Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
798/15.1T9GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: ASSISTENTE
BURLA
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 217.º DO CP; ART. 69.º, N.º 1, AL. A), DO CPP
Sumário: I - A norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do CPP reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, da infracção criminal.

II - No crime de burla, ofendido é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada.

III - No caso, como o dos autos, em que o prejuízo ocorreu estritamente na esfera patrimonial dos pais do requerente, só aqueles, e não também este - que apenas detém uma expectativa de vir a suceder na totalidade ou numa quota do património dos seus progenitores -, são ofendidos, para efeito de constituição de assistentes.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:


I RELATÓRIO

No processo de inquérito que, com o n.º 798/15.1T9GRD-A.C1 corre termos nos serviços do Ministério Público da Guarda, no âmbito do qual é investigada a prática de eventual crime de burla, o participante A... , requereu a respectiva constituição como assistente (cfr. fls. 139), pretensão que veio a ser indeferida por despacho judicial, com o fundamento na ausência de legitimidade.

Inconformado com este despacho, veio o participante A... apresentar recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que o admita a intervir nos autos naquela qualidade, para o que apresentou as seguintes conclusões:

a.  “No âmbito dos presentes autos o ora Recorrente manifestou a sua intenção de se constituir como Assistente, nos termos do art. 68.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P..

Ora, veio agora o Tribunal a quo indeferir a constituição de Assistente por parte do Recorrente, alegando, para tal a sua falta de legitimidade, em virtude do mesmo não se poder considerar titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

b. A questão em causa nos presentes autos reside, portanto, no preenchimento do conceito de ofendido, enquanto titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

c.  Assume a qualidade de ofendido quem for titular daquele especial interesse, que constitui objecto imediato do crime (cfr. art. 68.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P e art. 113.º, n.º 1 do C.P.).

d. A legitimidade de ofendido deve, por conseguinte, ser aferida por reporte ao tipo legal de crime que estiver em causa.

e. Vertendo ao concreto caso dos presentes autos veja-se que se discute o facto de B... , C... e D... terem movimentado grandes valores monetários e ainda o facto de terem adquirido um vasto património imobiliário, através de um plano previamente traçado, tudo com o património dos pais de A... , estando em causa um crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.º do C.P..

f. No crime de burla o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, com também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial.

g. O acórdão 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o vocábulo “especialmente”, previsto no artigo 68º al. a) do CPP não deve ser compreendido como “exclusivamente”, mas sim como ‘particularmente”. Deste modo, a mesma norma pode abranger interesses relativos a mais do que apenas um ofendido;

h. No caso vertente, para além de outros burlados, o recorrente é titular de um interesse que especificamente a norma procurou proteger.

j. Ora, parece-nos claro que o Recorrente não se auto titula de só indirectamente ofendido.

k. Mas sim que existem uma pluralidade de factos que directa e indirectamente o qualificam de ofendido!

1. São elementos típicos integrantes do Crime de Burla, p. e p. pelo art. 217.º do C.P..:

1) A prática de um acto por determinado agente que,

2) propositadamente, e

3) com intenção de obter enriquecimento ilegítimo,

4) engana outra pessoa,

5) de modo a causar-lhe, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial;

m. Olhando para o tipo de crime de burla previsto e punido nos termos do art. 217.º do C.P., dúvidas não restam que o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, como também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial;

n. Os Denunciados não se limitam a obter um proveito ilícito, para si, pelo erro intencionalmente criado, nem pretendem apenas atingir o prejuízo patrimonial dos pais do Recorrente,

o. Os denunciados procuram, e conseguem, provocar um prejuízo ao Recorrente, que decorre, directamente, das suas condutas;

p. O mesmo acto ilícito pode provocar prejuízo a uma pluralidade de pessoas, e portanto, provocar vários ofendidos.

q. O prejuízo provocado pelos denunciados ao Recorrente não é apenas indirecto e reflexo, mas decorre, directamente, da conduta dos denunciados,

r. O recorrente é, por isso, titular de um interesse que a norma incriminatória procurou acautelar, e, portanto, tem legitimidade para apresentar a queixa e constituir-se assistente, dado que é ofendido, na extensão que o conceito deve ter, conforme fixado pelo Acórdão 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça,

s. O Meritíssimo Juiz a quo interpretou de forma errónea o disposto no artigo 68º n.º 1 al. a) do CPP, nomeadamente, quanto ao conceito de ofendido, já que deveria ter considerado que o recorrente, sendo titular de um interesse especialmente protegido pela norma, tem legitimidade para se constituir assistente,

t. Veja-se que, A... tem a certeza absoluta que as quantias utilizadas pela B... e marido, C, e que serviram para a aquisição de bens provêm das contas bancárias, das aplicações financeiras e dos negócios dos pais do recorrente. Alguns dos montantes passaram pelas contas dos pais e lhe foram tiradas sem o seu consentimento, outros valores foram desviados antes de entrarem nas contas dos Pais.

u. Ora, a sua irmã tem claramente um nível de vida que com os rendimentos declarados por ela e pelo seu marido era impossível de possuírem,

v. Tem, pois, A... legitimidade em se constituir Assistente, na medida em que o dinheiro que terá sido utilizado (indevidamente) por C e B... pertence aos seus pais, sendo evidente, portanto, que o mesmo é OFENDIDO.

w. Pois, aquando da altura das partilhas será necessário trazer tais valores à colação.

x. Constam expressamente da denúncia apresentada pelo Denunciante factos que permitem concluir que este ficou lesado nos seus interesses em virtude da conduta levada a cabo pelos Denunciados e que o Denunciante entende que consubstancia a prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelo art.° 218.° do C.P, salvo melhor qualificação jurídica.

y. Assim, impunha-se, face às circunstâncias particulares do caso e ao tipo legal de crime em causa que se concluísse que o Denunciante, surge como titular de um interesse digno de tutela e acautelado pela norma incriminadora em apreciação.

z. Ora, sendo A... Ofendido — e não apenas Denunciante — tem o mesmo a possibilidade de se constituir como Assistente, nos termos do art. 68.º n.º 1. alínea a) do C.P.P.. o que, desde já, se requer a V. Exa. devendo para tanto ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que constitua o Recorrente como Assistente.

Nestes termos e nos melhores de Direito requer-se a V. Exa. a revogação do despacho recorrido e, em consequência, a sua substituição por outro que constitua o Recorrente como Assistente.”

*

Na resposta, o MP pugnou pela manutenção da decisão recorrida e consequente improcedência do recurso, concluindo que:
“Esse é o entendimento sufragado unanimemente, pela jurisprudência por nós conhecida, senão vejamos:

Ac. TRE de 9-10-2007, CJ, 2007, T4, pág.269: “Para efeito de constituição de assistente não têm legitimidade todas as pessoas prejudicadas com a prática de certo crime, mas tão somente os titulares de interesses que constituam objecto jurídico imediato do crime.”

Ac. TRL de 3-06-2008, Proc. 3185/08 5a Secção Desembargadores: Emídio Santos e Nuno Gomes da Silva: “Num processo penal por factos susceptíveis de integrar o crime de burla, será ofendido, para efeitos de constituição de assistente, o titular do património que foi directamente prejudicado pela acção delituosa.

E note-se que é o próprio recorrente, nas respectivas conclusões - letra w. - que dá resposta ao anseio que o motivou na instauração dos presentes autos e do recurso a que ora se dá resposta, quando refere: “aquando da altura das partilhas será necessário trazer tais valores à colação”

É pois esta a pedra de toque de toda a matéria subjacente aos presentes autos.

O recorrente arroga-se de uma posição de herdeiro, relativamente aos seus pais, que se encontram vivos, e, tanto como decorre dos respetivos assentos de nascimento (cfr. certidões juntas a fls. 1233 a 1236), não se encontra registada qualquer limitação às respectivas capacidades de exercício e de disposição de bens, por via de uma qualquer limitação aos direitos de personalidade, por incapacidade, a título de interdição ou, sequer, de inabilitação.

Os pais do participante são, pois, pessoas livres e autónomas, que têm direito a gerir e a administrar os seus bens, enquanto forem vivos, da forma que lhes aprouver, o que aparentemente vêm fazendo.

Haverá determinadas limitações ao exercício livre de tais direitos, previstas na legislação de natureza civil, que poderão ser discutidas nessa jurisdição.

Será, pois, em sede de processo de partilha por óbito dos pais do participante, após tal suceder, que as disposições patrimoniais que os mesmos fizeram em vida, poderão ser levadas à colação.

Pelo exposto, por falta de legitimidade para o efeito, entendemos que deve ser mantida, nos seus precisos termos, a decisão recorrida de não admissão de A... a intervir nos presentes autos como assistente.

Termos em que, por não nos merecer qualquer censura a decisão proferida pelo M.mo Juiz de Instrução, deverá ser negado provimento ao recurso a que ora dá resposta.

Vossas excelências, porém, Senhores Juízes Desembargadores, decidindo, farão a habitual Justiça!”

*

O recurso foi admitido.

*
O ExmºProcurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no qual aderiu inteiramente à resposta do MP na 1ª instância, acrescentando, em reforço do que foi alegado, as seguintes considerações:

a) - A decisão recorrida, de fls. 1211a 1215(indeferimento da constituição co­mo assistente do denunciante A... ), entendeu, além do mais:

- Não resultar dos elementos juntos ao processo que o queixoso, A... , possa ser considerado, pelo menos por ora, ofendido nos autos, na medida em que não é o titular do direito que a norma incriminadora pretende proteger com a incriminação (burla), ou que tenha sofrido qualquer prejuízo no seu património, pois, os pais ainda são vi­vos, pelo que, no quadro típico da burla, não tendo sofrido, por ora, prejuízo patrimonial, não se constitui como titular do interesse protegido pela norma, que incrimina a burla, fal­tando, assim, legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos.

b) - Também se nos afigura correcta a decisão recorrida, pois, a ser lesado o património dos pais do queixoso, quem acabou por ser efectivamente lesado e ter o prejuízo foram os pais do queixoso e não este.

c) - Efectivamente, aderindo genericamente aos fundamentos constantes da decisão recorrida e às posições assumidas na resposta do Mº Pº na Ia Instância, constante de fls. 1235 a 1241, também nos parece dever ser mantida a decisão recorrida e negar provi­mento ao recurso do queixoso A... .

3. - Em face do exposto, acompanhando a resposta do Ilustre Procurador-Adjunto, de fls. 1235 a 1241,também se nos afigura que o recurso do queixoso não merece provimento.”

*

Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., foi apresentada a seguinte resposta:

“1.         Atento o teor do Parecer do Digno Procurador-Geral Adjunto a que ora se responde, constata-te que veio o douto representante do Ministério Público acompanhar a posição do seu homólogo junto do Tribunal de 1.ª Instância.

2.           O Recorrente, uma vez que não vê razão para divergir do entendimento sufragado em sede de recurso, mantém a fundamentação apresentada, limitando-se a remeter para as suas motivações de recurso, as quais enunciam e desenvolvem suficientemente bem todas as questões suscitadas.

3.           Reitera-se, no entanto, que a questão em causa nos presentes autos reside, portanto, no preenchimento do conceito de ofendido, enquanto titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação para efeitos da sua constituição como assistente, no crime de burla, p. e p. no art. 217.º do Código Penal.

Ora, o Tribunal a quo indeferiu a constituição de Assistente por parte do Recorrente, alegando, para tal a sua falta de legitimidade, em virtude do mesmo não se poder considerar titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

4.           Assume a qualidade de ofendido quem for titular daquele especial interesse, que constitui objecto imediato do crime (cfr. art. 68.°, n.º 1, alínea a) do C.P.P e art. 113.º, n.º 1 do C.P.).

5.           A legitimidade de ofendido deve, por conseguinte, ser aferida por reporte ao tipo legal de crime que estiver em causa.

6.           Ora, nos presentes autos discute-se o facto de B... , C... e D... terem movimentado grandes valores monetários e ainda o facto de terem adquirido um vasto património imobiliário e automóveis tudo com o património dos pais do ora Recorrente, através de um plano previamente traçado e que ocorre há vários anos.

7.           No crime de burla o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, com também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial.

8.           O Acórdão 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o vocábulo “especialmente”, previsto no artigo 68.º al. a) do CPP não deve ser compreendido como “exclusivamente”, mas sim como ‘particularmente”. Deste modo, a mesma norma pode abranger interesses relativos a mais do que apenas um ofendido;

9.           No caso vertente, para além de outros burlados, o Recorrente é titular de um interesse que especificamente a norma procurou proteger.

10.         Ora, parece-nos claro que o Recorrente não se auto titula de só indirectamente ofendido.

11.         Mas sim que existem uma pluralidade de factos que directa e indirectamente o qualificam de ofendido!

12.         São elementos típicos integrantes do Crime de Burla, p. e p. pelo art. 217.º do C.P..:

1)           A prática de um acto por determinado agente que,

2)           propositadamente, e

3)           com intenção de obter enriquecimento ilegítimo,

4)           engana outra pessoa,

5)           de modo a causar-lhe, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial;

13.         Olhando para o tipo de crime de burla previsto e punido nos termos do art. 217.° do C.P., dúvidas não restam que o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, como também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial;

14.         Os Denunciados não se limitam a obter um proveito ilícito, para si, pelo erro intencionalmente criado, nem pretendem apenas atingir o prejuízo patrimonial dos pais do Recorrente,

15.         Os denunciados procuram, e conseguem, provocar um prejuízo ao Recorrente, que decorre, directamente, das suas condutas;

16.         O mesmo acto ilícito pode provocar prejuízo a uma pluralidade de pessoas, e, portanto, provocar vários ofendidos.

17.         O prejuízo provocado pelos denunciados ao Recorrente não é apenas indirecto e reflexo, mas decorre, directamente, da conduta dos denunciados.

18.         O recorrente é, por isso, titular de um interesse que a norma incriminatória procurou acautelar, e, portanto, tem legitimidade para apresentar a queixa e constituir-se assistente, dado que é ofendido, na extensão que o conceito deve ter, conforme fixado pelo Acórdão 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça.

19.         O Meritíssimo Juiz a quo interpretou de forma errónea o disposto no artigo 68° n.° 1 al. a) do CPP, nomeadamente, quanto ao conceito de ofendido, já que deveria ter considerado que o recorrente, sendo titular de um interesse especialmente protegido pela norma, tem legitimidade para se constituir assistente.

20.         Veja-se que, A... tem a certeza absoluta que as quantias utilizadas pela B... e marido, C, e que serviram para a aquisição de bens provêm das contas bancárias, das aplicações financeiras e dos negócios dos pais do recorrente. Alguns dos montantes passaram pelas contas dos pais e lhe foram tiradas sem o seu consentimento, outros valores foram desviados antes de entrarem nas contas dos Pais.

21.         Ora, a sua irmã tem claramente um nível de vida que com os rendimentos declarados por ela e pelo seu marido era impossível de possuírem.

22.         Tem, pois, A... legitimidade em se constituir Assistente, na medida em que o dinheiro que terá sido utilizado (indevidamente) por C e B... pertence aos seus pais, sendo evidente, portanto, que o mesmo é OFENDIDO.

23.         Pois, aquando da altura das partilhas será necessário trazer tais valores à colação - sendo A... Herdeiro de seus pais.

24.         Ora, tendo em conta o estado actual do património dos pais do Recorrente e uma vez que, estes revelam não se encontrarem em pleno estado das suas faculdades mentais, o Recorrente intentou acção de interdição do seu Pai junto do Tribunal Judicial do Sabugal, o qual se encontra a correr termos sob o n.º de processo 108/13.2TBSBG e da sua mãe na Comarca da Guarda, Secção Cível - J2, que corre termos sob o n.º de processo 566/15.0T8GRD - estando os mesmos em fase de instrução.

25.         A este propósito importa referir o que consta, do processo n.º 108/13.2TBSBG - Relatório da Juíza - onde se refere que E... , pai do aqui Recorrente, afirmou que “há cerca de 5 anos diz ter feito uma doação de “seis mil contos a cada um dos filhos”

26.         O que vai contra o que sempre afirmaram os pais do Recorrente e se encontra provado no âmbito do processo n.º 6/11.4TASBG, isto é, que nunca tinham doado dinheiro aos filhos.

27.         Ademais, esta afirmação não exprime a realidade dos factos uma vez que, conforme se referiu na participação criminal apresentada, aquando da alusão aos processos n.ºs 15/9.3TASBG e 6/11.4TASBG, ficou provado que foram feitas transferências directas da conta dos pais do Recorrente para as contas da Primeira e Segundo Participados que totalizaram o montante de € 92.700,00 (noventa e dois mil e setecentos euros).

28.         De facto, constam expressamente da denúncia apresentada pelo Denunciante factos que permitem concluir que este ficou lesado nos seus interesses em virtude da conduta levada a cabo pelos Denunciados e que o Denunciante entende que consubstancia a prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.º do C.P, salvo melhor qualificação jurídica.

29.         Assim, impunha-se, face às circunstâncias particulares do caso e ao tipo legal de crime em causa que se concluísse que o Denunciante, surge como titular de um interesse digno de tutela e acautelado pela norma incriminadora em apreciação.

30.         Ora, sendo A... Ofendido - e não apenas Denunciante - tem o mesmo a possibilidade de se constituir como Assistente, nos termos do art. 68.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P., o que, desde já, se requer a V. Exa. devendo para tanto ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que constitua o Recorrente como Assistente.

Termos em que se requer a V. Exas. o acolhimento da presente resposta, reiterando o pedido de procedência do recurso.”

*

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

Cumpre decidir.

*

II FUNDAMENTAÇÃO

É do seguinte teor o despacho recorrido:

“Juntamente com a respectiva participação criminal que despoletou os presentes autos, junta a fls. 2 a 143, vem A... requerer a respectiva constituição como assistente, intitulando-se para tanto como “ofendido”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68º, n.º 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal.

 Em face do requerido, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que o denunciante não se pode considerar aqui como “ofendido” para os efeitos pretendidos, por não ser o titular do interesse que a lei especificamente quis proteger com a incriminação aqui em apreço, e não lhe assiste por isso legitimidade para se constituir como assistente nos presentes autos, uma vez que os titulares do património relativamente ao qual, na versão do denunciante, teria sido causado prejuízo apenas poderão ser E... e F... , e não o ora denunciante e requerente.

Obviamente que não foram ouvidos quaisquer arguidos nos termos e para os efeitos do estabelecido no artigo 68º, n.º 4, do Cód. de Proc. Penal, na medida em que nenhuns foram constituídos nos autos.

 Vejamos.

Com a participação criminal que introduziu nos presentes autos, o denunciante A... imputa aos denunciados B... (sua irmã), C... (seu cunhado) e D... (sua sobrinha) a prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218º do Cód. Penal, “salvo melhor qualificação jurídica” que fosse encontrada pelo Ministério Público.

Para tanto, e no essencial, o denunciante invoca a qualidade de filho e (futuro) herdeiro (juntamente com a denunciada B... ) de E... e de F... . Com esta base, e ao longo de toda a extensa participação que apresenta, o denunciante constrói toda uma tese no sentido de que o património dos seus pais E... e F... tem vindo a ser sucessivamente delapidado e apropriado ao longo de anos pelos denunciados, sem o consentimento e sem o conhecimento dos referidos pais do denunciante, existindo alegadamente suspeitas neste sentido na medida em que os denunciados ostentariam bens e um modo de vida que não se compatibilizariam com os seus simples e parcos rendimentos.

No entanto, note-se bem, como o denunciante igualmente refere, os aludidos seus pais E... e F... ainda se encontram vivos e capazes do exercício pleno dos seus próprios direitos, vendo-se contudo o denunciante como seu futuro herdeiro, e por isso se considerando como “ofendido” sob o ponto de vista da putativa e futura herança “a que porventura pudesse vir a ter o direito” (cfr. item 838 da denúncia) após a morte dos seus pais, e que entende que se encontra a ser desde já delapidada, apropriada e prejudicada pelos aqui denunciados.

 Neste sentido, o denunciante considera-se “pelo menos indirectamente” (sic) como “ofendido” (cfr. item 7 da denúncia), também porque se arvora como tendo a “obrigação de cuidar dos interesses dos seus pais, sobretudo quando estes, pela sua idade e condição de saúde física e mental, se encontram especialmente fragilizados” (cfr. item 8 da participação).

E a tal ponto se encontram os seus pais “fragilizados” que nos refere até o denunciante que o próprio instaurou duas acções judiciais cíveis com vista à declaração de inabilitação dos seus pais, acções essas que se encontram ainda pendentes e que foram inclusivamente contestadas pelos visados em termos que o denunciante considera falsos e desprovidos de fundamento (cfr. designadamente itens 26 a 31 da participação).

Ora, neste quadro e para decisão da questão, será importante ter presente qual seja concretamente o conceito de “ofendido” nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68º, n.º 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal, na medida em que apenas com base neste poderá o aqui denunciante ter legitimidade para se constituir como assistente como pretende. A própria norma em causa diz-nos que o “ofendido” será o “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos” (sublinhado nosso).

Analisando a questão, e porque nos parece pertinente e relevante, seguiremos de muito perto o que foi escrito no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Março de 2009, relatado por Estelita de Mendonça no âmbito do processo n.º 2644/08-2, disponível em www.dgsi.pt.

Neste sentido, dir-se-á que os assistentes, salvo as excepções previstas na lei, têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo. Para Maia Gonçalves (C.P.P. Anotado, 12ª ed., pág. 223) "Trata-se de um sujeito processual subordinado ao Ministério Público, cessando porém a subordinação nos casos excepcionais que a lei prevê, maxime nos "casos dos crimes particulares, na dedução da acusação e na interposição de recursos de decisões que o afectem".

A definição de ofendido é idêntica à constante do artigo 4º do Dec.-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945 (por referência ao art. 11 do CPP de 1929) e que o n.º 1 do art. 111º do Cód. Penal de 1982, na sua redacção original, também acolhia (cfr. actual art. 113, n.º 1 do C. Penal). Pelo que, não se considera “ofendido”, para este efeito, qualquer pessoa que tenha sido prejudicada com a prática do delito, mas tão só, o titular do interesse que constitui o “objecto jurídico imediato” desse delito [Cfr., por todos, Ac. da RC de 29.01.92, CJ, XVII, tomo I, p. 111].

Os titulares de interesses só mediata ou indirectamente protegidos pelo crime em causa não se incluem no conceito de “ofendidos” para efeitos de constituição como assistentes. Dúvidas não existem, de acordo com a lição do Prof. Figueiredo Dias, [Direito Processual Penal I, p. 507] de que a nossa lei parte do conceito estrito de “ofendido” para a determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistentes em processo penal [Acolheu a nossa lei o conceito estrito de ofendido, preconizado pelo Prof. Beleza dos Santos, que nele incluía, apenas, “os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal” (RLJ 57/3).]

Face ao conteúdo da referida norma (artigo 68º, n.º 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal), resulta que o legislador quis consagrar um conceito restrito de ofendido, ao permitir a constituição de assistente apenas ao titular "dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação". O Professor Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal Anotado, 12º Ed., pág. 223”, diz a propósito que "só se considera ofendido para o efeitos do art. 68º, nº 1, al. a), o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e que, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular uma pessoa".

Há pois uma inteira coincidência entre o titular do direito de queixa e a pessoa que pode constituir-se assistente (art. 113° nº 1 CP).

Refira-se igualmente ainda que o conceito de assistente não se confunde com o conceito de “lesado” contido no art. 74° nº 1 do C.P.P., nos termos do qual é lesado todo aquele "que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente". Há pois aqui uma clara distinção, em que se verifica que a noção de lesado é mais ampla e extensiva do que a de assistente. Daí que haja que ter uma particular atenção à norma incriminadora sempre que se aprecia um pedido de constituição de assistente já que é através dela que se alcança o interesse que o legislador quis proteger ao tipificar determinada conduta como criminosa. Por isso, uma vez encontrado o interesse protegido há que verificar quem é o seu titular.

 Revertendo ao nosso caso concreto, no enquadramento factual que efectuámos supra, entendemos que o aqui denunciante A... claramente não pode ser considerado aqui como “ofendido” nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68º, n.º 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal, na medida em que não é o titular do direito que a norma incriminadora subjacente à sua denúncia pretende proteger com a correspondente incriminação. Como bem refere o Ministério Público (assistindo-lhe total razão), os titulares de tais direitos especificamente protegidos apenas se podem considerar, quando muito, como sendo os seus pais E... e F... , sendo o património destes que se visa defender, e não o do aqui denunciante. Tais pessoas encontram-se vivas, são maiores de idade e, ao que sabemos, são plenamente livres e esclarecidas no pleno exercício dos seus direitos e na defesa do seu património, caso assim o entendam.

Não é pelo simples facto de o aqui denunciante ser um seu putativo e futuro herdeiro e entender que os seus pais se encontram alegadamente de tal modo “fragilizados” que intentou contra estes acções com vista à respectiva inabilitação que o aqui denunciante se converte por isso em “ofendido” para os efeitos que aqui pretende. É o próprio que notoriamente refere que só “pelo menos indirectamente” poderia ser entendido como tal, e por isso, repita-se, nunca poderia ser aquele que a lei incriminadora aqui quis especialmente proteger.

Aliás, a situação ainda mais caricata se torna quando o denunciante se arvora, salvo o devido respeito sem fundamento minimamente suficiente, como aquele que deveria supostamente “cuidar dos interesses dos seus pais”, mas ao mesmo tempo intentando contra estes acções judiciais (ainda que no alegado interesse destes) e insurgindo-se contra aquilo que os seus pais afirmam nas contestações que deduziram em tais acções judiciais.

Aqui chegados, em face de tudo o que ficou dito, pensamos que no presente caso é abundantemente claro que o aqui denunciante A... não pode ser aqui entendido como sendo “ofendido” nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68º, n.º 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal, e por isso, por via desta norma, não tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, em face dos factos e do tipo de crime que aqui se encontra em sujeito.

 E igualmente se diga que obviamente não lhe assiste legitimidade para o efeito por via de qualquer das restantes alíneas b) a e) do mesmo preceito legal.

 Assim, pelo exposto, por ausência de legitimidade para o efeito, decide-se indeferir a constituição do denunciante A... como assistente nos presentes autos.

Notifique.

Oportunamente devolvam-se os autos ao Ministério Público. “

*


O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

A questão suscitada pelo recorrente consiste em determinar se é admissível a sua constituição como assistente.

Dispõe o art. 68º, nº 1, al. a), do CPP, que “…podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos….”.

Estabeleceu assim o legislador o princípio geral de que pode constituir-se assistente o ofendido, entendido como titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maior de 16 anos (art. 68º, nº 1, a) do C. Processo Penal). Incluem-se ainda neste princípio, as situações previstas b), c) e d) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal.

Como é claro, prevê a lei duas outras situações, - derivadas de um conceito lato de ofendido, - em que confere legitimidade para se constituírem assistentes:

- às pessoas e entidades a quem normas especiais atribuam essa faculdade (corpo do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal).

- a qualquer pessoa quando o procedimento criminal tenha por objecto crimes contra a paz e a humanidade, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção (art. 68º, nº 1, e) do C. Processo Penal).
A nossa lei parte pois do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para intervirem como assistentes em processo penal -Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Vol 1, pag 512-513, e jurisprudência corrente, Ac. do S.T.J. de 20.1.98. Colectânea de Jurisprudência, Supremo Tribunal de Justiça, Ano VI, Tomo I, p.163.)

Neste sentido o Ac do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Abril de 2011, cuja fundamentação é aplicável à questão aqui em apreciação, transcrevendo-se por isso, os excertos mais significativos:

“(…)

Do conceito restrito de ofendido retirava a jurisprudência uma concepção também restritiva de bem jurídico, que levou à denegação da admissibilidade de assistente nos processos por crimes considerados exclusivamente públicos, e também por outros crimes entendidos como protegendo apenas interesses supra-individuais.

Porém, ao longo das duas últimas duas décadas, algumas posições foram preconizando uma maior “abertura” no acesso ao estatuto de assistente e à qualidade de ofendido nos respectivos poderes processuais, quer através da reelaboração do conceito de “bem jurídico”; quer pela aceitação de um “conceito amplo” de ofendido.

No entanto, mesmo a assunção de um conceito estrito de ofendido não resolverá decisivamente a questão da legitimidade, que se deve situar na análise do bem jurídico protegido, entendido já não como “mero valor ideal ínsito na ratio da norma, para passar a ser considerado como o substracto do valor, como valor corporizado num suporte fáctico-real. Este reajustamento do conceito de bem jurídico permitirá o reconhecimento em muitas incriminações de uma pluralidade de bens jurídicos, uns públicos, mas também outros individuais, cabendo naturalmente aos titulares dos bens jurídicos a legitimidade como ofendido.

A reconformação do conceito de “ofendido”, por seu lado, seria imposta pela revalorização do papel da vítima em processo penal, e pela emergência de novos bens jurídicos de diferente estrutura dos tradicionais (bens jurídicos da sociedade civil, distintos dos bens jurídicos públicos ou estatais).

A jurisprudência também foi evoluindo para uma maior abertura na delimitação do conceito de ofendido. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-3-2000, v., g., analisou a admissibilidade da constituição de assistente em processo por crime de denúncia caluniosa, e partindo assumidamente de um conceito restrito de ofendido, concluiu pela admissibilidade de intervenção da pessoa visada pela denúncia com o fundamento de ser portadora de um interesse especialmente protegido pela incriminação, a par do interesse público mediato.

Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a inflexão de orientação. Assim, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 do de 16-01-2003 (DR - I Série-A, n.º 49, de 27-02-2003), veio estabelecer que, em processo por crime de falsificação, previsto e punível pelo art. 256º, nº 1, a), do CP, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente; por sua vez, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2006, de 12-10-2006, (DR - I Série-A, n.º 229, de 28-11-2006) reconheceu igualmente legitimidade para se constituir assistente, em processo pelo crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo artigo 365º do CP, ao caluniado, e por último, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 10/2010, de 17 de Novembro de 2010 (DR, I Série-A, nº 242, de 16 de Dezembro de 2010) decidiu que «em processo por crime de desobediência qualificada decorrente da violação de providência cautelar previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2 do Código Penal» o requerente da providência é ofendido, tendo legitimidade para se constituir assistente.

Todas as decisões partiram de um conceito restrito de ofendido, assentando a sua decisão na análise do bem jurídico das incriminações que estavam em causa.

A definição de “ofendido” consta, como se salientou, da alínea a) do nº 1 do artigo 68º do CPP, estando assim circunscrito ao titular do bem juridicamente protegido, sendo o conceito legal deofendido restrito ou, mais rigorosamente, estrito.

Importa, assim, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.

Efectivamente, «o ofendido […] não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção – […] – os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente.» (v. g., acórdão do Tribunal Constitucional nº 145/06, de 22-02-2006).

Há, assim, na integração conceptual uma marcada diferenciação qualitativa entre interesses directa e indirectamente (ou reflexamente) afectados pela incriminação como conditio da legitimidade do ofendido para exercer o direito de queixa.

Perante vários possíveis interesses legítimos que sejam postos em causa pela prática de uma infracção criminal, a lei reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos, com o sentido de interesses directa, imediata ou particularmente protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, que fundamenta a infracção criminal.

O interesse que permite assumir a qualidade de ofendido tem de ser um (ou um dos) interesses «especialmente» protegidos com a incriminação.

O legislador penal ao utilizar o vocábulo «especialmente», fê-lo, como se referiu, no sentido de «particularmente», e não já com o sentido de «exclusivamente».

Podem, deste modo, coexistir mais do que um ofendido com a prática de um crime e, nessa medida, cada um como titular de um interesse especialmente protegido.”

Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. I., págs. 302 a 303, a propósito do conceito de ofendido, socorrendo-se dos ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira, realçou que “(…) só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68.º nº 1 al. a) do C.P.P., o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime, e que, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular”.

E esclarece o referido autor, - Processo Penal Preliminar, págs. 425 e segs., - que um conceito restritivo de ofendido corresponde a uma clara intencionalidade do legislador, a uma tentativa de estabelecer o equilíbrio possível entre o interesse dos particulares em intervir no processo penal e a necessidade de proteger este processo – que deve ser dominado por critérios de objectividade e imparcialidade – dessa intervenção, na medida em que se pode revelar um factor de perturbação.

No sentido de um conceito estrito de ofendido, podem citar-se, entre muitos outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Janeiro de 1992, in C.J. (1992), Tomo I., págs. 111 e segs., onde se lê: “I. Não é ofendido, para efeitos de constituição como assistente, qualquer pessoa que tenha sido prejudicada com a prática do delito, mas apenas aquele que seja titular do interesse que constitui «o objecto jurídico imediato desse delito».

Assim, para se averiguar quem pode ser considerado ofendido em determinado crime, e portanto quem poderá constituir-se assistente no respectivo processo, há que proceder a uma interpretação do respectivo tipo incriminador, por forma a comprovar se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação.
Reportando-nos aos autos, onde se investiga a prática de um crime de burla, e porque a legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime concreto que estiver em causa, importa verificar se a incriminação da burla admite, em concreto, a existência de um ou de mais do que um titular de interesse especialmente protegido pela incriminação, com o sentido acima especificado. E se o recorrente se inclui em tal grupo.
O bem jurídico protegido pela referida incriminação é o património, globalmente considerado.
Segundo PP Albuquerque Com CP, pág 598 “Para efeitos penais, o património inclui, numa concepção jurídico económica, todos os direitos, as posições jurídicas e as expectativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica.”
Como esclarece o referido autor o ofendido no crime de burla é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada (é a chamada burla triangular) - ob. cit. pág 599.
A ter ocorrido o crime de burla, o património dos pais do recorrente teria sofrido uma substancial redução, consubstanciadora do elemento típico de prejuízo patrimonial.
Porém, o recorrente não é titular de tal património, por isso que em relação a si não houve qualquer empobrecimento, o que afasta a hipótese da burla triangular.
Manifestamente o recorrente, não é um titular de interesse especialmente protegido pela incriminação.

Invoca o recorrente a qualidade de herdeiro dos pais, - que se encontram vivos e sem restrições ao exercício da sua capacidade jurídica, conforme certidões juntas a fls. 1233 a 1236 - cujo património virá a herdar, justificando assim o seu interesse na salvaguarda dos bens e valores que o constituem.

Porém, não estando invocada qualquer partilha em vida, o herdeiro tem apenas uma expectativa de vir a suceder na totalidade ou numa quota do património do falecido - art 2031º, do CC - aquando da abertura da sucessão, ou seja, no momento da morte do seu autor.



Isto se tiver a necessária capacidade sucessória, ou seja, se não for declarado indigno ou não for deserdado. Com efeito, o autor da sucessão pode em testamento, com expressa declaração da causa, deserdar o herdeiro legitimário, privando-o da legítima, quando se verifique alguma das ocorrências mencionadas no nº 1 do art 2166.º do CC.

Estando os pais do recorrente vivos e plenamente capazes, são eles os titulares do interesse digno de tutela e acautelado pela norma incriminadora em apreciação.

Os titulares de interesses só mediata ou indirectamente protegidos pelo crime em causa não se incluem no conceito de “ofendidos” para efeitos de constituição como assistentes (vd acórdão do Tribunal Constitucional nº 145/06, de 22-02-2006).

Assim sendo, considerando o concreto bem jurídico que se pretende proteger e que o requerente apenas tem um interesse indirecto, não se verifica a necessária condição para a sua constituição como assistente.

Pelo que improcede a pretensão do recorrente.

*

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

O recorrente pagará 4 UC de taxa de justiça.

Coimbra, 7 de Abril de 2016

Processado por computador e revisto pela signatária (artigo 94º nº 2 CPP).



(Isabel Valongo - relatora)


(Jorge França - adjunto)*