Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/06.4IDGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ELEMENTOS DO TIPO
REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 12/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105º DO RGIT E 426º DO CPP
Sumário: 1 No caso do IVA, comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, o sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça, no prazo legalmente fixado para tal.
2. Assim, no caso do IVA, e estando em apreciação a eventual a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, o Tribunal deve levar a cabo a indagação plausível de fazer para determinar quais as quantias efectivamente recebidas e não entregues pelo sujeito passivo e se aquelas são superiores ao valores actualmente estabelecidos na lei (7 500,00 €).
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO.

No processo Comum n.º 24/06.4IDGRD.C1, após acusação e pronúncia, foram julgados os arguidos So… S.A., R. F e A. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 105º nº 1, 2, 4 e 7 do RGIT.

O Ministério Público deduziu pedido de indemnização contra os arguidos pedindo a sua condenação no pagamento ao Estado Português do montante global de 243 021,16€ acrescido dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento.

Realizado o julgamento, o Tribunal decidiu

a) condenar a arguida So — S.A., como autora material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 7° e 105°/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30°/2 do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz o montante de 750,00€;
b) condenar o arguido R, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6°I1, 7°/3 e 105°I1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30º/2 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), o que perfaz o montante de 630,00€;
c) condenar o arguido F como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6°/1, 70/3 e 105°/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30°/2 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), o que perfaz o montante de 630,00€;
d) condenar o arguido A, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6°/1, 7°/3 e 105°/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30°/2 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), o que perfaz o montante de 630,00€;
e) condenar os arguidos nas custas do processo na parte criminal, incluindo o valor dos encargos a que individualmente deram causa, fixando-se a taxa de justiça individual em 5 (cinco) UC (cfr. artigos 513°l1, 2 e 3, 514°I1, 524° e 344°12-c) do Código Processo Penal e artigos 1 2°, 3°I1, 50, 8°15, 16° e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais);
f) condenar os demandados a pagarem, solidariamente, ao Estado Português (Fazenda Nacional), com referência ao valor de IRS retido no mês de Novembro de 2004 e não entregue, a quantia de 8 537,00€ (oito mil quinhentos e trinta e sete euros), acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do demais peticionado;
g) condenar o demandante (Estado Português) e os demandados nas custas do pedido de indemnização civil deduzido e na proporção do decaimento,
Não se conformando com a decisão, o Ministério Público e o arguido R vieram interpor recurso da mesma para este Tribunal, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

(i) Ministério Público
1

A douta decisão recorrida deu como provado que a sociedade arguida, nas transacções comercias efectuadas e facturadas, com referência a cada um dos períodos tributários em causa, não recebeu a totalidade do IVA liquidado nas facturas, tendo recebido quantias cujo montante não foi possível quantificar — ponto 130, dos factos provados.

2

Na parte da fundamentação da convicção do tribunal, designadamente quando faz referência ao depoimento da testemunha M G, o tribunal considerou que se encontra documentado o recebimento de importâncias de IVA e, por outro lado, que a testemunha não logrou apurar quais os valores de IVA efectivamente recebidos.

3 a

Ora, estando documentado o recebimento pela sociedade de valores de IVA liquidado, como efectivamente está nos anexos juntos ao auto de notícia, a determinação do montante que se encontra comprovado depende apenas da análise dos documentos comprovativos desse pagamento e da correspondente operação matemática.

4 a

Conforme resulta da reprodução do depoimento da testemunha MG, inspectora tributária, gravado no sistema de gravação digital disponível no tribunal, na sessão de 01.03.2010, em audiência de julgamento não foi pedido à testemunha para quantificar quais os concretos valores de IVA recebido pela sociedade, relativamente aos quais havia recolhido o comprovativo do pagamento pelos clientes da So

A testemunha M G, em momento algum do seu depoimento verbalizou alguma impossibilidade de quantificação dos valores de IVA recebidos em cada um dos períodos tributários, relativamente aos quais recolheu e juntou aos autos documento comprovativo do pagamento, que permita ao tribunal concluir que a testemunha não logrou quantificar os montantes de IVA recebidos.

6a

A referida testemunha limitou-se a responder às perguntas que lhe foram formuladas e, por comodidade de exposição, a remeter para os documentos (anexos) que juntou ao auto de notícia, que comprovam recebimento de valores de IVA.

7a

Assim, quando o tribunal conclui que a testemunha (M G) não logrou apurar quais os montantes efectivamente recebidos e, em sede de factos provados faz constar que a sociedade recebeu quantias de IVA cujo montante não foi possível quantificar, existe, em nosso entender, erro notório na apreciação da prova.

8a

Salvo o devido respeito por melhor entendimento, o tribunal não pode confundir a falta de prova do facto com a ausência de contabilização dos valores apurados como recebidos pela sociedade em cada um dos períodos tributários em causa, quando os documentos que permitem a determinação dos montantes se encontram juntos aos autos e foram objecto da prova examinada em audiência de julgamento.

9a

Ora, encontrando-se documentado o recebimento de alguns valores de IVA é possível/exigível ao tribunal determinar/quantificar quais os valores que se encontram documentados ou solicitar apoio técnico para realização da correspondente operação de determinação dos valores recebidos em cada um dos períodos tributários em causa.

1 0

Realizada uma análise aos elementos de prova documental juntos aos autos, designadamente aos anexos indicados na parte III do presente motivação de recurso, verifica-se que se encontra documentalmente demonstrado que a sociedade Sotave das mercadorias facturadas no mês de Julho de 2004 recebeu 18.279,38 Euros de IVA; dos bens vendidos em Agosto de 2004 recebeu 8.011,27 € de IVA; de Setembro 10.195,46 € de IVA e de Outubro recebeu a quantia de 14.774,58 € de IVA, até 90 dias após a data limite de pagamento relativamente a cada um dos referidos períodos tributários.

11a

A decisão recorrida ao dar como provado que a sociedade recebeu quantias de IVA em montantes não apurado, ao não quantificar os valores de IVA recebidos pela sociedade, fornecendo os autos elementos para o efeito, incorreu em erro notório na apreciação da prova na medida em que desconsiderou os elementos de prova documental e não deu a devida relevância ao depoimento da testemunha M G.

1 2

A decisão recorrida enferma do vício de contradição insanável na fundamentação e entre esta e a decisão, na medida em que dá como assente que se encontra demonstrado o recebimento de importâncias de IVA e que não foi possível quantificar o montante recebido.

1 3

Ora, se está demonstrado o recebimento de valores de IVA, com base em recibos emitidos pela So, na cópia dos meios de pagamentos pelos seus clientes, como seja o desconto e reforma de letras, pagamento por cheques, etc, basta contabilizar os montantes recebidos que se encontram comprovados nos autos para determinar um valor de imposto que foi seguramente recebido pela sociedade.

1 4

A decisão recorrida não fundamenta a razão de não ter sido possível determinar as quantias de IVA recebido pela sociedade So, em cada um dos períodos tributários, pelo contrário, limita-se a afirmar, de forma inverosímil, que a testemunha MG não logrou apurar os montantes efectivamente recebidos e que não foi possível quantificar as quantias recebidas.

150

Afigura-se-nos que existe, nesta parte, contradição entre a fundamentação e a decisão, pois que apesar de ter considerado comprovado nos documentos juntos aos autos o recebimento de IVA - postergando a necessária operação de quantificação dos concretos valores recebidos que se encontram demonstrados — conclui que não foi possível quantificar os montantes de IVA recebido.

16°

A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que leve aos factos provados que a sociedade So, que nos períodos tributários de Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2004, recebeu IVA em montante superior a 7.500,00 Euros, até ao limite do prazo de 90 dias após a data limite de pagamento, e inclua na condenação dos arguidos pela prática do crime de crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, a falta de entrega de IVA nos referidos períodos tributários.

1 7

Em sede de pedido de indemnização civil, deverá a decisão ser alterada de modo a incluir na condenação as prestações de IVA que os arguidos estavam obrigados a entregar ao Estado.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue provada a falta de entrega de IVA liquidado e recebido em montante superior a 7.500,00 euros m cada um dos períodos tributários supra referidos e inclua esta factualidade na condenação dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e condene ainda os arguidos no pagamento dos valores de IVA que os mesmos estavam obrigados a entregar ao Estado.

(ii) Arguido R
1. O presente recurso circunscreve-se à condenação a que foi sujeito o Arguido, ora Recorrente, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.°, n.° 1, 7•0, n.° 3 e 105.°, n.° 1 do RGIT e 30.°, 11.0 2, do Código Penal, por ausência de entre2a ao Estado do IRS retido nos salários pagos aos trabalhadores da SO.. em Novembro de Dezembro de 2004

— Do recurso da matéria de facto:

2. Salvo o devido respeito e opinião em contrário, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os pontos 8, 9 e 10 da matéria de facto provada;

3. Não ajuizou bem aquele Tribunal quanto a tais pontos concretos da matéria de facto dada como provada, porquanto aquela conclusão não pode, de forma alguma, ser retirada do depoimento da testemunha MG, cujo conhecimento advém apenas do contacto com a prova documental, esclarecendo que deduz o pagamento dos vencimentos pela seguinte afirmação: “Eles estão declarados, estarão pagos” (declarações gravadas em sistema Habilus, Disco Compacto, identificado com data e número de processo, duração 11:32:31-12:06:16, na sessão de audiência de discussão e julgamento de 01/03/2010, pelo minuto 4:15);

4. Já o arguido A, esclareceu que, quanto aos períodos concretamente em causa, “O Dezembro não há-de ter sido pago mesmo em Dezembro. A dada altura pagávamos aquilo escalonadamente. Não havia dinheiro para pagar tudo integralmente” (declarações gravadas em sistema Habilus, Disco Compacto, identificado com data e número de processo, duração 10:44 a 11:30, na sessão de audiência de discussão e julgamento de 03/02/20 10, pelo minuto 5:39);

5. Por último, a testemunha M ,ex--trabalhador da So…, à pergunta da Ilustre Mandatária de um dos arguidos, que questionava a testemunha se havia salários pagos fora de tempo, a testemunha respondeu “Houve, e outros que não foram pagos, ficaram por lá”. Mais acrescentou que os salários de 2004 foram todos pagos “o que é com atrasos” (declarações gravadas em sistema Habilus, Disco Compacto, identificado com data e número de processo, duração 15:42 a 16:06, na sessão de audiência de discussão e julgamento de 03/02/2010, pelo minuto 5:24). Acrescentou, ainda, que “chegaram-nos a pagar [ atrasos] de 15, 20 [ Era conforme se pudesse (declarações gravadas em sistema Habilus, Disco Compacto, identificado com data e número de processo, duração 15:42 a 16:06, na sessão de audiência de discussão e julgamento de 03/02/2010, pelo minuto 7:05);

6. Esta testemunha veio, ainda, esclarecer um aspecto fundamental que abala o poder probatório dos documentos juntos a fis. 76 a 84: é que dos recibos de vencimento consta a data em que os mesmos são processados, o que não equivale à data do seu recebimento. Perguntado se as datas do recibo de vencimento coincidiam com a data de pagamento, a testemunha referiu: “Não, os recibos eram emitidos logo no final do mês (...) depois ficavam ali, claro. Só quando pagavam é que entregavam o recibo (declarações gravadas em sistema Habilus, Disco Compacto, identificado com data e número de processo, duração 15:42 a 16:06, na sessão de audiência de discussão e julgamento de 03/02/2010, pelo minuto 8:15);

7. Ora, de todos estes depoimentos conjugados não pode deixar de se considerar que não resultou minimamente provado qualquer dos seguintes pontos:

a) que os arguidos tenham efectuado o pagamento dos salários aos trabalhadores, relativamente aos meses de Novembro e Dezembro de 2004, nesses mesmos meses;

b) em que data os arguidos procederam ao pagamento dos salários referentes a Novembro e Dezembro de 2004 ou sequer se tal pagamento foi efectuado até ao dia 20 do mês seguinte;

c) que os arguidos tenham retido o IRS dos salários acima identificados e, consequentemente, que tal montante tenha sido utilizado para pagamento de outras dívidas da So...

8. Temos assim que os pontos da matéria de facto dada como provada e acima transcritos deveriam ter sido dados como não provados, por inexistência de prova naquele sentido. Face à alteração da matéria de facto dada como provada, como se requer, resulta clara a inexistência de factos subsumíveis na tipificação legal do crime de abuso de confiança fiscal;

9. Nestes termos, o Tribunal a quo violou o disposto no art.° 127.° do CPP.

No entanto, e sem conceder no atrás alegado,

II — Do recurso da matéria de direito

10. Ainda que não se considere procedente a invocada alteração da matéria de facto suscitada, sempre se diria que deveria o Tribunal a quo, na parte em que respeita o presente recurso, ou sei a, no que concerne à condenação a que foi sujeito o Arguido, ora Recorrente, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.°, n.° 1, 7.°, n.° 3 e 105.°, n.° 1 do RGIT e 30.°, n.° 2, do Código Penal, por ausência de entrega ao Estado do IRS retido nos salários pagos aos trabalhadores da SO.., em Novembro de Dezembro de 2004, deveria ter reconhecido a existência de um conflito de deveres — causa de exclusão da ilicitude;

11. Face à inexistência de dinheiro, como foi dado como provado, os Arguidos optaram pelo pagamento dos salários aos trabalhadores, que permitiria a continuação da actividade económica da sociedade, em detrimento do pagamento dos impostos. Tudo conforme resulta provado nos pontos 18 a 21 da matéria de facto

12. No caso em apreço, era de todo impossível dar cumprimento simultâneo a ambos os deveres — o dever de pagar os impostos e o dever de pagar a retribuição aos trabalhadores -, assim houve necessidade de dar prevalência a um e sacrificar o outro, como resulta dos pontos 18 a 21 da matéria de facto provada;

13. Pois a questão do conflito de deveres prende-se com isso mesmo, com o facto de perante um sujeito se coloquem diversos deveres, incompatíveis entre si, encontrando- se o mesmo obrigado ao cumprimento de todos e de cada um deles. Perante o dever de pagamento dos impostos e o dever de pagar a retribuição aos trabalhadores, ao Recorrente foi necessário estabelecer uma ordem de prioridades, ou antes, fazer uma hierarquização de ambos os deveres, sacrificando o menos valioso;

14. Taipa de Carvalho, in Direito Penal, Parte Geral, Teoria Geral do Crime, vol.IL 2004, p.251 defende a aplicação do conflito de deveres quando o empregador, na impossibilidade de pagar os salários e os impostos, cumpre o dever laboral em detrimento do dever fiscal;

15. Ainda Augusto Silva Dias, in Crimes e contra ordena ções fiscais “, Direito Penal Económico, p. 462 e 463, defende a aplicação da causa de justificação do conflito de deveres, desde que se verifiquem as seguintes circunstâncias: não dispor a empresa de meios económicos que lhe permitam suportar em simultâneo o pagamento dos salários e a entrega das prestações retidas a título de IRS; que esta situação se verifique sempre no momento em que aquelas obrigações devam ser cumpridas e que as prestações retidas sejam utilizadas, total ou parcialmente, no pagamento de salários, admitindo porém que parte delas possam ser investidas na aquisição de equipamentos e de matéria-prima, preservando a empresa e garantindo condições de trabalho;

16. Ora, todos os pressupostos acima explanados se encontram preenchidos no presente caso;

17. No sentido da superioridade do bem jurídico da dignidade da pessoa humana face ao bem jurídico que é o património do Estado, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, referente ao processo 41/05.1IDCBR.C1 de 14/01/2009, segundo o qual “Sensível superioridade essa que a nosso ver existe”.

18. Nada justifica que, tendo-se verificado as circunstâncias, de facto e de direito, previstas no art.36.°, esta norma não tenha sido aplicada ao caso em apreço;

19. Assim, ao não ter reconhecido a existência de uma causa de exclusão da ilicitude da conduta imputada ao Arguido aqui Recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 31.°, n.° 1, e 2, alínea c), e 36.° do Código Penal.

Aos recursos interpostos responderam o arguido F o Ministério Público (ao recurso do arguido R) e o arguido R e A (ao recurso do MP).

O senhor Procurador geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu o seu parecer, concordando parcialmente com o recurso do MP na primeira instância (embora por outros fundamentos) e manifestando o sua posição sobre a improcedência do recurso do arguido. A esta posição responderam ainda o arguido A e R

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

Em face das conclusões dos recorrentes são as seguintes as questões a decidir: a) recurso do Ministério Público: (i) contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova;

b) recurso do arguido R : (i) factos incorrectamente julgados, por violação do princípio do artigo 127º do CPP; (ii) não verificação da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres.

*

Importa antes de mais atentar na matéria de facto e respectiva fundamentação que consta na decisão em apreciação.

A) Factos Provados.

Discutida a causa, com relevo para a decisão, o tribunal julga provados os seguintes factos:

1. A arguida So —, SA, NIPC 5002.., tem a sua sede…, concelho de Manteigas;

2. Encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Manteigas sob o n° 00001/8…, com o capital social de 2.000.000 euros e tem como objecto social “o exercício da indústria têxtil”;

3. Tal sociedade encontrava-se colectada no Serviço de Finanças de Manteigas e estava sujeita ao regime normal de IVA, de periodicidade mensal;

4. O arguido R foi administrador da sociedade arguida desde 8/6/2002 até 18/4/2005, sendo o responsável pelo departamento financeiro;

5. O arguido F.. foi administrador da sociedade arguida desde o dia 1/9/2003 até final de 2007, sendo o responsável pelo pessoal e pela área comercial, competindo-lhe orientar, supervisionar e fiscalizar o departamento comercial;

6. O arguido A s foi cooptado para administrador da arguida sociedade, tendo exercido o cargo de administrador desde o dia 1/7/2004 ao dia 13/4/2005;

7. Os arguidos referidos em 4), 5) e 6) exerciam as suas funções nas instalações da sociedade arguida, partilhando um espaço amplo afecto à administração da empresa, onde se encontravam diariamente e onde debatiam no dia-a-dia os problemas da empresa, entre eles, no período em causa, o avolumar dos impostos em dividida e a forma de proceder ao seu pagamento;

8. Os arguidos R e A , com o conhecimento do arguido F, no período em discussão, enquanto administradores da sociedade arguida, efectuaram o pagamento dos salários aos trabalhadores, retiveram o IRS devido ao Estado, mas não o entregaram nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte, nem nos 90 dias posteriores, tendo utilizado tais importâncias para pagamento de outras dívidas da empresa;

9. Assim, em Novembro de 2004 a sociedade arguida, através dos seus administradores, reteve nos salários pagos aos seus trabalhadores a quantia global de 8 537,00€, que deveria ter entregado à administração tributária até ao dia 20/12/2004;

10.E em Dezembro de 2004 reteve a quantia global de 8 955,00€, que deveria ter entregado à administração tributária até ao dia 20/1/2005;

11.No mesmo período, os mesmos arguidos, na mesma qualidade, com o conhecimento do arguido F , facturaram os produtos fornecidos aos clientes da sociedade arguida, tendo liquidado o IVA devido por tais transacções, cujo pagamento reclamaram;

12.Até ao dia 20 do segundo mês seguinte ao da facturação a sociedade arguida, através dos arguidos R e A, com o conhecimento do arguido F , apresentou nos Serviços de Finanças as devidas declarações periódicas de IVA, sem que as fizesse acompanhar do respectivo meio de pagamento, que também não efectuou nos 90 dias seguintes;

13.A sociedade arguida, nas transacções comerciais efectuadas e facturadas, com referência a cada um dos períodos em causa, não recebeu a totalidade do valor do IVA liquidado nas facturas, tendo recebido quantias cujo montante não foi possível quantificar;

14 A sociedade arguida, nos períodos que se seguem, tendo apresentado a devida declaração periódica de IVA, na qual reportou a liquidação de IVA pelos produtos fornecidos em valores superiores, não deduziu as seguintes quantias, que deveria ter entregado nos cofres do Estado até ao dia 20 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam:

• Julho de 2004: 50 257,81€;

• Agosto de 2004: 32 104,31€;

• Setembro de 2004: 49 367,81€;

• Outubro de 2004: 43 767,09€;

• Novembro de 2004: 33 980,14k;

15.Decorridos os 90 dias seguintes ao termo do prazo para entrega das declarações, a sociedade arguida e os demais arguidos foram notificados para no prazo de 30 dias procederem ao pagamento das prestações comunicadas à administração tributária, dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo os mesmos efectuado tal pagamento;

16.A sociedade arguida, por decisão proferida no dia 28/9/2006, no âmbito do processo n.° 2242/O66TBGRD, do 1° Juízo deste tribunal, transitada em julgado, foi declarada insolvente;

17.Os arguidos (pessoas singulares) agiram de forma livre, deliberada e consciente, em representação da sociedade arguida e em proveito desta, bem sabendo que estavam legalmente obrigados a entregar nos cofres do Estado as importâncias de IRS retidas e de IVA liquidado e não deduzido nas respectivas declarações periódicas, nos prazos referidos, e que, não o fazendo, praticavam actos proibidos e punidos por lei, sabendo ainda que, ao fazerem suas as importâncias retidas a título de IRS, que afectaram ao pagamento dos salários dos trabalhadores, estavam a praticar actos proibidos e punidos criminalmente;

Mais se provou que:

8.A sociedade arguida, no período em causa, tendo ao seu serviço mais de 200 trabalhadores, atravessava dificuldades económicas, financeiras e de tesouraria, derivadas da diminuição acentuada da procura, aliada a um aumento do volume de créditos em mora ou mesmo incobráveis por parte dos seus clientes;

19.Tal conjuntura viria a determinar a sua situação de insolvência, não tendo a mesma condições de cumprir pontualmente com as suas obrigações, entre elas a de pagar os impostos devidos ao Estado e os salários devidos aos seus trabalhadores;

20.Neste dilema, a sociedade arguida, representada pelos demais arguidos, de modo a evitar o encerramento da empresa e a situação de desemprego de tantos trabalhadores, estabeleceu como prioridade o pagamento dos salários aos trabalhadores, em detrimento do pagamento dos impostos devidos ao Estado;

21.Em Novembro de 2005 a sociedade arguida, para pagamento dos impostos em dívida, cedeu à administração tributária uma relação de créditos que detinha sobre os seus clientes, reportados a transacções comerciais efectuadas entre os anos 2000 e 2005, considerados incobráveis e em mora, cujo valor, com IVA incluído, ascendia a cerca de 400 000,00€;

22.Alguns desses créditos reportavam-se a valores facturados durante os períodos tributários supra referidos, cujo IVA liquidado não chegou a ser recebido;

23.A sociedade arguida, ao ceder tais créditos à administração tributária, ficou impedida de diligenciar pela sua cobrança;

24.0 arguido F, para fazer face às dificuldades financeiras que a sociedade arguida vivia, nomeadamente para pagamento dos salários devidos aos trabalhadores, chegou a emprestar-lhe dinheiro, que viria a ser reconhecido na sentença de verificação de créditos proferida no processo de insolvência no montante de 26 833,00€, tendo a sociedade arguida lhe ficado a dever, ainda, pelos salários e subsídios de férias/Natal não pagos, bem como por outros serviços prestados, o montante de cerca de 20 000,00€;

25.A Fazenda Nacional, no âmbito do processo de insolvência, reclamou os seus créditos de impostos sobre a insolvente, que foram reconhecidos e verificados nos termos reclamados;

26.Tais créditos haviam sido objecto de execução fiscal, as quais, com a declaração de insolvência, foram apensadas ao processo de insolvência;

27.0 crédito de IRS referente ao mês de Dezembro de 2004, neste momento, encontra-se pago;

28. 0s arguidos F e A confessaram parcialmente os factos;

29.0 arguido F exerceu ultimamente as funções de chefe de vendas, numa empresa de limpeza, onde auferia o vencimento mensal de 750,00€;

30. Encontra-se actualmente desempregado, auferindo um subsídio de desemprego, por um período máximo de 1020 dias, no valor diário de 18,20€;

31.Vive sozinho;

32.Não tem antecedentes criminais;

33.0 arguido A exerce a profissão de contabilista, da qual aufere o vencimento mensal de 800,00€;

34.Vive sozinho;

35.Não tem antecedentes criminais;

36.0 arguido R não tem antecedentes criminais.

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B) Factos não provados.

Com relevo para a decisão da causa, para além das conclusões e matéria de direito vertidas nas diversas peças processuais, que não se consignam por conclusivas,

Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:

1. O arguido F fosse o responsável pelo sector financeiro da sociedade arguida;

2. Os arguidos (pessoas singulares) tivessem retido o IRS e liquidado/recebido o IVA em proveito próprio;

3. Os arguidos (pessoas singulares) se tivessem apoderado das quantias deduzidas a título de IVA;

4. Os arguidos tivessem recebido todas as quantias liquidadas a título de IVA;

5. Todos os arguidos tivessem agido com o propósito de conseguirem para eles próprios um benefício pecuniário a que sabiam não ter direito, apoderando-se de tais quantias;

6. Os arguidos, relativamente ao IVA liquidado, não deduzido e não entregue, tivessem actuado cientes que a suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente;

7. Os arguidos, para além das importâncias mencionadas nos factos provados, tivessem retido as demais importâncias de IRS discriminadas nos artigos 2° a 5° do pedido de indemnização civil e que tivessem liquidado/deduzido/recebido as demais importâncias de IVA discriminadas nos artigos 6° e 7° do pedido de indemnização civil;

8. O arguido F ignorava até Março de 2005 que não estavam a ser pagos os impostos à administração fiscal;

9. Os devedores dos créditos cedidos ao Estado tivessem capacidade financeira para pagar os seus débitos e que o não pagamento dos impostos em falta se tenha verificado por inércia da administração fiscal.

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C) Convicção do Tribunal.

O tribunal fundamentou a sua convicção na globalidade da prova produzida em audiência e devidamente ponderada, conjugada com a prova documental junta aos autos, nomeadamente:

- Nas declarações prestadas pelo arguido F, o qual confessou a factualidade referente à sua actividade de administrador, tendo salientado, no entanto, que nunca se preocupou muito com a área financeira, que estava a cargo do arguido R Ferreira e, mais tarde, do arguido A, sendo responsável apenas pela área comercial e do pessoal; quis fazer passar a ideia que nada teve a ver com a área financeira, cuja realidade desconhecia — o que não se nos afigurou credível, quer face às declarações conjugadas com o arguido A , que referiu que a administração partilhava a mesma sala, sendo tais assuntos discutidos diariamente entre todos, quer face ao teor das actas do conselho de administração, no período em causa, que evidenciam que o arguido estava ao corrente da situação tributária; o mesmo arguido acabou por referir que, embora sem saber quantificar, sabia que deviam ao Estado; assegurou que não receberam a totalidade do IVA facturado e que desconhecia qual o IVA liquidado e recebido; referiu, também, que não se apropriou de qualquer quantia em proveito próprio, tendo ficado inclusive credor da sociedade, por quantias emprestadas e importâncias não recebidas; confirmou a cessão de créditos ao Estado; descreveu a situação deficitária da empresa, as dificuldades correntes na administração da empresa, os conflitos com os trabalhadores, decorrentes de salários em atraso, a ameaça de paralisação da empresa, os métodos de trabalho das diferentes administrações, a inevitabilidade da insolvência, face ao aumento do volume de créditos incobráveis e à diminuição da procura;

Nas declarações prestadas pelo arguido A, o qual confessou a materialidade referente à sua administração; descreveu a situação económico-financeira dificil em que a empresa se encontrava e o confronto diário no estabelecimento das prioridades, tendo optado por continuar a actividade empresarial, com pagamento dos salários e com prejuízo para o pagamento dos impostos (admitindo a retenção do IRS e o não pagamento do mesmo), convencidos que tal situação se resolveria com o decurso do tempo; confirmou que as declarações periódicas foram sempre apresentadas, embora o respectivo meio de pagamento, por não haver disponibilidade financeira; referiu que a decisão de dar prioridade ao pagamento dos salários, com prejuízo para os impostos, foi tomada entre os três administradores; descreveu a situação difícil que a empresa vivia, por um lado com a diminuição da procura, mas por outro com avolumar dos créditos incobráveis e da facturação em mora;

Nas declarações prestadas pelo administrador da insolvente, o qual descreveu a situação deficitária em que encontrou a empresa, referindo que a empresa teve actividade comercial até à altura da insolvência, altura em que, para receber a pronto, a sociedade vendia os produtos a “baixo preço”; descreveu o estado do processo de insolvência, bem como a existência de uma lista de créditos incobráveis;

Nas declarações prestadas pela testemunha M G, inspectora tributária, a qual efectuou a instrução do processo em fase de inquérito, tendo descrito as diligências efectuadas (com base na documentação entregue pelo arguido A Lopes), bem como o procedimento de confronto de contabilidades com clientes devedores acima dos 25 000 euros; referiu, relativamente ao IRS, que tal situação está documentada nas declarações periódicas entregues, sem meio de pagamento, e nos recibos de vencimentos assinados pelos trabalhadores; referiu, relativamente ao IVA, que tal situação se encontra documentada nas declarações periódicas entregues, sem meio de pagamento, e no cruzamento da contabilidade com os clientes devedores acima dos 25 000 euros; referiu que os valores liquidados tem subjacente os valores comunicados à administração tributária, com correspondência no cruzamento da contabilidade com os devedores, embora (estando documentado o recebimento de importâncias de IVA) sem ter logrado apurar quais os valores de IVA efectivamente recebidos; confirmou a situação economicamente difícil que a empresa vivia;

No depoimento prestado pela testemunha P, inspector tributário, que confirmou os valores em dívida no processo tributário e corroborou as declarações da testemunha M O;

No depoimento da testemunha L, accionista da empresa, o qual descreveu a situação económico-financeira da empresa e o seu paulatino degradamento, com explicação de que o mercado não correspondia e os clientes atrasavam os pagamentos ou não pagavam; testemunhou que os administradores não ficaram com dinheiro da empresa, tendo disposto de dinheiro seu em proveito da empresa;

No depoimento prestado pela testemunha AB, director distrital de finanças, o qual confirmou a cessão de créditos ao fisco, no âmbito da qual apenas conseguiram cobrar cerca de 20/30% da dívida;

No depoimento prestado pela testemunha MD, guarda livros da empresa, o qual descreveu a situação da empresa, com dificuldades nas cobranças junto dos clientes, com a pressão dos trabalhadores a exigir o pagamento dos salários e a ameaça da paralisação da empresa; referiu que a empresa tinha muitas letras de câmbio em carteira, que os bancos já não descontavam, o que levava os clientes a atrasar os pagamentos ou mesmo a não pagar; referiu que os administradores são pessoas sérias, que andavam preocupados com a empresa e que lhe chegaram a emprestar dinheiro para pagamento dos salários; referiu que estes se preocupavam com os impostos, mas que, naquele quadro, a prioridade era o pagamento dos salários e a manutenção da empresa em actividade; referiu que a pressão era tanta que trabalhadores com 20 dias de salários em atraso suspenderam funções, obrigando ao encerramento da fábrica;

Nas declarações prestadas pelas testemunhas AA e AR, pessoas que administraram a empresa mais tarde e até à declaração de insolvência, os quais confirmaram a situação deficitária da empresa e explicaram as suas causas;

Nos depoimentos prestados pelas testemunhas AC e JM que abonaram a favor da personalidade do arguido R e corroboraram a situação difícil que a empresa vivia;

Nos depoimentos prestados pelas testemunhas CS, AS, JS AA e JT, pessoas que abonaram a favor da personalidade do arguido Lopes e corroboraram a situação difícil que a empresa vivia;

Na prova documental junta aos autos, em especial:

Nos docs. juntos a fis. 76 a 84, relativamente aos valores de IRS (trabalho dependente) retidos nos meses de Novembro e Dezembro de 2004 e que deveriam ter sido entregues nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte;

Nos docs. juntos a fis. 220 a 232, 248 a 1228, 1274, 1276, 1296 a 1331, 1373, 1405, 1562 a 1565, relativamente aos valores de IVA liquidados e às declarações periódicas de IVA entregues, bem como (não se encontrando documentado o recebimento integral das quantias liquidadas) ao recebimento parcial das quantias de IVA liquidadas — nos termos documentados na cópia dos cheques emitidos, das letras vencidas e reformadas, com referência aos períodos em causa;

Na certidão da Conservatória do Registo Comercial junta a fis. 1235 a 1249, 1376 a 1390, que documenta a matrícula da sociedade, o seu objecto social, a sua sede, os seus administradores no período em causa e a data da declaração da insolvência;

No documento junto a fis. 1261 a 1267 e 1679 a 1685, que documenta a declaração da insolvência, a sua data e o administrador judicial nomeado à insolvente;

Na análise dos livros de actas da assembleia geral e do conselho de administração, e, em particular, das actas da assembleia geral lavradas nos dias 31/3/2004, 19/3/2005 e as actas do conselho de administração lavradas nos dias 5/2/2004, 26/2/2004, 21/7/2004, 11/8/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 8/9/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 22/9/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 7/10/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 21/10/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 24/11/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 3/12/2004 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 6/1/2005 (que aborda a problemática dos impostos em atraso e está assinada por todos os administradores), 8/3/2005 e 9/3/2005, nas quais se constata a composição da administração e a evolução da empresa, nomeadamente a redução de vendas, a realização de vendas com lucros reduzidos, o aumento do valor dos créditos incobráveis e prestação de contas com resultados líquidos negativos e com aumento anual; mas também a documentação do conhecimento por parte de todos os administradores da existência de dívidas ao fisco e à segurança social;

- Nos docs. juntos a fis. 2261 a 2292, que documenta a sentença de graduação de créditos e o valor dos créditos reconhecidos à Fazenda Nacional a título de IVA e IRS;

- No doc. junto a fis. 2313 a 2367, que documenta a cessão de créditos da arguida insolvente à Fazenda Nacional, que logrou cobrar alguns deles, tendo o “grosso” sido considerado incobrável; documenta, também, a subsistência dos valores de IVA liquidados e de IRS retido no mês de Novembro de 2004, mas também o pagamento da dívida de IRS referente ao mês de Dezembro de 2004;

- No doc. junto a fis. 2378, que documenta a existência de um crédito sobre a sociedade arguida;

- Nos docs. juntos a fis. 2381 a 2391 e 2425 e 2426.

O depoimento prestado pela testemunha L, inspector tributário, na medida em que nada de mais trouxe para os autos (não conhecendo os arguidos e não tendo analisado a documentação), tendo a sua actividade se limitado a supervisionar o trabalho da colega M O, não relevou.

Os factos não provados ficaram a dever-se à ausência de elementos probatórios e à prova de factualidade diversa, já devidamente fundamentada.

*

Recurso do Ministério Público

Face ás conclusões referidas no recurso do Ministério Público, incidindo essencialmente na existência de vícios no julgamento e na sentença relativamente à factualidade prova e não provada envolvendo a liquidação do IVA importa, num primeiro momento e antes de apreciar a questão dos eventuais erros de facto, que se tenha bem presente, de uma forma clara, a questão jurídica que envolve a discordância do MP.

Trata-se de saber de que se fala quando se fala de crime de abuso de confiança fiscal (ou, o que é o mesmo, quais são os seus requisitos) no que respeita às condutas de não entrega dos valores de IVA, por parte do sujeito passivo.

Sobre os requisitos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal.

As sucessivas alterações legislativas ao tipo legal de abuso de confiança fiscal devem ser explicitadas para se perceber o que está actualmente em causa no tipo de crime quais os seus requisitos.

O crime de abuso de confiança fiscal, na versão inicial do RJIFNA (Decreto lei n. 20-A/90 de 15 de Janeiro, publicado ao abrigo da Lei n.º 89/99 de 11 de Setembro, «Autorização ao Governo para legislar em matéria de infracções fiscais») assumia a seguintes estrutura: «Quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida e estando legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a prestação tributária que nos termos da lei deduziu, não efectuar tal entrega total ou parcialmente será punido com pena de multa até 1000 dias».

Com esta incriminação quis o legislador criminalizar a conduta de quem «não entrega, com intenção de assim obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, de todo ou parte do imposto ou prestação tributária que hajam sido retidos na fonte, ainda que por conta da prestação devida ou que, tendo sido recebidos, haja a obrigação legal de os liquidar». É isso que decorre da Lei de alteração legislativa n.º 89/99 de 11 de Setembro, artigo 2º, nº 2, leu autorizadora da versão original do RJINFNA.

Protege-se assim, com tal incriminação, o dever de pagar impostos que como é dito no Acórdão do TC n.º 554/2004, «é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado».

Com a alteração ao RJINFA decorrente do Decreto lei nº 394/93, de 24 /11, o crime de abuso de confiança passou a ter a seguinte estrutura típica «Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido».

Foi esta alteração de 1993 que veio exigir a necessidade da apropriação das quantias, «com integração na esfera patrimonial do sujeito passivo ou do substituto tributário» [cf. neste sentido Alfredo José de Sousa in Infracções Fiscais (não aduaneiras), Almedina, Coimbra, 1997, p. 108].

Em 2001, com o RGIT aprovado pela Lei n.° 15/2001 de 5 de Junho, (que revogou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras e também do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras) foi revogado o antigo crime de «Abuso de confiança fiscal».

O RGIT, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, regressou ao sistema inicial do RJINFNA, eliminando a exigência de apropriação como elemento típico do crime de abuso de confiança fiscal exigindo-se apenas a não entrega do imposto.

Na versão inicial do RGIT (Lei n.° 15/2001 de 5 de Junho) o tipo e crime «abuso de confiança fiscal» estabelecia que “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (…). 5)(…); 6(…); 7(…)

Por sua vez a alteração introduzida pela Lei nº 53/2006, de 29 de Dezembro veio modificar e acrescentar ao nº 4 uma alínea b) que cumulando com a epigrafe do artigo que passou a aliena a) estabelece que b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas. 6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000. a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária. 7 Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Com a modificação imposta pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro o tipo de crime passou a ser o seguinte: “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.6 - (Revogado pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro). 7 Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Independentemente das alterações legislativas citadas constituem assim elementos objectivos do tipo desde 2001: (i) a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária; (ii) que o agente estava legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).

Configuram condições objectivas de punibilidade, indicadas no n.° 4 do art.° 105.° : (i) tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega prestação; (ii) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (em sentido diferente, configurando as circunstâncias do nº 4 como elementos integrantes do tipo de crime, e não como condição objectiva de punibilidade, Taipa de Carvalho, O crime de abuso de confiança fiscal. Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.40)

Como elemento subjectivo típico, torna-se necessário o conhecimento e vontade de praticar tais actos, sabendo que os mesmos constituíam a prática de um crime.

A obrigação de entrega da prestação tributária, sendo um dever para todos os que estão obrigados a pagar impostos e que é hoje inequivocamente tutelada criminalmente pelo crime de abuso de confiança fiscal, com as limitações decorrentes das clausulas de inexigibilidade estabelecidas nos artigos 4º e 5 do artigo 105 do RGIT.

Daí que, como refere Costa Andrade e Susana Aires de Sousa [in «As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto – Reflexões criticas a propósito da alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 1 p.54)] «nem sequer se exige – como acontecia na versão originária do RJIFNA – uma intenção de apropriação.

Para se consumar o crime, basta, agora a mera violação do dever legal de entrega das prestações deduzidas ou retidas, que no entanto, insiste-se, não se confunde com qualquer intenção de apropriação. Posição que tem igualmente vindo a ser defendida pela jurisprudência.

Mas se não é exígivel uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13 ).

Sublinhe-se que a intenção de apropriação, actualmente não exigida, não é sobreponível ao recebimento das quantias.

Sendo esta a estrutura típica do crime de abuso de confiança, algumas dúvidas tem provocado a sua configuração quando estão em causa as condutas que envolvem o IVA.

Importa por isso atentar sobre a estrutura deste imposto e da sua forma de liquidação, tendo em conta que é sobre ele que incide o recurso.

O IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) tem como sujeitos passivos as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transacções de produtos em geral, tendo como objectivo tributar todo o consumo em bens materiais e serviços. Abrange, na sua incidência, todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho e repercute-se no consumidor final.

A base tributável fica limitada ao valor acrescentado em cada fase, e determina-se aplicando a taxa ao valor global das transacções da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras desse mesmo período, revelado nas facturas de aquisição. Daí que, na fase retalhista, este mecanismo represente uma repercussão do imposto para a frente, correspondente a uma taxa tributada e efectuada de uma só vez.

Trata-se de um imposto de auto-lançamento, ou auto-liquidação, por a mesma caber ao próprio contribuinte. Normalmente, aplica-se a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduzindo-se a esse montante o imposto suportado por ela através de aquisições durante esse mesmo período; é o designado método do crédito do imposto; outras vezes, excepcionalmente, adopta-se o método subtractivo directo, que consiste em se aplicar a taxa apenas à diferença entre o valor da alienação e o valor da aquisição dos bens e serviços.

Incumbe ao contribuinte enviar, mensalmente ou trimestralmente, consoante o regime, ao Serviço de administração do IVA, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade desse mês precedente, já acompanhada do pagamento do montante do imposto respectivo (Arts. 16º, 22º, 26º, 36º e 40º, do Código do IVA).

Assim, o imposto de um determinado período é pagável até ao último dia do segundo mês seguinte ao apuramento do valor do respectivo imposto, nas empresas cujo volume anual de negócios exceda ou não o valor mencionado no CIVA.

O IVA é devido, logo que liquidado, isto é, logo que a transacção a ele sujeita se efectiva e se realiza - cf. artigos 16º a 40º, do C.I.V.A.

Como se diz no Ac. do STA de 10-12-20808, processo n. 0579/08, (também no Ac STA nº 542/08 da mesma data e na mais recente jurisprudência daquele Tribunal, nomeadamente nos acórdãos de 28/5/2008, 11/2/2009, 2/12/2009 e de 21/4/2010, proferidos nos recursos n.ºs 279/08, 578/08, 887/09 e 85/10.) «sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60º e seguintes [do código do IVA], os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, na Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40.º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados.), independentemente de ter sido efectuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia facturada. O regime do art. 71.º, n.ºs 8 e 9, relativamente à possibilidade de dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ou de pagamento retardado confirma que a obrigação de pagamento do imposto pelo sujeito passivo não depende de ter sido paga a quantia liquidada pelo adquirente de bens ou utilizador de serviços. Nestas situações, o imposto que deve ser entregue não é o imposto que foi liquidado, mas sim o eventual saldo positivo a favor da administração tributária que se registe após confrontação do volume global do imposto liquidado (recebido ou não) e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (arts. 19.º a 25.º do CIVA)».

Mas se esta é a obrigação, outra questão é a patologia que o seu não cumprimento acarreta.

Se não há dúvidas dogmáticas e jurisprudenciais no que respeita a esta estrutura, já no que respeita às consequências do não pagamento do IVA, algumas divergências têm sido evidenciadas, nomeadamente quando está em causa o tipo de patologia dessas condutas por referência ao RGIT, nomeadamente saber se estamos em presença de uma contraordenação ou de um crime de abuso de confiança fiscal.

Ora há que interpretar globalmente o sistema sancionatório fiscal, quer contradordenacional quer criminal, para de uma forma harmónica se entender quais as patologias em causa.

Ora além do já citado crime de abuso de confiança estabelece-se no artigo 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, no seu n.º 1 que «A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido» (sublinhado nosso).

Conforme é referido no Ac. do STA referido, «A conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços estava expressamente punida no art. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressão «a falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido». Porém, este art. 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, está expressamente revogado pela alínea c) do art. 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. Por outro lado, as referências à «prestação tributária que nos termos da lei deduziu» e à «prestação tributária deduzida nos termos da lei», que se utilizam no art. 114.º do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão «imposto devido», que era utilizada no referido art. 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global».

Daí que se conclua, no referido Acórdão, que «não tendo havido recebimento do imposto anterior à entrega à administração tributária da declaração periódica está afastada a possibilidade de preenchimento da hipótese do art. 114.º, n.º 2, do RGIT (que se reporta à conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo)».

Ora sendo esta jurisprudência aquela que vem sendo seguida pelo STA no que respeita ao regime contraordenacional, não fará qualquer sentido – nem isso decorre do tipo de crime – exigir uma interpretação mais ampla no que respeita à conduta criminal que configurasse o tipo de crime sustentado na mera não entrega de quantias putativamente recebidas. Exige-se, por isso, que se demonstre o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado.

Isso mesmo já decorria da jurisprudência estabelecida no Acórdão do STJ de 21/5/2006 que, por outras palavras, dizia o mesmo: «No RJIFNA exigia-se a apropriação indevida por inversão do título da posse, com censurável animus rem sibi habendi; no RGIT basta-se a não entrega, mas subjacentemente, embora a tónica se tenha deslocado, na lei nova, para a simples não entrega, continua a estar presente a ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal», sublinhado nosso.

Ou seja o dever legal de entregar as prestações devidas (por dedução) pressupõe sempre que estas tenham sido efectivamente recebidas.

Em síntese, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.

*

O termo do raciocínio a que se chegou é importante para compreender o recurso interposto pelo Ministério Público, que, em síntese sustenta que o Tribunal ao dar como provado que «não foi possível apurar, no entanto qual o montante efectivamente recebido em cada um dos períodos» omitindo as declarações de uma testemunha e os documentos que identifica, e por isso não levando em conta a conduta referente ao IVA, evidencia na sentença um erro notório na apreciação da prova.

Ora decorre da sentença, como factualidade provada que «A sociedade arguida, nos períodos que se seguem, tendo apresentado a devida declaração periódica de IVA, na qual reportou a liquidação de IVA pelos produtos fornecidos em valores superiores, não deduziu as seguintes quantias, que deveria ter entregado nos cofres do Estado até ao dia 20 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam:

• Julho de 2004: 50 257,81€;

• Agosto de 2004: 32 104,31€;

• Setembro de 2004: 49 367,81€;

• Outubro de 2004: 43 767,09€;

• Novembro de 2004: 33 980,14k;

Decorridos os 90 dias seguintes ao termo do prazo para entrega das declarações, a sociedade arguida e os demais arguidos foram notificados para no prazo de 30 dias procederem ao pagamento das prestações comunicadas à administração tributária, dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo os mesmos efectuado tal pagamento;

A sociedade arguida, nas transacções comerciais efectuadas e facturadas, com referência a cada um dos períodos em causa, não recebeu a totalidade do valor do IVA liquidado nas facturas, tendo recebido quantias cujo montante não foi possível quantificar;

Por outro lado está dado como não provado que «os arguidos tivessem recebido todas as quantias liquidadas a título de IVA».

Na fundamentação da decisão sobre esta dimensão dos factos o Tribunal sustenta a sua decisão probatória, para além dos documentos juntos, nas declarações do arguido F que «assegurou que não receberam a totalidade do IVA facturado e que desconhecia qual o IVA liquidado e recebido», nas declarações da testemunha MG, inspectora tributária, que referiu relativamente ao IVA «que os valores liquidados tem subjacente os valores comunicados à administração tributária, com correspondência no cruzamento da contabilidade com os devedores, embora (estando documentado o recebimento de importâncias de IVA) sem ter logrado apurar quais os valores de IVA efectivamente recebidos»; no depoimento prestado pela testemunha P, inspector tributário que «confirmou os valores em divida no processo tributário e corroborou as declarações da testemunha MO».

Perante estes factos e sua fundamentação o tribunal concluiu que «(…) a sociedade arguida, representada pelos arguidos liquidou e não deduziu nas declarações periódicas de IVA prestações tributárias superiores a 7 500,00 €. Provou-se também que recebeu pelo menos algumas dessas quantias. Não foi possível apurar, no entanto, qual o montante efectivamente recebido em cada um dos períodos».

Sendo absolutamente relevante para a prova dos factos em causa cruzar a informação documental existente nos autos com a prova testemunhal produzida em audiência sobre esta matéria, para se conseguir [ou não] chegar à conclusão de que foram [ou não] recebidos os valores (e qual o montante de valores) em causa surge como prova essencial as declarações da testemunha MG, inspectora tributária.

Ora do seu depoimento prestado em audiência e ouvido por este Tribunal decorre inequivocamente que foram recebidas pela arguida quantias provenientes das vendas efectuadas. Assim e neste sentido as suas afirmações são claríssimas: «apurou-se os valores pagos», 5.30; «foram emitidas letras», 5.40 e 17.32; «outros foram pagos integralmente», 5.56; «há letras que foram amortizadas», 7.05 «descontadas e reformadas», 17.47, 18.54; «os montantes não sei», 7.10; «constam pagamentos feitos dois meses após as facturas», 7.20; «há recibos que vieram», 14.20 e 20.48; «havia pagamentos directos», 23.09; «algumas letras dizem mesmo para pagamento das facturas», 24.40.

Ora do cruzamento desta prova testemunhal com a abundante documentação existente pode e deve ser possível efectuar um cotejo efectivo de quais as quantias efectivamente recebidas e não entregues. Trata-se de uma operação probatória que deve ser efectuada pelo Tribunal da primeira instância para, a partir daí se concluir quais as quantias recebidas e não entregues e se estas são superiores ao valores actualmente estabelecidos na lei (7 500,00 €) como concretizadores do crime de abuso de confiança fiscal.

Essa operação terá que ser efectuada pelo Tribunal que realizou o julgamento apreciando as provas documentais existentes e cruzando-a com o depoimento da testemunha em causa que deverá (se for possível) explicitar todas as questões acima referidas.

DISPOSITIVO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, nos termos do artigo 426º do CPP, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, destinado apenas a determinar quais as quantias efectivamente recebidas e não entregues pela arguida no que respeita ao IVA e se estas são superiores ao valores actualmente estabelecidos na lei (7 500,00 €) como concretizadores do crime de abuso de confiança fiscal.

Sem tributação.

Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 15 de Dezembro de 2010


Mouraz Lopes


Félix de Almeida