Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
300/10.1TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
REGISTO PREDIAL
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.34, 116 CRP, DL Nº 281/99 DE 26/7
Sumário: A exigência de prova da licença de utilização, feita no art. 1 nº1 do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26/07, é aplicável também às escrituras de justificação notarial, previstas no art. 116 nº1 do CRP.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              Por escritura pública de justificação notarial lavrada no Cartório Notarial de P (…), no dia 19/05/2010, A (…) e M (…) declararam-se donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem, de um dado prédio urbano, sito no concelho de Loures, não descrito na Conservatória do Registo Predial, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 2009, no qual residem já há mais de 20 anos. Dizem os justificantes, entre o mais, que o prédio foi por eles adquirido por contrato verbal de compra e venda celebrado em 08/05/1986.

              Através da apresentação n.º 2473, de 27/07/2010, aquele Sr. notário requereu junto da CRP de Aguiar da Beira o registo predial do respectivo acto aquisitivo a favor dos justificantes.

              Por despacho da Srª conservadora do RP de 26/08/2010 foi lavrada a inscrição como provisória por dúvidas, por não constar do título a existência de licença de utilização nos termos do art. 4º do DL 281/99 de 26/07.

              Nos presentes autos veio aquele Sr. notário interpor recurso judicial desta decisão da Srª conservadora de Aguiar da Beira.

              A Srª conservadora do RP sustentou a sua decisão.

              O Ministério Público deu parecer no sentido de concordância com o expedido no despacho de sustentação da Srª conservadora.

              Após foi proferida sentença, julgando improcedente o recurso, mantendo-se por isso o despacho de provisoriedade do registo proferido pela Srª. conservadora.

              O Sr. notário recorreu desta sentença, para que seja revogada, determinando-se a realização do acto de registo em causa com carácter definitivo, concluindo, em síntese, que o art. 1/1º do Dec.-Lei 281/1999, não se aplica aos três tipos de escrituras de justificação sobre imóveis  previstos no art. 116° do CRP (: estabelecimento do trato sucessivo, e reatamento do trato sucessivo e estabelecimento de novo trato sucessivo), antes pelo contrário - tal como resultaria da expressão utilizada naquela norma “na parte que lhe for aplicável” que de outro modo não faria sentido -, a sua previsão só se aplica aos casos em que a justificação tenha por fim o suprimento da falta de um título translativo do direito de propriedade, cujo paradeiro se desconhece, mas que se torna necessário ao restabelecimento do trato sucessivo, previsto no actual n.° 4 do art. 34° do CRP. Dito de outro modo, nada justifica que, no caso de ser invocada a usucapião como causa de aquisição (originária) do direito de propriedade se apliquem normativos claramente dirigidos a actos que consubstanciam a transmissão da propriedade (aquisição derivada).

              O MP contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se a exigência de prova da licença de utilização, feita no art. 1º/1 do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26/07, é aplicável também às escrituras de justificação notarial previstas no nº. 1 do art. 116 do Código do Registo Predial.

                                                                 *

              O artigo 1/1 do Dec. Lei 281/99 dispõe que
            “não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura.”

              O artigo 4 do mesmo Dec. Lei, artigo que tem a epígrafe ‘justificação relativa ao trato sucessivo no registo predial’, dispõe que:
         A justificação para os efeitos do artigo 116º do CRP que tiver por objecto prédios urbanos fica sujeita à disciplina deste diploma, na parte que lhe for aplicável.

              No ac. do TRC de 16/03/2004 (publicado sob o nº. 4262/03 na base de dados do ITIJ) lembra-se que foi o:
         “O Regulamento Geral das Edificações Urbanas aprovado pelo DL 38382, de 7/8/1951, [que] introduziu, no seu art. 8º, a necessidade de licença municipal para a utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes das suas características.
         Só podendo ser concedidas tais licenças nos termos dos §§ 1º e 2º do ora citado preceito legal, designadamente após vistoria destinada a verificar se as obras obedeceram às condições da respectiva licença, ao projecto aprovado e às condições legais e regulamentares aplicáveis.
         Tendo o aludido diploma, segundo consta do preâmbulo do DL que o aprovou, não só a preocupação de tornar as edificações urbanas salubres, mas também de as construir com os exigidos requisitos de solidez e defesa contra o risco de incêndio e de lhes garantir condições mínimas de natureza estética.”

              Depois, tendo em conta as referências legais que são feitas no preâmbulo daquela Dec. Lei 281/99, o acórdão lembra ainda:
         “[…] a origem do citado art. 44º/1 [da Lei 46/85] remonta ao DL 445/74, de 12/09, também denominado "lei das rendas", onde se preceituava, no seu art. 11º/1 que: "Não poderão ser celebrados contratos que impliquem a transmissão da propriedade de fogos destinados a habitação ou de prédios urbanos que comportem um ou mais fogos desse tipo sem que faça perante o notário competente a exibição da correspondente licença de utilização, à qual se fará sempre menção no respectivo acto formal".
         Com a exigência da exibição da licença de utilização e a obrigatoriedade da sua expressa menção na escritura de transmissão da propriedade de fogos destinados à habitação terá o legislador pretendido, com plena justificação, desencorajar a construção clandestina - A. Neto, Inquilinato, 5ª ed., p. 375.
         Tal DL 445/74 foi revogado pelo DL 148/81, de 04/07, o qual, no seu art. 13º passou a aí contemplar a proibição dos contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem prova da licença de habitação ou de construção, assim rezando o mesmo: "Não podem ser celebrados contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem que se faça perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção ou de habitação, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura."
         Tendo-se aproveitado o ensejo da publicação de tal diploma, para mantendo a preocupação do combate à construção clandestina, se desbloquear a transmissão da propriedade dos fogos destinados à habitação sempre que se mostre legalizada a respectiva construção, através da prova, em alternativa, da licença de construção ou da licença de habitação no momento da transmissão - preâmbulo do ora aludido DL 445/74.
         Assim, embora o […] DL 281/99 tivesse tido a preocupação fundamental, segundo assinalado no seu preâmbulo, de superar os efeitos nefastos do diferendo interpretativo que o exigido licenciamento vinha causando, procurando, dentro dos limites razoáveis da segurança do comércio jurídico, desbloquear a transmissão dos prédios urbanos, dúvidas não restarão que se manteve a preocupação, com a manutenção da exigência da prova do licenciamento, nas condições aí melhor previstas, de obviar à construção clandestina, com todos os efeitos perniciosos que a mesma, a todos os níveis - desde, nomeadamente, a segurança até ao ordenamento territorial, passando por razões estéticas também - claramente pode provocar.
         E, naturalmente, que a proibição em causa se dirige, em primeira linha, às transmissões dos prédios urbanos, as quais, na grande generalidade dos casos são alvo de escritura pública. […] Não podendo tal proibição deixar de abranger as escrituras de justificação relativas ao trato sucessivo e previstas no nº 1 do art. 116º do CRP - cfr. epíteto do mencionado art. 4º do DL 281/89, em inteira consonância com o deste mesmo preceito legal.

               Assim, desde 1951 existe a preocupação de tentar evitar construção clandestina, através da exigência da demonstração da existência de uma licença de utilização. E desde 1974 deixaram de poder ser celebradas escrituras de transmissão de prédios urbanos para habitação sem prova da existência desta licença ou, mais genericamente, de licenciamento devido.

              Ora, se esta exigência legal não se estendesse às escrituras de justificação notarial, ela não teria eficácia. Daí a existência da norma do art. 4 do Dec. Lei 281/99:        A justificação para os efeitos do artigo 116º do CRP que tiver por objecto prédios urbanos fica sujeita à disciplina deste diploma, na parte que lhe for aplicável.

              Como diz o acórdão do TRC:
         “De contrário, fácil seria desvirtuar o […] empenhamento da lei em obviar à construção clandestina.
         Pois, tendo o justificante logrado obter a prova do seu arrogado direito de propriedade sobre o prédio urbano não licenciado, poderia fazer a sua primeira inscrição no registo e a da constituição do encargo que aquele onera, in casu, a hipoteca. Não cumprido o contrato de mútuo, por tal meio garantido, viria o credor intentar a correspondente execução. Sendo o [prédio] urbano aí vendido judicialmente ou até adjudicado ao exequente, por exemplo. Para ele, ou para terceiro, se transmitindo o prédio, sem necessidade de qualquer escritura pública e da exibição da prova do licenciamento devido. E assim sucessivamente, sendo fértil a imaginação humana para contornar a proibição legal. Mas, não pode ser, a lei não pode querer ter distinguido situações em tudo idênticas nos seus resultados. Sendo, assim, in casu, exigível a licença de utilização - ou de construção, se caso disso for - como na sentença recorrida se refere, para todos os casos de justificação notarial previstos no citado art. 116º”.

               Ou, como diz a sentença recorrida:
         “Não se pode aceitar que os justificantes, através deste mecanismo previsto no artigo 116º, pudessem registar e habitar num prédio sem que tivessem feito a prova da sua habitabilidade, à revelia das regras do direito do urbanismo e do ordenamento do território.

               E reformulando um raciocínio da sentença recorrida, não se compreenderia que em relação a duas pessoas que tivessem “adquirido”, cada uma o seu prédio, uma com escritura de compra e venda e outra verbalmente, a lei viesse a exigir uma licença à que estava munida de escritura e não o fizesse em relação à que o comprou verbalmente, permitindo-lhe que exibisse apenas uma escritura de justificação notarial.

               O que, aliás, é o caso dos autos, em que os declarantes na escritura dizem ter “adquirido” o prédio verbalmente em 08/05/1986. A eles, que já violaram a exigência de forma da lei (art. 875º do Código Civil - de escrito de compra e venda), agora a lei, na versão do recorrente, permitiria que apenas viessem a apresentar uma escritura de justificação notarial. Mas a uma outra pessoa qualquer, que tivesse adquirido o prédio por escritura de compra e venda, em 1986, a lei exigiria esta e a licença de habitação. Não pode ser.

               E continua a sentença recorrida:
         “Muitas vezes, e tal como afirma o próprio recorrente, as construções adquiridas por justificação necessitam de várias obras para as adequar aos requisitos mínimos necessários para a obtenção das referidas licenças, pelo que estes adquirentes ficariam em vantagem injustificada em relação aos outros proprietários que adquiriram o prédio por qualquer meio de transmissão, caso não precisassem de obter a referida licença.”

               A expressão da norma que o recorrente invoca a ser favor - na parte que lhe for aplicável - não tem o sentido de ressalvar, dentro dos três tipos de escritura de justificação, um ou dois deles. Desde logo porque, ao contrário da leitura proposta pelo recorrente, aquela expressão não se está a referir à justificação mas ao diploma, que, para além da norma do art. 1º/1, tem várias outras, umas em relação às quais tem sentido supor que possam ser aplicadas às escrituras de justificação e outras não.

               Por outro lado, como sistematiza a sentença recorrida (seguindo o trabalho do notário Fernando Neto Ferreirinha), a justificação pode servir para:
         “- primeira inscrição (registo prévio), quando o prédio não está descrito, ou não subsiste sobre ele inscrição de aquisição – é a hipótese do art. 116º/1 do CRP; [para estabelecimento do trato sucessivo, chama-lhe o recorrente nas suas alegações de recurso];
         - reatamento do trato sucessivo, quando o prédio está descrito e subsiste sobre ele inscrição de aquisição mas o adquirente não dispõe dos documentos comprovativos que lhe permitam restabelecer o sucessivo encadeamento dos actos, desde o titular inscrito até ele próprio (o adquirente) – trata-se aqui de justificar o direito do adquirente, suprindo os elos da cadeia das várias transmissões derivadas, a fim de se observar o princípio do trato sucessivo do artigo 34º – é a hipótese do art. 116º/2 do CRP.
         - estabelecimento de novo trato sucessivo, por via da aquisição originária do direito pela usucapião, quando na hipótese anterior, falta, não o título, mas o próprio acto a documentar: aqui, há soluções de continuidade na cadeia das aquisições derivadas. Por isso, o justificante tem de invocar a aquisição originária visto que a cadeia das aquisições derivadas não chega a ele – é a hipótese do art. 116º/3 do CRP.”

              Ora, depois disto conclui a sentença:
         “A justificação para os efeitos do disposto no artigo 116º do CRP não titula nunca qualquer transmissão da propriedade uma vez que ela consiste, essencialmente, em declarações do justificante que, pode ou não, invocar uma anterior transmissão.”
                                         *              

               Neste sentido se pronunciou, como lembram a Srª conservadora, o MP e a sentença recorrida, o Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e Notariado, numa deliberação tomada no proc. CN 27/2000 DSJ-CT, homologada por despacho do director-geral de 23/05/2002, publicada no Boletim dos Registos e do Notariado n.º 6/2002 (que pode ser vista em http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/publicacao-de-brn/docs-brn/2002/brn-6-de-2002/downloadFile/attachedFile_1_f0/brn_pareceres_j unho02.pdf?nocache=1207762665.17)
               Nessa deliberação diz-se:
         […] No citado diploma legal inexiste norma definidora do seu âmbito. Pelo que será, a nosso ver, algo temerário afirmar-se que a lei dispõe exclusivamente sobre a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas por escritura pública. Tanto mais que, a ser exactamente esse o âmbito (exclusivo) do diploma, a norma do art. 4º, ora em discussão, não faria qualquer sentido, porquanto, como bem salienta o consulente, nas três hipóteses de justificação relativa ao trato sucessivo previstas no art. 116º do CRP a justificação não titula qualquer transmissão (ainda que de transmissão se tratasse, ela já teria ocorrido, pelo que agora apenas haveria que «justificá-la», ou seja, «invocá-la» fundadamente).
         Como é consabido, a justificação (notarial, judicial, e, actualmente, para-judicial) visa a obtenção de um documento comprovativo do direito (justificado) para efeitos de registo. No nosso sistema registral o registo assume uma função confirmativa ou consolidativa do direito real (ou equiparado). Nesta perspectiva, o legislador é soberano no estabelecimento dos requisitos de admissibilidade e de legitimidade para o acesso dos factos a registo através da justificação. A nosso ver, com a citada norma (art. 4º do D.L. nº 281/99) o legislador – por motivações que ao caso não importa aprofundar, mas que se prendem basicamente com a defesa do consumidor – quis condicionar a justificação (notarial ou para-judicial) de direitos sobre prédios urbanos à comprovação da existência da correspondente licença de utilização, criando assim um novo requisito de admissibilidade.
         É este o sentido que descortinamos na norma em discussão.

               Dos 7 votos desse conselho, apenas um votou contra, dizendo:
         “Aderindo à argumentação expendida pelo consulente, deliberaria no seguinte sentido:
         1. Estão excluídas da exigência da apresentação da prova da existência do alvará de licença de utilização as escrituras de justificação notarial de prédios urbanos, que sejam alicerçadas com base em usucapião, uma vez que se está perante uma situação de aquisição originária e, por isso, incompatível com qualquer ideia de transmissão.
         2. Só nas escrituras de justificação para reatamento do trato sucessivo, em que se mostre necessário proceder à reconstituição de títulos intermédios que envolvam a transmissão, inter vivos, de prédios urbanos, para fazer a necessária aglutinação com as inscrições constantes do registo predial, é que será necessário fazer a prova a que alude a conclusão n.º 1 ou, eventualmente, a prova da sua dispensabilidade, nos termos consentidos por lei.”

                                                                 *

              No mesmo sentido da deliberação, vai o estudo do notário Fernando Neto Ferreirinha no seu trabalho apresentado no Congresso de direitos Reais que decorreu na Faculdade de Direito de Coimbra no âmbito da comemorações dos 35 Anos do Código Civil, citado pelo recorrente e pela Srª conservadora, bem como pelo MP e pela decisão recorrida: “parece, assim, ter sido intenção do legislador exigir que nas escrituras de justificação que tenham por objecto prédios urbanos se mencione a autorização  (ou o alvará) da licença de utilização ou então que os prédios foram construídos ou inscritos na matriz antes da entrada em vigor em vigor do RGEU […]” (anexo BRN 01/2004 http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/ legislacao/publicacao-de-brn/docs-brn/2004/brn-n-1-2004/downloadFile/attachedFile_5_f0/justnotpred.pdf? nocache=1207154404.32).

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               Aquele voto de vencido (de que se conhece apenas o “sumário” citado – terá na sua base um parecer, extenso, que o recorrente diz ter na sua posse, mas que não juntou e que por isso não pôde ser consultado) segue (segundo se vê da citação feita pelo recorrente e da intervenção do Sr. Conservador Vicente Monteiro, citada abaixo), a obra de Borges de Araújo (com a colaboração de Albino Matos), Prática Notarial, onde, relativamente ao artigo 4 do Dec. Lei 281/99, se terá escrito:
         “Pergunta-se: em que hipóteses é que a prova da existência da licença de habitabilidade terá de ser feita nas escrituras de justificação? Qual a parte aplicável dessa exigência? Não o diz a lei, que se limitou a criar problemas sem nada esclarecer. Será o intérprete que terá de descobrir o que possa aproveitar ou interessar à justificação notarial, tarefa difícil tanto mais que não se vê bem em que é que a apresentação das licenças de utilização poderá melhorar a qualidade das escrituras de justificação. Declarando-se no art. 1 do diploma que a prova a fazer da existência de habilitalidade respeita apenas às escrituras que envolvam a transmissão da propriedade, fica desde logo a saber-se que, pela regra estabelecida, estão excluídas todas as escrituras em que não haja um transmitente, o que implica a inexistência da própria ideia de transmissão. Estarão assim excluídos da exigência a usucapião, em que a aquisição é originária e por isso incompatível com qualquer ideia de transmissão e todos aqueles actos em que não haja transmissor, como a partilha e divisão de coisa comum”.

               Esta obra em causa (que tem 4 edições, a última das quais em 2003) terá sido publicada antes de todas as análises já feitas acima, sendo hoje claro que a interpretação mais razoável e evidente da lei dá a esta sentido e finalidade, pondo-a ao abrigo das críticas feitas na obra.

               Dito de outro modo: a posição do recorrente e a do voto de vencido, têm na sua origem um curto parágrafo inserido num comentário a um texto legal, que se baseia na falta de sentido da lei e num interpretação conceptualista da lei: ela fala de transmissão, logo não tem nada a ver com as justificações que não se refiram a transmissões.

               Ora, a verdade é que é só o art. 1º/1 do Dec. Lei 281/99 que fala em transmissões. O art. 4º do Dec. Lei fala em justificações e não distingue entre os diversos tipos de justificações. Por isso, a leitura das normas em causa até aponta em sentido diverso ao que o recorrente defende: a lei primeiro diz que nas escrituras de transmissão tem que se fazer menção à licença e depois estende tal exigência às escrituras de justificação, genericamente, sem fazer qualquer distinção, pelo que em princípio se aplicaria a todas.     

               Mais, o recorrente nunca explica, porque é que nos casos da justificação do art. 116º/2 seria necessária a comprovação do licenciamento e nos outros casos não. O recorrente poderia responder que naquele caso haveria uma justificação de uma transmissão e nos outros não. Mas esta seria um razão formal. Está-se a perguntar da razão substancial de tal diferença.

                                                                 *

              Por outro lado, o caso dos autos é o exemplo mais nítido de que esta solução não é a correcta: pois, como se viu, os declarantes também alegavam ter  “adquirido”  o prédio por contrato verbal de 1996.  Dispensá--los de apresentar a licença de utilização, é, na prática, dispensar essa licença num caso em que, de facto, houve uma transmissão de direitos. Ou seja, o caso dos autos demonstra que a tese seguida no voto de vencido e pelo recorrente se traduz, de facto, em fazer entrar pela janela aquilo que se quis impedir de entrar pela porta. E, assim, seguindo essa tese, através da invocação da usucapião estar-se-ia a permitir que um adquirente de um direito, por “transmissão” de facto, se dispensasse de apresentar a licença de utilização legalmente imposta. Ou seja, precisamente nos casos em que mais se justificaria a exigência legal, pois que nem sequer já tinha sido observada a exigência legal de forma (: escritura de compra e venda).

                                                                 *

               No seu parecer o MP invoca ac. do STJ de 04/06/2002, publicado sob o nº 02A1283 da base de dados do ITIJ) e mais à frente, para fundamentar a sua afirmação que “não se pode permitir que através da justificação se obtenha um título que viole qualquer comando legal” invoca ainda, “embora relativo a situação distinta”, “a fundamentação expendida no acórdão do TRL de 16/06/2009 (32/1997.L1-7 da base de dados do ITIJ - que considerou que não podiam invocar a usucapião quanto a fracções autónomas de um prédio por falta de licença de utilização)”.

                                                                                       *

                   O ac. do STJ de 04/06/2002 citado pelo MP é elucidativo:

              Aí discutiu-se uma outra via que possibilita a frustração dos fins pretendidos  com  o  controlo  legal  da construção:  celebra-se um contrato--promessa de compra e venda de um edifício sem licença de construção ou de utilização e depois pretende-se usar os tribunais, através de uma acção de execução específica, para obter uma sentença, que se substitui à escritura, onde não seja necessária a exibição da licença.

              O ac. do STJ confirmou a posição da 1ª instância e do TR que não permitiu o uso dos tribunais para a frustração desse fim:
            “Das disposições acima transcritas e de outras anteriores, como o RGEU, vemos que o legislador decidiu intervir no direito de construir edifícios urbanos. Fê-lo não só numa perspectiva de segurança, salubridade e estética das mesmas, mas também numa perspectiva de ordenamento do território. A premência e intensidade da necessidade de intervenção no exercício desse direito têm aumentado á medida do galope do fenómeno de urbanização.          As medidas de fiscalização e punição das autoridades administrativas mostraram-se insuficientes à medida que aumen-taram o numero e o volume das construções e à medida que se passou a construir para o comércio de massas. Daí que não surpreenda a necessidade de intervir no sentido de regular o comércio dos bens construídos. Essas intervenções visavam a tutela dos consumidores e não esqueciam que a dificultação do comércio de construções violadoras das regras legais era um travão à ilegalidade por parte do construtor.
         A lei de 1980, ao intervir no contrato promessa, fê-lo dando predominância à tutela do interesse do consumidor. Foi essa predominância que a jurisprudência foi reconhecendo, designadamente o assento de 1995.
         Mas esse assento reconheceu essa predominância apenas no que toca ao contrato promessa, reconhecendo a sua validade, apesar do desrespeito dos requisitos exigidos pela lei, se o promitente-comprador não invocasse a nulidade. Mas não deixou de reconhecer que essa visão não impedia que o legislador, por outras formas sancionasse o desrespeito das normas legais de construção.
         Ora uma dessa normas encontra-se na Lei 46/85 e confirmada pel[o Dec.-L]ei 281/99.            E nessa lei o legislador é radical. Pretende acabar com a introdução no comércio jurídico de construções de que não se faça a prova da sua legalidade, muito embora admita que elas sejam objecto de negócios preliminares.
         A permissão da entrada no comércio jurídico de construções naquela situação, por via da execução especifica dos contratos promessa seria contrariar o sentido da lei permitindo que o tribunal se substituísse ao promitente vendedor, emitindo por ele uma von-tade que, à face da lei, ele não poderia emitir. Sendo assim, bem andou a Relação em julgar improcedente a acção.

              O que aliás corresponde a jurisprudência que continua a ser pacífica.

              Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão do tribunal da Relação do Porto, de 08/01/2004 (sob o nº. 0336495 da base de dados do ITIJ) onde se deixou dito: sem a licença de utilização não pode obter-se execução específica de contrato-promessa de compra e venda.

              No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/02/2004 (sob o nº. 9839/2003-2 da base de dados do ITIJ): para a efectivação da escritura de compra e venda de fracção autónoma é essencial a exibição perante o notário da licença de utilização.

              E o acórdão do STJ de 6/7/2004 (publicado no sítio do ITIJ sob o nº. 04B1311), para que seja possível a execução específica do contrato promessa de compra e venda de fracção autónoma, é necessário que exista a licença de utilização.

              Explica este acórdão do STJ:

         [...] se a falta da licença de utilização não fosse óbice à execução específica, então, o tribunal, ao se substituir ao promitente vendedor, estaria a emitir uma vontade que este não poderia eficazmente emitir. O que seria um absurdo. Por outro lado, não [se] pode [...] dizer [...], que tal entendimento significa que ao direito, neste caso, deixa de corresponder a competente acção. O direito substantivo é aqui o direito de aquisição duma certa propriedade e, pelo facto de não existir execução específica, não deixa esse direito de ter formas processuais de se afirmar. Acentue-se que, tendo a execução específica um carácter excepcional, justificado pela natureza do direito a que corresponde, ademais versando, na hipótese, um campo que tem sido sucessivamente objecto de diversas intervenções disciplinadoras do legislador, impõe-se uma interpretação rigorista e não desreguladora, do instituto da execução em causa. Que o mesmo é dizer que a exigência da licença de utilização tem um carácter imperativo, por ser de interesse público. Nem se diga também que, deste modo, faz-se depender o direito do promitente-comprador de um facto que lhe escapa, qual seja, o da obtenção da licença de utilização. A verdade é que o direito - recorde-se o direito de aquisição - não é esvaziado de nenhuma faculdade processual - nomeadamente a da execução específica -, uma vez que esta só se constituiu em momento posterior, precisamente, quando passou a existir a dita licença.

              No mesmo sentido, veja-se o acórdão do TRP de 24/1/2006 (sob o nº. 0526201 da base de dados do ITIJ): Se sem licença de utilização ou prova da sua existência, não pode ser celebrada a escritura pública, também não poderá o tribunal proferir sentença em que faça produzir os efeitos da declaração negocial do promitente faltoso, se não estiver demonstrada a existência dessa licença.

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              Também o acórdão do TRL de 16/06/2009 citado pelo MP é elucidativo: para não se pôr em causa a exigência das necessárias licenças legais, não se considerou possível invocar a usucapião do direito de propriedade em relação a cada um dos apartamentos (o assunto não é desenvolvido no texto do acórdão, mas note-se que o sumário é do relator…, pelo que a referência expressa ao assunto, no sumário, é significativa).

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               Tudo isto ainda tem a ver com outra questão, que é a do princípio de que através de um processo não se deve poder conseguir o que a lei substantiva não admite, ou, na formulação de Castro Mendes do princípio da submissão aos limites substantivos”: “se a vontade das partes não pode conseguir certo efeito jurídico fora do processo, não deve ser lícito à pura vontade das partes conseguir tal efeito através de actuações processuais: não o deve ser nem directamente, nem indirectamente, nem eventualmente” (Direito Processual Civil, I, AAFDL, 1980, págs. 238 e 239). Ora, este princípio tem aplicação, quer o processo seja um processo judicial civil, quer seja um processo administrativo. Vale tanto para os processos como para as escrituras de justificação judicial notariais (que aliás têm como pressuposto a possibilidade de terem desenvolvimentos processuais judiciais). Com aplicação ao caso dos autos: se a lei exige, a quem compra um imóvel, que apresente a licença de utilização, ela não pode deixar de ser exigida também quando a parte nem sequer tem a escritura de compra e a pretende substituir por um título obtido através de um processo administrativo ou judicial invocando a usucapião.

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               Quanto a outras questões que o recorrente vai levantando nas suas alegações:

               O recorrente põe em causa a afirmação de que nas três hipóteses de justificação do artigo 116º a justificação não titula  qualquer transmissão mas apenas “justifica” uma transmissão já ocorrida, dizendo que é inequívoco que tal ocorre, em regra, nos casos do nº. 2 do art. 116. Para além do que já consta acima quanto a este argumento, inclusive o que a Srª juíza diz sobre a questão, acrescente-se ainda que não é como o recorrente diz, pois que, por um lado, como se escreve naquela deliberação do CT, “ainda que de transmissão se tratasse, ela já teria ocorrido, pelo que agora apenas haveria que «justificá-la», ou seja, «invocá-la» fundadamente. E, por outro lado, a justificação visa a obtenção de um documento comprovativo do direito (justificado) para efeitos de registo e não a titulação de uma qualquer transmissão de direitos.

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               Diz o recorrente, depois de aludir às finalidades da lei ao exigir a licença que “não é, obviamente, o caso da justificação de direitos de propriedade já há muito construídos, e mais concretamente nos casos em que é invocada a usucapião” (artigo 10 das alegações do recurso). Trata-se de uma simples afirmação, não fundamentada. Era isto o que era necessário demonstrar. Afirmá-lo não tem, só por si, qualquer relevo. De resto, se se aceitasse esta afirmação, então em qualquer situação em que o pretendente do registo estivesse na posse do prédio por mais de 15 anos, estaria dispensado da exigência legal de comprovação do licenciamento, o que é manifestamente contra a vontade da lei.

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               Diz o recorrente, nas suas alegações de recurso, que no seu articulado inicial tinha citado doutrina e jurisprudência relevante e sugere que nada disso teria sido tomado em conta na decisão recorrida. Lê-se, no entanto, aquele articulado, tal como aliás as alegações deste recurso, e, quanto à jurisprudência, só se encontram citados dois sumários de decisões judiciais, no sentido defendido pelo recorrente. Nenhuma daquelas decisões (um ac. do TRG e uma sentença do TJ de Pombal) está publicada em qualquer lugar conhecido e não se conhece o seu texto.

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               Quanto ao voto de vencido, limita-se, como se vê da citação feita acima, a formular duas afirmações sintéticas, não fundamentadas, sobre a questão e foi tomado expressamente em conta quer no parecer do MP quer na decisão recorrida, e foi aí rebatido, pelo que não tem qualquer razão, o recorrente, quando mais à frente, diz que não viu este voto de vencido ser tomado em consideração na decisão recorrida… E se o recorrente queria que as razões do parecer que está na base do voto de vencido fossem tidas em consideração, deveria tê-lo junto, pois que o mesmo não está publicado (como ele próprio o afirma).

               A favor da sua posição, o recorrente cita ainda uma intervenção feita pelo Sr. conservador Vicente Monteiro, de que o recorrente junta as págs. 25 a 27. Anote-se que esta intervenção, apesar de 2009, não traz nada de novo ao assunto: cita a deliberação do CT, depois o voto de vencido (e nessa citação vê-se que o voto de vencido se baseia em grande parte no parágrafo da obra de Borges Araújo), a seguir aqueles sumários das decisões judiciais não publicadas, acrescenta que tem conhecimento de decisão judiciais que julgaram em sentido contrário e depois deixa uma reflexão sobre a questão, no sentido de lhe parecer demasiado penalizador para os particulares estar a exigir a licença.

              Quanto a esta reflexão, diga-se que não tem razão, visto os interesses públicos em causa, que em última instância se destinam a proteger aqueles interesses particulares, analisados em abstracto, como é próprio da lei (sobre o carácter de norma de interesse e ordem pública da disposição legal em causa, veja-se também o estudo de Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, Almedina, 11ª edição, Janeiro de 2006, págs. 80 a 82). Quanto ao resto, vê-se, como se disse, que tudo parte daquele pequeno § da obra citada, que partia do pressuposto da falta de sentido da lei…

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               Por fim, a comparação que o recorrente faz, nos artigos 28 e 29 das suas alegações, quanto ao licenciamento para o averbamento de construção tal como resulta da posição assumida em dois pareceres daquele mesmo CT, um de 1985 e outro de 1994, pode, eventualmente, demonstrar que a posição desses pareceres está errada quanto a essa questão, mas não afasta que a melhor interpretação seguida na matéria em causa nos autos seja a da sentença recorrida. E o mesmo se diga dos erros de direito que o recorrente aponta ao ac. do TRC acima citado…

               Em suma, o recorrente não tem razão na sua crítica à sentença recorrida.

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               Sumário: a exigência de prova da licença de utilização, feita no art. 1/1 do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26/07, é aplicável também às escrituras de justificação notarial previstas no art. 116/1 do CRP.

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               Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

               Custas pelo recorrente.

             


Pedro Martins ( Relator )
Virgílio Mateus
António Carvalho Martins