Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/12.0TCBVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 06/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 51º, DO DECRETO-LEI N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO (REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES E COIMAS)
Sumário: Pese embora a inserção sistemática do preceito em causa (art.º 51º - “Admoestação”), no Capítulo III (“Da aplicação da coima pelas autoridades administrativas”), da Parte II, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas), é de entender que a referência a “entidade competente” usada na redacção do referido normativo leva a que a admoestação possa ser aplicada, quer na fase administrativa, quer na fase judicial, ou seja, na fase de recurso judicial da decisão administrativa.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 49/12.0TBCVL do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, em que é recorrente a arguida W..., LDA, devidamente identificada nos autos, por sentença datada de 17 de Fevereiro de 2012, foi julgado parcialmente procedente o recurso, condenando-a, pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos arts. 3º, n.º 1, al. b), n.º 4 e 9º, n.º 1, al. a), n.º 2 e n.º 3 do DL. n.º 156/2005, de 15.09, alterado pelo DL. n.º 371/2007, de 6.11, numa coima de 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros).

A condenação proferida pela autoridade administrativa foi na coima de € 15.000.

2. Inconformada, a arguida recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A) Não tendo a arguida sido notificada para exercer o direito de defesa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 50º do Decreto-Lei 433/82, de 27/10, deverá declarar-se nulo todo o processado posterior ao levantamento do autos de notícia, considerando inexistente e ineficaz a notificação à arguida.

B) A falta de notificação da acusação implica a impossibilidade do mais elementar direito dos arguidos, o de defesa, com consagração constitucional (artigo 32° da CRP).

C) Não se encontra suficientemente provada a prática da Contra-ordenação, sendo certo que dos elementos probatórios constantes dos autos (que, face à ausência de julgamento, são, tão só, os constantes do processo administrativo), não é possível concluir que existiu recusa em facultar o livro de reclamações.

D) Aplicar uma sanção a quem não cometeu qualquer facto contra-ordenacional, viola o princípio “nulla poena sine culpa».

E) Deve o auto de contra ordenação ser arquivado, por não se verificarem os requisitos, objectivos e subjectivos, da contra ordenação em causa.

F) É requisito essencial para existir conduta delituosa e consequente punição, a verificação de um comportamento doloso ou negligente (artigo 8º do DL 432/82 de 27/10 e princípios gerais do direito Penal), sendo certo que a determinação da medida da coima tem que ter sempre em conta a culpa do agente e o benefício económico alcançado (artigo 18° do citado DL 432/82 de 27/10).

G) Não existem, nos autos, elementos suficientes que possam fundamentar a ocorrência de um comportamento doloso, com intenção ou vontade consciente e livre de praticar aquele acto, ou sequer negligente.

H) Não se justifica a aplicação, à arguida, de qualquer punição a título de coima, mas quanto muito e, por mera hipótese cautelar, apenas se justificaria a aplicação de uma simples admoestação nos termos do artigo 51° do DL 433/82, 27 de Outubro.

I) A aplicação da pena de admoestação justifica-se sempre que a sua aplicação não ponha em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob forma de tutela do ordenamento jurídico (cfr Figueiredo Dias in Direito Penal Português, “As consequências Jurídicas do Crime”).

J) A decisão recorrida viola, assim, o disposto nos artigos 18° e 32° da CRP, artigos 118° e segs do C. P. Penal e artigos 8°f, 18°, 41° e segs., 50°, 50°-A e 51° do Decreto-Lei n° 433/83 de 27/10.

Nestes termos e mais de direito, revogando a doura sentença recorrida e absolvendo a arguida/recorrente, Vossas Excelências, como sempre, farão JUSTIÇA».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra.

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento, remetendo para a argumentação do Colega de 1ª instância.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCO, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto).

 Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber se:

             - se foi preterido o direito de audição e defesa da arguida durante a fase administrativa do processo de contra-ordenação em causa, na medida em que NÃO foi ela notificada para os termos do artigo 50º do Regime Geral das Contra-Ordenações (doravante RGCO);

- está perfectibilizada, em termos objectivos e subjectivos, a prática, pela arguida, da contra-ordenação em causa;

- se se justifica a aplicação de uma mera admoestação.  

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. Tem o seguinte teor a decisão recorrida:

1. Relatório[2]

1.1. W..., Lda., com sede na … , na Covilhã, interpôs o presente recurso de impugnação judicial, ao abrigo do disposto no art. 59º e ss. do DL. n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção que lhe foi dada pelo DL. n.º 244/95, de 14 de Setembro (RGCO), da decisão da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade do Ministério da Economia e do Emprego, proferida no processo de contra-ordenação n.º 3093/2010, que lhe aplicou uma coima de 15.000,00 € por infracção ao disposto nos arts. 3º, n.º 1, al. b) e n.º 4 e 9º, n.º 1, al. a) do DL. n.º 156/2005, de 15.09.

1.2. Alega, em síntese, que:

- Não foi notificada para exercer do direito de defesa, razão pela qual, por violação do direito de defesa – art. 50º do RGCO –, o processo é nulo;

- O livro de reclamações solicitado pela cliente foi de imediato disponibilizado, pelo que não cometeu qualquer ilícito;

- Não existem nos autos elementos que apontem para a existência de um comportamento doloso ou sequer negligente;

- Não existe justificação para a coima aplicada, tanto mais que a admoestação é suficiente para tutelar o ordenamento jurídico e a norma em causa.

Conclui requerendo que a decisão seja considerada nula ou, caso assim não se entenda, que seja arquivado o processo por falta de contra-ordenação ou, pelo menos, que lhe seja aplicada a pena de admoestação.

1.3. A arguida e o Ministério Público, notificados para tal, não deduziram oposição a que o recurso seja decidido por simples despacho.


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1.4. Do exercício do direito de defesa

1.4.1. A arguida alega que não foi notificada para exercer o direito de defesa, em conformidade com o disposto no art. 50º do RGCO.

Defende, por isso, a nulidade a decisão condenatória proferida.

Cumpre, pois, como questão prévia, apreciar e decidir.


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1.4.2. O “direito de audição” e defesa no decurso da instrução contra-ordenacional encontra-se consagrado no art. 50º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.

Trata-se de uma norma geral de direito contra-ordenacional que determina que não é permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre.

In casu, a arguida não tem razão na sua alegação.

Na verdade, de fls. 17 e 18 dos autos resulta que a arguida foi notificada para os efeitos do art. 50º do RGCO.

Portanto, nos termos legais, foi dada a possibilidade de a arguida nestes autos, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe era imputada (os respectivos factos) e sobre as sanções em que incorria.

Em conformidade, improcede, nesta parte, o presente recurso.


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1.4.3. Julgo improcedente, nesta parte, o presente recurso.

Notifique.


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1.5. Não existem nulidades, excepções, outras questões prévias ou incidentais, de que cumpra conhecer e obstem à apreciação do mérito da causa.

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2. Fundamentação

2.1. Fundamentação de Facto

2.1.1. Com interesse para a apreciação do presente recurso de contra-ordenação, é a seguinte a matéria de facto que considero provada:

1. No dia 13 de Outubro de 2009, no estabelecimento “W..., Lda.”, sito na … , na Covilhã, A... dirigiu-se a esse estabelecimento para proceder à devolução de uma mala, que tinha uma roda partida.

2. Perante a recusa em trocar a mala, A... solicitou o livro de reclamações, o que lhe foi recusado pela arguida.

3. Perante tal recusa, A... chamou a presença da GNR da Covilhã, tendo, nessa altura, com a GNR presente, sido entregue o livro de reclamações.

4. A arguida não procedeu com o cuidado e a atenção devida que se exige a quem é fornecedor de bens e serviços ao consumidor, e de que era capaz, concretamente ao nível da disponibilização do livro de reclamações logo que solicitado.

5. Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais à arguida.


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2.1.2. Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente, que:

a) A arguida disponibilizou o livro de reclamações logo que solicitado.

b) A cliente apelidou o funcionário da arguida de “chinocas” e “vai para a China”.


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2.1.3. Motivação

A convicção do tribunal baseou-se no seguinte:

Os factos em causa nestes autos estão objectivamente relatados no documento de fls. 2 – folha de reclamação.

A questão que se discute nestes autos é a de se saber se a arguida disponibilizou ou não, quando solicitado, o livro de reclamações.

Ora, parece-nos claro que de imediato tal não ocorreu, o que julgamos provado.

Para além do referido documento, do depoimento do agente da GNR, que esteve no local, chamado para dirimir o litígio – vide fls. 13 e 14 –, resulta claro que foi já na sua presença que o livro de reclamações foi entregue à cliente, o que, nessa altura (e não antes) veio a ocorrer.

Portanto, dúvidas nenhumas podem restar quanto a esta matéria.

A arguida, enquanto fornecedora de bens, sabe que estava obrigada a entregar o livro de reclamações quando solicitado.

Contudo, julgamos que na situação dos autos não o fez por uma confusão relativamente ao mérito da queixa: a arguida confundiu a reclamação com o mérito da mesma, razão pela qual julgamos que a mesma não actuou com conhecimento e vontade, mas antes em violação de um claro dever de cuidado: a arguida não procedeu com o cuidado e a atenção devida que se exige a quem é fornecedor de bens e serviços ao consumidor, concretamente ao nível da disponibilização do livro de reclamações, de que era capaz.

Julgamos, nestes termos, provada esta factualidade como provada.

Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais à arguida, o que julgamos provado.

Em conformidade com o exposto, julgamos não provado que a arguida disponibilizou o livro de reclamações logo que solicitado.

Por falta de qualquer elemento probatório a este respeito, também julgamos não provado que a cliente apelidou o funcionário da arguida de “chinocas” e “vai para a China”.


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2.2. Fundamentação de Direito

Cumpre, nesta fase, apreciar a responsabilidade contra-ordenacional da arguida nestes autos.

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2.2.1. Da responsabilidade contra-ordenacional

A arguida vem acusada, nestes autos, da prática da contra-ordenação p. e p. nos termos dos arts. 3º, n.º 1, al. b) e n.º 4 e 9º, n.º 1, al. a) do DL. n.º 156/2005, de 15.09, alterado pelo DL. n.º 371/2007, de 6.11.

O diploma legal em causa vem regular procedimento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes no âmbito do fornecimento e prestação de serviços.

O decreto-lei em causa instituiu a obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações em todos os estabelecimentos de fornecimento de bens ou prestação de serviços (art. 1º, n.º 2).

O art. 3º, n.º 1, al. b) impõe que o fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a “facultar imediata e gratuitamente ao utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado”.

Ora, na situação sub judice julgamos poder concluir com toda a segurança que a arguida, fornecedora de bens, não facultou o livro de reclamações quando o mesmo lhe foi solicitado por um utente.

Impõe o nº 4 do mesmo artigo que, se tal não ocorrer, o utente pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa.

Mostra-se provado que foi isso mesmo que ocorreu na situação dos autos: a utente, perante a recusa, chamou a GNR ao local, tendo sido nessa altura entregue o livro de reclamações.

Portanto, a arguida violou a obrigação inscrita no art. 3º, n.º 1, al. b) do diploma em análise, tendo ocorrido a circunstância prevista no n.º 4 deste artigo.

A violação da referida obrigação legal é sancionada – sendo a arguida uma pessoa colectiva – com a contra-ordenação punível com coima de € 3.500 a € 30.000 (sendo que o montante da coima não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima) – art. 9º, n.º 1, al. a) e n.º 4.

Mostra-se provado que a arguida não procedeu com o cuidado e a atenção devida que se exige a quem é fornecedor de bens e serviços ao consumidor, concretamente ao nível da disponibilização do livro de reclamações, de que era capaz.

A arguida, com o seu comportamento, violou a obrigação de entrega imediata do livro de reclamações após sua solicitação, a que estava obrigada e de que era capaz, o que significa que actuou com negligência (art. 15º do CP).

Assim sendo, a arguida, com o seu comportamento, cometeu a contra-ordenação, p. e p. nos termos dos arts. 3º, n.º 1, al. b) e n.º 4 e 9º, n.º 1, al. a), n.º 2 e n.º 3 do DL. n.º 156/2005, de 15.09, alterado pelo DL. n.º 371/2007, de 6.11.


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2.2.1.1. Da medida da coima

A arguida foi condenada na coima de 15.000,00 €.

A infracção ao disposto no art. 3º, n.º 1, al. b) do DL. n.º 156/2005 constitui uma contra-ordenação punível com coima de € 3.500 a € 30.000, dado que a arguida é uma pessoa colectiva (cfr. art. 9º, n.º 1, al. a) do DL. n.º 156/2005, de 15.09, alterado pelo DL. n.º 371/2007, de 6.11).

Estando perante um comportamento negligente, o mesmo é punível com os limites supra referidos (máximo e mínimo) reduzidos a metade, ou seja, € 1.750 a € 15.000,00.

Na medida em que ocorreu a situação referida no n.º 3 do art. 9º, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima, ou seja, a € 7.500,00.

O montante da coima deve, portanto, situa-se a este nível, sendo que o montante de € 15.000,00 é, em nosso entender, manifestamente excessivo e desproporcional.

Portanto, entendemos de forma clara não haver razões que justifiquem e fundamentem uma coima tão elevada quanto a que foi fixada pela autoridade administrativa.

Na verdade, a determinação da medida da coima faz-se, dispõe o n.º 1 do art. 18º do DL. n.º 433/82, de 27 de Outubro, em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.

In casu, não existe fundamento legal para qualquer atenuação especial da moldura da coima a aplicar.

Assim, tendo presente:

a) os aludidos limites legais da coima (€ 7.500,00 - € 15.000,00).

b) que a gravidade da contra-ordenação é média, já que, apesar da recusa inicial (e aqui sancionada), o livro de reclamações existia e chegou a ser utilizado para os fins pretendidos;

c) que a arguida actuou de forma negligente;

d) a situação económica da arguida (não apurada);

e) que não é conhecido que tenha retirado qualquer benefício económico;

f) que não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais à arguida,

g) mas também a necessidade de emenda cívica da arguida em causa nestes autos;

entendemos que, na situação sub judice, mostra-se plenamente proporcional e adequado fixar a coima em 7.500,00 €.


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2.2.1.2. Da substituição da coima por admoestação

Por último, a arguida requer que a aplicação da coima seja substituída pela admoestação, que será suficiente e cumprirá plenamente o fim proposto pela lei aplicável.

O art. 51º, n.º 1 do DL. n.º 433/82, de 27 de Outubro, dispõe que “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.

A admoestação é uma censura solene aplicável a factos de escassa gravidade e relativamente aos quais o arguido actuou com a sua culpa reduzida, não havendo necessidade de ser utilizada a pena pecuniária adequada.

Entendemos que a admoestação não é capaz de cumprir plenamente o fim que se visa abarcar com a presente contra-ordenação e com a coima que lhe foi aplicada.

A arguida violou uma importante regra legal de protecção do consumidor; não estamos perante factos de escassa gravidade.

Em causa não está saber se existiam razões para a reclamação ou não; mas antes o cumprimento de uma formalidade legal que existe para protecção dos clientes e consumidores dos abusos dos fornecedores de bens e serviços.

O desrespeito pela norma em causa merece censura que não se compadece com a mera advertência, isto apesar da arguida não ter antecedentes contra-ordenacionais e de não ter beneficiado economicamente do seu comportamento.

Importa que a arguida, com o pagamento da coima, proceda ao reconhecimento de que procedeu contra e em violação de normas legais em vigor entre nós (o que não ocorre no recurso apresentado).

Assim, entendo que na situação sub judice a eficácia de uma mera repreensão não se mostra merecedora de confiança, não representando uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, mostrando-se insuficiente para que a arguida não volte a violar disposições legais nesta área.

Pelas razões expostas, concluo pela improcedência da requerida substituição da coima por admoestação.


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2.2.2. Em face do exposto, e tudo globalmente ponderado, decido julgar apenas parcialmente procede o presente recurso (quanto à redução da coima, oficiosamente determinada) e, tendo em consideração as questões em que a arguida foi vencida, a arguida será condenada, relativamente a essa parte, nas custas do processo.
Em conformidade, a arguida será condenada nas custas, cuja taxa de justiça fixarei em 2 UC (art. 8º, n.º 4 do RCP e respectiva tabela III anexa).

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3. Decisão

Julgo conceder parcial provimento ao recurso interposto e, consequentemente, decido:

a) Condenar a arguida W..., Lda., pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos arts. 3º, n.º 1, al. b), n.º 4 e 9º, n.º 1, al. a), n.º 2 e n.º 3 do DL. n.º 156/2005, de 15.09, alterado pelo DL. n.º 371/2007, de 6.11, numa coima de 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros).
Custas a cargo da arguida, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.

Comunique à autoridade administrativa recorrida, nos termos do art. 70º, n.º 4 do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Notifique».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).

Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, n.º 1, do CPP, ex vi do artigo 74.º, n.º 4 do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.

De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410.º do CPP.

3.2. Vícios do artigo 410º do CPP (ex vi do artigo 74º/4 do RGCO)

3.2.1. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente a sentença recorrida, à luz dos vícios de conhecimento oficioso previstos no artigo 410º do CPP.

            Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:

a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;

b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º n.º 2 a) CPP;

c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt;  Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá AINDA dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.

E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

3.2.2. Repete-se: apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º/2 do CPP se os mesmos decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Ora, acontece que, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer vício do artigo 410º/2 do CPP, na medida em que não existe qualquer problema na matéria dada como provada pelo tribunal recorrido – ela vale por si e nada se deixou de apurar, apenas discordando a recorrente da conclusão jurídica fáctica a que o tribunal recorrido chegou.

Se assim é, então estão assentes os factos descritos em II. 2.1.

Diga-se ainda que neste campo contra-ordenacional (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo II, págs. 134 e ss), o julgador que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.

O que releva e interessa é que em qualquer das situações o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido.

O Juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da autoridade administrativa não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.

Mesmo no recurso da decisão judicial que for lavrada, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida - art.º 75.º, n.º 2, al. a).

Essa faculdade de não estarem os tribunais de 1.ª e de 2.ª instância absolutamente vinculados ao texto da acusação no processo de contra-ordenação tem justificação no facto de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal.

Procura-se, assim, que as entidades judiciais que venham a tomar conta do caso possam mais facilmente atingir a verdade material.

Em conclusão: os factos estão assentes, inexistindo qualquer vício factual na sentença recorrida.

            3.3. DA PRETERIÇÃO DO DIREITO DE DEFESA E AUDIÇÃO DA ARGUIDA

3.3.1. Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.

Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.

Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra ordenação).

Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCO), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.

As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.

No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCO), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.

3.3.2. O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.

Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.

«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.ºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).

Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).

No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).

Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.

O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCO).

No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:

«O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.

Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.

A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».

O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.

O DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A)».

A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).

Assim sendo, o DL n.º 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.

Assim mesmo dispõe o artigo 32.º:

«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei n.º 109/2001 de 24/9.

3.3.3. Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.

Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.

A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, n.º 10, da CRP e art. 50º do RGCO).

Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCO.

Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas dos artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.

Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações.

Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo[3]).

Decidiu o Acórdão do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:

«O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41.º, n.º 1).

Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».

Quanto às sanções contra-ordenacionais, e por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Oliveira Mendes):

«Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cfr. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33).

Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada (Cfr. o recente trabalho do relator e do Exm.º Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral ( - Como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.

Tal como decorre do texto legal – art.18º, n.º 1, do RGCC –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contra-ordenação».

Na linha do preceituado pelo artigo 18º, n.º 1, do DL 433/82, de 27/10, «a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação».

3.3.4. Com este pano de fundo conceptual e legal, vejamos a argumentação deste recurso.

Antes de mais, convém aqui recordar o comando jurisprudencial do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 1/2003, publicado no DR-I-A, de 25-01-03, rectificado pela Declaração de Rectificação n° 70/2008, de 26/11.

Nele se determinou, a certo passo, que:

“IV- Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.°, n.° 3, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 42.°, n.° 2, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 20 dias após a notificação (artigos 205.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41º, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.°, n.° 3, alínea c), e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações.

Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenaçõesJ. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações).

No caso vertente, a recorrente, na sua impugnação judicial, limitou-se a arguir a preterição do direito de defesa e a consequente nulidade da decisão.

Refere a arguida que a autoridade administrativa não a notificou para os termos do artigo 50º do RGCO.

Contudo, tal argumentação já havia sido deduzida na impugnação judicial, a qual mereceu o seguinte decisão:

«1.4.1. A arguida alega que não foi notificada para exercer o direito de defesa, em conformidade com o disposto no art. 50º do RGCO.

Defende, por isso, a nulidade a decisão condenatória proferida.

Cumpre, pois, como questão prévia, apreciar e decidir.

1.4.2. O “direito de audição” e defesa no decurso da instrução contra-ordenacional encontra-se consagrado no art. 50º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.

Trata-se de uma norma geral de direito contra-ordenacional que determina que não é permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre.

In casu, a arguida não tem razão na sua alegação.

Na verdade, de fls. 17 e 18 dos autos resulta que a arguida foi notificada para os efeitos do art. 50º do RGCO.

Portanto, nos termos legais, foi dada a possibilidade de a arguida nestes autos, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe era imputada (os respectivos factos) e sobre as sanções em que incorria.

Em conformidade, improcede, nesta parte, o presente recurso».

É manifesto que carece de razão a recorrente, sendo mais do que evidente que consta de fls 17 e 18 uma assinatura no lugar do notificado, em mandado enviado à GNR da Covilhã para cumprimento do artigo 50º do RGCO quanto à firma autuada.

No processo contra-ordenacional, quando o arguido for uma pessoa colectiva, deverão aplicar-se, em matéria de notificações, as regras da citação das pessoas colectivas estabelecidas no CPC.

E se assim é então tem-se por aplicável o n.º 3 do artigo 231º do CPC que estipula que as pessoas colectivas e as sociedades consideram-se pessoalmente citadas na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração.

«Por empregado deve entender-se não apenas o subordinado com vinculação formal em termos de contrato de trabalho, mas também qualquer pessoa ligada á pessoa colectiva (lato sensu) por um vínculo, de natureza civil (maxime de prestação de serviços) ou por outro, que a constitua no dever de lhe comunicar a ocorrência de actos praticados por terceiro que a tenham por destinatário ou lhe digam respeito» (Lebre de Freitas, Código do Processo Civil Anotado, vol. I. pág. 384).

Ora, constando de fls 17-18, uma clara assinatura de um indivíduo que estava na sede da empresa (na «loja chinesa), entendemos que era manifesto o dever de lhe comunicar a notificação, a qual é válida e regularmente efectuada.

Se assim não procedeu o funcionário, contra a empresa deve correr o ónus dessa inércia.

Improcede, pois, a referida nulidade.

3.4. Está ou não perfectibilizada, em termos objectivos e subjectivos, a prática, pela arguida, da contra-ordenação em causa?

Também com este argumento impugnou judicialmente a arguida a decisão que lhe aplicou a coima.

Contudo, não pode este tribunal alterar a factualidade dada como provada, como já atrás se viu.

Ou seja, resultou apurado para o tribunal recorrido:

1. No dia 13 de Outubro de 2009, no estabelecimento “W..., Lda.”, sito na … , na Covilhã, A... dirigiu-se a esse estabelecimento para proceder à devolução de uma mala, que tinha uma roda partida.

2. Perante a recusa em trocar a mala, A... solicitou o livro de reclamações, o que lhe foi recusado pela arguida.

3. Perante tal recusa, A... chamou a presença da GNR da Covilhã, tendo, nessa altura, com a GNR presente, sido entregue o livro de reclamações.

4. A arguida não procedeu com o cuidado e a atenção devida que se exige a quem é fornecedor de bens e serviços ao consumidor, e de que era capaz, concretamente ao nível da disponibilização do livro de reclamações logo que solicitado.

5. Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais à arguida.

Como tal, consta do facto 2 e 3 o elemento objectivo da contra-ordenação e do facto 4 o elemento subjectivo (negligência)

Conclui, e bem o tribunal recorrido que, face a tais factos, «mostra-se provado que a arguida não procedeu com o cuidado e a atenção devida que se exige a quem é fornecedor de bens e serviços ao consumidor, concretamente ao nível da disponibilização do livro de reclamações, de que era capaz.

A arguida, com o seu comportamento, violou a obrigação de entrega imediata do livro de reclamações após sua solicitação, a que estava obrigada e de que era capaz, o que significa que actuou com negligência (art. 15º do CP).

Assim sendo, a arguida, com o seu comportamento, cometeu a contra-ordenação, p. e p. nos termos dos arts. 3º, n.º 1, al. b) e n.º 4 e 9º, n.º 1, al. a), n.º 2 e n.º 3 do DL. n.º 156/2005, de 15.09, alterado pelo DL. n.º 371/2007, de 6.11.

Nem se venha dizer que poderia ter sido produzida prova, quando é certo que a arguida anuiu expressamente à decisão deste recurso por mero despacho, prescindindo de julgamento (fls 49).

Nesta parte, também improcede o recurso.

3.6. Resta a questão da admoestação.

Foi aplicada pelo tribunal uma coima[4], mais baixa que a da decisão administrativa.

Afastou, assim, a admoestação tal decisão recorrida:

«Por último, a arguida requer que a aplicação da coima seja substituída pela admoestação, que será suficiente e cumprirá plenamente o fim proposto pela lei aplicável.

O art. 51º, n.º 1 do DL. n.º 433/82, de 27 de Outubro, dispõe que “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.

A admoestação é uma censura solene aplicável a factos de escassa gravidade e relativamente aos quais o arguido actuou com a sua culpa reduzida, não havendo necessidade de ser utilizada a pena pecuniária adequada.

Entendemos que a admoestação não é capaz de cumprir plenamente o fim que se visa abarcar com a presente contra-ordenação e com a coima que lhe foi aplicada.

A arguida violou uma importante regra legal de protecção do consumidor; não estamos perante factos de escassa gravidade.

Em causa não está saber se existiam razões para a reclamação ou não; mas antes o cumprimento de uma formalidade legal que existe para protecção dos clientes e consumidores dos abusos dos fornecedores de bens e serviços.

O desrespeito pela norma em causa merece censura que não se compadece com a mera advertência, isto apesar da arguida não ter antecedentes contra-ordenacionais e de não ter beneficiado economicamente do seu comportamento.

Importa que a arguida, com o pagamento da coima, proceda ao reconhecimento de que procedeu contra e em violação de normas legais em vigor entre nós (o que não ocorre no recurso apresentado).

Assim, entendo que na situação sub judice a eficácia de uma mera repreensão não se mostra merecedora de confiança, não representando uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, mostrando-se insuficiente para que a arguida não volte a violar disposições legais nesta área.

Pelas razões expostas, concluo pela improcedência da requerida substituição da coima por admoestação».

Quid iuris?

Tem sido entendido que, pese embora a inserção sistemática do preceito em causa no Capítulo III, daquele Diploma Legal - “Da aplicação da coima pelas autoridades administrativas”, é de entender que a referência a “entidade competente” usada na redacção do referido normativo leva a que a admoestação possa ser aplicada, quer na fase administrativa, quer na fase judicial, ou seja, na fase de recurso judicial da decisão administrativa.

No caso, o tribunal ponderou tal pena mas não a aplicou.

A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal (art. 60º, n.º 4, do C. Penal).

No processo de contra-ordenação, a admoestação é proferida por escrito (art. 51º, 2 do RGCO).

Dispõe o art. 51º, n.º 1 do RGCOC que, “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.

Assim, a aplicação da admoestação – como autêntica coima de substituição - no processo de contra-ordenação depende de ser reduzida a gravidade da infracção e da culpa do agente[5].

E, por isso, conserva esta sanção um carácter meramente simbólico – o que até justifica que o CPP omita qualquer norma regulamentadora da execução da mesma -, o que não recomenda, de todo em todo, a sua aplicação in casu.

Como vimos, a gravidade da infracção cometida pela recorrente não pode ser qualificada de reduzida, tendo ela violado uma elementar regra legal de protecção dos consumidores.

Conclui-se, assim, e sem quaisquer outras considerações, pela não verificação dos requisitos de que depende a aplicação da admoestação no processo de contra-ordenação, assente ainda que comungamos da preocupação do Professor Figueiredo Dias quando, a fls 388 do seu «Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime», Edição Aequitas/Editorial Notícias, 1993), escreve o seguinte:

«O fundamento e a eficácia político-criminais de uma pena de substituição como a nossa pena de admoestação são, para o direito penal dos adultos de que aqui exclusivamente se trata, duvidosos e contestáveis.

A medida é indiscutivelmente de saudar e de apoiar num direito como o tutelar de menores (OTM, artigo 18º, a)[6]], ao qual é em absoluto estranho o cariz punitivo (…). Já porém, no direito penal de adultos onde a dimensão punitiva da pena, se bem que exclusivamente justificada por razões de prevenção, é irrenunciável, a pena de admoestação, comprimida entre as verdadeiras penas de substituição, por um lado, e a dispensa de pena, por outro, surge como questionável e, na verdade (na generalidade dos casos), dispensável».

Se tal assim é no mundo dos adultos/pessoas singulares, também o é no mundo das empresas (pessoas colectivas) em que a própria admoestação – apesar de prevista, não o ignoramos – não terá grande vocação incidental e se calhar grande eficácia (pois as “caras” das pessoas colectivas esbatem-se em frias e distantes inscrições em registo comercial, mutáveis q.b.).

Só resta validar a não aplicação da admoestação, como o fez sabiamente a decisão recorrida, e concordar com a coima mínima aplicada (€ 7500).

Improcede, assim, este 3º segmento do recurso.

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela arguida, com a taxa de justiça fixada em 3 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º/4 do RGCO, e 8º/4 e Tabela III do RCP já aplicável aos autos].

 


Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo também revisto pelo segundo - artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Alberto Mira)


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Proc. n.º 49/12.0TBCVL.
[3] Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.
[4] Coima essa que, em termos de moldura contra-ordenacional abstracta do artigo 9º/3 do DL 156/05 de 15/9, já foi declarada constitucional, pelo Acórdão do TC n.º 62/2011 (Pº 427/2010) de 2/2/2011.
[5]De forma eloquente, falou o Acórdão deste Relação de 10/3/2010 sobre esta «sanção» (Pº 918/09.5TBCBR.C1):
«Algumas dúvidas surgiram na doutrina quanto à natureza da admoestação estabelecida neste normativo, nomeadamente se se trata de uma «sanção de substituição» aproximativa à «dispensa da pena», entendendo-a como o equivalente à “dispensa de coima” (Santos Cabral e Oliveira Mendes, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Coimbra Editora, 2009, p. 174), como uma sanção autónoma de substituição da coima (António Beça Pereira, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 8ª edição Coimbra, 2009, pp. 27 e 129) ou antes como um «acto preparatório do arquivamento dos autos ditado pelos princípios da oportunidade e da proporcionalidade e não recorrível» (Frederico Lacerda da Costa Pinto, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano VII, fasc. 1 p. 92).
Pese embora o pouco esclarecedor quadro normativo que envolve a «admoestação» no domínio do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (Decreto Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro) entendemos que o modo como o legislador estabeleceu o regime da admoestação não pode deixar de ser visto ainda como uma medida sancionatória de substituição da coima, admissível em qualquer fase do processo (administrativa e judicial) e por isso passível de ser aplicada nesta fase processual, desde que verificados os seus pressupostos. Repare-se que o legislador legitima a «entidade competente» para aplicar a medida, numa afirmação conceptual pouco comum mas nem por isso possível de ser circunscrita à entidade administrativa com competência para aplicar a coima essa possibilidade.

Por outro lado não se encontra qualquer justificação dogmática para impedir o funcionamento da admoestação como medida de substituição à coima na fase jurisdicional do processo de contra-ordenação, verificados os pressupostos substantivos da sua aplicação. É ainda a concretização do princípio da necessidade das sanções que perpassa no ordenamento sancionatório penal e contra-ordenacional que se faz sentir.

Daí que a admoestação a que se alude no artigo 51º do RGCO, não trata apenas de uma sanção/acto susceptível de ser aplicado na fase administrativa do processo mas, independentemente de o ser, é também uma verdadeira sanção de substituição da coima, traduzida na sua dispensa, aplicada na fase judicial, desde que verificados determinados pressupostos.

Pressupostos que decorrem da constatação da reduzida gravidade da infracção (ilicitude) e da diminuição da culpa do agente».
[6] Entretanto revogado tal normativo – bem como todos os artigos 1º a 145º da OTM -, por força da entrada em vigor, em 1/1/2001, do Novo Direito das Crianças e Jovens, levado a cabo pelas Leis 147/99 de 1/9 e 166/99 de 14/9.