Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
725/14.3TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE RECONHECIMENTO DE CONTRATO DE TRABALHO
ACÇÃO OFICIOSA
INTERVENÇÃO DO TRABALHADOR
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – 1ª SECÇÃO DO TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 26º, Nº 1, AL. I), 186º-K A 186º-O DO CPT (LEI Nº 63/2013, DE 27/08); 12º, Nº 1 DO CT/2009.
Sumário: I – A Lei nº 63/2013 contém normas de interesse e ordem pública, designadamente no que respeita à introdução da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, aditando os artºs 186º-K a 186º-R ao CPT.

II – Porque se trata de um interesse de ordem pública, estamos perante uma acção oficiosa, instaurada na sequência da intervenção da ACT ou por conhecimento e iniciativa do M.º P.º - artº 186º-K, nºs 1 e 1 -, que dispensa a intervenção do próprio trabalhador em causa, que é meramente facultativa – artº 186º-L, nº 4.

III – Nesta interpretação/aplicação não ocorre violação do princípio do estado de direito democrático, violação do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, violação da liberdade de escolha do género de trabalho, violação do direito de acção e do direito a tutela jurisdicional efectiva mediante processo equitativo, violação do direito a advogado, violação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, violação de iniciativa económica, nem violação do princípio da autonomia do M.º P.º e do princípio da igualdade – artºs 2º, 47º e 53º da Constituição República Portuguesa.

IV – O referido interesse público que subjaz a este tipo de acções gera a indisponibilidade para o trabalhador de validamente desistir do pedido ou de poder transigir sobre o seu objecto, reconhecendo, p. ex., que não se trata de contrato de trabalho a relação jurídica em apreciação.

V – O nº 1 do artº 12º do CT/2009 elenca os índices de subordinação que, verificando-se, fazem presumir a existência de um contrato de trabalho.

Decisão Texto Integral:

 Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O Ministério Público veio instaurar acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 26º, nº 1, al. i), e 186º-K, nº 1, do Código de Processo de Trabalho, ambos com as alterações introduzidas pela Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto, contra a ré, pedindo que seja reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a ré e A... , fixando-se a data do seu início desde em 2/09/2013.

A acção fundou-se em auto por “utilização indevida de contrato de prestação de serviços”, relativo à alegada trabalhadora, levantado no dia 11/06/2014 pela ACT. O Ministério Público alegou, em síntese, factos para sustentar o entendimento de que a actividade profissional por aquela desenvolvida para a ré assume todas as características de contrato de trabalho subordinado.

Citada a Ré, esta apresentou contestação, apresentando defesa por impugnação e sustentando que o contrato em causa é um contrato de prestação de serviço. Arguiu também a inconstitucionalidade das normas processuais que atribuem ao Ministério Público legitimidade para a acção desacompanhado pelo trabalhador, por violação dos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual, e suscitando por isso a incompetência material do tribunal.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 186.º-L n.º 4 do CPT, e a alegada trabalhadora constitui mandatário, mas sem apresentar articulado próprio.

Respondeu o Ministério Público à contestação da ré, invocando os mecanismos instituídos pela Lei nº 63/2013 de 27-08 para a salvaguarda de interesses supra individuais, na defesa do interesse público de conformidade entre as relações de facto e as relações jurídicas que incumbe ao Estado assegurar, como fundamento para a competência material atribuída à jurisdição laboral.

Em audiência realizada, presentes e representadas a ré e a alegada trabalhadora, estas conciliaram-se no sentido de considerarem estarem perante um contrato de prestação de serviços. O Ministério Público opôs-se à homologação do acordo naqueles termos e nesse sentido foi a decisão do tribunal da 1.ª instância

Prosseguindo o processo, veio a ser proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou que entre a ré e A... existe um contrato de trabalho, o qual vigora desde 2 de Setembro de 2013.
Inconformada, veio a ré interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
[…]

O Ministério Público apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:

[…]

A Sr.ª juíza do tribunal a quo, perante a arguição de nulidade da sentença, sustentou que não se verifica a nulidade apontada pela apelante.


*

II- FUNDAMENTAÇÃO

A- Factos considerados como provados pela 1.ª instância.

Da decisão relativa à matéria de facto, foram considerados como provados os seguintes factos:

[…]

B. Apreciação.

É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação.

Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:

- se a sentença recorrida padece de nulidade;

- se as normas constantes dos artigos 26.º/1, alínea i) e 186.º-K a 186.º-O do CPT, na redacção dada pela Lei n.º 63/2013, se encontram feridas de inconstitucionalidade;

- se ao não homologar a conciliação obtida entre a alegada trabalhadora e a apelante em sede de tentativa de conciliação que precedeu a audiência de julgamento, a sentença violou o disposto no art. 186.º-O do CPT;

- se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.

- se o vínculo contratual entre a ré e a alegada trabalhadora A... podia ou não ser qualificado como contrato de trabalho.

B.1. Quanto à questão da nulidade da sentença:

A apelante defende que a sentença recorrida se encontra ferida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, uma vez que não procedeu à apreciação da matéria de facto alegada nos artigos 17.º, 19.º a 21.º, 37.º, 39.º, 45.º, 59.º e 107.º da contestação.

A arguição teve lugar na forma imposta pelo artigo 77º, nº 1, do CPT – expressa e separadamente (“a arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”).

A norma invocada (615.º, n.º 1, al. d), do CPCivil) prescreve que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

A invocação da nulidade em causa está limitada à omissão de pronúncia na sentença sobre “questões” colocadas, sendo estas as relativas à conjugação dos pontos essenciais de facto e de direito em que as partes baseiam as suas pretensões, na acção ou na defesa, e que sejam relevantes para essa apreciação.

Observada a sentença, na parte em que se reporta à decisão relativa à matéria de facto, podemos observar que o tribunal elencou expressamente determinados factos como provados e não provados e quanto aos demais referiu que à “restante factualidade alegada pelas partes não se responde por se tratar de matéria conclusiva ou de direito não atendível para a apreciação do mérito da causa”.

Não houve assim “omissão de pronúncia” quanto aos demais factos. Simplesmente o tribunal considerou que se tratava de matéria conclusiva ou de direito não atendível para a apreciação do mérito da causa.

 Saber se assim ajuizou correctamente ou não é uma questão que se prende com um eventual erro de julgamento e não uma questão de omissão de pronúncia. O erro de julgamento poderá ser corrigido em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o meio próprio para obter a sua correcção, não o meio da invocação de nulidade da sentença como a apelante o pretende utilizar.

Deste modo, improcede a arguição de nulidade da sentença.

B.2. Quanto à questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 26.º/1, alínea i) e 186.º-K a 186.º-O do CPT, na redacção dada pela Lei n.º 63/2013:

A apelante defende que as normas constantes dos artigos 26.º n.º 1, alínea i) e 186.º-K a 186.º-O do CPT, na redacção dada pela Lei n.º 63/2013, encontram-se feridas de inconstitucionalidade, por violação do princípio do Estado de Direito Democrático, do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, da liberdade de escolha do género de trabalho, do direito de acção e do direito a tutela jurisdicional efectiva mediante processo equitativo, do direito a advogado, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, da liberdade de iniciativa económica, do princípio da autonomia do Ministério Público e do princípio da igualdade, previstos, respectivamente, nos artigos 2.º, 47.º n.º 1, 20.º n.ºs 1 e 4, 20.º n.º 2, 26.º n.º 1, 27.º n.º 1, 61.º n.º 1, 219.º n.º 2 e 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Defende como pedra angular da sua argumentação que não pode identificar-se um interesse público na iniciativa desse tipo de acção.
Os Acórdão desta Relação vêm consistentemente a afirmar esse mesmo interesse público, salientando-se como os mais recentes os Ac. de 26/3/2015, proc. 848/14.9TTCBR.C1, e de 8/5/2015, proc. 859/14.4T8CTB.C1 (Relator: Ramalho Pinto), disponíveis em www.dgsi.pt.

Importa transcrever aqui, para melhor compreensão do que se irá expor, os arts 186.º- L a 186.º-O do CPT, aditados pela Lei nº 63/2013, de 27/8:

                  «Artigo 186.º -L

                  Petição inicial e contestação

                  1 — Na petição inicial, o Ministério Público expõe sucintamente a pretensão e os respetivos fundamentos, devendo juntar todos os elementos de prova recolhidos até ao momento.

                  2 — O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias.

                  3 — A petição inicial e a contestação não carecem de forma articulada, devendo ser apresentados em duplicado, nos termos do n.º 1 do artigo 148.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

                  4 — O duplicado da petição inicial e da contestação são remetidos ao trabalhador simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

                  Artigo 186.º -M

                  Falta de contestação

                  Se o empregador não contestar, o juiz profere, no prazo de 10 dias, decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente.

                  Artigo 186.º -N

                  Termos posteriores aos articulados

                  1 — Se a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.

                  2 — A audiência de julgamento realiza -se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 151.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

                  3 — As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas.

                  Artigo 186.º -O

                  Audiência de partes e julgamento

                  1 — Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los.

                  2 — Frustrando -se a conciliação, inicia -se imediatamente o julgamento, produzindo -se as provas que ao caso couberem.

                  3 — Não é motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários.

                  4 — Quando as partes não tenham constituído mandatário judicial ou este não comparecer, a inquirição das testemunhas é efetuada pelo juiz.

                  5 — Se ao juiz parecer indispensável, para boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência suspende a audiência na altura que reputar mais conveniente e marca logo dia para a sua continuação, devendo o julgamento concluir -se dentro de 30 dias.

                  6 — Finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral.

                  7 — A sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a ata.

                  8 — A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data do início da relação laboral.

                  9 — A decisão proferida pelo tribunal é comunicada à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I. P.»

                 

Como se afirmou no último dos Acórdãos desta Relação acima referenciados:

«São duas as novidades trazidas pela Lei 63/2013:

- a criação de um procedimento próprio para utilização pela ACT, quando esta considere estar na presença de “falsos” contratos de prestação de serviço;
- a instituição de um novo tipo de processo judicial com natureza urgente, denominado acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Esta nova acção especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho surgiu com o objectivo de instituir um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços. Trata-se de uma acção com natureza urgente e oficiosa, iniciando-se sem qualquer intervenção do trabalhador ou do empregador, bastando, para o efeito, uma participação da Autoridade para as Condições do Trabalho, que a desencadeia. Institui-se um regime de celeridade e oficiosidade, a petição inicial e a contestação não têm de revestir forma articulada e a realização da audiência de julgamento não fica dependente do acordo das partes, nem pode ser adiada devido à falta destas, e dos respectivos mandatários, mesmo que justificada.

A Lei nº 63/2103, que expressa e significativamente veio consagrar a “Instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”- artº 1º, contém normas de interesse e ordem pública, designada, mas não exclusivamente, no que respeita à introdução da acção  de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, aditando os artºs 186.º -K a 186.º -R ao CPT.

Teve-se em vista combater uma realidade que se vem prolongando ao longo do tempo, de verdadeiros contratos de trabalho subordinado encobertos sob a designação de contratos de prestação de serviços, ou, para usar uma expressão da gíria, os “falsos recibos verdes,” os quais, para além de afectarem o trabalhador subordinado em alguns dos seus direitos, prejudicam, igualmente, interesses do Estado, de natureza fiscal e de segurança social.

O que também foi salientado no Ac. da Rel. de Lisboa de 10/9/2014, citado no Ac. da mesma Relação de 8/10/2014, ambos disponíveis em www.dgsi.pt:

“Analisando o regime legal condensado na Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, que veio alterar a Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro e o Cód. Proc. Trab., observamos que o escopo, essencial e exclusivo, intencionalmente querido pelo legislador e por ele explicitado no art.º 1.º foi o de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

Em causa está a sempre actual problemática dos designados “falsos recibos verdes”, isto é, o enquadramento de colaboradores como independentes quando as características da actividade por eles exercida, confrontada com a moldura legal aplicável, impõe antes a sua qualificação como trabalhadores subordinados”.

E porque se trata de um interesse de ordem pública, estamos perante uma acção oficiosa,  instaurada na sequência da intervenção da ACT - nº 1 do artº 186-K, ou por conhecimento e por iniciativa do MºPº- nº 2, que dispensa a intervenção do próprio trabalhador em causa, que é meramente facultativa - nº 4 do artº 168º-L. Ou seja, na instauração da acção, dispensa-se, expressamente, a iniciativa e até o consentimento do trabalhador, ao qual é conferida apenas a possibilidade de apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

Assim sendo, o julgamento da acção deverá traduzir a realidade e não ficar restrito ao peticionado pelo MºPº ou ao alegado no articulado do trabalhador, se o houver, devendo a sentença, mesmo que tal não seja indicado por qualquer daqueles, “fixar a data do início da relação laboral”- nº 8 do artº 186º-O. Esta norma, tal como todas as outras referidas, apresenta-se como imperativa, estando em causa, como já se aludiu, valores que o legislador considera fundamentais, impondo-se, portanto, à vontade das partes e diminuindo a sua liberdade de estipulação. Funciona aqui o princípio do inquisitório, aparecendo o princípio do dispositivo como claramente mitigado.

Sobre a problemática de estarmos perante normas de interesse e ordem pública se pronunciou, igual e positivamente, o citado Ac. da Rel. de Lisboa de 8/10/2014:

“Afigura-se-nos importante – como aliás faz o Aresto anteriormente transcrito – e antes de cruzarmos as considerações jurídicas que reproduzimos com os factos emergentes da presente acção, definirmos, ainda que de forma sintética, a natureza e principais características da presente acção de reconhecimento do contrato de trabalho que, como ficou antes afirmado, se reconduz a uma acção declarativa de mera apreciação positiva.

Ressalta desde logo do inerente regime legal que a mesma tem uma tramitação não somente especial como particular, com alguns pontos de contacto com as acções emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (artigos 26.º, n.ºs 1, alínea e), 3 e 4 e 99.º a 155.º do C.P.T.) e de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento (artigos 26.º, n.ºs 1, alínea a), e 5 e 98.-B.º a 98.º-P do C.P.T.), dado que estas últimas não só possuem natureza urgente como têm por base uma participação ou um formulário, iniciando-se a sua instância com a apresentação/recebimento dos mesmos.

A diferença entre a fase conciliatória dos autos de acidentes de trabalho e aquela que tem inicialmente lugar, em termos latos e pouco rigorosos, no âmbito desta acção, é que aquela se integra, de pleno direito, na correspondente instância, ao passo que tal não acontece aqui, havendo uma fase prévia que decorre na ACT, que, ao invés do que com aquela fase conciliatória ocorre, não possui cariz judicial, muito embora uma e outra possam esgotar, por si e em si, o objecto do correspondente procedimento (cfr. n.º 2 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14/9 e 109.º, 111.º e 114.º do C.P.T.).

O ato despoletador de um processo como este, à imagem do que se verifica com a acção especial de despedimento, é apenas um e de índole formal, radicando-se, nesta última, num formulário-tipo e naquele na participação da ACT.

Importa referir que a ACT é a única entidade competente para levantar o auto a que alude o número 1 do artigo 15.º-A do RPCOLSS e desenvolver as diligências preliminares igualmente aí elencadas (cfr., muito significativamente, o n.º 2 do artigo 186.º-K do Código do Processo do Trabalho) e que, com a participação ao Ministério Público do Tribunal do Trabalho, se «suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada», ou seja, os autos de contraordenação ou de execução relativos à dita infração (falso trabalho autónomo) ficam parados, a aguardar o julgamento definitivo na ação laboral.

O Ministério Público, por outro lado, recebe no tribunal do trabalho tal participação da ACT e tem o prazo de 20 dias para apresentar a petição inicial, desde que entenda haver elementos suficientes para o efeito, fazendo-o em representação do Estado e para defesa, em primeira linha, dos interesses públicos pelo mesmo prosseguidos (cfr. artigos 1.º, 2.º e 3.º, al. a) do EMP) e não (apenas) do interesse privado “trabalhador” que, convirá dizê-lo, pode nem sequer ter qualquer intervenção nos autos, conforme decorre da falta de contestação do empregador e do disposto no artigo 186.º-M do C.P.T. e nunca é (pode ser) patrocinado pelo Ministério Público mas apenas por advogado nomeado ou constituído.

Tal interesse público acha-se descrito por Pedro Petrucci de Freitas (No texto intitulado «DA ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO: BREVES COMENTÁRIOS», datado de 9/1/2014 e publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 - Vol. IV - Out./Dez -2013, páginas 1423 e seguintes e que pode ser consultado no sítio da Ordem dos Advogados, em “Publicações”) nos seguintes moldes:

«A Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, instituiu mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado através de um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e de um novo tipo de ação judicial, a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, passando esta última a constar no elenco do art.º 26.º do Código de Processo do Trabalho.

O objectivo indicado no art.º 1.º desta Lei, ou seja, a instituição dos referidos mecanismos, corresponde a uma intervenção marcadamente política de resposta a um grave problema social, e, quanto a nós, a um culminar de anteriores alterações legislativas (com o propósito de se atingir um nível de “decent work”, — tal como propugnado por instâncias internacionais -, e de se eliminar o fenómeno da precariedade laboral.

A utilização indevida da figura do contrato de prestação de serviços em relação de trabalho subordinado não é um fenómeno novo, e conduz, inclusivamente, à concorrência desleal entre empresas. Conforme se refere no relatório elaborado pelo Grupo de Ação Interdepartamental da organização Internacional do Trabalho: “ (...) para a empresa empregadora, a possibilidade de subcontratar tarefas ao trabalhador por conta própria “dependente” constitui uma oportunidade de poupar custos e de -no fundo - partilhar o risco empresarial. A empresa empregadora não se vê obrigada a pagar contribuições para a segurança social, seguros ou direitos relativos a férias e dias feriados; as transacções relacionadas com a gestão de recursos humanos estão reduzidas ao mínimo e não há lugar a procedimentos e pagamentos com o fim da relação negocial entre as partes”.

De acordo com este relatório, os trabalhadores por conta própria representam 17,1% do emprego total, dos quais 11,6% são trabalhadores por conta própria como isolados (sem empregados a cargo), sendo que na Eu-27, a percentagem média do trabalho por conta própria relativamente ao emprego total é de 15,8%, sendo 10,2% os trabalhadores por conta própria como isolados (…). Por seu turno, uma análise dos dados divulgados pela ACT, no que respeita à acção inspetiva no âmbito do trabalho declarado e do trabalho irregular permite identificar 326 casos de regularização de contratos de trabalho dissimulados em 2009, 436 casos em 2010, 1144 casos em 2011 e 396 casos em 2012, tendo, neste último ano, sido efectuadas 64 advertências e registadas 219 infracções.

Independentemente da leitura que se possa fazer destes dados, não pode naturalmente a ordem jurídica deixar de criar mecanismos de combate e penalização de situações inequivocamente violadoras da lei com efeitos nocivos transversais, e com um impacto mais abrangente do que aquele que se possa identificar à partida, se incluirmos neste raciocínio a problemática da sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito, e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam.”

Julgamos este excerto doutrinário assaz expressivo dos interesses de cariz não privado ou particular que se visam acautelar através da consagração deste novo tipo de acção (convindo ainda realçar a origem popular desse regime legal) e que moldam inequivocamente a interpretação das correspondentes normas jurídicas e a tramitação adjectiva que delas deriva».

Desta interpretação que identifica o interesse público neste tipo de acção, a nosso ver e ao contrário do que defende a apelante, não decorre a violação do princípio do Estado de Direito Democrático, do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, da liberdade de escolha do género de trabalho, do direito de acção e do direito a tutela jurisdicional efectiva mediante processo equitativo, do direito a advogado, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, da liberdade de iniciativa económica, do princípio da autonomia do Ministério Público e do princípio da igualdade.

Não se vê, em primeiro lugar, como pode estar em causa a violação do princípio do Estado de Direito Democrático, do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, que decorrem do art. 2.º da CRP, a menos que afrontem de forma intolerável um direito fundamental e assim não acontece como diremos.

Sucede mesmo que o art. 53.º da CRP ao consagrar como direito fundamental dos trabalhadores, o da segurança no emprego, gera ao Estado a obrigação de o garantir (art. 2.º da CRP) através de acções eficientes como pode ser o caso da acção especial em análise, introduzindo procedimentos regulatórios e de fiscalização do mercado que assegurem que aquele direito fundamental não seja colocado em causa.

O direito fundamental da liberdade de escolha do género de trabalho, invocado no recurso e previsto no art. 47.º da CRP, não contempla o direito de livre escolha do contrato ao abrigo do qual se vai exercer a profissão ou o género de trabalho, tratando-se estes de contratos típicos, legalmente regulados também numa definição do interesse público. O art. 47.º n.º 1 da CRP ressalva de resto as restrições legais impostas pelo interesse colectivo. Razão pela qual a interpretação que sustentamos não ofende esse direito fundamental.

Não ofende também o direito a tutela jurisdicional efectiva mediante processo equitativo, como se defende no recurso quando neste se sustenta que o direito de acção ficaria limitado, na medida em que a vontade prevalecente na composição de interesses subjacente ao litígio judicial, desde o momento da convocação da tutela jurisdicional até à definição da situação jurídica por sentença, ficaria a pertencer a terceiro que não é parte na relação material controvertida, em acção que se limita a qualificar a fonte desta. Na realidade, sendo o interesse público aquele que se visa proteger, são as autoridades públicas, como a ACT e o MºPº, que se assumem como entidades de fiscalização e com legitimidade de intervenção, pelo que a qualificação de contratos típicos, regulados pela lei, se insere numa normal actividade de regulação do Estado sobre o mercado e daí que as partes da relação jurídica se tenham de submeter à fiscalização sobre a sua regularidade.

Não tem também consistência, a nosso ver, o argumento expresso no recurso e de acordo com o qual a tramitação processual da acção em apreço permite que um sujeito de direito veja declarada a existência de contrato de que é parte, sem ter tido oportunidade de conhecer da sujeição a juízo da correspondente pretensão, nem de sobre ela se pronunciar. É que a iniciativa da acção, sendo pública, não necessitava do consentimento de um particular, nos padrões constitucionais. Mas de todo o modo, o artigo 186.º -L, n.º 2 prevê o chamamento à acção do trabalhador e confere-lhe a possibilidade de um lugar processual de intervenção.

Sustenta a apelante que “diversas soluções normativas da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho - a designação dada à acção e respectivas partes, o efeito cominatório pleno da revelia do réu, as limitações probatórias, o regime de custas - revelam tratamento desequilibrado e parcial dos sujeitos processuais, que infringe o direito a processo equitativo”. Este argumento, contudo, não é focado nas concretas questões do recurso, não tendo utilidade em caso da sua procedência, pelo que dele se não conhecerá. Na verdade, os aspectos da designação dada à acção e respectivas partes, o efeito cominatório pleno da revelia do réu, as limitações probatórias e o regime de custas, são aspectos que não interferem com o mérito da sentença recorrida, não conduzindo a sua consideração, no caso concreto dos autos, a qualquer possibilidade de alteração da sentença, tendo em conta os elementos do processo, da sentença e do recurso.

Acrescenta-se no recurso o argumento que a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho pode obstar ao exercício pleno do direito a advogado, contrariando o valor da tutela jurisdicional efectiva de que aquele direito constitui corolário. Não se vê que assim possa suceder, tendo em conta o que deixámos dito sobre a legitimidade específica do MºPº. De todo o modo, o argumento também não se insere com utilidade para a análise das concretas questões suscitadas no recurso quanto ao mérito da sentença recorrida, pelo que dele se não conhecerá. Não se vê que a apelante tenha visto limitado o seu direito a advogado e o mais que a partir do argumento se possa elaborar em teoria também não interfere com o mérito da sentença recorrida.

Alega ainda a recorrente que uma promoção processual obrigatória a partir da participação da Autoridade para as Condições do Trabalho e que dá início à instância na acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, é contrária ao princípio constitucional da autonomia do Ministério Público. Ora, não vemos que o M.ºPº esteja sujeito a promoção processual “obrigatória”. Nos termos do art. 219.º n.º 1 da CRP, ao MºPº compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, como sucede no desenho da acção que apreciamos. E nos termos do seu n.º 2, o MºPº goza de autonomia nos termos da lei. A lei (art. 2.º n.º 2 do Estatuto do Ministério Público – Lei n.º 47/86 de 15/10) estabelece que a autonomia do Ministério Público se caracteriza pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade. Significa isto que, de acordo com estes parâmetros, se o MºPº em critério de objectividade concluir que a participação a ACT não contém factos ou elementos de prova consistentes e viáveis pode não intentar justificadamente a acção, no âmbito da sua autonomia. Sucede que a Lei n.º 63/2013, de 27/8, em lugar algum impede essa apreciação objectiva, eliminando a autonomia do MºPº. Pelo que o argumento da apelante não procede.

Defende ainda a recorrente que a diferença de tratamento processual entre as situações idênticas de putativo trabalhador abrangido por acção inspectiva da ACT e outro que o não seja, quanto ao ónus de impulso processual, representação por mandatário judicial, tramitação processual urgente e responsabilidade pelos custos do processo, ofende o princípio constitucional da igualdade de tratamento.

Nenhuma desigualdade é, no entanto, observada, a nosso ver. Os trabalhadores, por sua iniciativa e para efeitos de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho em que sejam partes, podem sempre optar por uma acção comum, com representação por advogado ou recorrendo ao patrocínio do MºPº (art. 7.º do CPT), ou, por outro lado, por denunciar a sua situação junto da ACT (art. 2.º n.º 2 da Lei n.º 107/2009, de 14/8, com a alteração da Lei n.º 63/2013) ou mesmo do MºPº (art. 186.º-K n.º 2 do CPT, com a alteração da Lei n.º 63/2013), caso em que, apurada a consistência da sua denúncia, terá lugar o recurso à acção especial de que tratamos.

Como se escreve no Acórdão 166/10 do Tribunal Constitucional, retomando os Acórdãos 186/90, 187/90 e 188/90, “o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa perspectiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)”.

No caso, a única diferença reside apenas na existência de dois tipos de acções, a comum e a especial, mas a que qualquer trabalhador pode ter acesso em condições de igualdade. A diferença no processamento das acções é materialmente fundada ou justificada no interesse público que identificamos e, nessa medida, não se observa qualquer distinção discriminatória violadora da proibição de arbítrio.

Por último, diga-se que quanto à ofensa do princípio da liberdade de iniciativa económica, a apelante não desenvolve argumentos que sustentem essa ofensa. Nos termos do art. 61.º n.º 1 da CRP a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral. Nesta medida, a lei identificando um fundado interesse público a prosseguir com a acção em análise, não coloca em causa a liberdade em questão, antes procura um quadro de regulação e fiscalização do seu exercício.

De todo o modo, sobre questões colocadas pela apelante e que aqui tratámos, o Tribunal Constitucional já se manifestou em várias decisões recentes, não afirmando a inconstitucionalidade do regime da acção de reconhecimento da existência do contrato de trabalho – v. Acs. com os números 94/2015, de 3/2/2015, 204/2015, de 25/3/2015, e 228/2015, de 28/4/2015, os dois primeiros da segunda secção e o último da primeira secção, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

Concluímos, assim, pela improcedência do recurso no que toca às suscitadas questões de constitucionalidade.

B.3. Quanto à questão da não homologação da conciliação:

Como já se disse, no início da audiência de julgamento, na 1.ª instância, o mandatário da ré e a trabalhadora A... declararam que consideravam “estarem perante um contrato de prestação de serviços, estando assim conciliadas”.

A Srª juíza a quo decidiu não homologar a conciliação, considerando o interesse público subjacente à acção e a oposição do MºPº, o autor da acção.

A apelante, discordando dessa decisão, sustenta que foi violado o disposto no art. 186.º-O do CPT e que qualquer interpretação do n.º 1 no sentido de que “empregador” e “trabalhador” não se podem conciliar, reconhecendo que a relação jurídica entre eles existente configura um contrato de prestação de serviços, redundaria em atribuir a essa norma um sentido inconstitucional, por violação dos princípios da liberdade de escolha do género de trabalho e do direito de acção, bem como, noutro plano, o direito à liberdade de iniciativa económica.

Já acima deixámos expresso o nosso juízo quanto ao interesse público subjacente à acção e à não verificação da inconstitucionalidade, de novo aqui suscitada.

Por outro lado, conforme tem sido nosso entendimento, designadamente, no mais recente Acórdão desta Relação que acima indicámos, o mesmo interesse público que subjaz à acção gera a indisponibilidade para o trabalhador de validamente desistir do pedido ou transigir sobre o seu objecto, reconhecendo por exemplo que não se trata de contrato de trabalho a relação jurídica em apreciação.

Como se referiu naquele Acórdão, no que ao interesse e ordem pública diz respeito, nenhuma relevância, em termos de desfecho da acção, pode assumir uma conciliação daqueles tipos, dado que não são só os direitos de carácter privado do trabalhador que estão em causa. A admitir-se a possibilidade desses tipos de conciliação, facilmente se torneariam os objectivos prosseguidos pela lei, pondo unicamente nas mãos dos invocados trabalhador e empregador a sorte da acção e tornando inútil a acção do MºPº no sentido de se pretender apurar da existência, ou não, do contrato de trabalho.

Neste sentido, afirmam Viriato Reis e Diogo Ravara, - Reforma do Processo Civil e do Processo do Trabalho, in http:www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_IV_Novo%20_Processo_Civil_2edicao.pdf,  - que «estando em causa interesses de ordem pública na ARECT” se lhes afigura «que da conciliação prevista no art. 186º-O do CPT apenas pode resultar um acordo de “estrita legalidade”, à semelhança do que sucede no processo emergente de acidente de trabalho, não podendo relevar a eventual manifestação de vontade das partes contrária aos indícios de subordinação jurídica e, por isso, à verificação da presunção de laboralidade que motivaram a participação dos factos feita ao Ministério Público pela ACT e integram a causa de pedir invocada na petição inicial da acção». E acrescentam: “Sendo os factos de que se dispõe na acção até esse momento da tramitação processual os mesmos que a ACT havia apurado, enquanto indícios de subordinação jurídica, aquando da elaboração do auto previsto no nº 1 do art. 15º-A, do RPCLSS, a conciliação a realizar no processo judicial apenas pode ter como objectivo a “regularização do trabalhador (…)”.

Também, no mesmo sentido que sustentamos se pronunciaram os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 1083/14.1TTPNF.P1, de 17/12/2014, disponível in www.dgsi.pt, (de cujo sumário consta o seguinte: “O interesse público no combate aos falsos recibos verdes, que preside à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instituída pela Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto, implica a falta de legitimidade do trabalhador para desistir do pedido formulado na acção proposta pelo Ministério Público ou para acordar com o empregador que a relação contratual em causa não é de natureza laboral”) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/10/2014 (sumário: “Frustrada a tentativa de conciliação na audiência de partes e tendo a trabalhadora, no início do julgamento, confirmado a posição da demandada, segundo a qual ambas mantêm um verdadeiro contrato de prestação de serviços e que não pretende celebrar com a Ré qualquer contrato de trabalho, essa declaração exarada em Acta, face aos interesses de natureza pública que estão presentes na acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não retira o escopo ou utilidade à mesma, não constituindo aquela fundamento quer para a extinção da lide por inutilidade superveniente quer para a absolvição da instância, por falta de interesse em agir do Ministério Público”).

Assim, a nosso ver, não podia a Srª Juíza ter homologado a “conciliação”, a qual se traduz numa desistência do pedido pela invocada trabalhadora, como não o fez.

Improcede, assim, o recurso também nesta parte.

B.4. Quanto à decisão relativa à matéria de facto:

A apelante suscita nas conclusões do recurso a sua discordância quanto à decisão recorrida indicando que à mesma devem ser aditados os factos constantes dos artigos 17.º, 19.º a 21.º, 37.º, 39.º, 45.º, 59.º e 107.º da contestação. Por outro lado, sustenta aí que os pontos 9., 10., 11., 12., 14., 20., 25. da matéria de facto considerada como provada, devem ser considerados como não provados em parte. E que devem ser considerados como não provados os pontos de facto 21. e 22. Deve dizer-se que das alegações de recurso parece que a apelante impugna também a decisão quanto ao ponto de facto 16., mas não formula essa pretensão nas conclusões do recurso, pelo que, sendo as conclusões que delimitam o objecto do recurso, não será considerada essa específica impugnação.

O art. 640.º do actual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (aplicável ao presente recurso), dispõe que ao recorrente que pretenda impugnar a decisão relativa à matéria de facto incumbe, sob pena de rejeição, indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, bem como a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1). Mais estabelece que (n.º 2 al. a)) “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Percorrendo as alegações e conclusões do recurso para verificar se a apelante deu efectivo cumprimento a esses ónus, importa concluir que o fez suficientemente.

Cumpre referir desde já que, como tem entendido a nossa jurisprudência, maioritariamente, só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1.ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento, que não ocorrerá perante elementos de prova contraditórios, caso em que deverá prevalecer a resposta dada em 1.ª instância, no domínio da convicção que formou com fundamento no princípio da sua livre convicção e liberdade de julgamento.

Vejamos então ponto por ponto:

[…]

Em face de tudo o que fica dito é a seguinte a matéria de facto a considerar como provada, depois das alterações decididas:

[…]

B.5. Quanto à questão da qualificação do contrato:

Estava em causa indagação sobre a qualificação do acordo celebrado, entre a A... , como contrato de trabalho, tal como sustentou o Ministério Público. Já a ré defende que o contrato em causa era um contrato de prestação de serviço.

Conforme está provado, a relação contratual entre as partes iniciou-se em Setembro de 2013. Por isso, teve o seu começo na vigência do actual Código do Trabalho de 2009 e a questão da qualificação dos contratos deve ser aferida à luz do respectivo regime jurídico-laboral.
Na sentença recorrida, ponderou-se esse regime e, também, a presunção de laboralidade que decorre do estatuído no art. 12.º do Código do Trabalho de 2009, embora sem grande detalhe.
Sustenta a apelante que a dita presunção não pode operar no caso, uma vez que a mesma se destina a tutelar a posição do trabalhador e não a de outras entidades, como a ACT e o MºPº, as quais podem impulsionar procedimento contraordenacional
Brevemente, diremos o seguinte:
O presente processo não é um processo de natureza sancionatória, mas antes uma acção cível declarativa.
Tratando-se de apurar responsabilidade contraordenacional, em processo próprio com vista a aplicação de uma coima, concordamos que nesse processo, com estrutura acusatória, não pode operar a presunção de laboralidade ou qualquer outra, por qualquer que seja o meio, ainda que por via indirecta, como seria o caso de previamente o contrato de trabalho ter sido reconhecido numa acção especial como a presente, com fundamento na presunção, e depois esse mesmo reconhecimento ser invocado em processo contraordenacional.
Mas não é o caso da situação dos presentes autos. O Código do Trabalho não introduz distinção para a operação da presunção, consoante a parte que dela possa beneficiar, para afirmar as suas pretensões, seja o trabalhador ou um terceiro, designadamente um ente público.

Por outro lado, é justamente a verificação por um inspector do trabalho de uma situação de prestação de actividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho nos termos descritos no art. 12.º do Código do Trabalho que deve conduzir à elaboração de um auto de notícia que pode dar origem a uma acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, como a presente, nos termos do art. 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14/9, aditado pela Lei n.º 63/2013, de 27/8.
Daí resulta que se a instrução da acção, nos termos da lei, se baseia na verificação de características enunciadas na norma que estabelece a presunção, isso só pode significar que o legislador aponta, inequivocamente, para o funcionamento da presunção neste tipo de acção especial.
Por isso, na análise do caso dos autos importa, em primeiro ligar, verificar se as características do contrato que podem operar a presunção se verificam e, verificadas, determinar se pode considerar-se que a presunção é ilidida.

O n.º 1 do art. 12.º do CT/2009 elenca os índices de subordinação que, verificando-se, fazem presumir a existência de um contrato de trabalho. Como resulta do teor do seu corpo, é condição suficiente para operar a presunção da laboralidade a verificação de duas das características afirmadas na norma (o que se retira da expressão “se verifiquem algumas das seguintes características”, que induz – do plural usado - que não basta uma, sendo necessária a reunião de mais do que uma das características). A presunção é, contudo, ilidível, admitindo prova em contrário nos termos do art. 350.º, n.º 2, do Código Civil.

Assim, nos termos dessa norma presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;

c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;

e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

A presunção em causa visa concerteza facilitar a demonstração da existência de contrato de trabalho, em casos de dificuldade de qualificação, e tem a sua inspiração no chamado método indiciário usado na nossa jurisprudência para alcançar a qualificação do contrato [com o recurso a índices negociais internos – p. ex., o local da actividade pertencer ao beneficiário da mesma, ou ser por ele determinado; a existência de um horário de trabalho; a utilização de bens ou de utensílios fornecidos pelo beneficiário da actividade; a existência de uma remuneração certa, com aumento periódico; o pagamento de subsídio de férias e de Natal; a integração na organização produtiva, a submissão do prestador ao poder disciplinar - e externos - p. ex., a sindicalização do prestador da actividade, a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem e a exclusividade da actividade a favor do beneficiário]. Mas, diversamente desse método indiciário, que determinava a busca de um numeroso e convincente conjunto de indícios, a presunção prevista no art. 12.º do Código do Trabalho basta-se, como dissemos, com a verificação de dois dos indícios/características apontados.

Como se afirmou nos Acórdãos desta Relação de 10-07-2013 (relatado pelo presente relator) e de 26-09-2014 (relator: Ramalho Pinto), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, a verificação de duas dessas características têm, apesar de tudo, de ser enquadrada num ambiente contratual genético e de execução que permita dúvidas consistentes sobre a qualificação. Só assim a presunção revestirá uma operação útil. Noutra perspectiva que parta do fim do percurso da indagação para o seu princípio, o resultado será afinal o mesmo, já que não se verificando aquele ambiente então terá de se considerar ilidida a presunção.

Como se sabe, de acordo com o Código do Trabalho, “[c]ontrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas” (art. 11.º do Código do Trabalho e, também no mesmo sentido o art. 1152.º do Código Civil). Já o “[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que umas das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”, se acordo com o art. 1154.º do Código Civil.

Ou seja, no contrato de trabalho é a actividade do trabalhador que é adquirida pelo outro contratante que a organiza e dirige com vista à obtenção de um resultado para além do contrato. Ao invés, na prestação de serviço o que a outra parte adquire é o resultado de uma actividade

No caso concreto, os factos revelam que a vontade das partes na génese da relação terá sido a celebração de um contrato intitulado de “prestação de serviço” (portanto, não de um contrato de trabalho) e de acordo com o facto 6.. Este facto não pode ser desvalorizado, sobretudo tendo em conta que essa vontade não foi contrariada pela alegada trabalhadora na acção. Contudo, importa também como dissemos avaliar o ambiente de execução do contrato para saber se ele é geneticamente compatível com a designação dada ao contrato escrito firmado entre as partes.

Ora, na execução, podemos verificar que a prestação da autora estava inserida numa organização da ré (exploração do Centro de Atendimento do SNS – Linha de Saúde 24) e era feita mediante retribuição. Mas ficam-nos dúvidas sobre qual o real objecto da prestação, sendo certo que no contrato escrito ficou estabelecido que a alegada trabalhadores se “comprometia” “a prestar a sua actividade profissional de enfermagem, na Linha de Saúde 24, praticando actos de triagem, aconselhamento e encaminhamento dos utentes”. Com efeito, neste ponto (embora seja verdade que, na medida em que toda a actividade conduz a um resultado, nem sempre é fácil discernir qual a natureza da prestação) podemos afirmar, da matéria de facto provada, que o objecto da prestação era a actividade de “triagem, aconselhamento e encaminhamento dos utentes”, mas também podemos afirmar que tal objecto era o resultado dessa actividade, uma vez que a ele correspondia a específica forma de remuneração acordada – pagamento por hora efectivamente “realizada” (facto 17. - como contrapartida da actividade prestada, a enfermeira recebe uma remuneração calculada com base no valor de € 8,75/hora por cada hora de serviço efectivamente prestado, acrescida do valor do escalão em que está integrada) e não se observa que houvesse obrigação contratual de prestação de um número mínimo de horas. Ou seja, não é possível intuir desde logo que era a disponibilidade organizada da autora (a actividade) que era solicitada na prestação ou, antes, um resultado concreto.

Devemos concluir, contudo, que o ambiente contratual de execução permite dúvidas sobre a qualificação do contrato, sem que se possa concluir desde logo por uma forte aproximação à figura do contrato de trabalho.

Resta saber se a dúvida pode e deve ser resolvida pela indagação das características enunciadas no art. 12.º n.º 1 do Código do Trabalho, averiguando se opera a presunção de laboralidade.

Vejamos então da verificação de cada uma das características em causa:

No que toca à primeira enunciada na norma em causa, na alínea a) (a da actividade ser realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado), a apelante, no recurso, procura sustentar que em face do tipo de “negócio” a prestação da enfermeira teria de ser realizada necessariamente nas instalações do Centro de Atendimento, pois de outro modo ficaria inviabilizada a sua prestação, já que não seria viável conferir ao prestador a escolha do local da prestação.

Este argumento seria, porém, de ponderar se estivéssemos num exercício de indagação do método indiciário a que acima fizemos referência. Ou seja, não podendo restar dúvidas que o local de prestação da actividade foi determinado pela ré, a circunstância de ele ser absolutamente necessário em função da natureza da prestação a que o beneficiário da actividade estava vinculado para com terceiro, poderia enfraquecer o indício de laboralidade respectivo e conduzir à sua desconsideração no confronto com outras realidades de execução.

Mas já dissemos que aqui se trata, não de apurar a consistência indiciária, mas tão só de averiguar se ocorrem características que possam funcionar a presunção prevista no n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho. Ora, a característica de determinação pela ré do local da prestação da actividade não deixa de ocorrer por tal ser necessário à execução dos serviços que a ré presta. Essa era uma condição de exercício contratual, é certo, mas é, em termos práticos, uma condição em tudo equivalente a uma situação de realização necessária da actividade em local pertencente à ré. Ou seja, a prestadora da actividade não tinha liberdade de exercício em local por si escolhido.

Isto é, consideramos que, objectivamente, a característica enunciada na al. a) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho está verificada.

Em segundo lugar, no que toca à segunda característica enunciada na norma em causa, na alínea b) (os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencerem ao beneficiário da actividade) está provado que (facto 8.) a enfermeira utiliza os equipamentos e instrumentos pertencentes à beneficiária da actividade, ora ré, que lhe são por esta disponibilizados, tais como “Thinclient´s ou mini-computador, monitor, teclado, rato, software informático CAS – Clinical Assessment System, intranet, telefone fixo, headsets, cadeira, secretária e guia de comunicação multi-línguas. Mas também está provado que (facto 31.) por razões de confidencialidade dos dados, a enfermeira-comunicadora tem de exercer a sua actividade com recurso aos serviços de equipamento, designadamente informáticos, pertencentes à Ré, nos Centros de Atendimento da Ré sitos em Lisboa e Porto e que (facto 32.) estes equipamentos possuem características técnicas necessárias para garantir a uniformidade e qualidade do serviço aos utilizadores da Linha de Saúde 24, a saber (i) integração num sistema informático de armazenamento de dados, com especificações de programas de elevada dimensão e complexidade e (ii) integração funcional de sistemas de comunicação (telefone, Thin Clients e headsets), que (facto 32-A.) o computador central que faz parte desses equipamentos guarda informação confidencial e sensível, nomeadamente dados pessoais e de saúde dos utentes do Serviço Nacional de Saúde, que (facto 32-B.) por razões relacionadas com a complexidade do sistema informático utilizado e necessidade de garantia de segurança e confidencialidade dos dados, não é possível a utilização pelos enfermeiros comunicadores de equipamentos próprios, designadamente informáticos, para a prestação do serviço à Ré.

Ou seja, percebe-se que as mesmas razões que levaram à determinação da prestação em local pertencente à ré, são as mesmas que levaram à determinação do uso dos equipamentos em questão. Repete-se, ficou provado que por razões de confidencialidade dos dados, a enfermeira-comunicadora tem de exercer a sua actividade com recurso aos serviços de equipamento, designadamente informáticos, pertencentes à Ré, nos Centros de Atendimento da Ré sitos e Lisboa e Porto. Ou seja, o “local de trabalho” era determinado por causa das instalações e equipamentos que necessariamente tinham de ser usados. Não podiam ser outros, instalações e equipamentos, dada a sua ligação e especial complexidade, confundindo-se os mesmos numa mesma realidade operativa. Nesta situação como já decidimos no Acórdão desta Relação de 13-02-2015, no proc. 182/14.4TTGRD.C1 (in www.dgsi.pt), confundindo-se essa realidade de meios operativos com o local de trabalho não pode, a nosso ver, servir para integrar simultaneamente a característica da alínea a) e da alínea b) do n.º 1 do art. 12.º, devendo considerar-se consumida essa circunstância na característica da al. a) que já considerámos verificada.

Deste modo não podemos considerar verificada a característica enunciada na al. b) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho.

Em terceiro lugar, cumpre averiguar da existência da característica da al. c) do n.º 1 do art. 12.º c) (a do prestador de actividade observar horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma).

Ora, neste ponto provou-se (facto 9.) que a enfermeira desempenhava as funções com observância de horas de início e termo da prestação, mediante escala de serviço elaborada mensalmente pela ré com o início e termo de cada um dos turnos e com a distribuição dos enfermeiros pelos diversos turnos do mês e que essa escala de serviço é disponibilizada à Enfermeira via intranet e com um mês de antecedência (facto 10.). Mas também se provou que (facto 36-A.) a enfermeira – assim como os restantes enfermeiros comunicadores – informa antecipadamente a ré das suas indisponibilidades para a prestação dos serviços contratados e, bem assim, do período temporal (i.e., manhã, tarde ou noite) em que pretende prestar os aludidos serviços, de acordo com a sua conveniência pessoal e profissional, sendo (facto 36-B.) as escalas geradas automaticamente pelo sistema informático. E que, assim sendo elaboradas as escalas, levando em conta as disponibilidades (v. facto 36.), ainda assim (facto 11.) posteriormente, caso não tenha disponibilidade, a enfermeira pode trocar os turnos com outro “prestador” já vinculado à ré para o desempenho do mesmo serviço e (facto 37.) a enfermeira efectua trocas com colegas, substituindo-os ou fazendo-se substituir na actividade que exerce para a ré, faltando nalgumas ocasiões ou informando previamente da sua indisponibilidade. A troca com colega ou a sua substituição por este não carece de autorização da ré ou da apresentação de qualquer justificação para o efeito  e sucede por vezes que o enfermeiro que comparece nas instalações da ré é distinto daquele a quem o mesmo estava adjudicado, podendo ocorrer que a ré não seja previamente informada dessa alteração (factos 37-A. e 38.).

Não se provou, portanto, que no caso a prestadora de actividade observasse horas de início e de termo da prestação, determinada pela ré, mas tão só que, consoante a sua disponibilidade - ou seja, de acordo com o tempo que declarou poder prestar  – cumpre um “horário” e ainda assim pode fazer substituir-se livremente ou pode faltar se justificação (facto 40.)

A existência deste “horário” livre não é, assim, confundível com um horário de início e termo da actividade em que o trabalhador tenha que sujeitar a sua disponibilidade ao beneficiário da actividade, como é próprio num contrato de trabalho – disponibilidade essa independente de haver ou não trabalho a realizar.

É certo que se provou que (facto 15.) no desempenho das funções, durante o tempo da prestação da actividade, a trabalhadora tem intervalos de descanso, com duração pré-determinada pela ré, a qual corresponde a 15 minutos, 30 minutos ou 60 minutos, consoante o turno praticado, seja de 4 horas, de 6 horas ou de 7 horas e que (facto 16.) o momento exacto em que a trabalhadora usufrui desses intervalos de descanso depende de prévia comunicação e autorização do supervisor ou responsável de turno designado, e bem assim, do fluxo de chamadas. No entanto, os intervalos aqui determinados pela ré, inserem-se já no âmbito da prestação dos actos de atendimento pela enfermeira, compreendendo-se a regulamentação dos intervalos.

Nos termos do n.º 1 do artigo 200.º do Código do Trabalho, “entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal”.
A enfermeira tinha liberdade de determinar os tempos em que exercia a sua actividade profissional em benefício da ré, em função da sua disponibilidade e podia fazer-se substituir quando já organizadas as escalas de serviço. Apenas não teria quanto aos intervalos de descanso, por razões funcionais do serviço de atendimento em que operava, mas não pode dizer-se que se encontrasse submetida a um “horário de trabalho”, uma vez que este acabava por estar na sua disponibilidade, podendo determiná-lo dentro das escalas de serviço organizadas e incumprindo-o quando era do seu interesse.

Deste modo, entendemos que não está verificada a característica enunciada na al. c) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho.

Em quarto lugar, também temos de considerar que não se verifica a existência da característica elencada na al. d) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho – o pagamento, com determinada periodicidade, de quantia certa ao prestador da actividade, como contrapartida desta.

O que tão só ficou provado no que toca à remuneração da prestadora da actividade foi que (facto 17. e 18.), como contrapartida da actividade prestada, a enfermeira recebe uma remuneração calculada com base no valor de € 8,75/hora por cada hora de serviço efectivamente prestado, acrescida do valor do escalão em que está integrada e recebe ainda acréscimos percentuais ao valor hora supra indicado, consoante os turnos efectuados, designado internamente por índices das horas de qualidade nos seguintes termos: 25% no caso de trabalho prestado em dias úteis a partir das 20horas até às 24 horas e aos fins de semana e feriados das 8horas às 20horas; 50% para trabalho prestado em dias úteis das 24horas e às 8horas e aos fins de semana e feriados das 20horas às 24horas; 100% aos fins de semana e feriados das 24horas às 8horas. E ainda que (facto 20.) a retribuição é paga habitualmente à enfermeira com a periodicidade mensal, por transferência bancária.

Provou-se a periodicidade habitual do pagamento (mensal), mas não se provou que com a mesma periodicidade o pagamento fosse em quantia certa (todos os meses). De acordo com o facto 19., o resultado do somatório dos tempos de actividade prestada em todos os turnos praticados pela enfermeira em cada mês, com os eventuais acréscimos percentuais acima indicados, são calculados a partir dos seus registos de logon e logoff no sistema informático, o que induz mesmo que o pagamento mensal não fosse feito em quantia certa.

 Finalmente, não se verifica de todo a existência da característica elencada na al. e) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho, ou seja a de que o prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

Significa tudo isto que, em nosso entender, apenas está apurada uma das características elencadas no n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho, pelo que, sendo necessárias pelo menos duas, tal não é suficiente para fazer funcionar a presunção de laboralidade.

Noutra perspectiva, recorrendo ao método tipológico jurisprudencialmente aceite e a que já acima nos referimos, podemos concluir que os chamados “indícios negociais externos” não ocorrem quanto à perspectiva da laboralidade do contrato. Não se verifica-se a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem (facto 29.) e não ocorre exclusividade da actividade a favor do beneficiário (facto 23.).

Quanto aos demais:

A forma de retribuição praticada, temos que convir, não é a usual no contrato de trabalho. Ela foi fixada em função das horas de serviço efectivamente “realizadas” e os montantes mensais auferidos seriam desiguais. Por outro lado, não eram pagos subsídios de férias ou de Natal (facto 42.), como também é próprio daquele tipo de contrato, nem a prestadora estava abrangida por regime previdencial laboral (facto 29.).

Quanto ao nível de integração na organização da ré e que permita concluir que de algum modo esta orientava a sua actividade em si mesma:
O empregador laboral tem os poderes determinativo e conformativo da prestação de trabalho, quer atribuindo uma função geral ao trabalhador na empresa, quer determinando-lhe concreta operações executivas, correspondendo a esses poderes os poderes regulamentar e disciplinar. Como se refere no Ac. do STJ de 19-05-2010, entre outros, (disponível em www.dgsi.pt, proc. 295/07.9TTPRT.S1), “a subordinação traduz-se na possibilidade de a entidade patronal orientar e dirigir a actividade laboral em si mesma e ou dar instruções ao próprio trabalhador com vista à prossecução dos fins a atingir com a actividade deste, e deduz-se de factos indiciários, todos a apreciar em concreto e na sua interdependência, sendo os mais significativos: a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; o local de trabalho situar-se nas instalações do empregador ou onde ele determinar; existência de controlo do modo da prestação do trabalho; obediência às ordens e sujeição à disciplina imposta pelo empregador; propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador; retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês; exclusividade de prestação do trabalho a uma única entidade”.

Ora, seguindo essa avaliação, verificamos que não se retira da matéria de facto que a prestadora da actividade tinha horário de trabalho estabelecido de forma pré-definida para um largo e estável período de prestação, como é normal nos contratos de trabalho. A fixação dos tempos de trabalho era fixada pela ré dentro de um quadro de disponibilidade manifestada pela prestadora. A ré controlava (facto 14.) as horas de início e termo da prestação da actividade através de um registo de logon e logoff no sistema informático, mas não se provou que a enfermeira tivesse de justificar as faltas, antes a isso não estava obrigada, sendo aquele controlo de horas efectuado para conhecimento do número de horas prestadas para efeito de apuramento do valor devido à enfermeira (facto 40.).
No que toca ao local do trabalho e equipamentos de trabalho, sendo normalmente este um indício muito relevante na busca da laboralidade de um contrato, no caso dos autos a natureza da prestação assim o exigia pelos motivos que já indicámos, sendo assim compatível com o interesse do utilizador prestador da actividade/serviço, tendo o atendimento prestado de ser assegurado em instalações e com equipamentos específicos, complexos e apropriados para o efeito.
Quanto ao controlo do modo de prestação do trabalho:

Provou-se (facto 25.) que no atendimento telefónico a enfermeira obedece a procedimentos/instruções obrigatórias de trabalho, devendo respeitar técnicas de comunicação e scripts específicos e executar uma sequência de perguntas estruturadas incluindo, entre outros procedimentos, a recorrer ao teleguia de algoritmos, essencial no desempenho das suas funções e (facto 26.) está sujeita a um sistema de avaliação de desempenho trimestral (Sistema de avaliação de Desempenho - SAD) que resulta da média ponderada da avaliação mensal de três chamadas. Mas também se provou que (facto 43.) as orientações ou procedimentos técnicos recebidos, geralmente emanados da Direcção Geral de Saúde, têm em vista a garantir e uniformizar a qualidade dos cuidados de saúde prestados aos utentes da Linha e que (facto 44.) o manuseamento do algoritmo implica conhecimentos específicos de profissional de saúde, nomeadamente enfermeiro, competindo-lhe escolher, de entre os existentes, o adequado a cada situação, podendo alterar a disposição final do algoritmo clínico, tendo em conta a avaliação da situação do utente, o que revela autonomia de execução. Tratando-se de um quadro de procedimentos técnicos pré-determinados com vista a um resultado, não são incompatíveis com a figura de contrato de prestação de serviço.

Provou-se também que a ré aplica sistema de incentivos ou prémios em função do resultado da avaliação da qualidade da actividade exercida junto dos utentes do Centro de Atendimento do SNS, traduzidos num incremento do valor pago aplicável no trimestre seguinte ao da avaliação em causa. Mas os prémios também não são incompatíveis com o de contrato de prestação de serviço, podendo facilmente conceber-se nele um sistema de avaliação de resultados que sirva para premiar e incentivar o prestador a melhores resultados.
No que toca a ordens específica e concretas da ré, durante a execução do quadro procedimental genérico estabelecido, nada de concreto está provado, tendo em vista observar qualquer exercício de poder de direcção ou disciplinar próprio de um contrato de trabalho.
Ou seja, pelo uso do referido método indiciário (que não o inerente à ponderação da presunção do art. 12.º do Código do Trabalho que, como dissemos, no caso não opera), não identificamos um balanço de indícios favoráveis à laboralidade do contrato que permita concluir com segurança pela qualificação do contrato como contrato de trabalho.

E, assim sendo e diversamente do juízo expresso na sentença recorrida, não é possível concluir-se pela qualificação do contrato como contrato de trabalho.

Deste modo, a apelação da ré tem de proceder.


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III- DECISÃO

Termos em que se delibera julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a ré do pedido de reconhecimento da existência de contrato de trabalho com A... .

Sem custas na acção e no recurso, estando delas isento o Ministério Público (art. 4.º n.º 1 al. a) do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique-se e proceda-se à comunicação indicada no art. 186.º-O n.º 9 do CPTrabalho.


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(Azevedo Mendes - Relator)

(Felizardo Paiva)

(Jorge Loureiro)