Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/11.9T4AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ASSÉDIO NO TRABALHO
CONTRA-ORDENAÇÃO MUITO GRAVE
Data do Acordão: 11/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 29º, Nº 1, E 129º, Nº 1, ALS. A) E B) DO CÓDIGO DE TRABALHO
Sumário: I – O tipo legal de assédio no trabalho é de formação complexa, exigindo a verificação de vários pressupostos de facto – um comportamento indesejado, praticado no local de trabalho, com um objectivo ou efeito determinado: o constrangimento, a hostilização, a afectação da dignidade da pessoa, a desestabilização.

II – Preenche-se o tipo em causa quando um empregador, após transferir uma trabalhadora para um local de trabalho que dista da sua residência cerca de 70 kms, alegadamente por dificuldades de relacionamento com a equipa de trabalho, a coloca num local isolado, no qual a mantém sentada, sem atender clientes nem exercer qualquer actividade e virada para a parede durante vários dias.  

Decisão Texto Integral: A…, LDª interpôs recurso da sentença que, no âmbito de impugnação judicial de contra-ordenação, lhe aplicou a coima única de 6.500,00€.

   Funda-se nas seguintes conclusões[1]:

   Não se verificam os pressupostos previstos no Artº 29º/1 do CT, com referência ao Artº 129º/1-a) e b), pelo que não há fundamento para classificar o comportamento da arguida/recorrente como contra-ordenação muito grave, pelo que dera ser revogado.

   O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou defendendo que a sentença recorrida fez uma correcta apreciação dos elementos dos autos, não se vislumbrando qualquer contradição ou erro na formação da convicção do tribunal, e fez igualmente uma correcta aplicação do direito aos factos, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos.

   Junto desta Relação, o Ministério Público emitiu parecer segundo o qual se deve confirmar a decisão impugnada.


*

   Para melhor compreensão dos autos, eis um breve resumo.

   Em processo de contra-ordenação foi aplicada pelo Centro Local do Baixo Vouga da Autoridade para as Condições do Trabalho – Aveiro, coima única no valor de € 6.500,00 (cúmulo jurídico da coima de € 4.500,00, três coimas de € 250,00 e três coimas de € 1.100,00) a “A…, Ldª”, que ficou também obrigada a pagar a quantia de € 15,10 a trabalhadoras e a quantia de € 5,90 à Segurança Social, sendo condenados como responsáveis solidários no pagamento, …, como sócios e gerentes da empresa arguida.

   Foram imputadas as seguintes infracções, a título de negligência:

1) situação de assédio sobre a trabalhadora C…, em violação do disposto no artº 29º, nº 1, conjugado como o artº 129º, nº 1, als. a) e b), ambos do Código do Trabalho, punível pelos Artºs. 29º, nº 4 e 554º, nºs 1 e 4, al. c) do Código do Trabalho (contra-ordenação muito grave).

2) falta de informação às trabalhadoras sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados no estabelecimento onde prestam trabalho, não estando afixado em local apropriado a informação com os seguintes dizeres «este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som» seguido de símbolo identificativo, em violação do disposto no artº 20º, nº 3 do Código do Trabalho, punível pelos Artºs. 20º, nº 4 e 554º, nºs 1 e 2, al. a) ambos do Código do Trabalho (contra-ordenação leve).

3) celebração de contrato de trabalho a termo certo com N… sem obedecer ao legalmente previsto, não sendo reconhecido o contrato ser sem termo após advertência da ACT, em violação do disposto no artº 141º, nº 1, al. e), em conjugação com os Artºs. 140º, nº 3 e 147º, todos do Código do Trabalho, punível pelos Artºs. 141º, nº 4 e 554º, nºs 1 e 3, al. c) do Código do Trabalho (contra-ordenação grave).

4) manteve ao seu serviço trabalhadoras – entre elas I… e N… – sem cumprir a obrigação de pagar abono mensal de falhas previsto em CCT, em violação do disposto no artº 521º, nº 2 do Código do Trabalho, em conjugação com a cláusula 39ª do CCT publicado no BTE nº 41, 1ª série de 08.11.2008 (com Portaria de Extensão), punível pelos Artºs. 521º, nº 2 e 554º, nºs 1 e 2, al. a) do Código do Trabalho (contra-ordenação leve).

5) manteve ao seu serviço trabalhadoras sem ter elaborado mapa de horário de trabalho, em violação do disposto no artº 215º, nºs 1, 2, 3 e 4 do Código do Trabalho, punível pelos Artºs. 215º, nº 5 e 554º, nºs 1 e 3, al. c) do Código do Trabalho (contra-ordenação grave).

6) manteve ao seu serviço trabalhadoras sem ter elaborado e mantido um registo dos tempos de trabalho, em local acessível e por forma a que pernita a sua consulta imediata, em violação do disposto no artº 202º, nºs 1 e 2 do Código do Trabalho, punível pelos Artºs. 202º, nº 5 e 554º, nºs 1 e 2, al. b) do Código do Trabalho (contra-ordenação grave).

7) manteve ao seu serviço trabalhadoras sem ter afixado no estabelecimento onde as mesmas prestam trabalho o mapa de férias, em violação do disposto no artº 241º, nº 9, em conjugação com os Artºs. 237º, 238º e 239º, todos do Código do Trabalho, punível pelos Artºs. 241º, nº 10 e 554º, nºs 1 e 2, al. a) do Código do Trabalho (contra-ordenação leve).

   Após impugnação judicial, procedeu-se à realização de julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que negou provimento à impugnação, mantendo a decisão administrativa de aplicação da coima única no valor de € 6.500,00 pela prática das infracções supra referidas à arguida/recorrente “A…, Ldª”, sendo responsáveis solidários pelo pagamento os seus sócios e gerentes ...

   Para apreciação neste recurso, e dado o despacho entretanto proferido pela Relatora, que decidiu não conhecer do objecto do recurso no que tange a seis contra-ordenações, resta apenas a 1ª das supra mencionadas contra-ordenações.

   Das conclusões acima exaradas, extrai-se a seguinte questão a decidir: não se verificam os pressupostos previstos no Artº 29º/1 do CT, pelo que não há fundamento para classificar o comportamento da arguida como contra-ordenação muito grave?

  

   A matéria de facto cuja prova se obteve é a seguinte:

   Detenhamo-nos, então, sobre a questão trazida a recurso – se não se verificam os pressupostos previstos no Artº 29º/1 do CT, pelo que não há fundamento para classificar o comportamento como contra-ordenação muito grave.

   A fundamentar esta conclusão a Recrte. limita-se apenas a alegar que a situação concreta não poderá ser classificada como de assédio no trabalho, por não se verificarem as condições previstas no Artº 29º/1 do CT, com referência ao Artº 129º/1-a) e b), já que, como consta da prova testemunhal produzida nunca a trabalhadora esteve impedida de exercer a sua actividade, assim o desejasse.

   Os factos relevantes para a decisão são os que acima se exararam sob as alíneas c), f), i), j), conjugados com os que integram as alíneas l), m), n), t), u), z), e bb), factos estes que constituem a base da discussão, visto, como se sabe, a Relação não conhecer senão de matéria de direito (Artº 51º/1 da lei 107/2009 de 14/09). Ressalvam-se, é claro, as hipóteses previstas no Artº 410º/2 do CPP, circunstância em que do texto da decisão há-de resultar algum dos vícios ali enunciados, o que, como veremos, não é o caso.

   Da alegação da Recrte. parece resultar que não se preenchem os elementos do tipo legal contra-ordenacional.

   O Artº 29º/1 do CT dispõe que se entende por assédio o comportamento indesejado... praticado... no próprio emprego... com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

   Por sua vez, um tal comportamento, constitui contra-ordenação muito grave (nº 4).

   Na decisão sob recurso ponderou-se que se podem ali incluir “situações em que o empregador exerça pressão sobre o trabalhador para que actue no sentido de influir desfavoravelmente nas condições de trabalho dele ou dos seus companheiros, como situações em que obsta injustificadamente à prestação efectiva de trabalho, que poderiam enquadrar-se no nº 2 do artº 129º do Código do Trabalho, mas que pelo contexto são de incluir nesta previsão legal. Isto é, situações em que a factualidade típica não se resume à violação das previsões do nº 1 do artº 129º do Código do Trabalho, traduzindo-se num comportamento de “assédio”.

...No caso sub júdice, se dúvidas houvesse sobre a verificação da infracção do nº 4 do artº 29º dúvidas não haveria da verificação da infracção do nº 2 do artº 129º, ambos do Código do Trabalho.

   Todavia, a factualidade assente, permite concluir que, pelo prolongar no tempo, mais que violação do dever de ocupação efectiva se verificou uma situação de assédio: o comportamento da empregadora de determinar que a trabalhadora C… permanecesse no 1º andar numa secretária que integrava a exposição de venda (a empregadora pode vender esse modelo de secretária, mas uma coisa é utilizar no desenvolvimento da actividade uma secretária cujo modelo pode ser encomendado por cliente outra coisa completamente diferente é estar sentada junto a uma secretária para venda) visa manifestamente, como aconteceu, afectar a dignidade da trabalhadora.

   Nem se diga que a trabalhadora podia exercer plenamente a sua actividade, recorrendo a um catálogo, pois parece manifesto que a mesma foi retirada da estrutura organizativa do estabelecimento, e mesmo que alguma actividade pudesse ser realizadas não seria em condições normais de trabalho”.

   O tipo legal em causa é de formação complexa, exigindo a verificação de vários pressupostos de facto – um comportamento indesejado, praticado no local de trabalho, com um objectivo ou efeito determinado – o constrangimento, a hostilização, a afectação da dignidade da pessoa, a desestabilização...

   De salientar, quanto a este último pressuposto, que se trata de actuar com o objectivo – a finalidade de – ou tendo como efeito um desvalor. Isto é muito importante na medida em que o assédio tem a virtualidade de “transformar condutas aparentemente conformes ao direito em ilícitas” (Rita Garcia Pereira, Mobbing ou Assédio Moral no Trabalho, Coimbra Editora, 117).

   Associada à ideia de assédio está também a reiteração dos actos, pelo que se revela importante perceber o encadeado de factos que levam ao efeito desestabilizador.

   Por último, na sua base, está sempre uma questão (violação) de respeito pela dignidade do outro.

   Relembremos, então, os factos.

   No dia 29 de Setembro de 2009, a arguida/recorrente tinha ao seu serviço, sob as suas ordens, autoridade e direcção, mediante retribuição, a trabalhadora C...

   Competia-lhe, no estabelecimento da A… do Retail Park de …, o exercício de funções de Caixeira de 2ª: atendia os clientes, mostrava os catálogos, promovia os produtos para venda, fazia encomendas, procedia à venda dos mesmos, recebia o seu pagamento, confirmava, telefonicamente após a entrega dos produtos, a satisfação dos clientes, procurava a actualização da informação aos clientes sobre as suas encomendas, elaborava no computador os orçamentos, introduzia no sistema informático através do computador diversos registos, nomeadamente, eventos diários, fichas de clientes, estatística de vendas e relatórios de stocks e, limpava a loja.

   Em 30 de Julho de 2009, a trabalhadora C… recebeu carta enviada pela arguida/recorrente na qual lhe era comunicada a sua transferência temporária de local de trabalho da loja da A… do Retail Park de …, para a loja da A… de Aveiro, a partir de 11 de Agosto de 2009, por ter constatado que “a equipa de trabalhadoras que assegura o seu funcionamento manifesta muitas dificuldades de relacionamento, facto que se tem repercutido negativamente quer no ambiente de trabalho quer nos resultados das vendas, com as inerentes consequências para esta empresa … não é possível manter esta situação.

   Nesta data não havia sido instaurado qualquer procedimento disciplinar.

   Este local de trabalho dista cerca de 70Km da sua residência.

   No dia 11 de Agosto de 2009, pelas 10 horas, a trabalhadora apresentou-se no estabelecimento A… em Aveiro (sita …), para prestar a sua actividade no âmbito de um horário de trabalho das 10 horas às 19 horas, com um intervalo para almoço das 12h 30m às 14 horas.

   Assim que chegou ao mencionado estabelecimento, foi-lhe dito pela sua colega de trabalho I…, a aprestar trabalho para a arguida/recorrente no estabelecimento A… em Aveiro, que tinha ordens da gerência para a trabalhadora C… se dirigir ao primeiro andar do estabelecimento, sentar-se na cadeira frente à secretária, sem atender clientes e ficar aí todo o dia no cumprimento do seu horário de trabalho, o que aconteceu.

  No dia 12 de Agosto de 2009 a trabalhadora C… deslocou-se aos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) com uma crise nervosa, sendo-lhe atribuída baixa médica desde 12 de Agosto de 2009 até 25 de Setembro de 2009.

   No dia 26 de Setembro de 2009, finda a baixa médica, a trabalhadora C…, apresentou-se para prestar serviço no referido estabelecimento da A… de Aveiro.

   Quando chegou ao seu local de trabalho, às 11 horas, questionou a sua colega de trabalho, I…, no sentido de saber se podia ficar no rés-do-chão ou não.

   A trabalhadora I… comunicou-lhe que teria de ligar para a gerência para saber quais as ordens a seguir.

   Após conversa telefónica com a gerência, foi informada pela colega I… que as ordens eram no sentido da manutenção do já anteriormente comunicado: deveria dirigir-se ao andar de cima, sentar-se na cadeira da frente à secretária que tinha ocupado anteriormente, não atender quaisquer clientes e cumprir deste modo o seu horário de trabalho.

   No dia 29 de Setembro de 2009, pelas 16 horas, no estabelecimento A… em Aveiro, a trabalhadora C… encontrava-se no primeiro andar da loja, zona de exposição dos produtos de venda, sentada em frente a uma mesa de exposição /venda, virada para a parede.

   Naquele local não havia qualquer instrumento de trabalho e as luzes não estavam todas acesas.

   A trabalhadora C… estava naquele local por ordens da gerência da arguida/recorrente.

   No dia 30 de Setembro de 2009, pelas 12 horas, foi verificado pela Sr.ª Inspectora do Trabalho que as condições em que se encontrava a trabalhadora C… se encontravam inalteradas: continuava no primeiro andar do estabelecimento, sentada em frente à mesa de exposição/venda, virada para a parede.

   A representante legal da arguida explicou que a trabalhadora C… lhe tem “feito a vida negra em … e em Aveiro” e que foi transferida de … para Aveiro por “problemas de relacionamento com as colegas e, mal chegou a Aveiro já arranjou problemas”.

   Resulta à evidência dos factos apurados que a Recrte. criou, para a trabalhadora C…, todo um ambiente hostil no local de trabalho, quando a colocou em Aveiro com a intenção, declarada, de não lhe atribuir quaisquer funções. Tudo sob o argumento de que a trabalhadora lhe fazia a vida negra. Porém, sem dependência der algum procedimento disciplinar para apuramento de responsabilidades desta!

   A criação daquele ambiente começa, desde logo, com a transferência dita temporária para um local que dista da residência da trabalhadora cerca de 70Km, transferência essa claramente não desejada (factos r e w), muito embora, cumprida. Prossegue, depois, com a colocação da mesma num local isolado do da outra trabalhadora ali em exercício, no qual se teve que manter sentada numa cadeira, sem atender clientes, e virada para a parede. E não cessa nem com a crise nervosa que levou a trabalhadora ao Hospital, nem com a intervenção da Autoridade para as Condições de Trabalho!

   Por outro lado, que tal comportamento era motivado pelo objectivo de perturbar a trabalhadora resulta à evidência das próprias palavras da responsável empregadora para com a inspectora do trabalho e do carácter punitivo que emana de todas as atitudes - transferência e colocação na situação de inactividade, quando se trata de trabalhadora cuja funções eram o contacto com o público.

   E, por fim, não só o comportamento teve tal desiderato, como produziu o efeito  perturbador – a criação do ambiente hostil e humilhante.

   Não se vê, assim, como não considerar preenchido o tipo legal contra-ordenacional, porquanto se mostram preenchidos todos os pressupostos enunciados no tipo legal, que, conforme resulta do nº 4 do Artº 29º do CT, se classifica como de contra-ordenação muito grave.

   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

   Custas pela Recrte. (taxa de justiça – 4UC).

   Notifique.

MANUELA BENTO FIALHO (Relatora)

LUÍS AZEVEDO MENDES

JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA



[1] Que se resumem à contra-ordenação pendente, visto, conforme infra se explicará, das 7 contra-ordenações, resta apenas uma para apreciação neste recurso.