Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
271/10.4T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PARTILHA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
IMPUGNAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 09/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIO (JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1388º E 1389º DO C.P.C.
Sumário: I – A inexistência de causa justificativa para determinado enriquecimento – enquanto pressuposto da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa – ocorre quando esse enriquecimento não está de harmonia com o ordenamento jurídico geral, porque não está previsto na lei e porque não é aprovado ou consentido pelos princípios gerais do sistema jurídico.

II – O eventual enriquecimento que seja decorrência de uma decisão judicial transitada em julgado é aprovado e consentido pelo sistema jurídico, como decorrência do caso julgado e, portanto, enquanto se mantiver essa sentença, tem causa justificativa e não pode ser eliminado por via do enriquecimento sem causa; tal enriquecimento apenas poderá ser eliminado através da revogação ou eliminação dos efeitos daquela decisão, nos casos e pelos meios previstos na lei.

III – O enriquecimento/empobrecimento emergente de uma sentença – transitada em julgado – que homologou uma partilha efectuada, não pode ser eliminado por aplicação das regras do enriquecimento sem causa; tal enriquecimento/empobrecimento apenas pode ser eliminado (se ocorrerem os pressupostos exigidos por lei) através de recurso extraordinário, através da emenda da partilha e, havendo preterição ou falta de intervenção de algum herdeiro na partilha judicialmente homologada, através da anulação da partilha ou da composição da quota do herdeiro preterido, nos termos previstos na lei.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... e marido, B... , residentes na Rua (...), Íhavo e C... , residente na Rua (...), Aveiro, intentaram acção, com processo ordinário, contra D... e mulher, E... , residentes em (...), França e F... , residente na Rua (...), Vagos, alegando, em suma, que: correu termos um processo de inventário por óbito de G...e mulher H... que deixaram como únicos herdeiros o 1º Réu e I... (pai da 1ª Autora e do 2º Autor), tendo o 2º Réu desempenhado as funções de cabeça de casal; todavia, apesar de o referido I... já ter falecido – facto que era do conhecimento dos Réus – aquele inventário correu à revelia e sem qualquer intervenção dos Autores, sendo que os imóveis ali relacionados (um prédio urbano e um prédio rústico) foram licitados pelos 1ºs Réus pelo 1.995,19€, tendo sido depositadas tornas no valor de 1.246,99€; essa partilha foi realizada com o intuito de prejudicar o referido I... e os aqui Autores e actuaram de má fé e com abuso de direito, porquanto sabiam que o referido I... havia falecido, sabiam que os Autores eram os seus herdeiros e sabiam que os imóveis tinham um valor muito superior àquele pelo qual os licitaram; além do mais, os 1ºa Réus enriqueceram-se à custa dos Autores, pelo valor correspondente à diferença entre o valor das tornas que se encontra depositado e metade do valor real dos prédios que é superior a 15.000,00€.

Com estes fundamentos, pedem:

a) Que seja anulada a sentença homologatória e a partilha do inventário, convocando-se os Réus para nova Conferência de Interessados, a fim de se proceder à partilha dos imóveis constantes da relação de bens no indicado processo de inventário;

b) Que seja ordenado o cancelamento de todos os registos dos dois imóveis constantes da referida relação de bens, efectuados após a Conferência de Interessados dos aludidos autos de inventário;

Subsidiariamente:

c) Que a quota dos Autores seja composta com um dos imóveis, constantes da relação de bens dos autos de inventário ou em dinheiro, equivalente a metade do valor de ambos os imóveis, tudo de harmonia com o estipulado no artº 1389° do C.P.C.;

Subsidiariamente:

d) Que lhes seja restituído, com base no enriquecimento sem causa, o montante em dinheiro ou em imóvel, nomeadamente o prédio urbano, recebendo o valor correspondente à diferença entre as tornas depositadas e a metade do valor dos imóveis, que se vier a apurar, por meio de perícia colegial, a realizar nos presentes autos.

Os Réus contestaram, invocando a ilegitimidade do 2º Réu, por não ter qualquer interesse na partilha em causa nos autos, bem como a existência de erro na forma de processo, em virtude de o processado no inventário apenas poder ser impugnado por via de recurso extraordinário de revisão. Alegam que I... foi citado editalmente no processo de inventário, sendo vivo à data em que tal processo foi instaurado e desconhecendo os Réus se e quando faleceu; nem os Autores sabiam do paradeiro do pai – tal como os Réus não sabiam – sendo que o mesmo foi para a Venezuela em 1979, nunca mais voltou a Portugal e nunca mais teve contactos com os Autores. Sustentam ainda que, caso se demonstre que os Autores souberam logo do falecimento do pai, caducou o seu direito de requerer a anulação da partilha e prescreveu a possibilidade de invocarem o enriquecimento sem causa.

Concluem pela improcedência dos pedidos formulados.

Os Autores replicaram, pugnando pela improcedência das excepções invocadas e concluindo como na petição inicial.

Foi realizada a audiência preliminar e foi proferido despacho saneador, onde se decidiu:

• Julgar improcedente a excepção de nulidade por erro na forma de processo;

• Absolver os Réus da instância – por força de uma excepção dilatória inominada – no que respeita ao pedido de que a quota dos Autores seja composta com um dos imóveis, constantes da relação de bens dos autos de inventário ou em dinheiro, equivalente a metade do valor de ambos os imóveis, de harmonia com o estipulado no artº 1389° do C.P.C.;

• Julgar procedente a excepção de ilegitimidade do Réu, F..., absolvendo esse Réu da instância;

• Julgar procedente a excepção peremptória de caducidade, julgando extinto o direito de pedir a anulação da partilha, absolvendo os Réus desse pedido;

• Julgar improcedente a excepção de prescrição do direito de restituição com fundamento em enriquecimento sem causa.

Prosseguindo os autos para apreciação do pedido formulado com fundamento em enriquecimento sem causa, foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Entretanto, e na sequência do óbito do Réu, D..., a também Ré, E..., foi habilitada para prosseguir a causa como sua sucessora.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a restituir aos Autores a quantia de 61.493,01€.

A Ré, não se conformando com a sentença e com o despacho saneador na parte em que decidiu o prosseguimento da acção para julgamento do pedido subsidiário por enriquecimento sem causa) veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

 I. Está definitivamente declarada a extinção por caducidade do direito de os Autores requerem a anulação da partilha versada nos presentes Autos, efectuada e homologada, por douta Sentença transitada em julgado, no processo de inventário apenso.

II. Não está provado que os Autores sejam os únicos e universais herdeiros de seu pai, interessado naquele inventário.

III. Assim, não podiam os Autores formular nem ver reconhecido o direito ao percebimento da totalidade do valor do quinhão daquele seu pai naquele inventário e partilha.

IV. No caso dos Autos, não ocorre o requisito da falta de causa enunciado no Art.º 483.º do CCivil, uma vez que o acto ajuizado teve causa juridicamente relevante num inventário todo ele processado e decorrido em respeito da lei e em instância válida e regular, estando a partilha homologada por douta Sentença (há muito) transitada em julgado.

V. Não pode fazer-se qualquer censura, a título de culpa, ou, sequer, por imoralidade, à conduta dos Réus naquele inventário e partilha.

VI. Foi por exclusiva incúria e inércia dos Autores que caducou o direito de requererem a anulação daquela partilha.

VII. Dessa caducidade não resulta para os Autores o direito à restituição do enriquecimento dos Réus,

VIII. Seja porque não houve qualquer enriquecimento da sua parte, uma vez que se limitaram a intervir num processo de inventário, válido e regular com total respeito pelo estatuído legalmente, sendo a partilha homologada por douta Sentença,

IX. Seja porque, uma vez verificada aquela caducidade do direito à anulação da partilha, está vedado aos Autores o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, porque a tanto se opõe a natureza subsidiária da obrigação de restituição por enriquecimento sem causa, como decorre do disposto no Art.º 474.º do CCivil.

X. Acresce que, caducado o direito de pedir a anulação da partilha, esta passou a ter causa jurídica precisamente o acto (de partilha) que ficou convalidado por força daquela caducidade, radicando-se em definitivo os seus efeitos – com ou sem enriquecimento – na esfera do beneficiário desse acto,

XI. Pois é esse o objectivo e finalidade do ordenamento jurídico no que respeita aos actos jurídicos.

XII. Assim, e porque com causa jurídica válida, a restituição por enriquecimento sem causa não pode ter lugar, porquanto, para além da subsidiariedade da obrigação de restituir, com a convalidação do acto pelo decurso do prazo de caducidade deixou de existir uma transferência patrimonial sem causa, deixando, mesmo, de haver enriquecimento injusto.

XIII. Por essas razões, a acção deveria ter sido julgada totalmente improcedente e não provada logo no douto Despacho Saneador, e, não o tendo sido nessa fase processual, deveria ter sido julgada improcedente e não provada na douta Sentença recorrida,

XIV. Violando tais doutas Decisões o estabelecido nas citadas normas legais.

XV. Acresce que o relatório pericial é desadequado à realidade e ineficiente para que se considere provada a matéria do Quesito 4.º da douta Base Instrutória – pelo que, e nessa parte, deve a douta Decisão de Facto ser revogada, respondendo-se negativamente àquele Quesito.

Conclui pela revogação do despacho saneador, na parte ora impugnada, e pela revogação da sentença, julgando-se a acção totalmente improcedente

Os Autores apresentaram contra-alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

I.

A Apelante pretende revogar a proficiente Decisão do Tribunal a quo e, para o efeito, alega em síntese, com base em três grandes temas:

- A Ilegitimidade dos Autores e aqui Apelados;

- Falta do requisito imposto pelo artº 473º do CC. - falta de causa justificativa, para que possa proceder o pedido de enriquecimento sem causa, alegado pelos Apelados.

- Reconhecida a caducidade de os Apelados requererem a anulação da partilha, não podem socorrer-se do instituto do enriquecimento sem causa.

II.

Quanto à ilegitimidade, face à prova da filiação dos Apelados, comprovada, mediante documento autêntico - certidões de nascimento, comprovativas de que são filhos do obituado FRANCISCO NETO DA SILVA e assente na al. A) do Despacho Saneador e ponto 1. da Factualidade dada como provada na Sentença recorrida, aliás, facto nunca impugnado pela Apelante.

São, por tal motivo até agora os seus únicos e universais herdeiros, mas mesmo que não fossem os únicos, assiste-lhes a legitimidade para reclamarem o que peticionam na sua P.I. e receber o que a Apelante ficou de lhes pagar.

Também a Apelada, apesar de aludir a uns "hermanitos", nada provou que eles existissem.

III.

A) No que diz respeito à falta de causa justificativa, desde logo, apesar da aparente normalidade do processo de inventário em causa que a Apelante pretende fazer crer ter existido, resulta de toda a factualidade dos autos que:

B) Aquando da partilha, apenas intervieram a Apelante e o seu falecido marido, na qualidade de um dos filhos dos autores da herança - al. D) da matéria assente do Despacho Saneador e ponto 4. da Factualidade provada da questionada sentença, sendo a herança constituída apenas por dois bens imóveis, como resulta do mencionado inventario, bem assim da al. E) da matéria assente do  Despacho Saneador e ponto 5. da Factualidade provada da sentença.

C) Tais bens moveis foram licitados apenas pela Apelante e falecido marido por valores, manifestamente irrisórios, ou seja, 400.000$00 (1.995,19€) o prédio urbano e 100.000$00 (498,79€), o prédio rústico, como resulta da al. F) da matéria assente do Despacho Saneador, bem assim, do ponto 6. da factualidade provada da sentença recorrida.

D) Todavia, tal qual ficou provado por Relatório de peritagem, o qual não foi oportunamente impugnado, aqueles bens valiam, à data, pelo menos, 125.480,00€, o que equivale a mais de 5.000% do valor pelo qual a Apelante os adquiriu, facto que era do perfeito conhecimento desta, atenta a diferença.

E) Apesar do Pai dos aqui Apelados ter sido representado pelo Ministério Público, entende-se que não foram devidamente acautelados os direitos dos Apelados, os quais, por tal motivo estão manifestamente prejudicados/empobrecidos,

F) Pretendem, deste modo, aumentar o seu património à custa do empobrecimento dos aqui Apelados, pois, pretendem que os mesmos recebam 1.246,99€ - (al.F) da matéria assente do Despacho Saneador e do ponto 6. Da factualidade provada da sentença questionada pela Apelante, quando resulta dos autos que tem direito a receber 61.493,01€.

G) E, relativamente à licitação, soubessem os Apelados que existia partilha e teriam os mesmos negociado ou licitado com a Apelante e seu falecido marido, pelos valores, certamente superiores aos que se indicam no Relatório de peritagem.

H) Não ocorre pois causa justificativa para que a Apelante se apodere de imóveis, por um valor exageradamente, diga-se mesmo, escandalosamente, inferior ao seu valor real.

I) Face ao exposto, resulta, tão só, que o requisito da causa justificativa que o art. 473° do Cod. Civil exige para que se possa recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa, encontra-se manifestamente preenchido.

IV

A) Quanto as alegações da Apelante, relativamente à impossibilidade de os Apelados beneficiarem do instituto do enriquecimento sem causa, atenta a sua subsidiariedade, não assiste razão à Apelante, desde logo, não podemos deixar de referenciar o facto de o Pai dos Apelados, à data, do inventário, designadamente na Conferência de Interessados, estava representado pelo Ministério Público, o qual, como se disse e se repete, não acautelou devidamente os interesses dos aqui Apelados, atenta a evidencia da diferença de valores em causa.

B) Tendo a Apelante e seu falecido marido, face ao exposto, actuado, manifestamente de má fé, porquanto, sabiam o valor dos bens, sabiam da existência dos filhos do co-herdeiro, atentas até as relações familiares.

C) E, no que respeita à extinção do direito de apelar a este instituto, caducado que estava o direito de anular a partilha, sufragamos integralmente a argumentação, constante da Decisão recorrida.

D) Não se poderá olvidar que, a apelação ao instituto do enriquecimento sem causa esta enquadrado e integrado numa acção que se pretendia fosse de anulação da partilha e, a título subsidiário.

E) Pelo que, efectivamente, foi permitido o enriquecimento da Apelante à custa do empobrecimento dos Apelados, isto porque se entende que, no caso concreto assistia aos Apelados o pleno direito de recorrer à figura do enriquecimento sem causa, sendo que, a doutrina e a jurisprudência, apesar de divergente nesta matéria é praticamente unânime em considerar que a subsidiariedade imposta pelo artº 474º do C.C. é muito mais abrangente do que aparentemente se nos afigura.

F) Os Apelados foram c1aramente espoliados do valor real dos bens que eram de seu Pai, por óbito de seus Avós, de forma, manifestamente intencional, pela aqui Apelante e seu falecido marido, pelo que resiste o direito de os autores serem ressarcidos da quantia que foi apurada, a título do seu empobrecimento, em consequência do enriquecimento indevido, injusto e indigno da aqui Apelante.

Concluem pela confirmação da sentença recorrida.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se os Autores, apesar de ter sido declarada – por decisão transitada em julgado – a caducidade do seu direito de requerer a anulação da partilha, têm o direito a ser restituídos – com fundamento em enriquecimento sem causa – do valor com que o Réu se enriqueceu com a partilha judicialmente homologada em processo de inventário no qual os Autores não tiveram intervenção.


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III.

Na 1ª instância, foi fixada a seguinte matéria de facto:

1. A primeira Autora, A..., e o segundo Autor, C..., são filhos de I... – al. A) dos factos assentes.

2. No processo de inventário a que os presentes autos estão apensos, procedeu-se à partilha de bens por óbito de G...e mulher, H..., pais do réu D... e do referido I... e, consequentemente, avós dos autores A... e C... – al. B) dos factos assentes.

3. Os únicos herdeiros eram apenas os dois referidos filhos do referido casal, tendo o réu F... exercido as funções de cabeça-de-casal, que prestou declarações nessa qualidade em 22.10.1997, indicando aqueles dois herdeiros, bem como o estado civil de divorciado e a qualidade de ausente do I... – al. C) dos factos assentes.

4. No referido processo de inventário, procederam os réus à partilha de bens deixados pelos autores da herança, sem qualquer intervenção dos autores – al. D) dos factos assentes.

5. Os únicos bens deixados pelos Autores da herança foram dois imóveis, assim descritos:

a) um prédio urbano, composto por uma casa de habitação, sita na rua da (...), no lugar da (...), na freguesia de (...), concelho de Aveiro, com a área total de 212,50 m2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 346;

b) um prédio rústico, destinado a cultura e regadio, sito na rua da (...), no lugar da (...), na freguesia de (...), concelho de Aveiro, com a área de 900 m2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1912 – al. E) dos factos assentes.

6. Realizou-se a conferência de interessados em 30.09.1998, tendo tais prédios sido licitados pelos aqui primeiros Réus, pelo valor 400.000$00 (o correspondente a 1.995,19 €) o prédio urbano e por 100.000$00 (o que equivale a 498,79 €), o prédio rústico, tendo procedido ao depósito das tornas, no valor de 250.000$00 (1.246,99 €) – al. F) dos factos assentes.

7. Na Conservatória do Registo Civil de Aveiro foi lavrado, em 27.03.2009, com base em certidão de óbito, emitida pela Primeira Autoridade do Município Autónomo Heres, Estado de Ciudad Bolívar, Venezuela, em 20 de Junho de 2008, assento de óbito relativo a I..., do qual consta que este faleceu pelas 06h00 do dia 09 de Dezembro de 1997 – al. G) dos factos assentes.

8. Os réus D... e E... sabiam que o I... tinha dois filhos, os aqui autores – al. H) dos factos assentes.

9. Os autores sempre souberam que o seu pai havia falecido em finais de 1997 e tiveram conhecimento da partilha, pelo menos, em 24.10.2007 – al. I) dos factos assentes.

10. Os prédios licitados pelos réus D... e E... tinham, à data, o valor de 27.060,00 € (o correspondente ao artigo rústico 1912) e 98.420,00 € (o correspondente ao artigo urbano 346) – resposta ao ponto 4º da base instrutória.


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IV.

Conforme resulta dos autos, correu termos um processo de inventário – ao qual os presentes autos estão apensos – por óbito de G...e mulher, H..., e no qual foram indicados como únicos herdeiros dos inventariados, D... (réu nos presentes autos e entretanto falecido) e I... (pai dos aqui autores, A... e C...). O referido I... estava, à data, ausente em parte incerta e, como tal, foi ali citado por editais. Na pendência desse inventário (em 09/12/1997), o referido I... faleceu, sendo certo, porém, que esse facto não foi comunicado no processo, tendo este prosseguido os seus termos com aquele interessado (ausente) e tendo vindo a realizar-se a conferência de interessados (em 30/09/1998), onde o aqui Réu, D..., licitou os dois imóveis relacionados pelo valor total de 500.000$00. Depois de ouvir o Ministério Público, tais imóveis foram-lhe adjudicados, tendo sido depositadas as tornas (no valor de 250.000$00) a favor do interessado ausente. Elaborado o mapa da partilha, veio a ser proferida sentença – em 06/02/1999 – que homologou a partilha.

É certo, portanto, que o referido inventário correu à revelia e sem a intervenção dos aqui Autores, que, na sequência da morte de I... e como seus herdeiros, deveriam ter sido chamados a intervir nesses autos e a exercer os direitos que àquele competiam, designadamente, o direito de licitar nos bens da herança.

Com base nessa circunstância e alegando que o valor dos imóveis era muito superior ao valor pelo qual foram licitados (razão pela qual as tornas que se encontram depositadas são de valor muito inferior àquele que deveria ser o seu quinhão), os Autores intentaram a presente acção pedindo a anulação daquela partilha, ao abrigo do disposto no art. 1389º do C.C.

Sucede que, no despacho saneador, veio a ser declarada a caducidade do direito de requerer a anulação a partilha e, porque tal decisão transitou em julgado, está definitivamente adquirido nos presentes autos que se extinguiu, por efeito de caducidade, aquele direito.

A sentença recorrida veio, porém, a reconhecer que, por aplicação do instituto do enriquecimento sem causa (que os Autores também invocavam a título subsidiário), a Ré (herdeira habilitada de D...) teria que restituir aos Autores o valor do seu enriquecimento correspondente à diferença entre o valor do quinhão que aqueles teriam direito a receber (determinado pelo valor real dos bens) e o valor das tornas que foram depositadas.

E é com esta decisão que não se conforma a Apelante, sustentando, em suma, que, tendo caducado o direito de requerer a anulação da partilha, está vedado o recurso ao enriquecimento sem causa, dada a sua natureza subsidiária, sendo certo que o eventual enriquecimento tem causa jurídica válida.

Analisemos, pois, a questão.

Dispõe o art. 473º do C.C. que:

1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

E dispõe o art. 474º:

Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.     

 É certo, pois, que a obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa, além de pressupor um enriquecimento de alguém, obtido à custa de outrem, pressupõe também que, para tal, não exista causa justificativa.

Não obstante as indicações/orientações que constam do art. 473º, nº 2 – e que não abarcam todas as situações de enriquecimento ilegítimo ou injustificado – a lei não define em rigor o que é a causa ou ausência de causa do enriquecimento e, portanto, o apuramento, caso a caso, da existência (ou não) de uma causa justificativa para determinado enriquecimento há-de ser efectuado em face do ordenamento jurídico em geral, pois é nele que se encontrará a causa (se ela existir) do enriquecimento.

Como afirma Antunes Varela[1], “o enriquecimento é injusto porque, segundo a própria lei, ele deve pertencer a outro” e, afirmando que essa é a directriz a seguir, afirma que “quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”.

Na mesma linha de raciocínio, afirma Almeida Costa[2] que “…o enriquecimento carece de causa, quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial; sempre que aproveita, em suma, a pessoa diversa daquela a quem, segundo a lei, deveria beneficiar”.

À luz destas considerações e tendo em atenção a natureza subsidiária da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa, coloca-se, desde já, a questão de saber se há lugar à aplicação deste instituto quando, facultando a lei ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, ocorre a caducidade deste direito por falta de exercício nos prazos previstos na lei.

A sentença recorrida – citando diversa doutrina e jurisprudência – considerou que, uma vez caducado o direito que a lei faculta ao empobrecido (no caso sub júdice, o direito de requerer a anulação da partilha), nada obsta à aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, desde que se verifiquem os seus pressupostos.

Temos sérias dúvidas a esse respeito.

É inquestionável – face ao disposto no art. 474º - que, facultando a lei ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, não há lugar à restituição por enriquecimento sem causa. Mas, se a lei impede, nesse caso, a aplicação do referido instituto, deverá considerar-se que permite a sua aplicação quando o direito específico que é colocado à disposição do empobrecido não é exercido no prazo fixado na lei? A admitir-se que sim, isso corresponderá, na prática, a permitir que o empobrecido possa recorrer a qualquer um dos meios em alternativa, já que, para recorrer ao enriquecimento sem causa, apenas terá que deixar caducar aquele direito. Mas, se o legislador quisesse permitir esta situação, porque não admitir, desde logo, que o empobrecido pudesse recorrer a qualquer um dos meios que entendesse ser o mais adequado aos seus interesses? De facto, não nos parece coerente sustentar que o legislador tenha tido a intenção de permitir, nessas situações, a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, já que isso equivale, na prática, a admitir que o legislador teria dado com uma mão aquilo que, com a outra e por via da caducidade do direito que especificamente havia concedido para eliminar aquele enriquecimento, havia acabado de retirar.

Além do mais, ao estabelecer a caducidade ou prescrição de um determinado direito, impedindo o seu exercício, o legislador ter-se-á conformado – em nome da segurança e estabilidade do comércio jurídico – com o eventual enriquecimento que daí possa resultar para a outra parte, legitimando esse enriquecimento. Daí que, em rigor, não se possa sequer afirmar que esse enriquecimento não tem causa justificativa; tal enriquecimento encontra a sua justificação e a sua causa na ordem jurídica, onde se estabelece determinado prazo para o exercício dos direitos e onde se determina a sua extinção ou a impossibilidade do seu exercício, por efeito do decurso do prazo estabelecido – seja ele de prescrição ou de caducidade – validando e legitimando um qualquer enriquecimento que para alguém possa advir em consequência do não exercício desse direito[3].

Assim, e sendo certo que, colocando a ordem jurídica à disposição do empobrecido um determinado meio para ser indemnizado ou restituído, será esse o único meio que pode e deve ser utilizado (a não ser que a lei disponha em sentido diverso), sem possibilidade de recurso ao enriquecimento sem causa (como dispõe claramente o disposto no art. 474º), não encontramos quaisquer razões válidas para considerar (embora a questão seja discutível) que a mera circunstância de o empobrecido não exercer o direito que a lei lhe faculta (deixando-o caducar) seja bastante e seja idónea para contornar a natureza subsidiária que o legislador atribuiu ao enriquecimento sem causa e não nos parece que, tendo caducado o direito que a lei lhe faculta, o empobrecido possa contornar tal caducidade e os efeitos dela emergentes, obtendo, por via do enriquecimento sem causa, os mesmos efeitos ou efeitos semelhantes àqueles que lhe eram proporcionados pelo exercício do direito que a lei lhe facultava e que, por inércia sua, deixou caducar.

Mas, independentemente dessa questão, atentemos numa outra circunstância.

O pretenso enriquecimento que está em causa nos autos emerge da partilha que foi efectuada no âmbito de um processo de inventário (partilha essa que terá prejudicado/empobrecido os Autores e sendo certo que, por não terem tido intervenção naquele processo, não tiveram a possibilidade de defender e assegurar o seu direito).

Sucede que essa partilha foi homologada por sentença judicial que transitou em julgado e, portanto, essa partilha – bem como o eventual enriquecimento e empobrecimento que dela resulte para os respectivos interessados – está a coberto do caso julgado formado pela referida sentença.

 Ora, parece-nos claro – conforme refere Diogo Leite de Campos[4] - que não pode ser admitida a pretensão de enriquecimento sem causa contra o caso julgado, com o fim de eliminar os enriquecimentos considerados injustos sancionados por este. Como refere o citado autor[5], “o enriquecimento que derive do caso julgado, eventualmente injusto segundo critérios éticos, é justificado pelo ordenamento jurídico em virtude das referidas necessidades de certeza”. Tal enriquecimento – sendo aprovado e consentido pelo ordenamento jurídico, como decorrência do caso julgado – tem, por isso, causa justificativa (como sustenta a Apelante) e, portanto, enquanto se mantiver a sentença e o caso julgado por ela formado, tal enriquecimento não poderá dar lugar à obrigação de restituir.

Assim, o enriquecimento eventualmente emergente de uma sentença e do caso julgado por ela formado, apenas poderá ser eliminado através da revogação ou eliminação dessa sentença e tal apenas poderá suceder nos casos e pelos meios expressamente previstos na lei.

Estando em causa, no caso sub júdice, uma sentença que homologou a partilha, a eliminação do enriquecimento dela emergente apenas poderia ser efectuado através de recurso extraordinário ou através dos meios processuais previstos nos arts. 1386º a 1389º do C.P.C.: emenda da partilha, anulação da partilha e composição da quota do herdeiro preterido.

Mas – poder-se-á objectar – os aqui Autores não tiveram intervenção no processo de inventário e, portanto, não estão abrangidos e vinculados pelo caso julgado formado pela sentença que homologou a partilha.

Mas não será bem assim.

De facto, como decorre do disposto nos arts. 497º, 498º e 671º, a sentença tem força de caso julgado entre as partes, mas a identidade das partes para esse efeito não é a identidade física, mas sim a sua identidade do ponto de vista da sua qualidade jurídica e, sob este ponto de vista, os herdeiros e sucessores da parte assumem a mesma posição jurídica que esta ocupava e, por isso, estão abrangidos pela força do caso julgado. Como referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[6], “…o caso julgado não se forma apenas em relação às pessoas singulares ou colectivas (lato sensu) que intervieram como partes no processo, mas também relativamente àquelas que, por sucessão mortis causa ou por transmissão entre vivos (compra, doação, permuta, transacção, etc.), assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo, quer a substituição se tenha operado no decurso da acção (cfr. arts. 270º e 271º, 1 e 3), quer se tenha verificado só depois de proferida a sentença”.

No caso que estamos a analisar, o processo de inventário – onde foi realizada a partilha aqui em causa – correu termos entre o aqui Réu (que, entretanto, já faleceu) e o pai dos Autores, sendo certo que eram eles os únicos herdeiros dos autores da herança. Na pendência desses autos, o pai dos Autores faleceu e tal circunstância deveria ter determinado – em conformidade com o disposto nos arts. 277º e 1332º do C.P.C. – a suspensão da instância e a habilitação dos herdeiros do interessado falecido (os aqui Autores). A verdade é que tal não aconteceu, já que o óbito daquele interessado não foi comunicado ao processo (e nem sequer poderemos afirmar que tal se tenha devido a culpa do outro interessado no inventário, já que nada nos permite afirmar que este tivesse tido conhecimento do óbito) e a partilha acabou por ser efectuada e homologada por sentença que transitou em julgado. Todavia, apesar de – como se constata agora – aquele interessado já ter falecido, isso não interfere com a validade da sentença, que permanece na ordem jurídica e vincula os sucessores daquele interessado falecido (ou seja, os aqui Autores), como sustentam José Lebre de Freitas[7] e Castro Mendes[8].

Os Autores estão, pois, vinculados ao caso julgado formado pela sentença que homologou a partilha e, nos termos da qual, apenas terão direito às tornas que ali foram depositadas a favor do seu pai. E, ainda que essa partilha tenha redundado em seu prejuízo e em enriquecimento do outro interessado, a verdade é que tal prejuízo e enriquecimento estão cobertos pelo caso julgado – e por isso têm causa justificativa – não podendo dar lugar a qualquer obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa. Para eliminar tal enriquecimento, os Autores teriam que atacar a sentença por via de recurso extraordinário de revisão, se para tal existisse fundamento (importando, todavia, notar, que o respectivo prazo já se encontra ultrapassado) ou teriam que requerer a anulação da partilha ou a composição da sua quota, em conformidade com o disposto nos arts. 1388º e 1389º do C.P.C., sendo certo que são esses os meios legais previstos na lei para ultrapassar o caso julgado formado pela sentença e para eliminar o eventual enriquecimento dela emergente.

Refira-se, aliás, que, ainda que a sentença não tivesse força de caso julgado relativamente aos Autores, isso apenas significaria que aquela partilha não produziria, quanto a eles, qualquer efeito e, portanto, teriam direito a requerer nova partilha. E é isso mesmo que a lei reconhece aos herdeiros que não tiveram intervenção no inventário, quando determina, nos citados arts. 1388º e 1389º, que tais herdeiros podem requerer a anulação da partilha efectuada e a realização de nova partilha ou a composição do seu quinhão. O que esses herdeiros não podem – ainda que não estejam vinculados pelo caso julgado formado pela sentença homologatória da partilha – é recorrer ao enriquecimento sem causa, como forma de obterem a composição do seu quinhão hereditário, porquanto o meio adequado para atingir tal objectivo é a partilha da herança com a realização de todas as operações que lhe são inerentes.

Como refere João Lopes Cardoso[9], quando a partilha, judicialmente homologada por sentença transitada em julgado, tenha lesado os interessados, “…estes, para se ressarcirem dos prejuízos, que, porventura, sofreram por via disso, só têm ao seu alcance, para além do recurso extraordinário de revisão, três meio específicos:

a) A emenda da partilha por acordo de todos eles;

b) Na falta de tal acordo, a acção para a emenda da partilha proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do erro;

c) A acção para a anulação da partilha judicial”, acrescentando ainda que o enriquecimento sem causa não será o meio processual idóneo para alcançar tal objectivo.

E – diz mais adiante[10] - que a partilha judicial, por estar revestida da autoridade que dimana do caso julgado, só em casos muito restritos poderá anular-se, acrescentando que a lei discrimina taxativamente esses casos no art. 1388º do C.P.C. e correspondem ao recurso extraordinário e à situação em que ocorra preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e desde que se demonstre que os demais procederam com dolo ou má fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi efectuada.

Assim, se a sentença homologatória da partilha (transitada em julgado) não for revogada por via de recurso extraordinário e se a partilha não for anulada, por preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros, ao abrigo do disposto no art. 1388º do C.P.C., aquela sentença, bem como a partilha que homologa, permanecem e produzem os seus efeitos, validando e justificando o prejuízo ou enriquecimento que dela possa resultar para algum interessado, sem que seja possível contrariar e contornar esse caso julgado por via da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

Importa dizer, aliás, que as regras de apuramento da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa nem sequer se adequam à presente situação.

De facto, afirmar-se que o valor do quinhão dos Autores correspondia a metade do valor real dos bens que compunham a herança e que, por isso, o valor a restituir seria a diferença entre esse valor e o valor das tornas que foram depositadas (como se fez na sentença recorrida) é uma forma simplista de ver a questão.

Com efeito, o apuramento do valor do quinhão de cada um dos herdeiros não é feito – ou não é feito necessariamente – pela determinação do valor real dos bens, mas sim pelo valor que lhe é atribuído pelos interessados (caso cheguem a acordo nesse sentido) ou pelo valor da licitação, que, como é evidente, pode ser superior ou inferior ao valor real e, portanto, é através do funcionamento das regras próprias do inventário (e não através de uma mera avaliação dos bens) que deve ser apurado o valor do quinhão de cada um dos interessados.

Não tendo sido interposto recurso extraordinário da sentença homologatória (não interessando agora apurar se, para tanto, existia ou não fundamento, até porque já decorreu o prazo em que poderia ser instaurado), os Autores – não tendo tido intervenção no inventário – apenas poderiam reparar/eliminar o prejuízo/empobrecimento que lhes advém da partilha, pedindo a sua anulação, ao abrigo do disposto no art. 1388º do C.P.C., ou exercendo a faculdade prevista no art. 1389º do mesmo diploma. Não sendo exercidos – ou não podendo sê-lo – estes meios processuais (que são os únicos com aptidão para contrariar e eliminar os efeitos decorrentes da sentença homologatória da partilha), permanece a força e autoridade de caso julgado da sentença, que, atribuindo causa justificativa a qualquer enriquecimento que dela advenha para algum interessado, não pode ser contrariado e contornado pela aplicação das regras do enriquecimento sem causa.

Ora, apesar de os Autores terem requerido a anulação da partilha, ao abrigo da citada disposição legal, tal pretensão veio a ser negada por decisão proferida no despacho saneador – já transitada em julgado – por se ter considerado que tal direito havia caducado.

Estando definitivamente adquirido nos presentes autos que aquele direito já não poderá ser exercido, restará aos Autores a possibilidade de exercer a faculdade prevista no art. 1389º (se, para tanto, existir fundamento), importando notar que, apesar de os Autores também terem formulado essa pretensão nos presentes autos, apenas se considerou (no despacho saneador) que a presente acção não era o meio processual adequado para a exercer, pois teria que ser exercida no processo de inventário (razão pela qual os Réus foram absolvidos da instância relativamente a esse pedido).

Todavia, quer lhes venha a ser reconhecida essa pretensão, quer a mesma lhes venha a ser negada, os Autores não terão direito a qualquer restituição por enriquecimento sem causa, pelas razões que mencionámos.

Sempre se dirá, no entanto, que, ainda que se admitisse – em tese – a possibilidade de aplicação do instituto do enriquecimento sem causa (coisa que não admitimos), essa possibilidade apenas poderia ocorrer depois de esgotados todos os meios que a lei coloca à disposição dos Autores para serem indemnizados/restituídos (como decorre da natureza subsidiária da obrigação de restituir, que está consignada no art. 474º do C.C.) e a verdade é que, neste momento, ainda poderá subsistir – porque ainda não foi definitivamente afastada – a faculdade prevista no art. 1389º do C.P.C.[11].

Procede, pois, o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a Ré/Apelante do pedido.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A inexistência de causa justificativa para determinado enriquecimento – enquanto pressuposto da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa – ocorre quando esse enriquecimento não está de harmonia com o ordenamento jurídico geral, porque não está previsto na lei e porque não é aprovado ou consentido pelos princípios gerais do sistema jurídico.

II – O eventual enriquecimento que seja decorrência de uma decisão judicial transitada em julgado é aprovado e consentido pelo sistema jurídico, como decorrência do caso julgado e, portanto, enquanto se mantiver essa sentença, tem causa justificativa e não pode ser eliminado por via do enriquecimento sem causa; tal enriquecimento apenas poderá ser eliminado através da revogação ou eliminação dos efeitos daquela decisão, nos casos e pelos meios previstos na lei.

III – O enriquecimento/empobrecimento emergente de uma sentença – transitada em julgado – que homologou uma partilha efectuada, não pode ser eliminado por aplicação das regras do enriquecimento sem causa; tal enriquecimento/empobrecimento apenas pode ser eliminado (se ocorrerem os pressupostos exigidos por lei) através de recurso extraordinário, através da emenda da partilha e, havendo preterição ou falta de intervenção de algum herdeiro na partilha judicialmente homologada, através da anulação da partilha ou da composição da quota do herdeiro preterido, nos termos previstos na lei.


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se a Ré do pedido em que ali foi condenada.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos Autores/Apelados.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª ed., págs. 379 e 380.
[2] Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 327.
[3] Em sentido próximo ou semelhante, pode ver-se Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento, Almedina, 1974, págs. 421 a 424.
[4] Ob. cit., pág. 430.
[5] Ob. cit., pág. 430.
[6] Manual de Processo Civil, 2ª ed., revista e actualizada, pág. 722.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág. 542.
[8] Direito Processual Civil, II, (Apontamentos das lições) ed. da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980, págs. 243 e 244.
[9] Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª ed., págs. 545 e 546.
[10] Págs. 568 a 570.
[11] Reafirma-se que, relativamente a esse pedido – que também era formulado nos autos, a título subsidiário – apenas se decidiu que esta acção não o meio processual adequado, devendo ser formulado no processo de inventário.