Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1099/16.3T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E DE PROVA
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
Data do Acordão: 09/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 263º/1/2 DO CT/09
Sumário: I - Invocando o trabalhador como fundamento da justa causa de resolução do contrato de trabalho a cessação da situação de isenção do horário de trabalho e a falta de pagamento do correspondente subsídio, compete-lhe a ele o ónus de alegação e prova das correspondentes causas de ilicitude.

II – Cessando as causas que determinaram, após a celebração do contrato de trabalho, a implementação da isenção de horário de trabalho, a entidade empregadora pode fazer cessar unilateralmente tal isenção e o pagamento do correspondente subsídio.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato de trabalho pedindo que seja declarado que a autora resolveu com justa causa o seu contrato de trabalho, sendo a ré condenada a pagar-lhe as seguintes quantias:

1. indemnização de antiguidade, no montante mínimo de €24.000, acrescidos dos juros vencidos desde a citação e até integral e efectivo pagamento;

2. retribuição em falta por isenção de horário de trabalho, no montante de €42.273,88, acrescidos dos juros já vencidos no valor de €7.309,65, e dos vincendos sobre o total de €49.541,83, salvo pagamento imediato dos juros já vencidos, até integral pagamento;

3. as férias e subsídio de férias, correspondentes ao trabalho prestado em 2015, no montante de €3.438, acrescidos dos juros vencidos desde a citação e até integral e efectivo pagamento;

4. os proporcionais de férias e subsídio de férias correspondentes ao trabalho prestado em 2016, no montante de €1.497,65, acrescidos dos juros vencidos desde a citação e até integral e efectivo pagamento;

5. os proporcionais de subsídio de Natal, correspondentes ao trabalho prestado em 2016, no montante de €748,82, acrescidos dos juros vencidos desde a citação e até integral e efectivo pagamento.

Alegou, como fundamento da sua pretensão e em resumo, que tendo sido trabalhadora subordinada da ré resolveu, com justa causa subjectiva para o efeito, o contrato de trabalho, sendo do contrato de trabalho e da sua concreta forma de cessação resultaram para si os direitos de crédito correspondentes aos pedidos formulados.

A ré contestou.

Excepcionou: i) a sua ilegitimidade, na medida em que a sua posição contratual relativamente aos trabalhadores, nos quais se inclui a autora, foi assumida pela interveniente; ii) a caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho.

Impugnou a materialidade alegada pela autora para fundamentar a justa causa subjectiva de resolução do contrato de trabalho.

Respondeu a autora para, em resumo, pugnar pela improcedência das excepções arguidas pela ré e suscitar a intervenção principal da interveniente.

Admitida a intervenção, a interveniente contestou, excepcionando a ilegitimidade da ré e a caducidade do direito de resolução do contrato, além de ter sustentado o cumprimento da obrigação de formação profissional cuja insatisfação também se convocou como fundamento da justa causa subjectiva da resolução contratual operada pela autora.

Deduziu reconvenção, pedindo a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de €3.048,64, correspondente ao pré-aviso que foi desrespeitado.

A autora respondeu à contestação da interveniente, pugnando pela improcedência das excepções arguidas e pela inadmissibilidade da reconvenção.

Também requereu a modificação e a ampliação do pedido, no sentido de a ré e interveniente serem solidariamente condenadas nos termos descritos na petição inicial e sendo ainda condenadas a pagar à autora o desconto efectuado na retribuição desta, em Julho de 2016, a título de “falta de aviso prévio”, no montante de €3.719,20.

Subsidiariamente pediu a condenação da interveniente, caso se venha a entender que a ré não é entidade patronal da autora, nem sequer em regime de pluralidade de empregadores.

Admitida a modificação e a ampliação do pedido, bem assim como a reconvenção, o processo prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

Em face do exposto decide o Tribunal:

I.

Na parcial procedência da ação, condenar a interveniente a pagar à autora A... a importância de €574,84 (quinhentos setenta e quatro euros oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação da interveniente até integral e efetivo pagamento.

II.

Absolver a ré do pedido.

III.

Absolver a interveniente do restante pedido.

IV.

Condenar a autora A... e a interveniente no pagamento das custas do processo, na proporção de 99% (noventa e nove por cento) para a autora e 1% (um por cento) para a interveniente.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a autora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

A interveniente apresentou contra-alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso principal não merece provimento, a ampliação do objecto do recurso não deve ser admitida e o recurso subordinado deve proceder.

Colhidos os vistos legais, importa decidir

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

A) Recurso Principal:

1ª) se assistia à autora o direito a resolver, com justa causa subjectiva para o efeito, o contrato de trabalho entre ela e a interveniente;

B) Ampliação do recurso principal:

2ª) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

3ª) se foi lícita a cessação do subsídio de isenção de horário de trabalho de que a autora beneficiava;

C) Recurso Subordinado:

4ª) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

5ª) se deve ser reduzido para €314,33 o montante arbitrado à autora pela sentença recorrida a título de subsídio de Natal referente ao ano de 2016.

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

...

B) De direito

Primeira questão: se assistia à autora o direito a resolver, com justa causa subjectiva para o efeito, o contrato de trabalho entre ela e a interveniente.

Comece por dizer-se que não resulta dos factos provados que a autora e a empregadora tenham acordado na sujeição da primeira ao regime de isenção do horário de trabalho desde início da relação de trabalho, ou seja, com a celebração do contrato de trabalho.

Na verdade, o próprio contrato de trabalho escrito em que a autora outorgou e que constitui o documento nº 3 junto com a petição é explícito no sentido de que a autora cumpria um horário de trabalho das 9h às 18h, com intervalo para almoço de uma hora, de segunda a sexta-feira (cláusula 4ª, nº 1).

Por outro lado, tendo-se iniciado a relação de trabalho em 9/7/2001 (ponto 4º dos factos provados), só em Setembro de 2001 é que viria a ser implementada a isenção de horário de trabalho (pontos 5º e 6º dos factos provados).

Alega a apelante que: i) as partes não puderam estipular qualquer cláusula a este respeito no contrato de trabalho ou noutro documento, pois que o regime legal em vigor à data da instituição da situação de isenção o impedia; ii) o procedimento seguido pelas partes constituiu a formalização do acordado com o Eng.º ...

O primeiro desses argumentos não colhe, não só porque os factos dados como provados pelo tribunal recorrido não o suportam, mas também porque se é certo que à data da celebração do contrato de trabalho o regime de IHT apenas podia ser implementado com autorização do IDICT, menos certo não é que tal não impedia a inserção de cláusulas de compromisso na sua obtenção, condições suspensivas ou resolutivas com base nessa autorização ou sequer da declaração de que a mesma era condição essencial – conhecida por ambas as partes – da celebração do contrato de trabalho.

Ora, o que é certo é que as partes assinaram um contrato de trabalho que não contém uma única cláusula relativa a IHT, antes nele se estipulou um horário de trabalho.

Quanto ao segundo desses argumentos, os factos dados como provados pelo tribunal recorrido não suportam o sustentado pela apelante.

Assim, a cessação dessa situação de isenção de horário de trabalho não estava dependente, quanto à sua licitude, de qualquer acordo da autora nesse sentido.

Na verdade, a isenção do horário de trabalho é, por natureza, reversível[1], razão pela qual a mesma pode deixar de perdurar, por decisão unilateral do empregador, se deixar de subsistir a razão de ser pela qual a mesma foi instituída.

Recorde-se, a este respeito, o decidido pela Relação de Lisboa no seu acórdão de 9/4/2008, proferido no processo 318/2008-4 e de cujo sumário consta o seguinte: “Não sendo a atribuição do regime de isenção de horário de trabalho acordada no início do contrato de trabalho, mas apenas cerca de três anos após a respectiva vigência, não está a entidade empregadora impedida de a alterar unilateralmente, uma vez que se trata de uma matéria que cabe no âmbito das suas competências, integrando o poder de direcção que lhe é próprio.” – neste mesmo sentido, pode consultar-se o acórdão da Relação de Lisboa de 21/9/2011, proferido no processo 3125/08.0TTLSB.L1-4, relatado pelo actual Presidente desta Secção Social.

Recorde-se, igualmente, a lição de Palma Ramalho, segundo a qual “Sendo o regime da isenção instituído por acordo entre o trabalhador e o empregador, as regras gerais remetem para a exigência de um acordo das partes no sentido da respectiva cessação[500]. No entanto, crê-se que esta regra deve ser aplicada cum granu salis, tendo em conta o facto de, com muita frequência, a isenção de horário de trabalho estar associada directamente ao exercício de determinadas funções ou a certas categorias profissionais. Nestes casos, a alteração das referidas funções ou a mudança da categoria do trabalhador deve entender-se como abrangendo a alteração do regime de isenção que lhes estava associado - assim, se, por hipótese o trabalhador deixar de desempenhar uma função na qual tinha isenção de horário de trabalho, para passar a desenvolver outra que não prevê tal isenção, não pode opor-se à cessação daquele regime.” – Direito do Trabalho, parte II, 2006, p. 463.

Por outro lado, cessando licitamente a situação de isenção de horário de trabalho, a cessação do pagamento do correspondente subsídio de isenção de horário deve ter-se por igualmente lícita, porque não violadora do princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado no art. 192º/1/d do CT/09.

 Com efeito, como escreve Pedro Martinez Código do Trabalho Anotado, 2013, 9ª edição, p. 344, “Na alínea d), a propósito da irredutibilidade da retribuição, cria-se um regime diferente do anteriormente previsto na Lei do Contrato de Trabalho: enquanto neste diploma se admitia que a diminuição da retribuição pudesse ocorrer em três situações distintas – nos casos previstos na lei, nas portarias de regulamentação de trabalho e nas convenções coletivas, ou quando, precedendo acordo da administração do trabalho, houvesse acordo do trabalhador – na atual redação cinge-se tal possibilidade às hipóteses comtempladas no Código (nomeadamente, artigo 120º e alínea a) do nº 1 do artigo 164º do CT2009, todos casos de regresso a funções anteriormente exercidas pelo trabalhador) e nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (negociais e não negociais), os quais podem, neste contexto, admitir esquemas de redução da retribuição. Por outras palavras: deixou de ser lícita a diminuição de retribuição, que não resulte de modificações contratuais, por mero acordo entre as partes”.

No entanto, “I – O princípio da irredutibilidade da retribuição não é extensivo a toda e qualquer prestação que tenha natureza retributiva, havendo que apreciar, caso a caso, da concreta função ou razão da sua atribuição de tal modo que, cessando licitamente a causa justificativa da sua atribuição, poderá igualmente cessar o pagamento da contrapartida correspondente.

II – É este o caso da isenção de horário de trabalho, em que o trabalhador não fica sujeito, na medida da isenção concedida, aos limites do horário de trabalho fixado, podendo, dentro do limite dessa isenção, ser-lhe exigida a prestação de trabalho e sem que o trabalhador possa reclamar o pagamento do correspondente trabalho que seria considerado como suplementar. E, daí, que deva o trabalhador ser por isso compensado com a atribuição de um acréscimo remuneratório, vulgo subsídio de isenção de horário de trabalho.

III – Mas, pese embora a natureza retributiva de tal prestação, ela não está sujeita ao princípio da irredutibilidade da retribuição, podendo deixar de ser paga se cessar licitamente a causa justificativa da sua atribuição, qual seja a prestação de trabalho em regime de isenção de horário de trabalho”. – acórdão da Relação do Porto de 10/10/2016, proferido no processo 25236/15.6T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido decidiram, apenas a título de exemplo:

- o acórdão do STJ de 24/2/2015, proferido no processo 178/12.0TTCLD.L1.S1, e de cujo sumário consta, designadamente, o seguinte:“IV – O princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado no artigo 129º, nº 1, alínea d) do Código do Trabalho/2009, não é impeditivo da supressão de certas atribuições patrimoniais conexas com condições específicas do modo de prestação de trabalho, e quando essas condições específicas deixem de existir.

V – Por isso, tendo sido revogado o acordo de isenção de horário de trabalho, e tendo este deixado de trabalhar na situação de isento, cessa o pagamento do respetivo subsídio que a empregadora vinha pagando ao trabalhador”;

- o acórdão da Relação de Coimbra de 26/3/2015, proferido no processo 806/13.0TTCBR.C1, e de cujo sumário consta, designadamente, o seguinte: “II – No que toca ao princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado nos artºs 21º, nº 1, al. c) da LCT e 122º, al. d) do CT/2003, o mesmo só incide sobre a retribuição estrita, não abrangendo as parcelas correspondentes a maior esforço ou penosidade do trabalho ou a situações de desempenho específicas (como é o caso da isenção de horário de trabalho), ou a maior trabalho (como ocorre quando se verifica a prestação de trabalho para além do período normal de trabalho), ou à prestação de trabalho em condições mais onerosas, em quantidade ou esforço (como é o caso do trabalho por turnos), o mesmo sucedendo com as prestações decorrentes de factos relacionados com a assiduidade ou desempenho do trabalhador, cujo pagamento não esteja antecipadamente garantido.

III – Embora integrem o conceito de retribuição, tais prestações complementares não se encontram sujeitas ao princípio da irredutibilidade da retribuição, pelo que só serão devidas enquanto perdurar a situação em que assenta o seu fundamento, podendo a entidade patronal suprimi-las quando cesse a situação específica que esteve na base da sua atribuição”.

Assim sendo, cessando licitamente o regime de isenção de horário de trabalho que vinha sendo praticado em relação a um dado trabalhador, a falta de pagamento do subsídio de isenção após ter cessado tal isenção não viola o princípio da irredutibilidade da retribuição.

Cabe agora determinar sobre quem recaía o ónus de alegar e provar os pressupostos fácticos da ilicitude da decisão de fazer cessar a situação de isenção e o pagamento do correspondente subsídio.

A este respeito consideramos que cabe ao trabalhador o ónus da prova dos fundamentos que invoca para a resolução do contrato de trabalho com justa causa subjectiva para o efeito, na justa medida em que estão em causa factos constitutivos do direito à resolução que pretende ver reconhecido (art. 342º/1 do CC) – neste sentido, por exemplo, acórdãos do STJ de 4/7/2018, proferido no processo 14383/16.7T8PRT.P1.S1, de 28/1/2016, proferido no processo 579/11.1TTCSC.L1.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/5/2007, proferido no processo 851/04.7TTCBR.C1, do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/2/2016, proferido no processo 351/12.1TTGMR.G1. de 7/1/2015, proferido no processo 732/13.3TTVCT.G1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/9/2016, proferido no processo 828/08.3TTALM-4, do Tribunal da Relação de Évora de 9/3/2010, proferido no processo 160/08.2TTFAR.E1.

Como assim, fundando a apelante a resolução contratual a que procedeu na alegação de que a apelada procedeu a uma ilícita cessação da situação de isenção de horário de trabalho e do pagamento do correspondente subsídio, cabia-lhe alegar e demonstrar não só que tais cessações ocorreram, mas também que as mesmas foram operacionalizadas com inobservância dos correspondentes pressupostos legais.

Em especial, cabia-lhe o ónus de alegar e provar que subsistiam as razões de facto que determinaram a implementação da situação de isenção justificativa do pagamento do correspondente subsídio.

No caso, sabe-se que o que justificou a implementação da situação de isenção foi a circunstância da autora exercer funções de acompanhamento e fiscalização de obras, desempenhando, com frequência, a sua actividade fora da sede da empresa e independentemente do horário de trabalho – ponto 5º) dos factos provados.

Ora, os factos provados não evidenciam que em Janeiro de 2008[2] subsistisse, designadamente, o desempenho de funções fora da sede da empresa e independentemente do horário de trabalho.

Por outro lado, a circunstância da autora ter continuado, como até aí, a prestar frequentemente mais de 40 horas de trabalho por semana, não permite concluir, por si só, no sentido de que subsistia o desempenho da actividade da autora fora da sede da empresa e independentemente do horário de trabalho que determinaram a implementação da IHT.

Aliás, a prestação de trabalho para além das 40 horas semanais nem sequer foi convocada, isolada ou conjugadamente com outros, como motivo justificativo para a implementação da situação de IHT.

Assim, a apelante não logrou satisfazer o ónus que sobre si impendia de provar que subsistiam as razões de facto que determinaram a implementação da situação de isenção justificativa do pagamento do correspondente subsídio.

Por isso, não pode concluir-se no sentido da ilicitude da decisão de fazer cessar a situação de IHT e o pagamento do correspondente subsídio.

Diga-se, também, que não acompanhamos a apelante quando sustenta que a apelada estava obrigada, por força dos usos, a manter a situação de IHT e o pagamento desse subsídio.

Com efeito, como é doutrinalmente reconhecido, o uso da empresa enquanto fonte de direitos apresenta-se como uma prática reiterada e voluntária do empregador “que tem como destinatário um colectivo (o pessoal da empresa ou um grupo contido nesse pessoal)[3].

Como refere Júlio Gomes, o uso corresponde a uma prática “geral” e não se confunde com o tratamento individualizado ou específico deste ou daquele trabalhador.

Segundo Tiago Cochofel de Azevedo, o uso laboral não poderá deixar de configurar “uma prática reiterada geral”, assim se distinguindo das práticas individuais estabelecidas entre o empregador e cada um dos seus trabalhadores, no âmbito de cada um dos contratos de trabalho individualmente considerados. Este autor, à semelhança de Júlio Gomes, afirma que as práticas reiteradas no âmbito de relações contratuais de execução continuada e duradoura são passíveis de gerar efeitos associados à tutela da confiança e das expectativas das partes, estando o tempo associado à boa fé na execução dos contratos[4] - no sentido de que só relevam para efeitos de integração de usos relevantes como fontes de direitos as práticas gerais ou sociais, consulte-se, por exemplo o acórdão deste Tribunal da Relação de 27/10/2016, proferido no processo 7303/15.8T8CBR.C1.

Neste enquadramento, nunca poderia ser reconhecido como integrante de um uso fonte de direito laboral a prática individual da apelada em relação à apelante no que concerne à sujeição desta a uma situação de isenção de horário de trabalho com pagamento do correspondente subsídio.

Concluindo: a cessação da situação de isenção de horário de trabalho e do pagamento do correspondente subsídio não podem ser reconhecidas como fonte de justa causa subjectiva da resolução do contrato de trabalho que a apelante operou.

No que concerne à falta de formação profissional que a apelante também convoca para efeitos de procedência da apelação, importa reter que a mesma não funda a justa causa subjectiva de resolução do contrato de trabalho nessa circunstância individualizada, mas sim numa consideração conjugada da mesma com a cessação ilícita da IHT e do pagamento do correspondente subsídio e com a persistência da prestação de trabalho durante mais de 40 horas de trabalho semanal.

É elucidativo, a este respeito, o seguinte trecho das alegações da apelante: “Assim, considerando a falta de formação profissional, a falta de pagamento da compensação por IHT, associada ao facto de a autora continuar a prestar mais de 40 horas de trabalho semanal, todos esses factos apontam para que fosse inexigível à autora manter-se vinculada ao contrato de trabalho e ter este sido resolvido com justa causa, tendo ela direito à indemnização prevista no art.º 396.º do Código do Trabalho.”.

Ora, a sentença recorrida considerou que a autora fundou a resolução do contrato de trabalho em apenas duas circunstâncias, a saber: o incumprimento da obrigação de formação profissional, por um lado, e a retirada, sem contrapartidas, da isenção de horário de trabalho, por outro lado.

Atente-se, a este respeito, no seguinte segmento da sentença recorrida: “No caso vertente, a autora fundou a resolução do contrato de trabalho em duas circunstâncias: o incumprimento da obrigação de formação profissional, por um lado, e a retirada, sem contrapartidas, da isenção de horário de trabalho.”.

Por isso, a sentença recorrida não abordou a questão de saber se podia ou não constituir fundamento de justa causa subjectiva de resolução do contrato de trabalho a circunstância de a autora continuar a prestar mais de 40 horas de trabalho semanal sem contrapartida remuneratória.

A questão em causa reporta-se a matéria que não está excluída da disponibilidade das partes, não sendo por isso de conhecimento oficioso, não tendo o tribunal recorrido conhecido dessa questão e não tendo a apelante arguido qualquer nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia.

Neste enquadramento, não pode este tribunal conhecer da questão em causa.

Com efeito, assumindo o recurso ordinário a natureza de recurso de reapreciação visando a modificação das decisões recorridas, a significar que tais recursos não se destinam a conhecer de questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas, sim, a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso[5], não tendo o tribunal recorrido conhecido de determinada questão que perante o mesmo tinha sido suscitada e não tendo a parte interessada arguido a nulidade por omissão de pronúncia relativamente à mencionada questão, o objecto do recurso deve circunscrever-se à matéria sobre a qual a decisão recorrida se tenha pronunciado em termos que mereçam a discordância da recorrente, com a consequente impossibilidade do tribunal superior decidir pela primeira vez sobre matéria não apreciada pelo tribunal a quo, ressalvadas, como dito, situações em que estejam em causa matérias de conhecimento oficioso que, como supra evidenciado, não são do tipo das que ora estão em consideração.

Por isso e por nessa medida se tratar de questão nova que não foi abordada na sentença recorrida, está este tribunal impedido de conhecer desse concreto fundamento da resolução contratual operada pela autora.

Aliás, a apelante não se insurgiu contra aquele entendimento sustentado na decisão recorrida sobre os fundamentos invocados pela autora para resolver o contrato de trabalho, sendo que, por isso e nesse segmento, aquela sentença transitou em julgado, razão pela qual, igualmente, não pode aqui ser ponderada como fundamento de justa causa subjectiva de resolução do contrato de trabalho a prestação de mais de 40 horas de trabalho semanal sem contrapartida remuneratória

No que concerne à cessação da IHT e do pagamento do correspondente subsídio, já supra se explicitou o nosso entendimento no sentido de que tal cessação não integra justa causa subjectiva de resolução do contrato de trabalho.

Como assim, não está verificada a situação ilícita plural em que a autora fundou a justa causa subjectiva da resolução a que procedeu e na qual integrou, para efeitos de apreciação conjugada com as demais atrás enunciadas, a falta de formação profissional, razão pela qual também está vedado a este tribunal apreciar isoladamente tal falta de formação enquanto fundamento integrador de justa causa subjectiva de resolução do contrato de trabalho.

De resto, a respeito da falta de formação profissional, a sentença recorrida discorreu assim: “Do que ora se expôs resulta que o único fundamento de resolução do contrato de trabalho demonstrado pela autora reside na insuficiência de formação.

Pode-se afirmar que esse incumprimento por parte do empregador tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho?

A nosso ver, não.

É certo que, na nossa ótica, o trabalhador não tem de fazer cessar o contrato de trabalho logo que se verifica o primeiro incumprimento por parte do empregador.

A exigência de maior ou menor imediatez assentará na maior ou menor gravidade do ato ou da omissão, sendo que, em determinados casos, será o acumular de atos ou omissões – que, em si mesmas, não tenham uma gravidade tal que determine a imediata impossibilidade de subsistência da relação de trabalho – que importará, em determinado momento, essa impossibilidade.

Todavia, no caso vertente, não ficou demonstrada a essencialidade ou, no mínimo, a elevada importância atribuída pela autora à formação.

Na verdade, provou-se que a autora só teve formação nos anos de 2003, 2005, 2013 e 2014, havendo, portanto, um hiato de quase 8 anos sem que lhe tivesse sido proporcionada qualquer formação, ao que acresce o facto de, nos anos de 2013 e 2014, a formação ter sido insuficiente.

No entanto, a autora deixou caducar o crédito de horas que foi acumulando, nunca manifestando vontade de utilizar esses créditos, o que não deixa de constituir facto revelador da não essencialidade, para a autora, do incumprimento por parte do empregador. Aliás, a autora também não pediu, nesta ação, a condenação da ré e da interveniente no pagamento das horas de formação ou crédito de horas.”.

Acompanhamos o assim sustentado na sentença recorrida, tendo em conta, também, que dos factos provados não emerge que a apelante alguma vez se tenha insurgido contra a falta ou insuficiência da formação profissional, ou que tenha interpelado a apelada no sentido de fazer cessar a omissão em que estava incursa.

De resto, a apelante nenhum esforço argumentativo realizou tendente a infirmar aquele entendimento do tribunal recorrido.

Improcede, pois, a apelação.

Por consequência, fica prejudicado o conhecimento da ampliação do recurso por parte da interveniente e as correspondentes questões 2ª) e 3ª) supra identificadas.

Quarta questão: se a matéria de facto foi incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

Pretende a interveniente que o ponto 22º) dos factos descritos como provados passe a ter a seguinte redacção: Em 2014, a autora esteve mais de 3 meses de baixa; em 2015 mais de 7 meses de baixa; e, em 2016, mais de 3 meses de baixa, desde 01/03/2016 até à cessação do contrato de trabalho.

Face aos certificados de incapacidade temporária para o trabalho juntos aos autos com o requerimento com a referência Citius nº ..., de 21/10/2016, os quais não foram objecto de qualquer impugnação por parte da autora, altera-se o ponto 22º) dos factos descritos como provados que passará a ter a seguinte redacção: “Em 2014, a autora esteve mais de 3 meses de baixa; em 2015 mais de 7 meses de baixa; e, em 2016, esteve de baixa desde 01/03/2016 até à cessação do contrato de trabalho.”.

Quinta questão: se deve ser reduzido para €314,33 o montante arbitrado à autora pela sentença recorrida a título de subsídio de Natal referente ao ano de 2016.

Nos termos do art. 263º/1 do CT/09, “O trabalhador tem direito a subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição, que deve ser pago até 15 de Dezembro de cada ano.”.

Nos termos do art. 263º/2/c do CT/09, o valor do subsídio de Natal é proporcional ao tempo de serviço prestado no ano civil, em caso de suspensão de contrato de trabalho por facto respeitante ao trabalhador.

Por seu turno, nos termos do art. 296º/1 do CT/09, determina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença.

A significar, por reporte ao caso dos autos e face à nova redacção conferida ao ponto 22º) dos factos descritos como provados, que o contrato de trabalho entre a autora e a interveniente se suspendeu no dia 30/3/2016.

No caso em apreço, não existe discrepância entre as partes quanto à cessação do contrato de trabalho em Junho de 2016, por iniciativa da autora, através de resolução contratual com invocação de justa causa subjectiva para o efeito (art. 25º da petição e documento nº 9 nele referenciado; arts. 1º, 20º e 30º da contestação).

Como assim, a autora tem direito aos proporcionais do subsídio de Natal entre 1/1/2016 e 29/3/2016, no valor de 449,88 euros.

Em face do referido no antecedente parágrafo, o crédito da autora deve reduzir-se a 187,22 euros.
IV - Decisão

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de:

i) julgar a apelação principal improcedente, ficando prejudicado o conhecimento da ampliação do recurso pela qual pugna a interveniente;

ii) julgar a apelação subordinada parcialmente procedente, passando o ponto I) do dispositivo da sentença a ter a seguinte redacção: “Na parcial procedência da ação, condenar a interveniente a pagar à autora A... a importância de 187,22 euros (cento e oitenta e sete euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação da interveniente até integral e efetivo pagamento.”;

Custas da apelação principal pela autora.

Custas da apelação subordinada por autora e interveniente, na proporção do decaimento.

Coimbra, 13/9/2019


(Jorge Manuel Loureiro)

(Paula Maria Roberto)

(Ramalho Pinto)


Sumário:

I - Invocando o trabalhador como fundamento da justa causa de resolução do contrato de trabalho a cessação da situação de isenção do horário de trabalho e a falta de pagamento do correspondente subsídio, compete-lhe a ele o ónus de alegação e prova das correspondentes causas de ilicitude.

II – Cessando as causas que determinaram, após a celebração do contrato de trabalho, a implementação da isenção de horário de trabalho, a entidade empregadora pode fazer cessar unilateralmente tal isenção e o pagamento do correspondente subsídio.


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[1] Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª, p. 1357, Meneses Cordeiro, Manual do Direito de Trabalho, p. 698, Bernardo Lobo Xavier, Direito do Trabalho, p. 365, acórdão do STJ de 22/9/1993, CJ do STJ, 1993, T. 3, pp. 269 e ss, acórdão da Relação de Coimbra de 7/3/1996, CJ 1996, T. 2, pp. 63 e ss, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/10/2004, proferido no processo 10635/2003-4, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2004:10635.2003.4.
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[2] Mês a partir do qual cessou o pagamento do subsídio de isenção de horário de trabalho.
[3] Vide Júlio Gomes, Direito do Trabalho, volume I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra, 2007, pp. 13-15 e nota 26.
[4] In Da relevância jurídica dos usos laborais, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2012, pp. 109-110. Veja-se também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2014.12.17, Processo n.º 292/11.0TTSTRE.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[5] José Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 141, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3ª edição, p. 212, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, Lex, p. 395, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2ª ed., Revista e Actualizada, p. 94, acórdãos do STJ de 6/6/02, proferido no âmbito do processo 1874/02, de 30/10/03, proferido no âmbito do processo 3281/03, de 10/10/2007, proferido no âmbito do processo 3634/07, de 4/12/2008, proferido no âmbito do processo 2507/08, de 23/9/2009, proferido no âmbito do processo 5953/03.4TDLSB.S1, e de 26/6/2015, proferido no âmbito do processo 373/10.7TTPRT.P1.S1.