Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1194/09.5TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PEDIDO
FUNDAMENTAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
REQUERENTE
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, 20º E 22º DO CIRE.
Sumário: I – A responsabilidade civil a que alude o artigo 22º do CIRE não pode deixar de ter em conta qualquer das modalidades de dolo – directo, necessário e eventual.

II - Não se verificando a situação legal enunciada no artigo 3º do CIRE nem qualquer dos requisitos vazados no artigo 20º do CIRE, não pode deixar de considerar-se infundado o pedido de declaração de insolvência.

III - A declaração infundada do pedido de declaração de insolvência é geradora de responsabilidade civil na modalidade de danos patrimoniais e não patrimoniais.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra.

                1. Relatório

M…, Lda. instaurou os presentes autos de insolvência nº … contra T…, S. A., pedindo a declaração de insolvência desta última, que, no seu requerimento de oposição, pediu a condenação da requerente a pagar à requerida, a título de indemnização, a quantia global de € 79.800,00 (setenta e nove mil e oitocentos euros) acrescida de juros até ao efectivo e integral pagamento.

Para o efeito, alegou, em síntese, que a declaração de insolvência mostra-se um facto prejudicial aos interesses da requerida, uma vez que possui um volume de negócios que lhe permite prosseguir a sua actividade, sendo reconhecida pela concorrência e pelos parceiros com quem trabalha, mormente pela Banca, como uma empresa séria, que sempre honrou os compromissos assumidos, sendo certo que a declaração de insolvência colocaria, como colocou, em causa a imagem credível que possui no seu sector de actividade. Ora, a conduta da requerente integra pedido infundado de declaração de insolvência, nos termos do artigo 22º do CIRE, e mostra-se ilícita atentos os meios que utiliza para lesar os interesses da requerida, porque, a requerente, sendo também uma empresa, não pode desconhecer das repercussões que um pedido de declaração de insolvência reflecte na esfera do devedor, mormente prejuízos comerciais, na medida em que a solvabilidade económica daquele é colocada em causa, pelos fornecedores, pelas instituições e pelo próprio público em geral/potenciais clientes e, não obstante, não se coíbe de recorrer a este expediente, bem sabendo que o seu pedido é manifestamente infundado atendendo ao supra alegado.

Pretende a requerente com o requerimento inicial afastar a requerida do mercado, não olhando a meios nem a fins para atingir este objectivo, quando alega que esta última “não é digna de continuar em actividade”, conduta ilícita e dolosa, que lhe causou danos.

É que mesmo antes de a requerida ter sido citada para deduzir oposição foi contactada por uma Instituição Bancária, com a qual se encontrava em vias de celebração de um negócio, que a questionou sobre o facto de ter dado entrada a presente acção, questionando-a sobre o porquê daquela situação.

Por esse motivo a requerida viu-se na contingência de ter de se explicar, sendo inevitável a situação de desconfiança criada, obrigando a um reforço de garantias e apresentação de documentos, até ali não solicitados. Mais, a requerida viu recusada a adjudicação de alguns contratos de empreitada, em virtude dos donos de obra se terem recusado, com receio de que aquela incumprisse as suas obrigações, tendo neste caso a requerida perdido a possibilidade de obter, pelo menos, uma facturação de € 89.000,00 (Oitenta e nove mil euros) e consequentemente o lucro subjacente, ao normalmente praticado no mercado da construção civil que poderia ascender aos € 17.800,00 (dezassete mil e oitocentos euros), correspondente a 20% do facturado. Acresce ainda que, a requerente colocou em causa o bom-nome da requerida pretendendo e conseguindo denegrir a sua imagem comercial, e consequentemente a imagem de todas as empresas do Grupo, provocando danos à sua imagem e credibilidade comercial que a mesma computa no valor total de € 50.000,00 (cinquenta mil euros). Para além deste montante, a requerida, face ao pedido de insolvência apresentado viu-se forçada a: efectuar deslocações e reuniões de administração a Instituições bancárias para efeitos da explicação, obtenção de declarações e comprovação da real situação; a solicitar declarações abonatórias junto de fornecedores e cliente, sendo necessário reuniões com os mesmos; a afectar recursos humanos da estrutura empresarial à reunião de todos os documentos comprovativos da situação de solvabilidade da mesma; os factos supra invocados geraram prejuízos patrimoniais à requerida, nomeadamente, despesas de deslocação, horas de trabalho relativamente a recursos humanos, horas dispendidas pela própria administração, sendo que o trabalho de uma empresa de construção não é reunir documentos para comprovar a solvabilidade perante um pedido de insolvência no mínimo desnecessário, prejuízos que a requerida computa no valor de € 12.000,00, mostrando-se preenchido o nexo de causalidade entre a conduta da primeira e os danos que causou à actividade prosseguida pela segunda. Entretanto, a requerente veio desistir do pedido de insolvência, que foi homologada, por sentença proferida no decurso da audiência de discussão e julgamento, tendo, ainda, sido ordenada a prossecução dos autos para a apreciação do pedido infundado de declaração de insolvência, nos termos do artigo 22º do CIRE, em virtude de a requerida ter declarado que mantém o interesse na apreciação de tal pedido.



                Por despacho de folhas 435, o Tribunal convidou a T…, SA a aperfeiçoar o seu articulado, o que mereceu acolhimento como se constata através do articulado de folhas 438 a 440 e juntou documento.

                A M…, Lda. nos termos vazados no requerimento de folhas reservou o direito de resposta quanto aos documentos para momento posterior e quanto ao requerimento de aperfeiçoamento entende que foi apresentado fora de prazo.

                Respeitado o contraditório a T…, Lda. respondeu nos termos constantes de folhas 458 pugnando pelo indeferimento do requerido.

                Por requerimento de folhas 465, a M…, Lda. impugnou a letra e o conteúdo do documento apresentado por T…, SA.

                No despacho saneador julgou-se a instância válida e regular.

                Consignaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória, sendo objecto de reclamação por parte de T…, SA que notificada a M…, Lda. requereu o seu indeferimento.

                Por despacho de folhas 500 a 503 a reclamação foi julgada improcedente.

                Realizada a audiência de discussão e julgamento e lida a decisão sobre a matéria de facto controvertida foi proferida decisão que julgou o pedido da requerida T…, S. A. parcialmente provado e procedente e, em consequência, condenou a requerente M…, Lda. a pagar à mesma requerida:

a. A quantia de € 17.800,00, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de condenação da requerente por pedido infundado de insolvência, até integral pagamento.

b. A quantia de € 12.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data em que transitar em julgado a presente decisão, até integral pagamento.

c. Absolveu a requerente M…, Lda. do remanescente pedido.

Notificada da sentença, a sociedade M…, Lda. interpôs recurso que instruiu com as suas doutas alegações que rematou formulando as seguintes conclusões:

                A requerida/apelada não apresentou contra alegações.

                Por despacho de folhas 723, o recurso foi admitido como apelação, com subida imediata e nos autos e efeito meramente devolutivo.

2. Delimitação do objecto do recurso

                As questões[1] a decidir na apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 668º, 684º, nº 3 e 685ºA, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

Ø Aparente impugnação da matéria de facto.

Ø Violação do artigo 22º do CIRE.

Ø Os valores de condenação são desproporcionados e ultrapassam o pedido. Nulidade da sentença.

Ø Enriquecimento sem causa.

Ø Condenação versus pedido de insolvência por parte da apelante

                3. Colhidos os vistos, aprecia-se e decide-se

                3.1 – Aparente impugnação da matéria de facto

                Como se pode ler nas doutas alegações, a impugnante desenha a realidade através da alegação de um conjunto de factos – realização de trabalhos com incorporação de mão de obra e materiais – a pedido da apelada que executados, facturados e não pagos na data do vencimento, pese ter reclamado o seu pagamento pelo telefone e por carta registada com aviso de recepção datada de 23 de Abril de 2009 e carta registada subscrita desta vez pelo Ilustre Mandatário que não obtiveram resposta.

                Voltando-se agora para os Tribunais refere que estes levam anos para resolverem qualquer questão, tal como as execuções levam anos, a não ser os honorários dos Srs. Solicitadores da execução e daí ter requerido a insolvência. Reafirma desconhecer a apelada e que não quis denegrir a sua imagem. Só recebeu após a entrada da acção em tribunal e no dia que teve conhecimento do pagamento desistiu do pedido. Esta é a terceira vez que havia sido pedido a insolvência da requerente/apelada e daí que o pedido de insolvência não lhe tenha causado qualquer prejuízo, já que não foi publicado em lado algum. Também se não percebe o cálculo dos valores de indemnização por referência a 20% de facturação.

                3.2 A apelante respondeu ao pedido de condenação por uso indevido do processo de insolvência nos termos constantes de folhas 420 e 42. Já quanto ao articulado aperfeiçoado, apelante limitou-se a impugnar o documento que a apelada protestou juntar com o articulado aperfeiçoado.

                Como o princípio do dispositivo tem muito de auto-responsabilidade das partes em sede de alegação de factos estruturantes da ou das causas de pedir, o ónus de impugnação dos factos articulados na petição e aqueles em que se baseiam as excepções. Aqui não é válido o princípio da cooperação sob pena de violação grosseira do princípio da igualdade substancial das partes – artigos 264º, 266º, 490º e 3ºA todos do CPC.

Daqui decorre que só à parte responsabiliza a não tomada de posição sobre os factos alegados pela requerente/apelada em sede de impugnação do pedido de insolvência e depois em sede de articulado aperfeiçoado. A matéria de facto controvertida e vazada na base instrutória teve como limite os factos alegados pelas partes e foi objecto de decisão por parte do Tribunal a quo que não foi alvo de reparo.

Por outro lado e transposto o problema para a sede dos recursos, verificamos com total clareza que a parte não cumpriu os ónus vertidos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 685ºB do CPC e nesse sentido impedido está este Tribunal de conhecer tal questão nos termos do artigo 712º, 1, a/b/c, sob pena de violação do disposto no artigo 666º do CPC e consequente nulidade do acórdão nos termos do artigo 668º,1/d, parte final.

Tudo isto para concluirmos pela transcrição da matéria de facto tal como consta da decisão de 1ª Instância e para a partir dela, tomar-se posição sobre as questões colocadas a este Tribunal.

3.3 – Sobre o «tempo» que os Tribunais demoram para resolver os litígios e sobre a ineficácia das execuções, vincamos o seguinte: os tempos processuais são os constantes no Código de Processo Civil e se violado grosseiramente o nº 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa ex vi artigo 658º do CPC, a lei e bem faculta à parte a interposição de acção declarativa de condenação com base na responsabilidade extracontratual contra o Estado Português e se tiver ganho de causa a existência de direito de regresso contra o Juiz precedido de parecer positivo a elaborar pelo Venerando Conselho Superior da Magistratura.

Sobre a acção executiva desde que cumpridas as formalidades impostas por lei que os Tribunais não podem deixar de cumprir e se mesmo assim a parte executada assumir comportamento que leve à dissipação de bens, também aqui a lei substantiva coloca ao dispor da parte os meios necessários para se fazer pagar do seu crédito.

Daí que entendamos que não podem ser assacadas responsabilidades aos Tribunais pela escolha da estratégia que a apelante seguiu quando requer a insolvência ao invés de propor a necessária acção declarativa ou socorrer-se dos procedimentos a que alude o DL nº 269/98, de 1.9.

                4. Matéria de facto provada

...

5. Violação do artigo 22º do CIRE.

                Defende a apelante que o artigo 22º do CIRE obriga à prova de comportamento doloso por parte da requerente de insolvência, o que se não verifica uma vez que não conhece a sociedade apelante cuja sede dista da sua mais de 70 quilómetros e que em lado algum publicidade negativa nem comentou a situação.

                Repisando a não impugnação da matéria de facto por parte da apelante, reafirmamos que a análise das questões por si suscitadas não podem deixar de ter como referencial factual a matéria dada como provada.

                Declara o artigo 22º do CIRE: a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo.

                Deixando de lado a controvérsia doutrinal[2], embora não possamos deixar de afirmar, com todo o respeito por tão Ilustres Mestres que se não pode ler no artigo 22º do CIRE aquilo que o legislador não quis consagrar – artigo 9º do CC. Com efeito, se o legislador escreveu inequivocamente mas apenas em caso de dolo a sua extensão aos casos de negligência – artigos 309º, 456º e 819º, todos do CPC – não tem acolhimento na lei.

                Em acórdão, por nós subscrito, o Exmo. Juiz Desembargador Teles Pereira escreveu:
               Assim, pressupondo – como aqui pressuporemos, sem, todavia, tomar posição decisoriamente operante sobre o alcance do artigo 22º do CIRE – a necessidade de nos situarmos no quadro do dolo (de nos situarmos para além da negligência consciente, rectius, excluindo esta pela afirmação do dolo), para alicerçar um dever de indemnizar a cargo do requerente da insolvência infundada, não deixaremos de sublinhar que este – o dolo em sede de imputação delitual; em sede de toda a imputação delitual – pressupõe e basta-se com qualquer das formas de dolo: o directo, o necessário ou o eventual. Centrando-nos na forma – corresponde ela como dissemos ao dolo eventual – que aqui é susceptível de apresentar relevância em função da factualidade apurada e do debate induzido pelo recurso, diremos que esta forma de dolo (dolo eventual), respeitando às situações em que o agente representa a verificação de determinado resultado como consequência possível da sua conduta e actua, conformando-se com essa verificação, ou, por outras palavras, actua em determinado sentido que, não sendo directamente o da violação da norma, pode implicar uma inobservância voluntária do elemento comportamental por esta pretendido induzir na generalidade das pessoas, esta forma de dolo, dizíamos, demarca-se de uma conduta conscientemente negligente, reeditando – rectius, pressupondo – aqui os esquemas argumentativos empregues no clássico debate travado no Direito Penal em torno das fórmulas hipotética e positiva de Frank na distinção entre negligência consciente e dolo eventual, debate este cuja transposição para a imputação indemnizatória delitual é caracterizada por António Menezes Cordeiro nos seguintes termos : Em relação ao dolo eventual. O agente prossegue um fim que passa eventualmente pela violação. Há dolo? Na resposta a tal questão, têm sido apresentadas várias soluções. Para uns, haveria dolo quando o agente tomasse a violação como provável (teoria da verosimilhança); para outros, o dolo surgiria quando, a ter previsto a violação como certa, o agente tivesse mantido a actuação (fórmula hipotética de Frank) ou então, quando o agente procedesse com a aceitação antecipada da violação eventual (fórmula positiva de Frank). Por nós, temos por correcta a ideia de que há dolo eventual quando a conduta do agente ainda possa ser reconduzida à violação da própria norma e não à simples inobservância de deveres de cuidado: Para tanto basta averiguar se a conduta do agente era norteada, de antemão pela possibilidade de violação, sendo esta aceite como fim, ainda que instrumental […][3].
                Ora, não podemos deixar de considerar que foi intenção do legislador abarcar qualquer modalidade de dolo – directo, necessário e eventual – daí que a responsabilidade civil a que alude o artigo 22º do CIRE não possa deixar de ter em conta qualquer destas modalidades de dolo.
                Afastada pela matéria de facto apurada a verificação de qualquer uma das situações elencadas no artigo 20º do CIRE, vejamos se a sua conduta expressa cabe na previsão do artigo 22º do CIRE e em caso de resposta afirmativa se estão ou não verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual justificativos da sua condenação em indemnizações por dano patrimonial e não patrimonial.
                Na consideração do património da apelada e no valor da dívida ficamos com a firme certeza que a posição assumida pela apelante ao requerer a insolvência da apelada não pode deixar de ser caracterizada como dolosa na medida em que bem sabia que bastava a penhora de um dos bens da apelada para ver o seu crédito no valor de € 921,28 mais juros integralmente satisfeito – factos 5, 22, 23 e 39 - não relevando tudo o que a apelante fez constar nas suas doutas conclusões – cf. conclusões 6 a 9 – uma vez que não integra o elenco dos factos provados, nem o mesmo, como já tivemos oportunidade de referir, foi impugnado nos termos previstos no Código de Processo Civil. Ora, não se verificando nenhuma das situações vazadas no artigo 20º do CIRE, logo, estamos perante um pedido de insolvência infundado e por isso ilícito.
                Sobre a experiência da apelante sobre o recurso ao pedido de insolvência como finalidade de se ver paga pelos trabalhos realizados, usaremos a expressão que «cada caso é um caso» e que se impunha o estudo da situação económico/financeira da apelada, o seu património a existência de dívidas à Segurança Social ou ao Fisco, o incumprimento generalizado das suas obrigações para com os credores, o que não foi feito e se feito não transparece dos factos, antes evidenciando um activo superior ao passivo – facto 24.
Ainda sobre o alegado na conclusão 16 sobre a existência de outros processos de insolvência entrados no Tribunal de Vila Nova de Ourém, diremos que não tem qualquer relevância pelas seguintes razões: se em curso sempre a apelante podia juntar aos autos certidão a emitir pelo Tribunal respectivo do qual constasse a situação dos autos, a data de entrada do requerimento inicial e se havia ou não sido proferida decisão, não competindo ao Tribunal, como a apelante o requer, a notificação da apelada, por parte deste Tribunal, para proceder à sua junção – artigo 528º do CPC – na medida em que tais documentos a existirem estão disponíveis nos Tribunais respectivos quando requeridos para fins judiciais – cf. o artigo 693º-B do CPC.
Sempre com a salvaguarda de melhor interpretação, ao recorrer ao processo de insolvência como forma de lhe ser paga a quantia de cerca de € 1.000,00, a apelante ultrapassou a temeridade, para se concentrar numa actuação intencionalmente querida sem cuidar, pelo menos a matéria de facto não o expressa, se estavam ou não preenchidos os requisitos enunciados nos artigos 3º e 20º ambos do CIRE.
Em conclusão e por não se verificar a violação do artigo 22º do CIRE, o recurso improcede quanto a esta questão.

6. Os valores de condenação são desproporcionados e ultrapassam o pedido. Nulidade da sentença por violação do disposto nos artigos 661º e 668º/1/a/b/d/ e e/ ambos do CPC. Enriquecimento ilícito.

A desproporção da condenação fica para momento posterior já que não tem a ver com eventual nulidade mas sim com hipotético erro de julgamento. Também as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 668º do CPC nada têm a ver com a nulidade eventualmente cometida quanto à condenação em pedido superior e diverso do pedido e daí que dela conhecemos antecipadamente pese o facto de em nenhuma das suas doutas conclusões enquadrar a nulidade da sentença por violação daquelas normas, limitando-se a identificá-las na conclusão 22.

Sobre a falta de assinatura e consultando o processo electrónico e embora não conste do mesmo a assinatura da Exma. Juiz tal sucedeu, seguramente, por se tratar de assinatura certificada digitalmente como sucede com todos os despachos proferidos nos autos, incluindo o despacho saneador, factos assentes e base instrutória. Daí que se não possa falar em falta de assinatura, já que estou certo que se tal sucedesse a própria secção antes de proceder ao registo da sentença supriria essa nulidade.

Relativamente à alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC – a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – diremos que a sentença responde com clareza às exigências enunciadas no artigo 659º do CPC explicitando os factos e o direito aplicável não padecendo de qualquer omissão ou falta de fundamentação, tal como existe uma relação lógica entre o direito, os factos e a decisão cumprindo de forma expressiva o silogismo judiciário. Se a análise jurídica é ou não correcta se a condenação respeitou ou não os pressupostos que enformam a responsabilidade civil extracontratual não têm a ver com a nulidade da sentença mas antes com eventual erro de julgamento.

A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC – quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – verifica-se quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, isto sem prejuízo do conhecimento de alguma delas prejudicar a apreciação das restantes (artigo 660º, nº 2 do CPC).

                Da conjugação do disposto nos artigos 668º, nº 1 d) e 660º, nº 2, ambos do CPC, o Juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação, mas está, naturalmente, impedido de se pronunciar sobre questões não submetidas ao seu conhecimento: no primeiro caso – se não se pronunciar sobre todas as questões – existirá uma omissão de pronúncia, no segundo caso – conhecer de questões não submetidas à sua apreciação – ocorrerá um excesso de pronúncia. Deve sublinhar-se que a lei fala, em questões, ou seja, em assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de direito e de facto em que as partes fundamentam as suas pretensões. Naquele substantivo – questões – como é jurisprudência uniforme não cabem razões ou argumentos usados pelas partes[4].

                Lendo a sentença recorrida, o Tribunal verificamos que tomou posição sobre a causa de pedir – responsabilidade civil extracontratual – invocada pela requerida e daí que não vislumbremos nem a apelante o indica que questões é que foram conhecidas pelo Tribunal em violação da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC e daí que se não verifique a alegada nulidade.

É nula a sentença – quando condene em objecto diverso do pedido. Os apelantes defendem que a sentença é nula, por violação da alínea e) do nº 1 do artigo 668º do CPC na medida em condenou em objecto diverso do pedido sem no entanto identificarem o trecho do pronunciamento decisório violador de tal norma, sendo que aquele artigo – 668º, nº 1, alínea d) – está relacionado com o disposto no artigo 661º, nº 1 do mesmo Código, onde se fixam os limites da condenação.

                Compulsando o processo verificamos que a requerida reclama a quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais e o montante de € 29.800,00 a título de danos patrimoniais – cf. artigos 153 a 160 da oposição de folhas 49 e 50 – formulando a final a condenação da requerente no montante de € 79.800.00.

                Por sua vez a sentença recorrida condenou a requerente no montante de € 17.800,00 a título de danos patrimoniais e € 12.500,00 por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de notificação da requerente até integral pagamento.

                Também aqui não encontramos fundamento para dar por verificada a nulidade, já que a condenação se quedou dentro dos limites do pedido formulado pela requerente, pelo que nesta parte também o recurso não pode deixar de improceder.

                6.1 – Sobre a desproporção da condenação, a apelante apelada de arbitrária, desproporcional e provoca o enriquecimento ilícito de uma das partes à custa da outra, sendo que o Tribunal conseguiu transformar uma dívida do devedor num crédito 50 vezes superior.

                Sobre o dano não patrimonial e pese a posição adoptada pela apelante sobre o exagero do lucro de 20% por obra em virtude da crise, a verdade é teve possibilidade no tempo e no lugar próprio de discutir esse valor o que claramente não fez. Sublinhe-se que a matéria de facto relativamente ao dano patrimonial é expressiva – cf. factos 37 e 38 – e que o montante de condenação corresponde a um lucro de 20% que não foi impugnado pela apelante nos termos expressamente fixados por lei – cf. artigo 685ºB do CPC. Também no concerne ao dano não patrimonial a sentença fixou um valor equilibrado - € 12.500,00 – e daí que também não haja nada a apontar. O que poderia ser discutido é se a não liquidação das facturas por parte da requerente nas datas das duas interpelações pode de algum modo ter concorrido para a tomada de posição da requerente/apelante. Parece-nos que não. Com efeito não existe qualquer relação entre uma interpelação para cumprimento de obrigação pecuniária e a interposição infundada de pedido de insolvência da requerida/apelada, já que não só não estava em causa qualquer das situações vazadas no artigo 20º do CIRE como a lei colocava ao dispor do credor mecanismos legais para impelir a devedora ao cumprimento. Sobre os tempos das acções e eficácia das execuções já tomámos posição e daí que nada mais haja a acrescentar. 

                6.2 Sobre o enriquecimento sem causa – artigo 473º do CC – diremos que não estavam verificados os seus pressupostos em particular a inexistência de causa justificativa, já que os fundamentos da condenação têm uma causa, responsabilidade civil extracontratual geradora do dever de indemnizar.

Sobre a possibilidade de centrar a figura do enriquecimento ilícito por referência aos pressupostos do dever de indemnizar, diremos que o artigo 22º do CIRE é expresso quanto ao facto gerador de responsabilidade civil – pedido infundado de declaração de insolvência – nada impedindo que no âmbito desta responsabilidade civil e se verificados os pressupostos se apurem factos capazes de integrar a figura do dano não patrimonial (artigos 483º e 496º do CC) e dano patrimonial (artigos 483º, 562º, 563º, 564º e 566º, todos do CC) e que em consequência a parte seja condenada, como foi, a ressarcir os danos que a sua conduta provocou na requerida/apelada.

                6.3 Embora não se trate de uma questão, mas de uma tentativa de transferir para o Tribunal as consequências da condenação, limitar-nos-emos a afirmar que são da inteira responsabilidade da parte os caminhos que optou por trilhar e cujas consequências só a ela responsabilizam


*

                Em conclusão

I. A responsabilidade civil a que alude o artigo 22º do CIRE não pode deixar de ter em conta qualquer das modalidades de dolo – directo, necessário e eventual.

II. Não se verificando a situação legal enunciada no artigo 3º do CIRE nem qualquer dos requisitos vazados no artigo 20º do CIRE, não pode deixar de considerar-se infundado o pedido de declaração de insolvência.

III. A declaração infundada do pedido de declaração de insolvência é geradora de responsabilidade civil na modalidade de danos patrimoniais e não patrimoniais.
                Decisão
                Nos termos e com os fundamentos expostos acorda-se em negar provimento ao recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
                Custas pela apelante - artigo 446º do CPC.

                Notifique.

               

Jacinto Meca (Relator)

 Falcão de Magalhães

Sílvia Pires


[1] É dominantemente entendido que o vocábulo «questões» não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por «questões» as concretas controvérsias centrais a dirimir – Ac. STJ, datado de 2.10.2003, proferido no âmbito do recurso de revista nº 2585/03 da 2ª Secção.
[2] Para Luís Carvalho Fernandes e João Labareda – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Reimpressão/2009, Quid Juris – Sociedade Editora – pág. 144 – a dedução em juízo de uma pretensão infundada constitui impetrante em responsabilidade civil perante o requerido, desde que tenha havido dolo ou culpa grave. Rege, em regra, nesta matéria o nº 1 do artigo 456º do CPC, cujo alcance é integrado pelo nº 2. A consequência é a de que deve indemnizar o lesado, podendo a indemnização consistir no reembolso das despesas a que o requerente tenha obrigado a parte contrária e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos como consequência directa ou indirecta da litigância – ex v i do artigo 457º- do CPC.  Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito da Insolvência – Almedina, pág. 136/7 escreve: não nos parece aceitável que a lei possa consagrar uma responsabilidade limitada ao dolo por parte de quem decida mover infundadamente um pedido de declaração de insolvência, sabendo-se que no âmbito da responsabilidade civil a regra é que tanto se responde por dolo como por negligência (artigo 483º/1 do CC), apenas se admitindo uma limitação da indemnização neste último caso (artigo 494º do CC). Por outro lado, a solução genericamente aplicável para a dedução de acções infundadas é a da responsabilidade tanto por dolo como por negligência, o que resulta quer do regime geral da litigância de má fé – artigo 456º do CPC – (…). Consequentemente, este artigo 22º, ao se referir a uma acção especialmente grave, que é o pedido de insolvência, estabeleceria uma menor responsabilização do seu autor do que é comum em consequência de acções bastante menos gravosas, o que instituiria uma contradição valorativa insustentável. Este autor citando Menezes Cordeiro escreve: veio propor uma hermenêutica diferente. A seu ver, haveria que distinguir entre a apresentação do pedido pelo devedor, que gera responsabilidade perante os credores, e a sua apresentação por um dos credores, que gera responsabilidade perante o devedor. No primeiro caso a responsabilidade ficaria limitada ao dolo. Já no segundo caso, o credor responderia nos termos gerais se omitir a diligência do bom pai de família – artigo 487º, nº 2 do CC. A jurisprudência citada por Luís M. Martins – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Almedina /2010 – enfoca a responsabilidade civil apenas em caso de dolo – Ac. RL de 29.04.2010 – Ac. RP datado de 22.04.2008 que defende a responsabilidade prevista no artigo 22º do CIRE se restringe aos casos de dolo e abrange tanto a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência por um credor como a apresentação indevida por parte do devedor. Neste sentido Luís M. Martins, Processo de Insolvência, Almedina 2010, pág. 109.
[3] Ac. datado de 12 de Junho de 2012, processo nº 1954/09.TBVIS.C1, disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[4] Ac. STJ, datado de 4.3.2004, proferido no âmbito do processo nº 04B522, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.