Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
330/09.6TBMLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: LEGITIMIDADE
COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE ANADIA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 874º DO C. CIVIL; Nº 4 DO ARTº 5º DO DEC.- LEI 67/2003, DE 08/04; ARTº 5º, Nº 1, DA DIRECTIVA 1999/44/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 25 DE MAIO DE 1999. DEC. LEI N.º 84/2008, DE 21 DE MAIO,
Legislação Comunitária: ARTº 5º, Nº 1, DA DIRECTIVA 1999/44/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 25 DE MAIO DE 1999.
Sumário: I. No tocante à legitimidade, a intenção do legislador foi a de a desvalorizar enquanto pressuposto processual, com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa - é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer ou para contradizer, com a procedência ou mérito do pedido ou do requerimento.

II. Há que ponderar, do conjunto da pretensão deduzida - pedido e causa de pedir - se o autor apresenta o demandado ou requerido como titular da posição controvertida ou se, tudo somado, ele não alega, sequer, uma posição consistente.

III. Nos casos de incumprimento ou de cumprimento defeituosos do contrato de compra e venda por parte do vendedor, o consumidor só pode/deve demandar o credor/financiador se, além dessa circunstância, se verificarem cumulativamente os seguintes requisitos: a conclusão de um contrato de crédito com pessoa diversa do vendedor; a existência de uma unidade económica qualificada, que tenha subjacente um acordo de cooperação, prévio e exclusivo, entre o credor e o vendedor; a concessão do crédito no âmbito desse acordo de colaboração; e a não obtenção pelo consumidor, junto do vendedor, da satisfação do seu direito.

IV. O princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional impõe que o prazo de caducidade de seis meses, previsto no nº 4 do artº 5º do Dec.- Lei 67/2003, na venda de coisas defeituosas, não é aplicável porque contraria o disposto no artº 5º, nº 1, da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999 - que consagrou normas e princípios com vista à uniformização das legislações dos Estados-Membros, relativos à “venda de bens de consumo (“qualquer bem móvel corpóreo”) e das garantias a ela relativas” , visando-se obter um nível mais elevado de defesa dos consumidores -, que estabelece claramente que o prazo de caducidade não pode ser inferior a dois anos, podendo ser reduzido a um ano em se tratando de bens em segunda mão, desde que haja acordo nesse sentido e ele conste das cláusulas contratuais, nos termos do segundo parágrafo do nº 1 do artº 7º.

V. Também temos por indiscutível que o quadro legal especial em que nos movemos, de defesa dos consumidores, é assumidamente proteccionista e transnacional - mercado único europeu -, daí que tenhamos por aplicável a nova redacção introduzida pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio e, assim, o prazo de caducidade mais dilatado, a contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

N…, com domicílio na Rua …, propôs a presente acção declarativa de condenação, a qual foi processada sob a forma sumária, contra STAND …, com domicílio na ...

Pede a procedência da acção e, em consequência, que seja decretada a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel Peugeot 407, matrícula FF…, com a consequente devolução ao autor do montante liquidado de € 17.583,13 (dezassete mil, quinhentos e oitenta e três euros e treze cêntimos), acrescido de juros de mora desde a data de interpelação do R., até ao seu integral e efectivo pagamento.

Fundamentou a sua pretensão, alegando que celebrou com o réu o contrato de compra e venda da sobre dita viatura pelo valor de € 17.583,13.

Nos documentos que acompanharam a legalização da viatura, consta que a mesma tinha a quilometragem de 65.089 à data da venda da mesma pelo R. ao A.

Acontece porém, que em Agosto, após algumas desconfianças, em virtude do desempenho do veículo, e alertado por um mecânico de que os problemas que surgiam no veículo poderiam ser consequência de uma quilometragem distinta da que constava na viatura, o A., através da sua mandatária solicitou informação à Peugeot Portuguesa, a informação sobre o registo da quilometragem da viatura Peugeot 407, matrícula FF… (matrícula francesa 693…), tendo obtido como resposta, em 12 de Agosto de 2008, que em 27/07/2007, a viatura em causa havia sido submetida a intervenção em garantia, realizada no Concessionário Peugeot Mary Automobiles L…, em França, e que nessa data a mesma possuía um registo de 135.154 Km.

Na sequência desse facto, em 10 de Setembro de 2008, foi reclamada a desconformidade da viatura com as características que haviam sido asseguradas à data da venda, requerendo assim a resolução do contrato de compra e venda da viatura em apreço.

Perante tal facto, a R. apenas respondeu que havia adquirido a viatura FF…, em França com a quilometragem de 64.213, não demonstrando qualquer viabilidade de resolução amigável do negócio.

Opõe-se o réu ao pedido invocando, desde logo, o erro na forma do processo, a sua falta de personalidade e capacidade judiciária, questões estas devidamente solucionadas no despacho saneador.

Invoca, ainda, a ilegitimidade do autor e a as excepções da caducidade e prescrição.

Quanto a estas, o Tribunal da 1.ª instância indeferiu-as, tendo o réu interposto a presente instância recursiva.

2.O Objecto da instância de recurso

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685º, do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

São as seguintes as conclusões que apresenta o réu/recorrente:

...

Não foram apresentadas contra-alegações. 

3. A Decisão

I. Da (i) legitimidade do autor.

Diz o R. na sua contestação:

  “O A. pede, entre outras coisas, a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel Peugeot 407, matricula FF...

 O A. para poder vir a juízo invocar tal pretensão teria de ser o dono do veículo.

 Do documento nº 3 junto com a P.I. – cópia do documento único do veículo – constata-se que o proprietário do veículo é a S… – Instituição de Crédito, S.A..

Daí resulta que o proprietário do veículo não é o A., sendo parte ilegítima na presente acção”.

Na sua resposta, afirmou o A.:

 “A cláusula de reserva da propriedade, prevista e regulada no art. 409º, do Código Civil para os contratos de alienação, traduz-se na sujeição do efeito translativo desses negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado, utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente. Tal cláusula apenas pode reservar o direito propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, para quem outorga o contrato de alienação, na posição de vendedor, pois só ele é o titular do direito reservado.

 No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem; Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade, incluída no contrato de financiamento, o mutuante não tem qualquer direito sobre o bem.

 Pelo que, no caso em apreço, não sendo a S… – Instituição de Crédito S.A., a alienante do carro, não podia ter reservado para si a propriedade para si, não tendo que estar representada aqui em Juízo.

 E, consequentemente, tem o A. plena legitimidade para propor sozinho, como de resto o faz, a presente acção.

A 1.ª instância para considerar a legitimidade do autor escreveu assim:

“Ora, compulsado o texto do articulado petitório, constata-se que a relação material controvertida respeita, do lado activo, ao A., enquanto comprador, e ao R. enquanto vendedor, no âmbito do contrato de compra e venda (cfr. art.º 874.º do Cód. Civil) do veículo automóvel, pretendendo o A. a resolução do contrato. A questão suscitada pelo R. quanto à propriedade do veículo (cláusula de reserva de propriedade), com a ressalva do respeito devido por contrário entendimento não se enquadra no âmbito do pressuposto processual da legitimidade, com os contornos supra delineados, mas antes já no mérito da causa.

Pelo exposto, julgo improcedente a invocada excepção dilatória de ilegitimidade activa. As partes são legítimas e encontram-se devidamente patrocinadas” – fim de citação.

Concordamos com esta maneira de ver a questão.

De facto, uma coisa é a legitimidade “ad causam” de uma parte – que é uma simples condição de admissibilidade ou um pressuposto processual ordenado para o acautelamento do interesse dessa parte, visando assegurar que não é desnecessariamente incomodada quanto a uma questão que lhe não respeita, i.e., uma condição necessária para que numa determinada acção, possa ser proferida uma decisão sobre o mérito da causa – outra, bem diversa, é a verificação, no caso concreto, das condições que, segundo a lei substantiva aplicável, permitem o proferimento de uma decisão de procedência ou improcedência, uma decisão de condenação ou de absolvição do pedido.

A legitimidade constitui um pressuposto processual positivo, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito.

É ao autor que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, tanto daqueles que lhe respeitam directamente, como daqueles que se referem quer ao tribunal quer à contraparte.

É isso que justifica que o não preenchimento do pressuposto processual importe uma consequência desfavorável para o autor - a falta dele constitui uma excepção dilatória e impede que o autor possa obter a tutela pretendida, nos exactos termos dos artigos 288.º n.º d), 487.º nºs 1 e 2, 493.º nºs 1 e 2, 494.º e) e 495.º -.

  A ilegitimidade constitui, assim, uma excepção dilatória nominada imprópria, dado que se limita a impugnar um pressuposto processual positivo que o autor considera preenchido.

Por essa razão, o regime da prova desta excepção é aquele que se encontra estabelecido para os factos alegados pelo autor e impugnados pelo réu - não é o réu que tem de provar que o pressuposto não está preenchido, mas o autor que deve provar que o pressuposto está satisfeito - artº 342.º, nº 1 do Código Civil.

Daí que o risco da falta de prova do pressuposto positivo recai sobre o autor, porque é ele a parte onerada com a sua prova - artºs 516.º e 342.º do Código Civil.

Como todos sabemos, o Código de Processo Civil – na configuração da legitimidade - optou por uma fórmula prática. Ao falar em relação material controvertida aponta para aquilo que o autor tenha querido apresentar em juízo - artº 26.º nº 3 .

Pode ler-se no Acórdão do STJ de 03.04.76, retirado do BMJ nº 256.º, pág. 112, que “a legitimidade é uma posição do autor e de réu em relação ao objecto do processo e tem de aferir-se, antes de mais, pelos termos em que o demandante configura o direito invocado e a ofensa que lhe foi feita”.

A lei, aderindo à solução proposta pela jurisprudência dominante, declara que o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, interesse que se exprime pelo prejuízo decorrente da procedência da acção e que, na falta de indicação contrária, consideram-se, para efeitos de legitimidade, titulares do interesse relevante, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor. A intenção do legislador foi, nitidamente, a de desvalorizar a legitimidade enquanto pressuposto processual com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa – neste preciso sentido, Maria José de Oliveira Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, BFC, Studia Iuridica, 15, pág. 179 -.

Agora, nos termos gerais, é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer ou para contradizer, com a procedência ou mérito do pedido ou do requerimento.

 Sendo o objecto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objecto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte.

Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.

Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência. Para a legitimidade processual ter algum conteúdo, deve entender-se que ele não se resume a uma questão de palavras: não chega, para que ela se tenha por verificada, que o autor diga, vocabularmente, que o réu ou requerido tem interesse em contradizer por ser titular da relação jurídica material objecto da controvérsia.

Há que ponderar, do conjunto da pretensão deduzida - pedido e causa de pedir - se o autor apresenta o demandado ou requerido como titular da posição controvertida ou se, tudo somado, ele não alega, sequer, uma posição consistente.

O que temos nos autos.

O autor pretende que seja decretada a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel Peugeot 407, matrícula FF… - que celebrou com o réu pelo valor de € 17.583,13 -, com a consequente devolução ao autor do montante liquidado de € 17.583,13 (dezassete mil, quinhentos e oitenta e três euros e treze cêntimos), acrescido de juros de mora desde a data de interpelação do R., até ao seu integral e efectivo pagamento.

Este é o leito por onde navega a legitimidade.

Como explica Lebre de Freitas - Código de Processo Civil Anotado, Vol I, Coimbra Editora, 2008 pág. 52 – “ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir», constantes da petição inicial”.

Tendo em conta que os pedidos são de resolução e de indemnização era, apenas, contra o vendedor que o autor teria de intentar a presente acção, já que o direito que pretende fazer valer se inscreve no domínio do contrato de compra e venda, mais concretamente, na venda de coisa defeituosa.

E foi o que fez.

Pode ler-se no Acórdão da Relação do Porto de 15.4.2010 – pesquisado na Col.Jur. Ano XXXV, Tomo II, pág.194 – “ nos casos de incumprimento ou de cumprimento defeituosos do contrato de compra e venda por parte do vendedor, o consumidor só pode demandar o credor/financiador se, além dessa circunstância, se verificarem cumulativamente os seguintes requisitos: a conclusão de um contrato de crédito com pessoa diversa do vendedor, a existência de uma unidade económica qualificada, que tenha subjacente um acordo de cooperação, prévio e exclusivo, entre o credor e o vendedor e a concessão do crédito no âmbito desse acordo de colaboração e a não obtenção pelo consumidor, junto do vendedor, da satisfação do seu direito”.

O artº 4º do Dec Lei nº 67/2003, de 08.04 - regime jurídico para a conformidade dos bens móveis com o respectivo contrato de compra e venda -, atribui ao comprador/consumidor de coisas defeituosas os direitos à reparação ou substituição da coisa, à redução do preço ou à resolução do contrato.

Atento este preceito legal o locador financeiro encontra-se à margem de qualquer conflito resultante da compra e venda e um eventual litígio relativo a um defeito na coisa locada, que deve ser dirimido entre o vendedor e o comprador.

De todo o modo, ainda se dirá o seguinte.

A disposição constante do art. 409.º, n.º 1, do Código Civil apenas permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa e já não ao - eventual - financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação.

 A cláusula de reserva, em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é contrária a uma norma de natureza imperativa – art. 409.º - e, em consequência, tal estipulação é nula, ao abrigo do art. 294.º do Código Civil, não produzindo qualquer efeito.

Por outras palavras, na sequência da venda efectuada, a transmissão da propriedade da coisa opera automaticamente e o comprador/consumidor passou a ser proprietário sem qualquer ónus.

Só quando o vendedor do bem - alienante - é simultaneamente o financiador da sua aquisição por outrem faz sentido que no respectivo contrato de crédito ou mútuo se inclua e mencione a cláusula da reserva de propriedade a seu favor, se acordada pelos contraentes.

 De contrário, se não é o proprietário do bem que vende, nada poderá transmitir -  “nemo plus iuris ad alium transferre postest quam ipse habet” -, e também, por nada ter e nada poder transmitir, nada poderá reservar sob condição – neste preciso sentido, por ex. os Acórdãos do STJ de 31.3.2011, 19.07.2008, 27.09.2007  e de 02.10.2007 -.

Mais, a reserva de propriedade apenas pode contemplar a situação do vendedor, proprietário do veículo automóvel a transmitir, e nunca a de um terceiro interveniente num negócio jurídico absolutamente autónomo e distinto em relação ao de compra e venda – Acórdão da Relação de Lisboa de 15.5.2012.

Assim, bem andou a 1.ª instância em considerar as partes com legitimidade para esta acção.

II.Quanto à caducidade;

Na sua contestação, alega, ainda o Réu:

 “O A. adquiriu o veículo em data anterior a 15/01/2008 (data da emissão do certificado de cession d’un vehicule), como, aliás, confessa na sua P.I., cf. doc. 2.

 Ele teria de denunciar qualquer defeito (a desconformidade) dos quilómetros no quadrante no prazo de dois meses após a aquisição e de propor a acção no prazo de seis meses após a denuncia.

 O A. denunciou por carta de 10/09/2008 o eventual defeito, muito mais de dois meses decorridos após a aquisição do veículo e de ele estar ao seu dispor; O A. logo que adquiriu o veículo veio a ter conhecimento dos quilómetros da viatura; Só veio a propor a acção em 22/06/2009, i.é., mais de nove meses depois, cf. P.I.

O R. só veio a ser citado em 02/09/2010.

 Só nessa data o R. teve conhecimento da pretensão do A.

 Quando o A. propôs a acção já havia prescrito o seu direito de denuncia e caducado o direito de acção, que se invoca, nos termos do D.L. 67/2003, 8/4 e artºs. 916 e 917, C. Civil”.

Na 1.ª instância escreve a Sr.ª Juiz, para fundamentar a sua decisão, o seguinte:

“Escalpelizando, temos que, detectado o defeito, tratando-se de bem móvel, o consumidor dispõe de 2 (dois) meses para apresentar a denúncia – dar a conhecer o defeito – dentro dos 2 (dois) anos contados da data da entrega do bem; apresentada a denúncia junto do vendedor, o consumidor tem o prazo de 2 (dois) anos para exercer os seus direitos, maxime propondo a pertinente acção contra o vendedor, sendo certo que, nos termos do art.º 331.º, n.º 1, do Cód. Civil, “só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo” (tratam-se, portanto de prazos de caducidade e não de prescrição).

Centrando-nos na situação sub judice, temos que o conhecimento da alegada desconformidade da quilometragem do veículo adveio ao A. em 12 de Agosto de 2008;

Em 10 de Setembro de 2008, denunciou ao R. tal desconformidade;

Em 22 de Junho de 2009 propôs a acção. (Sublinhe-se, ademais, que inexistindo qualquer outro prazo prescricional, aquele que estará em causa é ordinário, de 20 (vinte) anos – cfr. art.º 309.º do Cód. Civil – ainda bem longe do seu termo).

Assim, facilmente se constata não estar decorrido qualquer daqueles prazos, pelo que a invocada excepção peremptória de caducidade improcede.

Pelo exposto, julgo improcedente a invocada excepção peremptória de caducidade – fim de citação.

Contesta o Réu, desde logo, afirmando que o novo prazo de caducidade do direito de acção – que passou de seis meses para dois anos -, fixado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, não é aplicável a estes autos, já que o contrato que a fundamenta foi anterior a 15.1.2008.

Com todo o respeito que nos merece tal posição, não se mostra a mais acertada.

De facto, atento o princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional o prazo de caducidade de seis meses previsto no nº. 4 do artº. 5º. do Dec.- Lei 67/2003, assim como o prazo previsto no artº. 917º. do Cód. Civil, na venda de coisas defeituosas, não são aplicáveis porque contrariam o disposto no artº. 5º., nº. 1, da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999 - publicada no J.O. L 171/12, de 7.7.1999, que consagrou normas e princípios com vista à uniformização das legislações dos Estados-Membros, relativos à “venda de bens de consumo (“qualquer bem móvel corpóreo”) e das garantias a ela relativas” , visando-se obter um nível mais elevado de defesa dos consumidores -, que estabelece claramente que o prazo de caducidade não pode ser inferior a dois anos, podendo ser reduzido a um ano em se tratando de bens em segunda mão, desde que haja acordo nesse sentido e ele conste das cláusulas contratuais, nos termos do segundo parágrafo do nº. 1 do artº. 7º- neste preciso sentido, por ex., o Acórdão da Relação de Guimarães de 29.5.2012.

Também esta Relação de Coimbra – Acórdão de 17.4.2012 -, já se pronunciou no sentido de que, “… é indiscutível que o quadro legal especial em que nos movemos, de defesa dos consumidores, é assumidamente proteccionista e transnacional (mercado único europeu).

Daí que, seguindo o preclaro entendimento do Ilustre Professor - J. Baptista Machado - “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1983, pág. 241 e 242 - tenhamos por aplicável a nova redacção… e, assim, o prazo de caducidade mais dilatado…”– as decisões judiciais citadas foram retiradas do site www.dgsi.pt -.

Porque aquela Directiva, contém normas de direito positivo, incondicionais e precisas, que impõem deveres aos particulares e lhes conferem direitos, podem ser invocadas perante os tribunais nacionais, mesmo nas relações entre particulares – sobre a aplicabilidade directa horizontal, ver João Mota de Campos, in “Manual de Direito Comunitário”, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 200, págs. 357 a 365 -.

Pode ler-se no Acórdão desta Relação, de 8.11.2011, que “Prevendo a Directiva Comunitária nº 1999/44/CE de 25-05-1999 que os meios de defesa do comprador-consumidor de coisa defeituosa ali previstos: - reparação/substituição da coisa, redução do preço e rescisão -, não possam caducar antes de decorridos dois anos da entrega da coisa em causa, não respeitou tal norma o Dec.-Lei nº 67/2003 de 8/4 que declarando proceder à transposição da Directiva, manteve o prazo de seis meses para a caducidade daqueles direitos que já constava quer da lei de Defesa do Consumidor - Lei nº 24/96 de 31/7 - quer do art. 917º do Cód. Civil.”.

Assim, entendemos que a melhor interpretação vai no sentido de que se aplicam aos autos os prazos do Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, tal como o fez a 1.ª instância – embora o legislador, não assumindo responsabilidades directas, na incorrecção da transposição da directiva, trilhou o caminho na interpretação correctiva ao expressar a necessidade de introduzir novas regras que permitam ajustar o regime do mercado e colmatar as deficiências de aplicação que aquele diploma – 67/2003 – revelou, entendemos que o problema não era de aplicação do quadro legal vazado do DL nº 67/2003, mas antes suprir uma deficiência imanente da transposição ou seja a não consagração dos prazos de caducidade que constavam do artigo 5º da directiva, omissão que determinou que se mantivessem em vigor os prazos do artigo 617º do Código Civil -.

Verificada a falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor têm direito a que seja reposta sem encargos por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, art.º 4, devendo exercer tais direitos no prazo de dois anos após a entrega da coisa, podendo esse prazo ser reduzido a um ano, por acordo, se a coisa móvel for usada - Quanto a este tipo de bens, usados, a expectativa do consumidor em termos de desempenho e qualidade terá de ser necessariamente mais baixa, e tanto menor quanto maior tiver sido a anterior utilização do bem, e a idade do mesmo -.

É sabido que compete ao consumidor, antes de mais, a prova da desconformidade da coisa que lhe foi entregue.

Tratando-se de um facto constitutivo dos direitos conferidos ao comprador de coisa defeituosa, sobre ele recai o ónus de alegar e provar o vício que torna a coisa defeituosa, bem assim - excepto se o vendedor usar de dolo -, que efectivamente fez a denúncia - n.º1 do art.º 342.º -.

Já a cargo do vendedor fica o ónus de prova de que o respectivo prazo de caducidade já tinha decorrido, não tendo a denúncia sido oportunamente exercida, dado tratar-se de facto extintivo do direito - n.º2, do art.º 342.º -.

 A verificar-se impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor na acção.

Alega o autor, neste particular, que através da sua mandatária solicitou informação à Peugeot Portuguesa, a informação sobre o registo da quilometragem da viatura Peugeot 407, matrícula FF… (matrícula francesa 693…).

Tendo obtido como resposta, em 12 de Agosto de 2008, que em 27/07/2007, a viatura em causa havia sido submetida a intervenção em garantia, realizada no Concessionário Peugeot Mary Automobiles L…, em França, e que nessa data a mesma possuía um registo de 135.154 Km, em 10 de Setembro de 2008, foi reclamado o desconformidade da viatura com as características que haviam sido asseguradas à data da venda, requerendo assim a resolução do contrato de compra e venda da viatura em apreço.

O que contrapôs o réu?

Apenas que havia adquirido a viatura FF…, em França com a quilometragem de 64.213, não demonstrando qualquer viabilidade de resolução amigável do negócio.

Mais, que o A. adquiriu o veículo em data anterior a 15/01/2008 (data da emissão do certificado de cession d’un vehicule), como, aliás, confessa na sua P.I., sendo que teria de denunciar qualquer defeito (a desconformidade) dos quilómetros no quadrante no prazo de dois meses após a aquisição e de propor a acção no prazo de seis meses após a denúncia.

O A. denunciou por carta de 10/09/2008 o eventual defeito, muito mais de dois meses decorridos após a aquisição do veículo e de ele estar ao seu dispor, já que logo que adquiriu o veículo veio a ter conhecimento dos quilómetros da viatura -o sublinhado é nosso.

Mas, perguntamos nós?

Quais quilómetros?

Os que vieram da informação prestada pela Peugeot Portuguesa, ou, os que constavam no veículo aquando da celebração do contrato?

Ao réu incumbia tal alegação - só existe conhecimento do defeito a partir do momento em que o comprador ficou ciente da sua existência, não bastando a sua suspeita ou dúvida -.

 Não o fez, pelo que, ficamos com as palavras do autor, quando refere que só em 12 de Agosto de 2008, teve conhecimento da desconformidade.

Assim, tendo em 10 de Setembro de 2008 denunciado ao R. tal desconformidade e em 22 de Junho de 2009 proposto a acção, não estava decorrido qualquer daqueles prazos.

Já os factos alegados pelo réu, nos Pontos 25 e segs. do seu articulado, serão importantes para o conhecimento do mérito desta acção e, por isso, tal conhecimento foi remetido para julgamento.

Improcede, pois, a instância recursiva.

Resta o sumário da decisão:

I. No tocante á legitimidade, a intenção do legislador foi a de a desvalorizar enquanto pressuposto processual, com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa - é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer ou para contradizer, com a procedência ou mérito do pedido ou do requerimento.

II. Há que ponderar, do conjunto da pretensão deduzida - pedido e causa de pedir - se o autor apresenta o demandado ou requerido como titular da posição controvertida ou se, tudo somado, ele não alega, sequer, uma posição consistente.

III. Nos casos de incumprimento ou de cumprimento defeituosos do contrato de compra e venda por parte do vendedor, o consumidor só pode/deve demandar o credor/financiador se, além dessa circunstância, se verificarem cumulativamente os seguintes requisitos: a conclusão de um contrato de crédito com pessoa diversa do vendedor, a existência de uma unidade económica qualificada, que tal subjacente um acordo de cooperação, prévio e exclusivo, entre o credor e o vendedor e a concessão do crédito no âmbito desse acordo de colaboração e a não obtenção pelo consumidor, junto do vendedor, da satisfação do seu direito.

IV. O princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional impõe que o prazo de caducidade de seis meses, previsto no nº 4 do artº. 5º do Dec.- Lei 67/2003, na venda de coisas defeituosas, não é aplicável porque contrariam o disposto no artº. 5º, nº 1, da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999 - que consagrou normas e princípios com vista à uniformização das legislações dos Estados-Membros, relativos à “venda de bens de consumo (“qualquer bem móvel corpóreo”) e das garantias a ela relativas” , visando-se obter um nível mais elevado de defesa dos consumidores -, que estabelece claramente que o prazo de caducidade não pode ser inferior a dois anos, podendo ser reduzido a um ano em se tratando de bens em segunda mão, desde que haja acordo nesse sentido e ele conste das cláusulas contratuais, nos termos do segundo parágrafo do nº 1 do artº 7º.

V. Também, temos por indiscutível, que o quadro legal especial em que nos movemos, de defesa dos consumidores, é assumidamente proteccionista e transnacional - mercado único europeu -, daí que, tenhamos por aplicável a nova redacção introduzida pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio e, assim, o prazo de caducidade mais dilatado, a contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor.

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

(José Avelino Gonçalves - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)