Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1846/12.2TBFIG-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: MASSA INSOLVENTE
PATROCÍNIO JUDICIÁRIO
CONTRA-ALEGAÇÃO DE RECURSO
PAGAMENTO DOS HONORÁRIOS
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 51.º E 55.º, N.ºS 2 E 3, DO CIRE, 40.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 20.º, N.º 4, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I – Quando não ocorra imposição legal de patrocínio judiciário na esfera da insolvência, a conveniência de tal patrocínio para os interesses da massa não dispensa o administrador de insolvência de obter a prévia concordância da comissão de credores, ou do juiz, na falta dessa comissão.

II – A decisão quanto à apresentação de contra-alegação em recurso, referente à pretensão de que determinadas dívidas reclamadas pela autoridade tributária sejam consideradas dívidas da massa, integra-se no âmbito do poder discricionário do administrador judicial.

III – Assim, sendo obrigatória a constituição de mandatário nos recursos, não pode o tribunal recusar o pagamento dos honorários ao advogado constituído para tal efeito, com fundamento em que se tratou de um ato desnecessário.

Decisão Texto Integral:
Processo nº 1846/12.2TBFIG-J.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de insolvência respeitantes a F..., Lda.,

após a apresentação das contas da administração e respetivo julgamento, o Administrador da insolvência veio apresentar, no âmbito do processo principal, dois aditamentos às contas;

posteriormente, quando notificado pela secretaria para indicar o saldo disponível para a realização do rateio final, indicou despesas de honorários com advogado no valor de € 7.297,08, não incluídas nas contas aprovadas nem nas contas adicionais.

A fim de sindicar estas novas despesas, e ao abrigo dos poderes de gestão processual, determinou-se que os credores e o Ministério Público fossem ouvidos sobre os aditamentos apresentados e sobre a despesa de honorários.

Os credores, notificados, nada disseram.

Tendo tido vista nos autos, o Ministério Público promoveu que se notificasse o Sr. Administrador para esclarecer o motivo pelo qual foram omitidas nas contas inicialmente apresentadas as despesas relativas a honorários com advogado, omissão esta que se manteve nos 1.o e 2.o aditamentos às contas.

O Sr. Administrador Judicial veio identificar os processos nos quais o mandatário da massa prestou serviços, referir que não obteve autorização da comissão de credores para a sua contratação, defender que esta contratação não estava sujeita a autorização prévia e que, de todo o modo, a sua intervenção visou os interesses patrimoniais da massa, refletiu atos essenciais ao processo e foram praticados em processos em que a constituição de mandatário era obrigatória. Concluiu pedindo que as contas adicionais fossem aprovadas.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido da não aprovação da dita despesa, por considerar que a mesma deveria ter sido objeto de autorização prévia, e acrescentando que o administrador não explicou porque só agora indicou tal despesa.

Pelo Juiz a quo proferido Despacho a aprovar os 1º e 2ºs aditamentos às contas da insolvência apresentadas pelo Sr. Administrador da insolvência e as despesas descriminadas nos requerimentos de 22.10.2021 e 08.11.2022, com exceção das despesas de honorários do mandatário constituído pelo Sr. Administrador da insolvência, no valor de € 7.297,80, que se não validam.


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Inconformado com tal decisão, o Administrador da Insolvência dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1. A douta sentença em recurso enferma de nulidade pois viola o disposto no artigo 615./1, c) do CPC.

2. A sentença em recurso, ao longo do dispositivo, conclui que o patrocínio em recurso era de constituição obrigatória de mandatário.

3. Conclui, no entanto a final, que não era preciso contratar mandatário por um juízo de mera oportunidade.

4. A fundamentação é totalmente contraditória com o sentido decisório pelo que se verifica a apontada nulidade.

5. Em qualquer caso, a lei não faz depender a intervenção processual de um juízo de oportunidade, mas sim da vontade da parte de se poder em pronunciar em Tribunal sobre uma questão que lhe diz respeito (artigo 3º do CPC), de estar representada por um jurista em igualdade de partes com a parte contrária (in casu o MP estava representado por uma ilustre Procuradora-Adjunta, também ela licenciada em Direito como o mandatário da MI (artigo 4o do CPC) e, dadas as questões suscitadas e nos Tribunais concretos em que o foram, a parte tinha de ser necessariamente representada por advogado (artigo 40º do CPC).

6. A lei exige ao permitir a todo e qualquer interessado poder participar em processos que lhe digam respeito e, para tal, tem de estar representado por advogado como, ademais, a intervenção do mandatário não foi tão inócua como se pretendeu inculcar: basta atentar nas contra-alegações de recurso para o Venerando STJ em que suscita a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, circunstancialismo que veio a ser acolhido pelo Supremo Tribunal.

7. Era obrigatória a contratação de um mandatário para poder intervir no processo, pelo que a decisão em recurso neste aspeto encontra-se fulminada de nulidade: discorre-se (e conclui- se) pela obrigatoriedade de constituição do advogado, mas, a final, conclui-se que não devia ter sido contratado mandatário; ou seja, existe uma manifesta contradição entre os fundamentos e o sentido decisório.

8. A tempestividade da nota de honorários deduz-se da própria matéria de facto dada como provada: o MP interpôs recurso de apelação de um despacho em 11.12.2020, recurso esse que chegou ao STJ e cuja decisão foi notificada em Maio de 2021. Ora, o recorrente apresentou as contas em 03.10.2019 e o aditamento em 15.06.2020, pelo que o trabalho do mandatário da MI ainda não estava findo, não sendo consequentemente possível apresentar a nota de honorários em momento prévio.

9. Se a arguição da invocada nulidade improceder, sempre entende o recorrente que nesta parte – a dos trabalhos prestados pelo mandatário a partir de 14.10.2020 – a sentença enferma de erro de julgamento, o que cautelar e subsidiariamente se aduz.

10. Resulta demonstrado que o MP suscitou uma questão assaz complexa e que o recorrente decidiu contratar um profissional especializado para curar de responder aos interesses de um único credor que, a proceder a sua tese, prejudicaria todos os outros (recorde-se que o MP queria que um elevado número de certidões fiscais fossem tratadas automaticamente como constituindo dívidas da MI).

11. Estando o MP representado por um licenciado em direito, a MI tinha igual direito (concita-se novamente o artigo 4o do CPC), sendo que em sede recursiva, tal constituição até é obrigatória (artigo 40º do CPC).

12. Ora, a sentença em recurso ao não validar as contas referindo que “o AI não justificou, em concreto, a não solicitação da prévia concordância e a necessidade e a adequação das mesmas (...), considera-se que as despesas relativas à contratação do advogado da massa insolvente não podem ser aprovadas”, incorre em erro de julgamento, e consequente vício de violação de lei, pois fez uma deficiente interpretação das normas invocadas no número antecedente, impondo-se a revogação da sentença em recurso e a prolação de uma nova decisão em que se validem as contas relativas aos trabalhos prestados pelo mandatário a partir de 14.10.2020.

13. Já quanto à deficiente interpretação do artigo 55º/3 do CIRE impõe-se dizer que o Tribunal a quo, para além do já retro invocado, decidiu que a constituição de mandatário para apresentar e acompanhar as queixas crimes implicavam a autorização da Comissão de Credores.

14. Foi apresentada a competente Nota de Honorários que – crê-se – obedece aos ditames do EOA, mormente ao artigo 100o.

15. Aos Administradores Judiciais são confiadas as funções definidas no artigo 55o CIRE e que visam garantir a defesa dos interesses patrimoniais da Massa e o interesse ressarcitório do quorum creditício.

16. Com efeito, o AI não pode – ou pelo menos e à semelhança dos causídicos, não deve - advogar em representação própria ou da Massa.

17. Desde logo, por determinação legal, não é exigível, nem consta como requisito legislativo, que os Administradores Judicias sejam licenciados em Direito, podendo ter formação noutras áreas de conhecimento com igual valorização para os processos de insolvência, mormente economia.

18. Por outro lado, mesmo sendo licenciado em direito, não significa ipso facto que seja advogado; e mesmo sendo jurista e advogado, o distanciamento, objetividade e discernimento exigíveis no mandato judicial, não aconselham a defesa da própria causa.

19. No âmbito de mandato forense, no nome e em interesse da Massa, foram praticados atos que se circunscrevem a quatro processos como melhor descrito na nota de honorários apresentada.

20. O processo nº 644/13.... teve origem na queixa-crime através da qual foi formalmente prestada notícia da prática dos ilícitos de insolvência dolosa p.p. pelo artigo 227o do Código Penal bem como o de favorecimento de credores agravado (artigo 229o ex. vi artigo 229o-A do Código Penal).

21. Impunha-se a rigorosa descrição dos factos, verificação do preenchimento do tipo legal e correto enquadramento do tipo de ilícito, nomeadamente a sua imputação. O facto da queixa ter sido assinada pelo recorrente, apenas decorre da vontade deste tanto, mas para que não subsistam dúvidas, a queixa foi elaborada pelo mandatário a pedido do recorrente e no interesse da MI.

22. No que concerne aos autos principais de insolvência, o mandatário foi contactado a partir de 03.12.2019 (como também decorre da nota de honorários) para auxiliar o recorrente na tomada de posição e respostas a prestar ao acervo de questões de natureza fiscal (e processual) suscitadas pelo MP.

23. O AI é investido de poderes e competências próprias, mas também sujeito à correspondente responsabilização pelos atos (praticados ou omitidos) que possam corresponder a um prejuízo da Massa e dos Credores.

24. A atuação do AI, a ser diversa, poderia ainda resvalar para a sua responsabilidade pessoal, quer a nível do regime insolvencial, quadro disciplinar ou responsabilidade extracontratual.

25. O Tribunal a quo ao considerar injustificada a contratação, sem mais, de mandatário incorre em erro de julgamento.

26. Ensinam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda que “O Administrador Judicial não está vinculado à previa decisão da comissão de credores para a escolha de mandatário judicial, nem se quer à sua concordância”, mais explicitando ainda que a eventual consulta àquele órgão sempre será a “título indicativo”. – cf Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3a Edição que é corroborado por vasta jurisprudência elencada na parte expositiva das presente.

27. É pois coincidente todo o entendimento que se vem invocando que, à presente data, não só o recurso a serviços de advocacia se deve ter por justificado, como a constituição de mandato forense não depende da aprovação da comissão de credores ou, na sua ausência, do Juiz.

28. Invocam-se ainda os interesses dos credores e a legalidade patente nas contas apresentadas, e que se vê corroborada pela ausência de qualquer oposição dos Credores, sendo que a tarefa do Juiz se deve circunscrever à apreciação da legalidade, e não formular juízos de oportunidade ou conveniência, cabendo tal papel aos credores.

29. Dest'arte, e em consequência do ora explanado, sob pena de violação dos artigos 615o/1, c) do CPC, bem como dos artigos 3o, 4o e 40o do CPC e 55o/3 do CIRE, deve o presente recurso ser procedente e, em consequência, ser julgada nula a sentença em recurso e ser proferida decisão ao abrigo do artigo 665o/1 do CPC que julgue as contas validamente prestadas, no período de pelo menos desde 14.10.2020.

Quando assim não se entenda, o que apenas se concede em tese académica,

30. deve a Sentença de Aprovação parcial das Contas de Administração (Ref.aCitius..., ser revogada na parte em que determina não validar as contas referentes às despesas em que incorreu a MI com a contratação de mandatário, e, em consequência, serem aprovadas integralmente as contas apresentadas, admitindo-se a despesa inscrita com honorários do I. Mandatário da Massa Insolvente no valor de €7.297,80.


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Pelo Ministério Publico foram apresentadas contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº1, al. c), CPC
2. Se as despesas respeitantes à contratação de advogado não podem ser aprovadas por carecerem da prévia concordância e necessidade e adequação das mesmas:
2.a. Despesas com a contratação de advogado no processo de inquérito originado por participações criminais;
2.b. Despesas com a contratação de advogado para intervir no recurso interposto pelo Ministério Publico do despacho que indeferiu o pedido de classificação de determinadas dívidas da massa insolvente.
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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A decisão recorrida veio a indeferir o pedido de aprovação de contas quanto às despesas atinentes a honorários de advogado, indicada pelo Sr. Administrador Judicial, no montante global de € 7.297,80, com fundamento em que o Sr. Administrador da insolvência não obteve nem pediu, autorização da comissão de credores para contratar o referido advogado, explanando o seu raciocínio pela seguinte forma:

“Nos termos do art. 55.o, n.o 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sem prejuízo dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário ou de necessidade de prévia concordância da comissão de credores, o administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo, podendo substabelecer, por escrito, a prática de atos concretos em administrador da insolvência com inscrição em vigor nas listas oficiais.

O art. 55.o, n.o 3, por seu turno, dispõe que o administrador da insolvência, no exercício das respetivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão.

Daqui resulta que a constituição pelo administrador da insolvência de mandatário judicial para representar a massa insolvente nos casos em que o patrocínio é obrigatório, contemplado no n.o 2 do art. 55.o, não carece de prévia autorização do juiz ou da comissão, quando exista (assim, o Ac. do TRE de 24.10.2019, proc. n.o 1146/08.2TBELV-AO.E1). Ao invés, não sendo o patrocínio judiciário obrigatório, a contratação de mandatário judicial estará sujeita a autorização do juiz ou da comissão.

Acrescenta-se que a necessidade de prévia concordância exclui a aprovação tácita, não relevando a ausência de reação dos credores ou do tribunal à comunicação da intervenção de técnicos ou auxiliares pelo administrador da insolvência (Ac. do TRL de 22.09.2020, proc. n.o 109/14.3T8VFX-D.L1-1).

O advogado da massa insolvente terá sido contratado para acompanhar processo de inquérito originado por participações criminais apresentadas pelo Administrador da insolvência e para responder a recurso intentado pelo Ministério Público, relativo a despacho que indeferiu o pedido de classificação de determinadas dívidas da massa insolvente.

Ao contrário do que entende o Sr. Administrador, em nenhum dos casos se mostrava obrigatória a constituição de advogado.

Com efeito, a promoção de procedimento criminal por crime público ou semipúblico não requer a prévia constituição de mandatário (cfr. o art. 49.o, n.o 3, do Código de Processo Penal). E, tanto quanto resulta dos autos, não terá sido outorgada procuração forense ao advogado em causa, seja para apresentar a queixa, seja para a prática de qualquer outro ato no inquérito, que terminou com o respetivo arquivamento.

Acrescenta-se ainda que os honorários relativos ao acompanhamento do procedimento criminal não foram incluídos nas (primeiras) contas da administração, apesar de respeitarem a serviço exclusivamente prestado antes destas. Sendo que, apesar de convidado para o efeito, o Sr. Administrador não justificou tal omissão, que se mostra incompreensível.

No que concerne aos honorários relativos ao recurso interposto pelo Ministério Público, dir-se-á que, apesar de a constituição de mandatário ser obrigatória para a apresentação de contra-alegações por parte do Sr. Administrador da insolvência, atento o disposto no art. 40.o, n.o 1, al. c), do Código de Processo Civil, tal intervenção não era necessária para defesa dos interesses da massa. Isto porque a resposta a um recurso não é um ónus, mas uma mera faculdade da parte, à qual não é assacada qualquer consequência se optar por não responder a recurso de decisão que lhe seja favorável, e cuja manutenção pretenda.

“Repare-se que, ao invés da falta de alegações, a falta de apresentação de contra-alegações não determina qualquer efeito processual imediato, como o que, por exemplo, decorre da ausência de contestação. Não há em sede de recurso revelia operante nem que no concerne à matéria de direito, nem no que respeita à matéria de facto. Em qualquer caso, haja ou não contra-alegações, cumprirá ao tribunal superior decidir com base nos argumentos de facto e de direito suscitados pelo recorrente e naqueles que sejam de apreciação oficiosa, em que, por exemplo, seja legítimo atribuir à falta de contra-alegações o significado de concordância com a argumentação ou com a pretensão do recorrente” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, 2007, pág. 115).

Não se quer com isto dizer que ao Sr. Administrador era vedada a contratação de advogado para intervir no recurso: apenas se julga que, não sendo esta intervenção obrigatória, deveria ter obtido a prévia autorização da comissão de credores para contratar mandatário para o efeito.

Por fim, salienta-se que a Lei n.o 9/2022, de 11 de janeiro, alterou a redação do art. 55.o do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, eliminando a ressalva dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário do n.o 2 e aditando ao n.o 3 a menção à coadjuvação por advogados como uma das hipóteses de necessidade de prévia concordância da comissão de credores ou do juiz. Do que resulta que, a partir da entrada em vigor deste diploma, que ocorrerá no próximo dia 11 de abril, a contratação de advogado por parte do administrador da insolvência estará sempre sujeita àquela prévia concordância, independentemente de se tratar uma hipótese de patrocínio judiciário obrigatório.

Deste modo, e considerando ainda que o Administrador da insolvência não justificou, em concreto, a não solicitação da prévia concordância e a necessidade e adequação das mesmas (cfr. o Ac. do TRP de 05.11.2020, proc. n.o 268/12.0T2AVR-J.P1, e o Ac. do TRL de 22.10.2020, proc. n.o 109/14.3T8VFX-D.L1-1), considera-se que as despesas relativas à contratação do advogado da massa insolvente não podem ser aprovadas.”

O Apelante invoca a nulidade de tal decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos da al. c), do nº1, artigo 615º, CPC, na parte em que considera, relativamente à contratação de advogado para intervir na instância de recurso, que, por um lado, a contratação de advogado era obrigatória, mas, afinal, não era necessária a contratação de advogado por um juízo de mera oportunidade.

Não é de dar razão ao Apelante, desde logo, porque distorce ou faz uma interpretação errada do raciocínio exposto na decisão recorrida. O que nela se expõe claramente e sem qualquer contradição, é o seguinte: i) sendo obrigatório o patrocínio, a constituição de mandatário por parte do administrador não carece de prévia autorização do juiz ou da comissão de credores quando exista; ii) para intervir no recurso era necessária a constituição de mandatário; ii) contudo, a intervenção do administrador na instância de recurso, mediante a apresentação de contra-alegações não era necessária para os interesses da massa. E é desta desnecessidade de intervenção no recurso por parte do administrador que o tribunal retira a conclusão de que o administrador de insolvência deveria ter obtido prévia autorização da comissão de credores para contratar mandatário para o efeito.

Pode discordar-se de tal fundamentação mas a mesma não contém qualquer contradição entre os fundamentos ou entre estes e a decisão, sendo a decisão final proferida a tal respeito a conclusão lógica das premissas em que assentou, sendo que, só a verificação de uma contradição lógica é capaz de acarretar a nulidade da sentença prevista no artigo 615º, nº1, al. c), CPC[1].

Não se reconhece, assim, a invocada nulidade da decisão.


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Insurge-se, ainda, o Apelante contra o decidido com os seguintes fundamentos:

1. Quanto à constituição de mandatário para apresentação e acompanhamento de queixa-crime:

- o tribunal fez uma incorreta interpretação do art. 55º/3 CIRE, porquanto o AI não deve advogar em representação própria ou da massa, podendo nem ser licenciado em direito;

- o processo nº 644/13.... teve origem numa queixa crime através da qual foi formalmente prestada noticia da prática dos ilícitos de insolvência dolosa pp. Pelo artigo 227º do Código Penal bem como o de favorecimento de credores agravado (art. 229º ex vi art. 229-A do CP), sendo que se impunha uma descrição rigorosa dos factos, verificação do preenchimento do tipo legal e correto enquadramento do tipo de ilícito, sendo que, embora a queixa tivesse sido subscrita pelo AI, a mesma foi elaborada pelo mandatário a pedido do AI e no interesse da massa insolvente.

2. Quanto à constituição de mandatário para a intervenção no recurso, sendo obrigatória, a lei não faz depender a intervenção processual de um juízo de oportunidade, mas sim, da vontade da parte de se poder pronunciar em tribunal sobre uma questão que lhe diz respeito (art. 3º do CPC) e de se encontrar representada por um jurista com respeito pela igualdade das partes (artigo 4º CPC).

Analisemos cada uma das situações em apreço que, desde já adiantamos, nos merecem respostas distintas.

A conjugação dos ns. 2 e 3 do artigo 55º do CIRE não deixará duvidas de que exercendo o Administrador de insolvência “pessoalmente as competências do seu cargo”, a coadjuvação, sob a sua responsabilidade, por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, depende da prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta de tal comissão.

A única situação aí ressalvada e em que é dispensada a prévia concordância ou autorização, respeita aos casos em que é necessário o recurso ao patrocínio judiciário da massa, situação em que o administrador é, nesse âmbito, substituído por mandatário judicial constituído[2].

A ideia que subjaz a tais normas reside na pessoalidade e intransmissibilidade como caraterísticas basilares do cargo de administrador de insolvência, levando o Código a ideia de pessoalidade do cargo ao ponto de rejeitar o auxilio de terceiros e do insolvente, com ou sem remuneração, quando não haja prévia autorização da comissão de credores[3].

Situação distinta da retratada nesta norma, será a da eventual necessidade de prévia concordância da comissão de credores, já não para o recurso à coadjuvação de terceiros, mas, para a prática do ato em questão; mas aqui, do que se trata é de o administrador não poder agir sem tal autorização, independentemente de a vir desempenhar pessoalmente ou com recurso a terceiro.

Expostos tais princípios, desçamos às situações em apreço.

Tendo o Administrador da Insolvência (AI) apresentado queixa crime por insolvência dolosa p.p. pelo art. 227º CP e de favorecimento de credores p.p. pelo art. 229º ex vi art. 229-A CP, que deu origem ao inquérito nº 644/13....,  através de queixa por si subscrita, alega o AI que tal queixa foi elaborada pelo mandatário, a pedido do recorrente, e no interesse da massa falida, justificando o recurso a mandatário por se impor a rigorosa descrição dos factos, verificação do tipo legal e correto enquadramento do tipo de ilícito, nomeadamente a sua imputação.

E, relativamente à contratação de advogado para o efeito de o acompanhar no âmbito de tal inquérito, o Apelante não põe em causa a apreciação que a decisão recorrida faz no sentido de não envolver uma situação de obrigatoriedade de constituição de advogado, quer pela invocação do disposto no art. 49º, nº3, do CPP que não exige tal intervenção para a promoção de procedimento criminal por crime ou semipúblico, quer pelo facto de “não ter sido outorgada procuração forense ao advogado em causa”.

Ora, a circunstância de se tratar de uma atuação do AI que não envolve o patrocínio obrigatório (encontrando-se justificado o seu recurso pela necessidade de auxílio na apreciação da complexidade das questões jurídicas em causa) faz recair tal situação no nº3 do artigo 55º, do CIRE, obrigando à prévia concordância da comissão de credores.

Quanto à alegação de que o AI não deve advogar em representação própria ou da massa, não faz aqui qualquer sentido, tanto mais que no inquérito crime, embora tenha recorrido aos serviços de advogado para a elaboração da queixa crime, o ato foi por si praticado pessoalmente no processo, constituição de mandatário através da junção da respetiva procuração.

Não tendo sido solicitada a prévia concordância da comissão de credores e aceitando-se que o advogado tenha prestado essa colaboração técnica ao AI, poder-se-ia levantar a questão de saber qual a consequência de tal omissão, em sede de aprovação de contas.

A tal respeito, como salienta o Acórdão do TRL de 22-09-2020[4], são duas as posições que vêm sendo assumidas na jurisprudência: i) a de não permitir a aprovação e pagamento pela massa insolvente pela massa insolvente de despesas com auxiliares não previamente autorizadas pela comissão de credores ou pelo juiz (acórdãos do TRP de 07.02.2019 e do TRE de 11.05.2017) ; ii) a que, não permitindo, em regra a sua aprovação e pagamento pela massa, exceciona os casos em que a não solicitação de prévia concordância esteja justificada em concreto, bem como a necessidade de auxílio e o beneficio para a massa ou para os credores (Acórdãos do TRL de 24.05.2018, de 10.01.2019, TRP de 20.06.2017 e do TRG de 02.11.17 e 19.05.2016).

Ora, embora reconhecendo a força dos argumentos a favor desta ultima posição, no caso em apreço, não há qualquer justificação para o AI não ter solicitado a prévia concordância da comissão de credores, subentendendo-se da alegação do Apelante que a mesma não terá sido solicitada pelo entendimento do AI no sentido da sua desnecessidade.

A decisão recorrida, não merece, assim, nesta parte, qualquer censura.

Passando à questão da constituição de mandatário para a intervenção na instância de recurso por parte do AI, haverá que ter presentes os seguintes factos, tidos em consideração na decisão recorrida:

7. A 01.07.2020 o Ministério Público apresentou um requerimento pedindo que julgassem as dívidas reclamadas no total de € 8.115,79, relativas a taxas de portagem, coimas, juros de mora e custas, como dívidas da massa e ordenado o seu pagamento.

9. A 16.11.2020 o Sr. Administrador respondeu ao requerimento do Ministério Público de 01.07.2020, pugnando pelo seu indeferimento, tendo aquele requerimento sido indeferido por despacho de 11.12.2020.

11. O Ministério Público interpôs recurso de apelação do despacho proferido a 11.12.2020 e o Sr. Administrador respondeu às alegações de recurso, tendo para o efeito constituído mandatário judicial e requerido a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

12. O recurso foi julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Coimbra, e o Ministério Público junto desta Relação interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso ao qual o Sr. Administrador, representado pelo mesmo mandatário, respondeu.

13. O recurso de revista não foi conhecido, por o Supremo Tribunal de Justiça ter entendido não ser o mesmo admissível.

Reconhecendo, embora, a obrigatoriedade de constituição de mandatário para a apresentação de contra-alegações por parte do AI, atendendo ao disposto no art. 40º, nº1, al. c), do CPC, a decisão recorrida veio a sustentar que “tal intervenção não era necessária para os interesses da massa. Isto porque a resposta a um recurso não é um ónus, mas uma mera faculdade da parte, à qual não é assacada qualquer consequência se optar por não responder ao recurso de decisão que lhe seja favorável e cuja manutenção pretenda”.

Verificando-se uma situação de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário para a prática de tais atos – a intervenção na instância recursal só pode ter lugar através de mandatário constituído –, encontramo-nos no âmbito da exceção prevista na 1ª parte do nº2 do artigo 55º CIRE: por se tratar de atos que não pode exercer pessoalmente, o administrador poderá socorrer-se de mandatário judicial para o efeito, sem necessidade de prévio consentimento da comissão de credores.

Quanto à circunstância, referida na decisão recorrida, de a Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, ter alterado a redação do artigo 55º do CIRE – eliminando a ressalva dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário do nº2, aditando ao nº3 a coadjuvação por advogados como uma das hipóteses de necessidade previa de concordância da comissão de credores ou do juiz – não assume qualquer influência na decisão em apreço, por não se tratar de norma interpretativa, vigorando unicamente para o futuro[5].

A decisão recorrida vem a afastar a aplicação de tal regime de exceção, apoiando-se na “desnecessidade” da intervenção em causa para os interesses da causa.

A questão que se discutia nos autos – pretensão do Ministério Publico a que determinadas dívidas reclamadas pela autoridade tributária fossem consideradas dívidas da massa nos termos do artigo 51º do CIRE (com vista ao seu pagamento precípuo, em detrimento dos créditos da insolvência, nos termos dos artigos 46º, nº1, e 172º, do CIRE) – contende diretamente com os interesses da massa insolvente.

Uma vez que a questão a decidir afetava diretamente os interesses da massa e o modo de distribuição do respetivo produto pelos credores, o administrador da insolvência, quer enquanto representante da massa (artigo 81º, nº4[6]) quer por se encontrar incumbido de proceder à liquidação da massa (onde se inclui a elaboração da relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, com indicação da natureza do crédito, quer o pagamento dos créditos da massa e nos créditos da insolvência e a elaboração dos respetivos planos de rateio), teria o poder/dever em nela participar, marcando a sua posição relativamente à mesma.

E, quer enquanto representante da massa insolvente, quer na qualidade de administrador, é-lhe atribuída legitimidade para recorrer (ou contra-alegar) relativamente a todas as decisões que digam respeito à massa e às funções que lhe competem. E essa legitimidade não se circunscreve unicamente ao direito a emitir a sua posição relativamente à questão controvertida ou o direito ao contraditório, mas igualmente à capacidade de influenciar a decisão do tribunal, em cada uma das suas fases, enquanto garantias fundamentais de um processo equitativo (artigo 20º, nº4 da CR).

Como salienta Tiago Félix da Costa, “o moderno princípio do contraditório é hoje entendido como a possibilidade de participação efetiva das partes no desenvolvimento da lide, como prorrogativa de as partes poderem influenciar todos os elementos direta ou indiretamente relacionados com o objeto da causa e com a decisão final. Esta conceção, implica, em primeira mão, o direito a ser ouvido, como o direito de a parte se pronunciar sobre todas as questões de facto e de direito (substantivo ou adjectivo) e de se pronunciar em momento anterior a qualquer decisão[7]”.

Ora, é neste direito a estar presente em cada uma das fases da decisão a tomar pelo tribunal, que insere o juízo de oportunidade relativamente à apresentação de contra-alegações, relativamente a uma decisão que foi favorável à posição por si assumida nos autos, mas que pode vir a ser alterada pelo tribunal superior.

Sustentar a desnecessidade de apresentação de contra-alegações envolve uma negação do princípio da igualdade de armas e de uma conceção da contraditoriedade “como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão[8]”.

E a legitimidade para recorrer ou contra-alegar que é atribuída ao administrador da insolvência, enquanto tal ou como representante da massa, não se encontra dependente da obtenção de qualquer autorização prévia por parte do tribunal, situando-se dentro dos inúmeros poderes discricionários que lhe são atribuídos ao longo do processo[9] (sem prejuízo da correspondente responsabilidade e de dever estar preparado para justificar as suas opções).

Como tal, face à interposição de recurso de Apelação por parte do Ministério Publico, era ao AI que incumbia o juízo de oportunidade relativamente à opção de apresentar, ou não, contra-alegações de recurso, não podendo o tribunal recusar o pagamento dos honorários do advogado para tal constituído com fundamento em que se tratou de um ato desnecessário.

A apelação é, assim, de proceder parcialmente.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se o despacho recorrido, na parte em que se exceciona da aprovação das contas “as despesas de honorários do mandatário constituído pelo a administrador de insolvência no valor de €7.297,80 €, que se não validam”, a substituir por outro que delas excecione unicamente as despesas de tal mandatário decorrentes dos serviços por si prestados no âmbito do processo nº 644/13.... (em conformidade com a nota de honorários junta como doc. 4, com o requerimento de 08.11.2021).

Custas da instância recursiva a suportar pelo recorrente administrador de Insolvência, na proporção do vencimento.

Notifique.       

                                                                Coimbra, 12 de julho de 2022

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…)


[1] Como sustentam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade, já o não sendo o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, o erro na interpretação desta” – “Código Civil Anotado”, 2º Vol., 3ª ed., Almedina, p. 736-737.
[2] Luís A Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, p. 345.
[3] Luís A Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pp. 345-346.
[4] Acórdão relatado por Fátima Reis Silva, in www.dgsi.pt.
[5] Embora imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, por força do nº1 do artigo 10º da Lei nº9/2022.
[6] Segundo o qual, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
[7] “A (Des)Igualdade de Armas nas Providências Cautelares Sem Audiência do Requerido”, 2012, Almedina, pp.31 e 32.
[8] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1ª, 3ª ed., Coimbra Editora, p.7.
[9] Como é o caso da decisão de resolução de atos em benefício da massa (artigo 120º CIRE), a decisão de omissão de contestar uma ação ou de propor ações de responsabilidade civil contra os titulares dos órgãos de gestão e de fiscalização da sociedade insolvente nos termos do artigo 82º CIRE, poder que é discricionário e dependente do prudente juízo do administrador – Pedro Pais de Vasconcelos, “Responsabilidade civil do administrador de insolvência”, II Congresso de Direito da Insolvência, 2014, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp. 204-205.