do Sr. A... e eu ouvi”.

“Na altura que ela foi comprar a casa à imobiliária … ela falou aquela expressão de «meio milhão já cá canta», não falou só á saída da imobiliária, como falou muitas vezes no café, na (....) , na (....) . A mim e a uma amiga que já faleceu”.

“Ela falava que tomava conta do Sr. A... , fazia até que tomava para se apoderar daquilo que é dele porque o interesse da B... era apanhar-lhe o que ele tinha, mais nada”.

Relativamente aos preços praticados no local onde exerciam a prostituição, disse “Eu levava um preço, cada uma levava o seu. Eu nunca levava por menos de 30, 40, onde tinham pessoas que me davam mais. Se eu tivesse um cliente que eu conseguisse ter o dinheiro todo que ela conseguiu do Sr. A... , eu nunca tinha passado para o segundo”.

“É impossível essa pessoa pagar em 4 meses esse valor todo”. A B... quis “ter acesso ao dinheiro dele, mais nada”.

Quanto ao acesso/controlo do dinheiro, disse “ela é que tinha tudo. Ele não tinha outro remédio se não aceitar. O dinheiro ela é que levantava a reforma dele, ele não tinha outra opção porque estava nas mão dela”. O autor “nunca ia ao banco sozinho”.

A testemunha K... , disse que é sobrinha do R... (outro idoso que a ré teve em casa) e que referiu que a ré também “apareceu como herdeira do mesmo à sua morte”, tendo-lhe este dito, anos antes que tinha feito um testamento à ora depoente, mas depois apareceu a ré, com um testamento a favor dela e herdou tudo.

Por C... , mediador imobiliário, foi dito que lhe apareceram o autor e a ré “como casal” a fim de comprarem uma casa em (...) e que o autor tinha interesse em viver em (...) . Queriam uma moradia pronta a habitar e mostrou-lhes aquela casa, tendo chegado a acordo para ser feito o negócio, após o que foi feito um contrato promessa, em nome do autor.

No entanto, quando foi para fazer a escritura, apareciam como compradores outras pessoas – a ré e marido, pelo que foi feito o documento de “cessão da posição” do autor para eles, porque o vendedor assim o exigiu.

Já depois da compra soube que foram feitas obras na casa: aquecimento central, móveis de cozinha e infra-estruturas de casas de banho.

Algum tempo depois, a ré vendeu a casa porque queria comprar uma na zona da (....) , porque gostava mais da zona e tinha urgência em comprar a outra casa, vendeu esta.

Por H... , foi dito que é gerente da imobiliária E... , que teve intervenção no negócio em causa e que as conversações para a compra da casa, foram feitas pelos autor e pela ré.

Inicialmente, a casa seria comprada em nome do autor e depois a escritura já não foi feita em nome dele, motivo pelo qual, porque o vendedor o exigiu e a conselho do respectivo Advogado, foi feito um documento a declarar que a compra era a favor da ré e marido.

Manifestou a convicção que, quando foi celebrada a escritura, o autor sabia que a casa era para a ré e que, posteriormente, foram feitos melhoramentos na casa, custeados pelo autor.

Algum tempo depois, a ré “assumiu um compromisso na compra da outra casa sem vender esta e na altura ela precisava de dinheiro para liquidar, para fazer a escritura da outra casa e vendeu com um prejuízo de 10/15 mil euros, fora os impostos e uma dívida que teve que ser paga”.

N... , amigo da ré, referiu que esta ia ter com o autor a x(...) para ter relações sexuais com ele e que o autor “lhe oferecia uma certa quantidade em dinheiro”. E foi o autor que quis vir com a ré para a zona centro.

Relativamente à compra da casa, disse que foi o autor que pagou mas “ deu-a e meteu em nome da D.ª B... . Ele fez mesmo questão que a casa ficasse em nome da D.ª B... ”.

Quando o autor veio, foram primeiro para a y(...) e só depois é que comprou a casa em (...) .

Mais disse que o autor “queria viver” com a ré, para esta tomar conta dele mas depois “ele foi-se embora de livre vontade”.

J... , efectuou os trabalhos de instalação do aquecimento central na casa de (...) , referiu que “quem pagou foi a D.ª B... e que o Sr. A... residia no r/c, onde tinha um quarto. Era bem tratado”.

M... , instalou os móveis de cozinha na mesma casa e de relevante, apenas referiu que “viviam lá duas pessoas idosas e davam-se bem”.

I... , referiu que foi o vendedor da casa de (...) e quando se preparavam para fazer a escritura é que lhe disseram que a mesma ia ser feita em nome da ré, razão pela qual exigiu a “declaração de cedência” para a ré.

Pensa que o autor percebeu o alcance e significado deste documento.

Analisados estes depoimentos e a prova documental acima referida, aquando da transcrição da fundamentação da decisão de facto, proferida em 1.ª instância, pensamos ser de sufragar a conclusão a que se chegou na sentença recorrida.

Está em causa averiguar o modo como a ré se relacionou com o autor e o que aconteceu na sequência de tal relacionamento.

Em face dos depoimentos a que acima se aludiu, bem como da prova documental referida, não vemos razão para alterar a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida.

Dos mesmos resulta que estamos em presença de uma pessoa – o autor – já de avançada idade, viúvo e sozinho e com dinheiro, o que de tudo a ré sabia, por intermédio da irmã, que fazia serviços de limpeza em casa dele, através da qual a ré o conheceu e se iniciou o relacionamento entre ambos.

Por certo não seria, como não foi, difícil, à ré influenciar o comportamento do autor, atento a que, como se referiu, se trata de pessoa idosa e sozinha, através de promessa de relacionamento sexual e dele vir a cuidar e tratar.

Daí que o começasse a visitar em x(...) e, alcançado um certo “grau de confiança”, o convencesse a vir viver para casa da ré e restantes familiares, o que tornou mais acentuado o grau de dependência do autor para com a ré e facilitasse os seus intentos; ou seja, apropriar-se, como se apropriou, das quantias monetárias referidas nos autos, a compra da casa, pagamento de despesas correntes, etc.

Efectivamente, a autora ao dispor da procuração referida no item 8.º dos factos provados e na posse dos cartões da conta do autor, passou a ter todos os meios para dispor, como bem lhe aprouve, das quantias que se achavam depositadas na conta do autor, na sequência do que, efectuou as transferências relatadas no item 18.º.

E nem se objecte – como o faz a recorrente – que, relativamente à transferência da quantia de 18.000,00 €, assim não se pode dar como provado, com o fundamento em que a mesma se encontra titulada por documento assinado pelo autor.

Trata-se do documento junto a fl.s 123, datado de 10 de Novembro de 2010, que se refere a tal transferência.

No entanto, não é pelo facto de existir tal documento que fica afastada a realidade do que ali consta. A ré apoderou-se de tal quantia, sendo, até, irrelevante, que o autor assinasse ou não o documento em causa, uma vez que a transferência em causa foi feita, como assinalado, em 10 de Novembro de 2010 e a mesma já era detentora da procuração a que se alude no item 8.º, desde 27 de Outubro, desse ano.

Ou seja, se o quisesse a ré transferia tal quantia, sem intervenção do autor.

Ainda assim sempre se poderia objectar que não foi a ré que retirou tal quantia da conta do autor, mas que foi este que lha quis dar.

Não partilhamos de tal ideia.

Esta transferência foi feita no descrito quadro do relacionamento existente entre as partes, na sequência do que a ré ganhou ascendente sobre o autor, atenta a situação em que este se encontrava e, efectivamente, com ou sem intervenção do autor, esta podia apoderar-se, como se apoderou, mediante tal transferência, da quantia em causa.

Transferência, esta, como as demais e aquisição da casa e demais bens, que não tem “causa justificativa”, nem se pode justificar pela prestação de serviços de cariz sexuais que a ré diz ter prestado ao autor.

Ainda que assim fosse, atento as quantias em causa, de forma alguma, em condições de normalidade e razoabilidade – atente-se nos preços que as testemunhas F... e G... referiram como os praticados no local onde todas se dedicavam à prostituição – se poderá considerar que estamos perante pagamentos de serviços de índole sexual.

Ninguém em seu perfeito juízo e no quadro de domínio da sua vontade, daria à ré as quantias em causa, por troca/pagamento de serviços sexuais, para mais e sem querermos ser desprimorosos para ninguém, tratando-se, como se trata, de pessoa que prestava tais serviços “à beira da estrada”.

De resto, estamos em crer que nem na designada “prostituição de luxo”, se praticariam tais preços.

Reitera-se que as afirmações que antecedem nada têm que ver a prática da actividade exercida pela ré, nem ao modo como a levava a cabo, mas tão só e apenas a ajuizar das motivações que terão levado o autor a agir como agiu e, neste domínio, consideramos que apenas se pode concluir que o autor agiu “iludido que ela ia ficar com ele”, como o referiu a testemunha F... .

Relativamente à compra da casa (que a ré revendeu pouco tempo depois, por menos do que o preço de aquisição e obras realizadas, mas paga com o dinheiro do autor, pelo que “era tudo lucro”), resulta do depoimento das testemunhas F... e G... , que a ré aludiu à necessidade de a comprar, sob pena de lhe serem retirados os filhos, o que não era verdade, até porque já tinha casa, o que foi determinante na determinação do autor em a comprar.

Ou seja, estamos perante mais uma “manobra” da autora para manipular o autor e convencê-lo a fazer o que queria, em seu benefício, o que só se justifica mediante a situação em que este se encontrava e atento o descrito quadro.

De resto, como se salienta na fundamentação da decisão de facto, na sentença recorrida, se fosse intenção do autor que a mesma ficasse em nome da ré, não se percebe a razão pela qual, uma semana antes da realização da escritura, o contrato promessa de compra e venda fosse assinado pelo autor e a escritura viesse a ser outorgada pela ré (cf. itens 10.º e 11.º dos factos provados), o que motivou que fosse feito o referido documento de “cessão da posição contratual” a favor da ré, em conjugação com o facto de o autor não ter participado na realização da escritura, tendo-o a autora deixado no exterior da sala onde a mesma se realizou.

Nada nos autos justifica, para mais em tão curto espaço de tempo, a mudança da intenção por parte do autor em que a escritura não fosse feita em seu nome, quando tinha sido o promitente comprador e foi ele – isso é pacífico – que pagou o respectivo preço.

Pelo que e face ao exposto, não vemos razões para alterar a matéria de facto em causa.

Consequentemente, nesta parte, improcede o recurso em apreço, mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada e não provada em 1.ª instância.

B. Se existe contradição entre o que consta dos itens 3.º e 12.º dos factos não provados e o item 11.º dos factos provados.

Defende a recorrente que existe a referida contradição, porque o autor não foi impedido de entrar na sala onde foi celebrada a escritura, tendo, ele próprio, decidido não assistir à outorga da mesma.

Desde logo e em primeiro lugar convém salientar que, nesta sede, já não estamos perante a impugnação da matéria dada como assente e não provada – já fixada – mas sim, perante esta, aferir da invocada contradição, por reporte ao que consta dado como provado e não provado nos itens em questão.

Com o devido respeito, uma coisa não exclui a outra, pois que pode dar-se como provado que o autor não participou na outorga da escritura, tendo sido deixado pela ré no exterior da sala onde a mesma se realizou e que não se dê como provado que foi o Notário que o impediu de entrar ou que tenha sido o autor a decidir não entrar.

Como se refere, entre outros, no Acórdão desta Relação de 22/2/2000, in CJ, ano XXV, tomo 1, a pág. 30 “… só há contradição de factos quando estes sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que uns não possam coexistir com os outros”.

Ou, citando Alberto dos Reis, in CPC, Anotado, Vol. IV, 1981, a pág. 553, uma resposta é contraditória com outra quando em ambas se façam afirmações inconciliáveis entre si, de modo a que a veracidade de uma exclua a da outra.

Ora, in casu, como acima referido, os factos constantes em cada uma das respostas em causa não são incompatíveis entre si, não se auto-excluem, pelo que não se verifica a alegada contradição.

Apenas se demonstrou que o autor não entrou na sala, tendo sido deixado no exterior pela ré e nada mais.

Consequentemente, também, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

C. Se a sentença recorrida padece de excesso de pronúncia, ao analisar a questão sub judice, também, à luz da responsabilidade civil contratual e do enriquecimento sem causa.

Alega a recorrente que assim é porque o autor configurou a acção à luz da responsabilidade civil extra-contratual e na sentença recorrida se veio a analisar e decidir a situação sub judice também sob o prisma da responsabilidade civil contratual e do enriquecimento sem causa, face ao que, conclui a ré existir excesso de pronúncia, ao abrigo do princípio do dispositivo.

O princípio do dispositivo está consagrado (com as limitações nele expressas) no artigo 5.º do CPC, segundo o qual à parte cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e, como é óbvio, deduzir o pedido correspondente.

Compulsando a petição inicial, verifica-se que, efectivamente, o autor fundamenta o seu pedido no instituto da responsabilidade civil extra-contratual, imputando à ré um comportamento doloso que a faz incorrer na deduzida responsabilidade/obrigação indemnizatória.

Ao invés, na sentença recorrida, concluiu-se pela procedência da acção por se considerar estar em presença de um negócio usurário, não sem que antes se tenha aflorado a questão sob o ponto de vista da responsabilidade contratual (doação modal, nula por falta de objecto e violadora dos bons costumes se aliada a serviços sexuais) e que sempre se poderia, se necessário, que não era no caso, lançar mão do instituto do enriquecimento sem causa, como forma de o autor reaver o dinheiro e demais valores de que a ré se apropriou.

No entanto, reitera-se, como resulta de fl.s 484 v.º a 485 v.º (que adiante se transcreverão) a acção foi decidida com base na configuração da situação sub judice à luz da existência de negócio usurário, em que o autor não configurou a acção.

Como já defendemos na Apelação n.º 444/16.6T8GRD.C1, de 12 de Setembro de 2017, disponível no respectivo sítio do itij, consideramos que não se deve decidir um pleito, com base numa solução jurídica não discutida, sem que, previamente, se conceda às partes, em obediência ao princípio do contraditório, a possibilidade de sobre a mesma se pronunciarem, uma vez que na “leitura” do direito, o tribunal não fica sujeito à alegação das partes, mas com respeito pelo contraditório.

Ora, é certo que no caso em apreço, a M.ma Juiz a quo, assim não procedeu, decidindo o pleito, com base em diferente fundamentação jurídica sem disso dar conhecimento às partes.

No entanto, a recorrente não veio arguir a violação do princípio do contraditório, apenas se queixando de que houve excesso de pronúncia.

Ora, salvo o devido respeito, tal não se verifica dado que o Tribunal apenas se moveu dentro do pedido formulado pelo autor, conhecendo-o e decidindo-o, embora com diferente fundamentação jurídica, pelo que não se verifica excesso de pronúncia. O que se passou é que, juridicamente, configurou o pleito de forma diferente da exposta pelo autor na sua petição inicial, violando o princípio do contraditório, por a sentença recorrida constituir uma “decisão-surpresa”, mas quanto a isso, como vimos, não reagiu a recorrente.

Consequentemente, também, quanto a esta questão improcede o recurso.

D. Se não se verificam os pressupostos que façam incorrer a ré em responsabilidade civil extra contratual e consequente obrigação de indemnizar o autor, o que acarreta a improcedência da acção.

No que a esta questão concerne, refere a recorrente que em virtude de o autor alicerçar a sua pretensão na responsabilidade civil extra-contratual e não ter praticado qualquer acto ilícito, tem a acção de improceder.

Como já referido aquando da decisão da anterior questão, o fundamento para a procedência da acção não se enquadra na responsabilidade civil por factos ilícitos, mas sim por a conduta da ré consubstanciar um negócio usurário.

Efectivamente, como consta de fl.s 484 v.º a 485 v.º, na sentença recorrida fez-se consignar o seguinte:

“De burla se fala para significar o comportamento ilícito de quem, visando obter um enriquecimento a que não tem direito, induz outrem de forma ardilosa a praticar atos que diminuem o seu património ou de terceiro de molde a concretizar aquele locupletamento. Mister é que a conduta do agente se caracterize por uma sagacidade ou ardil (alude-se a domínio do erro em qua labora a vítima1) contrária aos ditames básicos da lealdade da vida comunitária (ou vista como inadmissível no comércio jurídico) mercê da qual a contraparte pratique fatos (mormente de atribuição pecuniária) dos quais resulta para si ou para terceiro prejuízo patrimonial (empobrecimento) que se considere objetivamente relevante por referência a critérios sociais de valor económico e tendo em conta a concreta posição do lesado.

1 Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 299.

2 A. Varela, Das Obrigações, 1.ªEd., p. 185.

A burla poderá andar próxima do negócio usurário.

É usurário o negócio jurídico “quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueja de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados” (art. 282.º CC), sendo que o negócio usurário poderá bem constituir crime, como dispõe o art. 284.º CC.

Usurários são “todos os negócios em que uma das partes aproveite conscientemente a situação anormal em que a outra parte se encontra para lhe extorquir a promessa ou a concessão de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados e não apenas os contratos em que a retribuição a cargo do devedor excede os limites dos juros legais”2.

A usura determina a anulabilidade do negócio. Porém, se se tratar de crime de burla, poderá o lesante constituir-se na obrigação de indemnizar decorrente do art. 483.º e ss. do CC, situação que o A. aqui invoca.

Assim vista a situação, estamos em condições de afirmar que o sinalagma que o MP erigiu como excludente da burla constitui, afinal, um caso gritante de desproporção patrimonial e aproveitamento pela Ré da situação de vulnerabilidade do A.

É ofensivo dos bons costumes e da confiança e lealdade básicas que a vida em sociedade exige a atuação de quem, em menos de dois meses, obtém de pessoa idosa, sozinha e emocionalmente carente a transferência para o seu património da quantia de perto de meio milhão de euros, sendo ainda constituído herdeiro do restante património do lesado e procurados com autorização para movimentar contas bancárias, sob promessa de com ele manter atividade sexual e cuidar, levando-o a viver em casa com o cônjuge do lesante e filhos menores do casal. Essa atuação é, ainda, constitutiva de burla por evidenciar um aproveitamento manifesto da fragilidade psicológica inerente àquelas condições particulares do lesado que nunca aceitaria efetuar tal atribuição patrimonial caso dispusesse de um contexto normal próprio do cidadão bonus paterfamilias (expressão aqui empregue na posição contrária ao habitual e que resulta do art. 487.º, n.º 2 CC, para significar a posição do lesado enquanto pessoa minimamente sagaz e diligente na defesa dos seus interesses).

De sorte que, constituindo-se a Ré na posição de autora do crime de burla, cabe-lhe tornar indemne o A. o que significa a restituição do ilicitamente recebido (art. 562.º CC).”.

Analisada a conduta da ré, acima descrita, concordamos com a análise jurídica efectuada na sentença em recurso, qualificando-a como negócio usurário, atento o disposto no artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil.

Efectivamente, como aí referido, a ré, num curto espaço de tempo, bem sabendo do estado e modo de vida do autor, apropriou-se de elevadas quantias que lhe pertenciam, convencendo-o que dele cuidaria e com ele manteria relações sexuais, nas sobreditas condições.

Como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1982, pág. 259, para que se configure a usura, exige-se “a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém” e que “a situação de inferioridade de uma das partes tenha sido aproveitada pela outra para alcançar a promessa ou a concessão de um benefício, em proveito desta ou de terceiro. E, por último, exige-se ainda que estes benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados – determinação que fica entregue, caso por caso, ao prudente critério do julgador”.

Como refere Jacinto Rodrigues Bastos, in Das Relações Jurídicas, Vol. III, edição do autor, 1968, a pág.s 201 e 202, o negócio usurário reveste-se de um elementos objectivo, que consiste na obtenção, promessa ou concessão de benefício manifestamente excessivo ou injustificado e de um outro, subjectivo, que “consiste no aproveitamento consciente de uma das partes, das condições de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica em que a outra se encontra no momento de contratar”.

E conclui, afirmando, que “Não é preciso que o beneficiado induza o outro contraente a praticar o acto; basta que se aproveite conscientemente da sua situação de inferioridade, para auferir um benefício excessivo”.

Em idêntico sentido propugna Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Almedina, 2017, a pág.s 157 e seg.s. que ali assinala como requisitos cumulativos da usura “a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados (…) para que um contrato seja usurário é necessário, além do mais, que no seu conteúdo se verifique desequilíbrio, por desproporção excessiva, ou vantagem injustificada de prestações (“promessa”) ou de atribuições patrimoniais não obrigacionais (“concessão”)”.

E “Elemento subjectivo relativo ao lesado é, em alternativa, a “situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter”, que, de modo mais sintético, se pode dizer situação de inferioridade (ou debilidade ou vulnerabilidade) do declarante”.

Pelo lado do usurário, como elementos subjectivos, assinala dois “ambos relacionais e causais: a exploração (por causa) da situação de inferioridade de outrem; e o aproveitamento dessa situação em seu benefício ou de terceiro. Não é necessária (porque a lei não o diz) a intenção de explorar a situação da vítima; basta a consciência, isto é, o conhecimento dessa situação e da vantagem obtida. Por natureza da situação de debilidade, não é requisito que o lesado tenha consciência da sua própria situação e da exploração subsequente. É indiferente quem teve a iniciativa do negócio, porque esta circunstância não influi na exploração”.

Ora, em face da factualidade dada como provada, é indubitável a situação de vulnerabilidade em que se encontrava o autor, que foi, conscientemente, aproveitada pela ré para se apropriar dos bens e valores em causa, mediante a promessa de dele cuidar e com ele manter relações sexuais, o que, fora de dúvidas, configura um negócio usurário e como tal, anulável.

Pelo que, igualmente, improcede esta questão do recurso.

E. Se o autor age em abuso do direito.

Defende a ré que assim é porque se verifica “a existência de um comportamento anterior do A. (o factum proprium) que fundou uma situação objectiva de confiança na Recorrente (de boa fé), em contradição com uma conduta actual imputável ao A. de grande, clara e evidente injustiça. Em resumo, é inadmissível e, sem dúvida, contrária à boa fé a conduta por ele assumida, na exacta medida em que traiu a confiança gerada na Recorrente pelo seu comportamento anterior”.

Ou seja, parece que a ré pretende imputar ao autor uma actuação em abuso do direito, por este, em resultado da sua conduta anterior, ter criado nesta a expectativa de não recorrer à justiça para reaver o que era seu.

De acordo com o disposto no artigo 334, do Código Civil:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como o refere A. Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, a pág.s 33 e 49, o abuso do direito constitui uma forma tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas, isto é, do exercício concreto de posições jurídicas que, embora correcto em si, acabe por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade, ou seja, como um princípio que entende deter uma actuação que, em primeira linha, se apresentaria legítima.

Tanto a nível doutrinário como jurisprudencial o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprio, tem vindo a ser encarado à luz da tutela das doutrinas da confiança ou das doutrinas negociais, consoante a situação em apreço, surgindo o princípio da confiança “… como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.” – autor e ob cit., a pág. 51.

No entanto, como não podia deixar de ser, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, e seguindo, ainda o mesmo autor e obra, agora, a pág. 52, só pode ser tutelada desde que se verifiquem as seguintes proposições:

1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;

3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante; tal pessoa por acto ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.

Em idêntico sentido se expressou J. Batista Machado, in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, a pág. 407, quando ali refere que a proibição do venire contra factum proprio, se caracteriza pela conformidade à ideia de justiça distributiva que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devam ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida de relação acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente e que, por outro lado, seja possível alcançar esse resultado sem sujeitar tal agente a uma obrigação, sem lhe impor a constituição de um vínculo, mas pelo simples desencadear de um efeito inibitório ou inabilitante, que carece de fundamento bem mais ténue que aquele que exigiria a constituição de uma obrigação.

De igual forma, e seguindo, ainda, o mesmo Estudo, pág.s 415 a 419, exige tal Autor que se verifique uma situação objectiva de confiança, no sentido de que a confiança digna de tutela tem de radicar numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura e que, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a uma determinada atitude no futuro.

Em segundo lugar, que o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surjam quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada e que tal dano não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma situação satisfatória, no sentido de que o recurso a esta proibição é sempre um último recurso e, por último, que exista boa fé da contraparte que confiou e tenha agido com o cuidado e as precauções usuais no tráfico jurídico.

Também no mesmo sentido, opina M. J. Almeida Costa, in RLJ, ano 129, pág. 62, que ali refere exigir a proibição do venire, para além da situação objectiva de confiança e a boa fé do sujeito que confiou, o investimento na confiança que corresponde às mudanças na vida do destinatário do factum proprio que evidenciam tanto a expectativa nele criada como revelam os danos que resultarão da falta de tutela eficaz para aquele, bem como que, subjectivamente, se encontre numa posição de boa fé, no sentido de que tenha agido na suposição de que o autor do factum proprio estava vinculado a adoptar a conduta prevista e que, ao formar tal convicção tenha tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico, os quais deverão ser tanto maiores quanto mais vultuosos forem os investimentos inspirados na confiança.

Analisados os pressupostos de que se deve fazer depender a aplicação de tal princípio vejamos, agora, por cotejo, com a factualidade apurada, se os mesmos se verificam, isto é, se é de imputar ao ora autor, uma conduta enformadora de abuso do direito, sendo que este, de acordo com a formulação que do mesmo se colhe no artigo 334.º, do Código Civil, tem de ser manifesto.

Desde já e adiantando a decisão, parece-nos que assim não é!

Efectivamente, como resulta dos itens 15.º e 16.º, dos factos provados, logo que agredido pela ré, o autor saiu de casa, no dia 28 de Fevereiro de 2011, e logo depois veio a saber que a casa não estava em nome dele, pelo que, em 21 de Março de 2011, revogou o testamento que efectuara a favor da ré.

Por outro lado, para além da vivência do autor com a ré, durante o período em que tal se verificou e que cessou com a agressão desta para com aquele, nada mais inculca a ideia de que o autor não viria a reagir contra a situação em que se encontrava.

Ao invés, assim que soube que a casa não estava em nome dele revogou o testamento.

E o recurso à presente acção mais não configura, por parte do autor, do que o exercício do direito de ver anulados os actos levados a cabo pela autora, que configuram a prática de usura para com o autor, o que a lei lhe consente.

Pelos motivos expostos, a ordem jurídica, sob pena de se excederem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e o fim social e económico do direito em causa, não pode caucionar a conduta da ré.

A sancionar-se esta actuação é que se verificaria uma situação de desequilíbrio e ficaria sem tutela a confiança do autor.

Pelo que, igualmente, quanto a esta questão, procede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas do presente recurso, a suportar pela apelada.

Coimbra, 24 de Abril de 2018.