Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
88/13.4TAMBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: DESISTÊNCIA DA QUEIXA;
MANUTENÇÃO DO PEDIDO CÍVEL
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (J C GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 71.º; 74.º E 377.º DO CPP
Sumário:
Apesar de ter sido declarado extinto o procedimento criminal instaurado nos autos contra o arguido face a desistência de queixa apresentada pela ofendida, tal não implica a extinção da responsabilidade civil na medida em que a homologação da desistência de queixa não implica a extinção da responsabilidade civil na medida em que a conduta aqui em causa continua a ser criminalmente punida e, como tal fundamento para responsabilidade extra-contratual.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A demandante cível, A…, não se conformando com o despacho proferido na audiência de discussão e julgamento que julgou válida a desistência de queixa e, consequentemente, julgou extinto o procedimento criminal e, no que respeita ao pedido cível, declarou extinta a instância cível por inutilidade superveniente da lide, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
1.: O acórdão deste Tribunal da Relação determinou a nulidade da sentença proferida acrescentando que “os efeitos da nulidade estender-se-ão ao julgamento que, nesse caso, deverá ser repetido”.
Mas, 2.: Como o recurso era restrito à matéria do PIC e este tem autonomia em relação à decisão penal, aquela nulidade apenas afecta o julgamento do PIC, até porque a sentença transitou em julgado na sua parte de condenação penal.
3.: Naquela decisão não se faz, expressamente, esta separação, mas é lícita a interpretação constante do número anterior e dado aquele enquadramento do recurso e aquele trânsito em julgado.
4.: E assim sendo, o despacho da Meritíssima Senhora Juíza aqui sob recurso e que ordena a repetição integral do julgamento, deve ser revogado por violação do caso julgado quanto à anterior decisão em sede penal, e por não aplicação dos nº 1 e 2 b) do artº 403 e segunda parte do nº1 do artº 426º este se interpretado, como deve ser, em consonância com aquele, ambos do CPP, Pelo que
5.: Impõe-se a revogação daquele despacho e a consequente invalidade de todos os actos subsequentes, mais se determinando que o novo julgamento apenas terá como objecto a matéria do PIC.
Mas se outro for o entendimento
6.: O facto de a instância penal se extinguir por desistência da queixa que foi declarada no início do julgamento, não impede o prosseguimento do processo para apreciação da matéria do PIC e decisão final sobre o respectivo pedido dada a autonomia do mesmo em relação à instância penal e considerando, também, a jurisprudência firmada no acórdão uniformizador do STJ nº 03/2002. in D.R. de 05/03/2002,
Pelo que
7.: O despacho da Meritíssima que determinou a extinção da instância cível (PIC) por inutilidade superveniente da lide faz uma interpretação errada do princípio da adesão consagrado no artº 71º do CPP, sendo antes correcta a que resulta daquele acórdão uniformizador da jurisprudência, e, por isso, aplica indevidamente o artº 277, al. e) do CPC.
8.: As partes cíveis não tiveram qualquer intervenção processual na desistência da queixa-crime da qual resultou a extinção da instância penal e, depois, a decisão da Meritíssima Senhora Juíza de extinguir a instância cível por inutilidade superveniente, pelo que naquele enquadramento não se verifica qualquer das hipóteses da regra geral consagrada nos nº 1 e 2 do artº 527º do CPC (aplicável por força do artº 523º do CPP) e assim sendo não deve haver condenação em custas.
9.: Mas se outro for o entendimento, considerando que o PIC da demandante cível era fundado no momento da propositura e deixou de o ser por motivo superveniente que não lhe é imputável, as custas deverão ser repartidas em partes iguais entre demandante e demandado cível, nos termos do nº 1 do artº 536º do CPC.
10.: A decisão de condenar a demandante/recorrente nas custas viola os nº 1 e 2 do artº 523º do CPC, ou, ao menos, o nº 1 do artº 536º do CPC, normas estas que a Meritíssima deveria ter aplicado mas não aplicou.
Vossas Excelências na procedência do presente recurso decidirão, pela ordem supra indicada, a revogação dos despachos aqui impugnados, e ordenarão à primeira instancia em conformidade,
E assim farão JUSTIÇA.

Foi admitido o recurso a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu a demandada “B…”, pugnando pela improcedência do recurso.

Respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto, dado estarmos perante matéria cível.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

É este o despacho recorrido:
Em primeiro lugar, e no que se refere ao primeiro segmento do requerimento ora apreciado, importa referir que, em sede de arguição de nulidades processuais, rege o princípio da legalidade e da taxatividade das mesmas (art.º 118.º do CPP). -----
Ora, no referido segmento não é feita a recondução a qualquer uma das nulidades tipificadas no preceito normativo invocado nem a qualquer outro cuja cominação fosse precisamente a nulidade.---------
Assim, e no que ao fundo desta concreta questão se refere – a decisão deste Tribunal de que o julgamento que hoje teve início abrangesse toda a matéria civil e criminal e pelos fundamentos que constam do primeiro despacho proferido nesta diligência e para os quais se remete integralmente - julga-se inverificada a nulidade arguida. ----
Diga-se, além do mais, e ainda que alguma nulidade se verificasse, no que aos autos concerne, sempre consideraríamos a sua arguição, nos termos do art.º 120, n.º 3 alínea a) do CPP, intempestiva.-------
E assim consideramos porque, uma vez proferido o despacho ora em crise, nenhuma reacção mereceu por parte da demandante A…, a saber, arguindo a nulidade como agora faz, razão pela qual, e tendo sido dado início ao presente julgamento e produção de prova, tal arguição, porque dirigida justamente à prática daquele acto processual, resultou precludida, não sendo justificação incidências posteriores e próprias do acto cuja nulidade se pretende sindicar, para fazer repristinar uma faculdade (processual) da qual, atrás, se prescindiu. -------- Indefere-se, pois, a arguição da referida nulidade. ---------
No mais, e tendo a demandante A… optado por fazer valer a sua pretensão indemnizatória em sede criminal – e referimos a opção porque, pese embora o princípio da adesão, no caso, verificava-se a possibilidade do desvio ao mesmo prevista no art.º. 72 n.º.1 alínea g) do CPP - e não tendo, ainda que assumindo a qualidade de lesada, exercido o seu direito de queixa, não pode agora, depois de assumir esta postura processual, dispor dos autos como à ofendida C… é reconhecido porque tempestivamente exerceu o seu direito de queixa. ------ Tendo adoptado esta estratégia processual tem que se conformar com as regras relativas à jurisdição em que nos movemos. --------
Em face do exposto, dado a desistência de queixa da ofendida a aceitação da mesma pelo arguido, o carácter semipúblico do crime apreciado nos autos, julgo válida a desistência de queixa e em consequência julgo extinto o procedimento criminal. ------------
Na parte cível, pelos fundamentos acima invocados dou extinta a instância cível por inutilidade superveniente da lide, cfr. art.º 277.ºal. e), do CPC. --------- Custas pela demandante, A.... ------
Notifique e Deposite

Cumpre apreciar:
Sustenta a recorrente que o acórdão deste Tribunal da Relação determinou a nulidade da sentença proferida acrescentando que “os efeitos da nulidade estender-se-ão ao julgamento que, nesse caso, deverá ser repetido”. Mas, como o recurso era restrito à matéria do PIC e este tem autonomia em relação à decisão penal, aquela nulidade apenas afecta o julgamento do PIC, até porque a sentença transitou em julgado na sua parte de condenação penal.
Vejamos:
Nos presentes autos, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acusação procedente por provada e decidiu, em consequência:
- Condenar o arguido D… da prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência p. e p. pelo art.º 148º nº1 e 3 do C.P. e art.º 35º nº1 e 2 do C.P. de que vinha acusado, na pena de 4 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano e sujeita à condição de frequência de programa destinado a combater a sinistralidade rodoviária, nos termos do art.º 50º nº1, 2 e 5 e 52º nº1 b) do C.P.
- Condenar a demandada cível B..., no pagamento da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, relativamente aos danos morais, biológicos e perda de capacidade de ganho, nos termos do art.º 82º nº2 do C.P.P.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso a demandante cível, A... para este Tribunal da Relação.
Este Tribunal decidiu:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, em anular, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 379º n.º 1 c) e 410º n.º 2, al b) do Cód. Proc. Penal, a sentença recorrida que deve ser reformulada e expurgada do vício enunciado e que deverá, também, apreciar e decidir o pedido de indemnização civil.
Na eventualidade de vir a ser considerada necessária a produção de prova suplementar, com a reabertura da audiência, mostrando-se impossível reconstituir o tribunal, os efeitos da nulidade estender-se-ão ao julgamento que, nesse caso, deverá ser repetido”.
Entende o recorrente que a matéria provada em sede criminal está a coberto do trânsito em julgado devendo apenas a audiência de discussão e julgamento ficar circunscrita á apreciação da parte cível.
Ora, o acórdão proferido por esta Relação é muito claro : anular, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 379º n.º 1 c) e 410º n.º 2, al b) do Cód. Proc. Penal, a sentença recorrida que deve ser reformulada e expurgada do vício enunciado e que deverá, também, apreciar e decidir o pedido de indemnização civil.
Na eventualidade de vir a ser considerada necessária a produção de prova suplementar, com a reabertura da audiência, mostrando-se impossível reconstituir o tribunal, os efeitos da nulidade estender-se-ão ao julgamento que, nesse caso, deverá ser repetido”.
Compulsados os autos verifica-se que o Sr juiz que havia presidido ao julgamento e que subscreveu a sentença recorrida, não sanou os vícios apontados por esta Relação e não sendo possível reconstituir o Tribunal “os efeitos da nulidade estender-se-ão ao julgamento que, nesse caso, deverá ser repetido”.
Aliás, neste sentido dispõe o artº 426º nº1 do CPP que dispõe que “sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente á totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão do reenvio.”
O Tribunal da Relação não identificou de “per si” as questões a decidir e, embora esteja em causa o pedido cível não podemos esquecer que no caso vertente, o mesmo emerge de um da prática de um crime. Assim sendo e tal como é bem explicito o acórdão o novo julgamento deve abranger a “totalidade do objecto do processo”.
Aliás, o Tribunal a quo não presidiu ao presente julgamento e “mostrando-se impossível reconstituir o tribunal, os efeitos da nulidade estender-se-ão ao julgamento que, nesse caso, deverá ser repetido”.
Assim e nesta parte improcede o recurso.

Perante a desistência de queixa apresentada pela assistente e homologada pelo tribunal foi declarada extinta a instância cível por inutilidade superveniente da lide.
Insurge-se a recorrente alegando que o Tribunal fez uma interpretação errada do princípio da adesão consagrado no artº 71º do CPP sendo antes correcta aquela que resulta do acórdão uniformizador nº 3/2002 de 5 de Março.
Dispõe o artº 71 do CPP que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
Consagra este normativo o principio designado da adesão obrigatória da acção civil á acção penal.
E como decorre do preceito citado , a acção civil a que o preceito se refere é aquele que emerge da prática de um crime que constitui objecto do processo penal e, resulta, igualmente do artº 74º nº 1 que “o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime,…..” o que implica, portanto, que tenha como causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal (cfr Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol I, pg 79) e AcRPorto de 10/05/2001CJ AnoXXVI, III,138).
Portanto apesar de ter sido declarado extinto o procedimento criminal instaurado nos autos contra o arguido face a desistência de queixa apresentada pela ofendida, tal não implica a extinção da responsabilidade civil na medida em que a homologação da desistência de queixa não implica a extinção da responsabilidade civil na medida em que a conduta aqui em causa continua a ser criminalmente punida e, como tal fundamento para responsabilidade extra-contratual.
Não nos podemos esquecer que a indemnização em causa assenta na verificação de factos que, á data da sua prática, constituíam crime, ou seja, a causa de pedir do pedido cível deduzido na acção penal é o ilícito criminal.
Por outro lado dispõe o artº 377º nº 1 do CPP que “ a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, …”, disposição legal que, também, tem aplicação no caso de o procedimento criminal ser declarado extinto por efeito de desistência de queixa.
Aliás, tem aqui toda a pertinência AFJ 3/2002 de 5 de Março que refere que “extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artº 311 do CPP mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste”.
Por maioria de razão, extinto o procedimento criminal, por desistência, no decurso da audiência de discussão e julgamento, o processo deverá prosseguir para apreciação do pedido de indemnização civil se assim for requerido pelos intervenientes cíveis.
Assim, não pode manter-se o despacho recorrido e deve o processo prosseguir para julgamento do pedido de indemnização civil.

Do exposto julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido de indemnização civil.
Sem custas.

Coimbra, 27 de Junho de 2018

Alice Santos (relatora)

Belmiro Andrade (adjunto)