Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1500/03.6TBGRD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
INTERPRETAÇÃO
DECISÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 3 E 817º DO CPC; 236º C. CIVIL.
Sumário: I – A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação não cumprida (artº 4º, nº 3 do CPC).

II - O objecto da acção executiva é, por isso – sempre e apenas – um direito a uma pretensão, porque só este direito impõe um dever de prestar e só este dever pode ser realizado coactivamente, sendo irrelevante a origem obrigacional, real, familiar ou sucessória da pretensão: o que é essencial é apenas a existência de um dever de prestar.

III - O objecto da acção executiva é, portanto, uma pretensão e a correspondente causa debendi, que constitui a causa de pedir dessa acção.

IV - A jurisprudência, partindo da caracterização da decisão judicial como acto jurídico receptício, tem sustentado, de forma repetida, que à interpretação da sentença devem aplicar-se os critérios definidos no artº 236º do Código Civil, aplicável, por força de remissão expressa, também a actos não negociais, portanto, a actos puramente funcionais que não possam considerar-se actos marcados pela liberdade de celebração (artº 295º do Código Civil).

V - Por aplicação deste critério, a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que o declaratário normal, colocado na posição real do declaratário – a parte ou outro tribunal – possa deduzir do seu contexto.

VI - Nestas condições, a violação das regras de interpretação da decisão judicial resolve-se num error in judicando e não num vício de actividade e a tarefa interpretativa releva, não da quaestio facti, antes se reconduzindo à questão-de-direito.

VII - A nossa lei civil fundamental disponibiliza um conjunto de regras de interpretação, a primeira das quais surge formulada sob o signo da chamada impressão do declaratário: a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário possa deduzir do comportamento do declarante (artº 236º, nº 1 do Código Civil).

VIII - Esta regra inculca, indelevelmente, que a interpretação, sem prejuízo da atendibilidade das particularidades relevantes do caso concreto, deve ser objectiva ou normativa.

IX - A oposição mais não constitui que um processo declarativo instaurado pelo executado contra o exequente, que corre por apenso à execução, constituindo um incidente desta (artº 817º, nº 1 do CPC).

X - A oposição por embargos fundamenta-se num vício que afecta a execução. Se for julgada procedente, a acção executiva deve ser julgada extinta, no todo ou em parte.

XI - No tocante ao ónus da prova dos fundamentos da oposição valem as regras gerais, cabendo, portanto, ao executado embargante a prova dos fundamentos de oposição invocados, dado que revestem a nítida feição de factos constitutivos da oposição deduzida (artº 342º, nº 1 do Código Civil).

XII - O encargo da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito cuja satisfação coactiva constitui objecto da execução recai, pois, sobre o opoente.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O… e cônjuge, A… promoveram, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, no longínquo ano de 2006, contra M… e cônjuge, C…, acção executiva para prestação de facto, para que os últimos, procedam, em 15 dias, às obras a que se obrigaram.

Fundamentaram esta pretensão executiva no facto de o executados, conforme transacção e sentença homologatória, terem acordado em efectuar as obras necessárias, de forma a desviar as águas, evitando, assim que o seu prédio levasse com essas águas, de aquela sentença ter transitado em julgado, e de, em virtude de o terraço dos executados não ter qualquer escoamento natural ou artificial, as tenderem a acumular-se entre os dois prédios, ali permanecendo até desaparecer, originando infiltrações de águas e humidade no interior da sua casa, junto à parede e à chaminé, não tendo os executados efectuado quaisquer obras.

A executada C… deduziu oposição à execução, pedindo a condenação dos exequentes a reconhecer que as obras que acordaram já se encontram efectuadas, nada mais lhes sendo exigível, e em multa e indemnização, a seu favor, por litigância de má fé.

Alegou, como fundamento da oposição, que, após a transacção – na qual se obrigaram a efectuar obras no terraço que confina com o prédio dos exequentes, por forma a afastar as águas da parede da casa dos autores e a permitir o seu normal escoamento - efectuaram as obras a que se obrigaram, através da colocação, junto à parede da casa dos exequentes, na confinância com o seu terraço, de um rebordo de cimento com cerca de 15 cm de altura e de largura, e sobre a placa do terraço, de uma massa de cimento muito concentrada, com o que afastaram as águas da parede da casa dos exequentes a mais não sendo obrigados, que com estas obras as águas da chuvas não se acumulam na placa do seu terraço nem se juntam ou acumulam junto à parede dos exequentes, não sendo passíveis de originar infiltrações nos seu prédio, que os exequentes, no dia 25 de Julho de 2008, estiveram presentes na inspecção judicial do local, tendo visto as obras efectuadas e presenciado um teste que consistiu no lançamento sobre a placa de baldes de água, para aferir se essa água seria passível de se introduzir na casa dos exequentes, tendo a água escorrido imediatamente para fora da placa e para o seu terreno, por trajecto afastado da casa dos exequentes, pelo que estes agem de má fé.

Os exequentes afirmaram, em contestação, que, à data da entrada da execução, os executados não tinham realizado quaisquer trabalhos, e que os trabalhos realizados por estes – colocação de um rebordo de cimento e de massa de cimento concentrada – se revelam insuficientes para alcançar os objectivos a que se comprometeram – desviar as águas, evitando, assim, que o prédio dos exequentes leve com a água que vem do prédio dos executados.

Seleccionada a matéria de facto, procedeu-se a perícia singular, que, no relatório, concluiu, que o rebordo de argamassa não obvia a uma possível passagem (de água) para o interior da parede contígua ao terraço, que a massa de cimento se encontrava fissurada e solta, não funcionando de forma alguma, como sistema de impermeabilização, que a água escorre facilmente pelo terraço, que possui inclinação suficiente para o fazer, que por observação visual, encontrou, na casa do exequente eflorescências devidas a humidade, cuja proveniência só pode ter a ver com falhas na impermeabilização junto à prumada da parede e que o aparecimento de humidade se deve ao facto de argamassa do rebordo e do terraço apresentarem fissuração suficientes que permite a entrada de água para o interior da parede do exequente.

Instado a esclarecer o relatório, o perito reiterou que o rebordo de argamassa embora encaminhe a água para fora do terraço, encontra-se fissurada e é de fraca qualidade, não possuindo qualquer produto hidrófobo que impossibilite a absorção de água por parte deste, que a massa colocada na laje do terraço encontra-se também fissurada e solta/descolada da laje, não funcionando de forma alguma como sistema de impermeabilização, permitindo a migração de alguma água para a parede contígua dos exequentes, e afirmou que a causa das infiltrações também pode ser devida a uma má execução da caleira (existente no fundo do telhado e sobre a parede) não impermeabilizando suficientemente a parede do exequente, situação que não verificou, e que não foram feitos ensaios que permitissem concluir de forma cabal, que as infiltrações que provocaram o aparecimento das eflorescências fossem devidas à deficiente construção do rebordo e da massa colocada no terraço, nem devidas à má impermeabilização da caleira do telhado e da parede do exequente.

Procedeu-se, no decurso da audiência de discussão e julgamento, à inspecção judicial ao local, com o concurso de um perito – diverso do que realizou a diligência anterior – que, realizada uma experiência através do lançamento de água no terraço, concluiu que as obras realizadas evitam a acumulação de água no terraço, afastando-a da parede, e permitem o seu encaminhamento para a via pública, através do terraço, não havendo empoçamento, e que a inclinação do terraço faz com que as águas sejam encaminhadas para junto do rebordo pelo que a infiltração ou não das mesmas na parede depende da eficácia a impermeabilização realizada o que não pode garantir (nem que sim nem que não) neste momento, e considerou o produto utilizado na impermeabilização – malha sol – adequado, mas que só tempo é que poderá demonstrar a eficácia ou não da impermeabilização.

A sentença final da causa – depois de observar que o facto objecto da prestação debitória era controvertido, pelo era necessário recorrer aos critérios da interpretação jurídica e que a cláusula negocial constante da transacção deve ser interpretada no sentido de que os opoentes se obrigaram a executar as obras necessárias no seu terraço para evitar infiltrações na parede do prédio dos exequentes, o que não ficou demonstrado, pelo que os opoentes não provaram o cumprimento alegado – julgou a oposição improcedente.

E esta sentença que os executados impugnam no recurso, no qual pedem que seja declarada nula e de nenhum efeito ou, caso assim se não entenda, a sua substituição por outra onde se dê acolhimento à sua pretensão.

Os recorrentes extraíram da sua alegação estas conclusões:

Na resposta os exequentes concluíram, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2.Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. Foi seleccionado para a base instrutória, entre outros, este enunciado de facto:

1) Devido ao rebordo e à massa de cimento referidos em C), a água da chuva que cai no terraço do prédio dos opoentes desliza e escorre imediatamente para fora da placa?

2.2. O Tribunal da audiência decidiu o ponto de facto referido em 2.1. nestes exactos termos: provado apenas que devido ao rebordo e à massa de cimento referidos em C), pelo menos parte da água da chuva que cai no terraço do prédio dos opoentes desliza e escorre imediatamente para fora da placa.

2.3. O decisor de facto da 1ª instância motivou o seu julgamento nos termos seguintes: o Tribunal formou a sua convicção com base na livre apreciação de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e junta aos autos, nos termos do art. 655º/1, do CPC, ex vi arts. 463º/1 e 817º/2, ambos do CPC, analisada de forma crítica e conjugada à luz das regras da experiência e critérios de normalidade e razoabilidade nos termos que a seguir se expõem.

A única prova produzida reconduziu-se à perícia e à inspecção ao local, com intervenção de técnico (cfr. art. 614º do CPC), realizadas nos autos.

Não foi produzida qualquer prova passível de abalar a inspecção e competências técnicas dos peritos intervenientes na perícia e no exame. Também não foi produzida prova em sentido contrário às conclusões a que os peritos chegaram, sendo certo que a presente signatária não tem conhecimentos especiais sobre a matéria.

Destarte, quer a perícia, quer as conclusões do técnico que acompanhou a inspecção, mereceram credibilidade, tendo sido com base no seu teor que se formou a convicção do Tribunal, sendo importante salientar que os opoentes realizaram novas obras após a perícia, conforme resulta dos autos.

Assim, ambos os peritos concluíram que, após a execução das obras, não há empoçamento, daí a resposta dada ao ponto 2) da base instrutória.

Efectivamente, no primeiro relatório pericial, a fls. 33, na resposta ao ponto 2) da base instrutória, o perito escreveu que “A água escorre naturalmente pelo terraço” e “permitindo verificar-se que, em ambos os casos, a água escorre sem dificuldade”. Também o técnico que interveio na inspecção esclareceu que “As obras realizadas evitam a acumulação de água no terraço, afastam a água da parede, através do rebordo, e permitem o encaminhamento das mesmas para via pública através do terraço, não havendo empoçamento.”.

Os dois peritos foram igualmente concordantes no sentido de não ser possível concluir que as obras executadas evitam infiltrações na parede do prédio dos exequentes, razão pela qual o ponto 3) mereceu uma resposta negativa. Assim, o primeiro perito escreveu o seguinte:

“Como já disse anteriormente, apesar da existência de um rebordo em argamassa de cimento e areia, junto à parede do exequente que possibilita o encaminhamento das águas para fora do terraço, nota-se que não possui qualquer aditivo hidrófogo que o impermeabilize, possibilitando a entrada da água junto à mesma parede. A massa de cimento que foi colocada sobre o terraço, encontra-se totalmente fissurada permitindo também a migração de água para a parede”. Em esclarecimentos, quando confrontado com deficiências de escoamento existentes no prédio dos exequentes, passíveis de explicarem os focos de humidade que visionou no aludido imóvel, o perito admitiu que essas deficiências podiam ser a causa das infiltrações. Contudo, continuou a não afastar a possibilidade das infiltrações serem provocadas pela incorrecta impermeabilização do rebordo e do terraço, pelo que este perito não concluiu com certeza que as obras executadas pelos opoentes evitam que as águas provoquem infiltrações na parede do prédio dos exequentes.

Ora, o técnico que interveio na inspecção, em face das novas obras realizadas pelos opoentes, também não conseguiu afirmar, com certeza, o facto em apreço, tendo concluído o seguinte: “Neste momento, a inclinação do terraço faz com que as águas sejam encaminhadas para junto do rebordo pelo que a infiltração ou não das mesmas na parede depende da eficácia da impermeabilização realizada, o que não pode garantir (nem que sim nem que não) neste momento. Os executados indicaram ao Sr. Perito o produto utilizado na impermeabilização e referiram que colocaram malha sol. O Sr. Perito considerou o produto adequado, mas só o tempo é que poderá demonstrar a eficácia ou não da impermeabilização. Fez também alusão à existência de uma fissura no terraço, salientando que a mesma poderá ou não ser irrelevante dependendo da estrutura de metal colocada e se a mesma já está ou não estabilizada.”.

Dada uma resposta negativa ao ponto 3), a resposta ao ponto 1) teve de ser necessariamente restritiva.

Efectivamente, não sendo possível afastar com certeza a existência de infiltrações, também não se pode concluir que toda a água da chuva que cai em cima do terraço do prédio dos opoentes desliza e escorre imediatamente para fora da placa. Se existirem infiltrações, uma parte dessa água, pese embora não se empoce no terraço, irá infiltrar-se na parede do prédio dos exequentes e não irá deslizar e escorrer para fora da placa (…).

2.4. O Tribunal de que provém o recurso julgou provada, no seu conjunto, esta factualidade:

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que o acórdão deve resolver são as de saber se:

a) A sentença recorrida é substancialmente nula;

b) A decisão impugnada se encontra ferida de um error in iudicando, de direito, por erro na estatuição, i.e., por equívoco na aplicação ao caso concreto dos critérios de interpretação do negócio jurídico processual – rectius, contrato - de transacção, objecto de homologação judicial.

c) Tribunal da audiência incorreu, no julgamento da matéria de facto num error in iudicando por erro na valoração da prova e, consequentemente, se esse julgamento deve ser modificado.

A resolução destes problemas vincula ao exame, ainda que leve, da causa de nulidade substancial da decisão judicial representada pelo excesso de pronúncia, dos critérios de interpretação da sentença e dos negócios jurídico-processuais, dos parâmetros dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto e, finalmente, do ónus da prova dos fundamentos da oposição.

3.2. Nulidade da sentença impugnada.

Como é extraordinariamente comum, os recorrentes assacam à decisão recorrida o vício da nulidade substancial que, no seu ver, tem esta causa precisa: o excesso de pronúncia.

O processo civil português é dominado, entre outros, pelo princípio instrumental – i.e., que procura uma optimização dos resultados do processo – da disponibilidade privada que determina, entre outras coisas, que incumbe às partes a definição do objecto do processo.

Assim, cabe ao autor definir o pedido e invocar a causa de pedir, não podendo o tribunal, como consequência do funcionamento deste princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artºs 467 nº 1 d), 661 nº 1 e 664 nº 2, 2ª parte, do CPC).

Como corolário do princípio da disponibilidade privada, a decisão é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, portanto, quando esteja viciada por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC).

Um tal excesso verifica-se sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou absolve num pedido não formulado. Exceptuam-se, evidentemente, as questões que forem de conhecimento oficioso, como por exemplo, as relativas à interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis aos factos que forem adquiridos durante a tramitação da causa (artºs 660 nº 2, 2ª parte, e 664, 1ª parte, do CPC).

Note-se que não existe excesso de pronúncia, mas error in iudicando, se o tribunal aprecia uma qualquer questão com o argumento de que ela foi suscitada: aquele excesso pressupõe que se conheça de questão que não foi levantada ou que não seja de conhecimento oficioso – e não uma fundamentação errada para conhecer de certa questão.

Na espécie do recurso, os recorridos alegando que, por força de transacção concluída na acção declarativa, judicialmente homologada, os recorrentes estavam constituídos na obrigação de prestar um facto fungível mas que os últimos não realizaram a prestação correspondente promoveram contra eles a realização coactiva dessa mesma prestação, na modalidade de execução específica – a realização da própria prestação não cumprida.

Os executados, porém, contestaram esta pretensão executiva, alegando, como fundamento da oposição, uma excepção peremptória superveniente, i.e., um facto extintivo da obrigação da exequenda, posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração: a prestação do facto material a que foram judicialmente vinculados pela sentença homologatória da transacção na qual foi convencionada a realização dessa mesma prestação – a realização das obras.

No caso, os exequentes visam com a acção executiva a execução específica, obter a própria prestação a que os recorrentes se encontravam vinculados, mas estes responderam que o direito à realização daquela prestação se encontra extinto pelo cumprimento.

A obrigação - qualquer obrigação - traz implicada, no seu conteúdo, uma prestação.

Todavia a prestação pode significar quer a conduta ou a actuação humana – quer o resultado dessa conduta, problema que remete para a controversa dicotomia entre obrigações de meios e obrigação de resultado[1].

Descritivamente a obrigação é de resultado se o devedor fica adstrito, em benefício do credor, à produção de certo efeito útil que actua satisfatoriamente um interesse creditório final ou primário, i.e., o interesse que em último termo o credor se propõe alcançar; a obrigação é de meios, se o devedor apenas se vincula a desenvolver uma actividade ou conduta diligente orientada para um resultado final, mas sem assegurar que este se produza.

Na espécie sujeita, de harmonia com o contrato de transacção e com a decisão homologatória correspondente, os recorrentes ficaram vinculados à realização de obras no terraço que confina com o prédio dos autores, por forma a afastar as águas da parede da casa dos autores e a permitir o seu normal escoamento.

À luz da dicotomia apontada, os executados ficaram, nítida e judicialmente vinculados a uma obrigação de resultado – realizar, no seu prédio, uma obra que afaste as águas da parede de casa dos autores.

A prestação não consiste, simplesmente, na realização de obras ou trabalhos – mas no afastamento das águas da parede da casa dos autores.

Pela formulada usada na fonte – o contrato processual de transacção – o fim da prestação, a satisfação do interesse dos exequentes, consiste naquele afastamento.

E trata-se de um resultado de realização não vinculada, como linearmente decorre da ausência de especificação das concretas obras que deveria ser executadas para se alcançar aquele fim: aos recorrentes seria lícita a realização de quaisquer trabalhos ou obras, desde que elas fossem idóneas para conseguir o objectivo apontado.

Simplesmente, a sentença impugnada notou, pela leitura dos articulados da oposição, que as partes não eram acordes sobre exacto objecto da prestação que os executados se vincularam: ao passo que estes advogavam que apenas estavam obrigados a afastar as águas da parede da casa dos executados, os executados sustentavam que as obras a cuja execução aqueles se vincularam teriam por finalidade evitar as infiltrações de águas e humidades no interior da sua casa. E face a essa dúvida quanto ao conteúdo da prestação objecto da execução, a sentença, ordenada pelo propósito de a dissipar, lançou mão dos critérios de interpretação do negócio jurídico e concluiu que à cláusula do contrato processual cujo sentido não era unívoco, deveria imprimir-se o significado propugnado pelos exequentes e, portanto, que o objecto da execução, a prestação alegadamente não cumprida, era constituída pela realização de obras, pelos executadas, adequadas a evitar infiltrações, de águas e humidade, na parede da sua casa.

Consabidamente, a acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação não cumprida (artº 4º, nº 3 do CPC).

O objecto da acção executiva é, por isso – sempre e apenas – um direito a uma pretensão, porque só este direito impõe um dever de prestar e só este dever pode ser realizado coactivamente, sendo irrelevante a origem obrigacional, real, familiar ou sucessória da pretensão: o que é essencial é apenas a existência de um dever de prestar.

O objecto da acção executiva é, portanto, uma pretensão e a correspondente causa debendi, que constitui a causa de pedir dessa acção.

Como o cumprimento se traduz, analiticamente, na concretização do comportamento humano a que o credor tinha direito, para se saber, se realmente, o devedor cumpriu é logicamente necessário determinar com precisão qual era justamente a prestação devida.

Nestas condições, dado que o objecto da acção executiva não é distinto da prestação, que mantém na execução, todas as suas características substantivas, ao proceder à identificação do exacto objecto da acção executiva, ao recortar a exacta prestação a que os executados estavam vinculados - com a finalidade de determinar se a obrigação correspondente estava ou não extinta pelo cumprimento - a sentença apelada não apreciou qualquer questão de que não devesse conhecer nem condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

De resto, ainda que assim se não entendesse, o caso não seria nunca de excesso de pronúncia, dado que, no ver da sentença apelada, a questão da finalidade última da prestação tinha sido suscitada pelas partes, na oposição, com a controvérsia desenvolvida nos respectivos articulados, a propósito da finalidade última das obras.

O caso, seria, portanto, quando muito, de error in iudicando, de erro de fundamentação quanto ao dever de conhecer de tal questão.

Seja como for, não há motivo para concluir que a sentença impugnada tenha violado o limite máximo ao seu conhecimento, estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes.

De resto, a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.

O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.

Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC).

No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC).

Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso.

Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário.

O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC).

Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.

Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação.

Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC).

A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária.

A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.

Por este lado o recurso não tem, pois, fundamento.

Prevenindo a falta de bondade da arguição da nulidade da sentença, os recorrentes sustentam, porém, que esta se equivocou na interpretação da declaração negocial das partes, dado que na sua perspectiva, o objectivo das obras a que se vincularam nunca foi o evitar a infiltrações de águas no prédio dos exequentes.

A apreciação deste fundamento do recurso remete-nos, necessariamente, para o problema dos critérios de interpretação da sentença judicial e dos negócios jurídicos processuais de composição da acção.

3.3. Interpretação da decisão judicial e dos negócios jurídicos processuais.

A decisão judicial é o acto através do qual o tribunal extrai da matéria de direito e de facto apreciada uma consequência jurídica.

Trata-se, naturalmente, do principal acto processual do tribunal, no qual julga, seja por iniciativa própria seja em resposta a um pedido da parte, uma qualquer questão que lhe compete apreciar.

Como qualquer acto processual, a decisão judicial está sujeita às inelimináveis deficiências de linguagem como meio de veiculação do pensamento. Só esta constatação seria suficiente para tornar patente a necessidade da sua interpretação.

Mesmo quando o seu sentido pareça estar bem à vista, deve essa primeira impressão, colhida uti oculi, ser contrastada por uma séria reflexão e só depois disso se poderá ter como realmente claro e de plana inteligência a decisão considerada.

São múltiplos os casos em que a controvérsia gravita, precisamente, em torno da interpretação da sentença: na individualização dos limites, objectivos e subjectivos, da res judicata, ou simplesmente do seu valor como precedente, ou – como é o caso do recurso – na sua execução.

Devendo ter-se por adquirido que a interpretação da decisão judicial não tem por objecto a reconstrução da mens judicis – mas a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente, resta saber a que princípios regulativos deve obedecer essa actividade interpretativa.

Visando a interpretação da decisão determinar o seu sentido juridicamente relevante, segue-se que a questão da interpretação do acto-decisão surge absorvida no problema mais vasto da interpretação do acto jurídico.

Neste contexto, compreende-se o procedimento de assimilação da decisão judicial a outras categorias de actos jurídicos, de modo a possibilitar o uso de instrumentos interpretativos para eles dispostos no direito positivo.

Nem noutro sentido se orienta a jurisprudência, que, partindo da caracterização da decisão judicial como acto jurídico receptício, tem sustentado, de forma repetida, que à interpretação da sentença devem aplicar-se os critérios definidos no artº 236 do Código Civil, aplicável, por força de remissão expressa, também a actos não negociais, portanto, a actos puramente funcionais que não possam considerar-se actos marcados pela liberdade de celebração (artº 295 do Código Civil)[2] .

Por aplicação deste critério, a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que o declaratário normal, colocado na posição real do declaratário – a parte ou outro tribunal – possa deduzir do seu contexto[3].

Nestas condições, a violação das regras de interpretação da decisão judicial resolve-se num error in judicando e não num vício de actividade e a tarefa interpretativa releva, não da quaestio facti, antes se reconduzindo à questão-de-direito, que, como tal, se inscreve na competência decisória do Supremo.

Dado que a tarefa interpretativa se dirige à individualização do sentido preceptivo da decisão, a interpretação deve incidir, preferencialmente, sobre a decisão em sentido estrito, quer dizer, sobre a parte decisória ou dispositiva, na qual se contém a decisão de condenação ou de absolvição (artº 659 nº 2, in fine, do CPC).

Todavia, como a decisão se encontra sempre referenciada a certos fundamentos, visto que é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, é lícito recorrer à motivação da decisão para se estabelecer o exacto significado do decisum, da estatuição que encerra.

Pode-se mesmo ir mais longe: se a decisão representa o conclusuum de um procedimento, ela pode ser interpretada à luz da globalidade dos actos que a precederam, quer se trate de actos das partes ou de actos do tribunal.

A necessidade da interpretação da decisão judicial pode colocar-se antes e depois do seu trânsito em julgado (artºs 666 nºs 1 a 3 e 669 nº 1 a) do CPC). No primeiro caso, a interpretação visa tornar patente o sentido juridicamente relevante da decisão; no segundo, o sentido a que deve associar-se o valor e a força de coisa julgada.

Simplesmente, no caso, a acção na qual se formou o título executivo, foi composta por negócio jurídico processual, rectior, por um contrato processual – a transacção - tendo-se o tribunal limitado a homologá-la, i.e., a examinar se considerando o objecto e as partes do negócio, a transacção era válida (artº 300 nº 3 do CPC).

Nestas condições, o objecto da actividade interpretativa não é verdadeiramente a sentença – mas o contrato processual que se limitou a homologar.

Os negócios jurídicos processuais são negócios jurídicos que produzem directamente efeitos processuais, i.e., são os actos processuais que carácter negocial que constituem, modificam ou extinguem uma situação processual.

E como actos de carácter negocial, à interpretação do negócio jurídico processual são aplicáveis as regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos.

A interpretação do negócio jurídico visa, naturalmente, apurar ou determinar o seu sentido juridicamente relevante.

Mesmo quando permita só concluir pela mera existência ou inexistência de certo acto – como sucede nas declarações que se reduzam a actos jurídicos em sentido estrito – a interpretação, entendida no sentido apontado, é sempre necessária.

A nossa lei civil fundamental disponibiliza um conjunto de regras de interpretação, a primeira das quais surge formulada sob o signo da chamada impressão do declaratário: a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário possa deduzir do comportamento do declarante (artº 236 nº 1 do Código Civil).

Esta regra inculca, indelevelmente, que a interpretação, sem prejuízo da atendibilidade das particularidades relevantes do caso concreto, deve ser objectiva ou normativa[4].

A declaração vale, em princípio, com o sentido que as partes lhe quiseram conferir - vontade real das partes (artº 236 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Mas se não for conhecida essa vontade ou declarante e declaratário entenderam a declaração em sentidos diversos, vale o sentido que o declaratário normal podia julgar conforme às reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considerá-lo acessível à compreensão da outra parte[5].

O declaratário normal é o bónus pater famílias equilibrado e com bom senso, pessoa de qualidades médias, de instrução e diligências normais[6], e há que surpreender o entendimento desta figura de ficção, com os horizontes de visão do declaratário real.

Em termos deliberadamente simplificadores, pode, pois, dizer-se, sem erro, que a doutrina disposta na lei quanto à interpretação do negócio jurídico é, portanto, de carácter marcadamente objectivista, baseada na impressão do destinatário, limitada, negativamente, pela possibilidade de imputar a declaração a interpretar a quem a tenha produzido e pela regra falsa demonstratio non nocet.

Se o negócio for formal, a declaração não pode, em princípio, valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artº 348 nº 1 do Código Civil).

A sentença impugnada, por recurso a estes critérios de interpretação das declarações negociais das partes integrantes do contrato processual de transacção e ao contexto processual em que foram produzidas – concluiu que os opoentes se obrigaram a executar obras necessárias no seu terraço para evitar infiltrações na parede do prédio dos exequentes, que era este o resultado definidor da prestação.

Não há a mínima razão para divergir.

Realmente, na petição inicial da acção declarativa composta com aquele contrato processual, os exequentes queixavam-se das infiltrações de águas e humidade no interior da sua casa, causada pela acumulação de água entre o terraço dos exequentes e a parede da sua casa, pelo que não é razoável admitir que as partes tenham concordado em transigir sobre o objecto da demanda deixando incólume o facto danoso no qual radicava, em última extremidade, o litígio – a infiltração de águas e humidade na casa dos recorridos.

Para quê vincular judicialmente os executados à realização de obras destinadas a afastar águas de uma parede se estas, ao fim de contas, não têm por fundamento final, evitar que essas águas se infiltrem nessa parede e invadam o interior da construção?

De harmonia com regras de experiência e critérios sociais, a realização, na construção de edifícios, de toda uma série de obras – v.g. coberturas, caleiras, algerozes - a utilização de uma multiplicidade de materiais e de técnicas – revestimentos impermeabilizantes, desnivelamento de superfícies - destinadas a deter, conduzir e a receber águas pluviais têm por finalidade conspícua assegurar a estanquicidade das paredes exteriores e, consequentemente, a salubridade e o conforto dos espaços interiores.

Nestas condições, ao escoamento das águas caídas no terraço dos executado e ao seu afastamento da parede da casa dos exequentes não pode deixar-se de assinalar, com finalidade última, evitar que essas águas escorressem para a parede dos autores e penetrassem, ainda que sob a forma de humidade, no interior da causa daqueles.

Seria, realmente, absurdo que tendo-se os recorrentes vinculado a afastar as águas da parede da casa dos recorrentes, esta finalidade se devesse ter por inteiramente preenchida, se, apesar da realização de obras e trabalhos, com esse escopo, as águas e humidades continuassem a invadir o interior da casa dos exequentes.

Seria também de todo contrário à boa fé – entendida como norma basicamente comportamental, modeladora, de forma integrativa e restritiva, dos procedimentos que as partes devem adoptar e sob cujo signo estrito qualquer prestação deve ser realizada – ter por bom ou por exacto o cumprimento de uma obrigação de afastar águas de uma parede, se apesar da realização das obras com essa finalidade, as águas continuassem a infiltrar-se nessa parede e a invadir o espaço interior que delimita (artº 762 nº 2 do Código Civil).

Nestas condições, o sentido que a sentença apelada extraiu da convenção das partes, inserta no apontado contrato processual, para além de encontrar eco no seu texto, corresponde àquele que um declaratário normal – normativamente entendido – colocado na posição concreta do declaratário efectivo, lhe atribuiria.

A conclusão quanto à pretensão objecto da execução, quanto ao resultado verdadeiramente definidor da prestação, tirada pela sentença apelada, por aplicação dos critérios de interpretação das declarações negociais, deve, pois, ter-se por exacta.

Mas ainda que, ex-adverso, o contrário se devesse entender, nem assim haveria fundamento para, como sustentam os recorrentes, se considere não escrito o ponto de facto identificado na base instrutória com o algarismo 3 – no qual se perguntava se (as águas) não provocavam quaisquer infiltrações no prédio dos exequentes.

É que, mesmo que à prestação a que os exequentes se vincularam não devesse assinalar-se o conteúdo apontado, aquele facto foi alegado na oposição e era controvertido – por estar em colisão com o facto contrário invocando pelos exequentes logo no requerimento executivo - tendo, aliás, sido selecionado a partir da alegação dos próprios recorrentes.

Tal facto foi julgado, pelo decisor da 1ª instância, não provado. Esta resposta não implica, evidentemente, que se tenha demonstrado o facto contrário, antes tudo se passa como se o facto não tivesse sido alegado, devendo o juiz resolver a questão contra a parte onerada com a sua prova (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil)[7].

De resto, não ficou sequer demonstrado – de harmonia com a decisão da matéria de facto julgada provada na instância recorrida – que toda a água da chuva que cai no terraço do prédio dos recorrentes deslize e escorra imediatamente para fora da placa: de harmonia com o julgamento da questão de facto daquela instância, isso só sucede com parte da água que cai naquele terraço.

Mas isso – alegam os recorrentes – deve-se ao error in iudicando da matéria de facto em que incorreu o decisor da 1ª instância.

3.4. Poderes de controlo da Relação relativamente ao julgamento da matéria de facto do tribunal recorrido.

É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e da escolha e interpretação correctas da norma jurídica aplicável, um dos fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos objecto do processo.

De nada vale ao juiz uma compreensão exacta da norma aplicável ao caso se, do mesmo passo, se deixa equivocar na apreciação da matéria de facto. O error in judicando da questão de facto traz consigo, inevitavelmente, um erro de direito; erro esse que, nem por ter aquela causa, resultará menos sensível para os destinatários lesados.

A reconstrução da espécie de facto, o saber na realidade como as coisas são ou se passaram, quando este conhecimento dependa de elementos de prova cuja apreciação é deixada ao prudente critério do juiz, é uma actividade extraordinariamente delicada – que ele terá de levar a cabo sem nenhuma ou quase nenhuma ajuda, pode dizer-se, da ciência do direito, que, nada ou quase nada, lhe pode dizer[8].

As dificuldades do controlo da exactidão do julgamento da questão de facto resultam, fundamentalmente, da falta de homogeneidade da assunção das provas pelo tribunal de 1ª instância e pela Relação e da natureza da actividade de julgamento da questão de facto.

A Relação é normalmente um tribunal de 2ª instância. Pela sua própria índole, a Relação tem competência para apreciar e conhecer tanto de questões de direito como de questões de facto. O recurso de apelação é precisamente aquele que, segundo a sua natureza de recurso amplo, deveria ter eficácia e alcance para submeter à consideração da Relação toda a matéria da causa.

A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido.

O sistema actual de recursos procurou conciliar as garantias da oralidade e da imediação – que contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa, em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto – com algumas exigências práticas.

Estas exigências conduzem, por exemplo, a que o controlo sobre um decisão relativa ao julgamento de um facto supostamente provado pelo depoimento de uma testemunha, não requeira a presença dessa testemunha perante o tribunal ad quem.

É suficiente, na lógica da lei, que seja disponibilizado a este tribunal o registo ou a gravação desse depoimento ou a sua transcrição (artºs 685-B nºs 1 a 4 e 712 nºs 1, a) e b), e 2 do CPC).

O registo dos actos de produção da prova é feito por gravação, em regra, por meios sonoros (artºs 522-B e 522 C) nºs 1 e 2 do CPC). Essa gravação é efectuada, também em regra, por equipamentos existentes no tribunal e por funcionário de justiça (artºs 3 nº 1 e 4 do Decreto Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro).

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in iudicando[9].

O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro. Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[10].

Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação.

De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição.

Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[11].

Realmente, a expressão oral é apenas uma parte bem diminuta da comunicação e, por isso, existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[12].

Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem.

A decisão da matéria de facto, respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[13] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa.

Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva.

As dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais.

Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[14].

Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros.

Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente.

O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza.

Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa maior é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos.

Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso.

Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[15].

Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference.

Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[16].

O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta.
Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa.
Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto.
A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[17].

As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida.

Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

3.4.1. Reponderação da decisão relativa à matéria de facto da 1ª instância.

O ponto de facto que os recorrentes reputam de erroneamente julgado é o constante da base instrutória com o nº 1, no qual se perguntava se devido ao rebordo e à massa de cimento referidos em C), a água da chuva que cai no terraço do prédio dos opoentes desliza e escorre imediatamente para fora da placa, e que obteve, do decisor da 1ª instância, esta resposta, provado apenas que devido ao rebordo e à massa de cimento referidos em C), pelo menos, parte da água da chuva que cai no terraço do prédio dos opoentes desliza e escorre imediatamente para fora da placa.

Como linearmente decorre da fundamentação adiantada para justificar este julgamento, a prova que exerceu no ânimo do decisor de facto uma influência decisiva foi a prova pericial, produzida, sucessiva e singularmente, por dois peritos.

Esta perícia, como qualquer outra, constitui, muito simplesmente, um meio de prova, relativamente à qual vale, por inteiro - de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos - o princípio da livre apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (artº 389 do Código Civil)[18].

Deste princípio decorre, naturalmente, a impossibilidade de considerar os pareceres do perito ou peritos que procederam á diligência como contendo verdadeiras decisões, às quais o juiz não possa, irremediavelmente, subtrair-se.

Uma tal conclusão só se explicaria por um deslumbramento face à prova científica de todo inaceitável e incompatível com os dados, que relativamente à perícia, a lei coloca à disposição do intérprete e do aplicador.

Significa isto que nada impõe que a avaliação deva prevalecer, de modo absoluto, sobre qualquer outro meio de prova, ou dito de outro modo, que se lhe deva reconhecer força de prova plena.

Na verdade, não deve excluir-se a possibilidade de o perito ou peritos serem induzidos em erro pelos seus sentidos e de, portanto, o resultado da diligência se formar a partir de percepções individuais inexactas.

Estando fora de dúvida que a perícia é assinaladamente eficaz para esclarecer um facto que interessa à decisão da causa – o pagamento +ela recorrente do preço das coisas vendidas - ainda assim não deve excluir-se, por inteiro, a possibilidade de se censurar o erro do perito na produção dessa prova, opondo-lhe outros meios idóneos para rectificar percepções individuais erróneas e para corrigir equívocos ou a violação, na valoração dos resultados a que perícia o conduziu, de regras de ciência, de lógica ou de experiência.

Agora, convém não esquecer o peculiar objecto a prova pericial: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (artº 388 do Código Civil).

Deste modo, à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal.

Assim, se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo técnico ou científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente técnica ou científica.

Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo técnico científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva[19] (artº 653 nº 2 e 659 nº 2, in fine, do CPC).

Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida[20].

Não deve, no entanto, confiar-se, de forma ilimitada, no efeito prático do ditame de que o juiz é o perito dos peritos.

Dado que a prova pericial supõe a insuficiência de conhecimentos do magistrado, é difícil que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objectivo para o qual não dispõe de meios subjectivos.

Isto significa que, a não ser que sobrevenham novos e seguros elementos de prova, maxime, uma nova perícia, a liberdade do juiz não o autoriza a estabelecer, sem o concurso do perito ou peritos, as razões da sua convicção.

Por mais que se afirme a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação, não é raro que o laudo pericial desempenhe papel absorvente na decisão da causa.

Foi, aliás, exactamente isso que sucedeu no caso do recurso.

O perito que procedeu à primeira diligência foi terminante, no seu relatório, em afirmar, por um lado, que o rebordo de argamassa de cimento e areia colocado junto à parede da casa dos exequentes não obvia a uma possível passagem da água para essa parede, e, por outro, que a massa de cimento colocada no terraço, por se encontrar fissurada e solta, não funcionava como sistema de impermeabilização. O mesmo perito constatou visualmente a existência, no interior da casa dos exequentes, de eflorescências devidas a humidade, cuja proveniência só pode ter a ver com falhas de impermeabilização junto à prumada da parede. Este perito rematou, o seu relatório, com esta conclusão: o aparecimento de humidade deve-se ao facto da argamassa do rebordo e do terraço apresentarem fissuração suficiente que permite a entrada da água para o interior da parede do exequente.

Nos esclarecimentos que foi chamado a prestar, este perito reiterou a afirmação de que o rebordo da argamassa e a massa colocada na laje do terraço existente junto à parede de exequente não impedem o contacto da água com a parede, embora tenha admitido que a causa das infiltrações também pudesse ser a má execução da caleira existente no fundo telhado e sobre a parede. Explicou, por último que os ensaios consistiram unicamente no lançamento de baldes de água no terraço do executado e no espaço junto à chaminé de forma verificar para onde a água se encaminhava.

Por sua vez, o perito de que a Sra. Juíza se socorreu na realização da inspecção judicial, depois de proceder a ensaio semelhante ao realizado pelo primeiro perito, concluiu que as obras realizadas afastam a água da parede e permitem o encaminhamento para a via pública através do terraço, não havendo empoçamento, mas que não podia garantir a eficácia da impermeabilização.

Estes pareceres dos peritos, se inculcam que as obras realizadas pelos executados obviam ao empoçamento, no seu terraço de água das chuvas, não convencem, porém, para além de toda a dúvida razoável, que impeçam, de todo, em absoluto, a migração de água para o interior da parede dos exequentes.

Neste sentido, a resposta encontrada pelo decisor da 1ª instância para o ponto 1 da base instrutória – de que devido ao rebordo e à massa de cimento, apenas parte da água que cai no terraço escorre imediatamente para fora da placa, não deve ter-se por errónea.

Erro que, em todo o caso, nunca decorreria do facto de se ter julgado provado que aquelas obras impedem o empoçamento da água: é que deste último facto, não decorre, como corolário, que não pode ser recusado, que toda a água escorra para fora da laje. Mesmo abstraindo da possibilidade da infiltração decorrer durante o processo de escorrimento, aquela consequência apenas deveria admitir-se se com o escoamento, as superfícies ficassem imediatamente secas, o que, tendo em conta os materiais aplicados, e o seu estado de degradação, não pode ter-se por irrecusável.

Em absoluto remate: apesar da refracção provocada pela distância entre este tribunal e as provas e o modo como delas conheceu, não há motivo para que se conclua que a decisão da matéria de facto contém um error in judicando e, portanto, para modificar esse julgamento. Um tal julgamento dos factos provados, considerado, ao menos a posteriori, à luz das regras da lógica, da experiência e de critérios sociais, é, de todo, razoável.

Obtemperam, enfim, os recorrentes que os apelados não alegaram nem provaram a existência de quaisquer infiltrações de águas nas paredes do seu prédio, nem o nexo de causalidade adequada entre as infiltrações de água nas paredes e as obras que levaram a cabo.

Simplesmente, esta alegação não tem em devida e boa conta as regras a que obedece, na oposição, a prova dos respectivos fundamentos.

3.5. Prova dos fundamentos da oposição.

A oposição mais não constitui que um processo declarativo instaurado pelo executado contra o exequente, que corre por apenso à execução, constituindo um incidente desta (artº 817 nº 1 do CPC).

A oposição por embargos fundamenta-se num vício que afecta a execução. Se for julgada procedente, a acção executiva deve ser julgada extinta, no todo ou em parte.

No tocante ao ónus da prova dos fundamentos da oposição valem as regras gerais, cabendo, portanto, ao executado embargante a prova dos fundamentos de oposição invocados, dado que revestem a nítida feição de factos constitutivos da oposição deduzida (artº 342 nº 1 do Código Civil).

O encargo da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito cuja satisfação coactiva constitui objecto da execução recai, pois, sobre o opoente[21].

Portanto, a oposição não provoca qualquer refracção às regras gerais sobre a distribuição do ónus da prova.

Assim, por exemplo, se o executado impugnar a letra ou assinatura do documento particular que constitua o título executivo, cabe ao exequente, que o apresentou, a prova da veracidade de uma e de outra (artº 374 nº 2 do Código Civil)[22].

Pela mesma razão, é sobre o executado, subscritor da letra emitida em branco, preenchida posteriormente, que serve de suporte à execução, que recai o ónus da prova da existência do acordo de preenchimento e da sua inobservância[23].

No caso, é portanto, sobre os recorrentes que recai o encargo de provar o cumprimento, dada o carácter extintivo deste facto relativamente ao direito à prestação que constitui objecto da execução (artº 342 nº 2 do Código Civil).

Já se notou que a obrigação a que os recorrentes se vincularam é uma obrigação de resultado e que, portanto, aqueles devem não só o comportamento – mas também o resultado.

Os recorrentes, porém, não se livraram desse ónus e, por isso, há que decidir contra eles, parte onerada com a prova, a questão correspondente (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil).

 Do mesmo modo, já se observou que aquela obrigação emerge de um contrato processual e, portanto, tem natureza negocial: vale, por isso, em toda a sua extensão a presunção de culpa característica da responsabilidade ex-contractu (artº 799 nº 1 do Código Civil).

E sendo isto irrecusável, irrecusável é também a improcedência do recurso.

As custas do recurso serão satisfeitas, por virtude da sua sucumbência, pelos recorrentes (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artºs 6 nº 2 deste diploma legal e 8 nº 1 e 9 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso

Custas pelos recorrentes, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B, integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] Cfr., v.g., Ricardo Lucas Ribeiro, Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, Coimbra Editora, 2010, págs. 19 a 28, Pedro Múrias e Maria de Lurdes Pereira, Obrigações de Meios, Obrigações de Resultado e Custos da Prestação, www. Obrigações de Meios, Obrigações de Resultado e Custos da Prestação, MúriasJurídico.pt., e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, 2009, Almedina, Coimbra, págs. 442 a 454.
[2] Acs. do STJ de 28.01.97, CJ, STJ, T V, I, pág. 83, 29.05.91, BMJ nº 407, pág. 446, 05.12.02, 18.09.03 e 24.02.05, www.dgsi.pt. e da RP de 14.03.95 e 22.05.00, www.dgsi.pt. Cfr., em sentido concordante, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2004, pág. 227 e, em sentido dubitativo, Paula Costa e Silva, Acto e Processo, Coimbra, 2003, págs. 63 e ss. Note-se, porém, que alguma jurisprudência adiciona, aos critérios de interpretação da declaração negocial, as directrizes da interpretação da lei: cfr. os Acs. do STJ de 03.12.98 e 05.11.98, www.dgsi.pt. No sentido da aplicação à interpretação da decisão judicial dos princípios comuns à interpretação do negócio jurídico e da lei, Antunes Varela, RLJ, Ano 124, pág. 152.
[3] À luz desta jurisprudência a interpretação dos actos processuais surge marcada por um princípio da unidade, visto que os actos das partes estão também sujeitos aos mesmos critérios interpretativos. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, pág. 98.
[4] Acs. do STJ de 13.04.94, CJ, STJ, II, pág. 32 e da RL de 15.02.96, CJ, XXI, I, pág. 121.
[5] Para uma resenha sobre as opiniões doutrinárias quanto á consagração no artº 236 do CC de um critério objectivista ou subjectivista, cfr. Santos Júnior, Sobre a Teoria da Interpretação dos Negócios Jurídicos, AAFDL, 1988, págs. 144 a 150.
[6] Galvão Teles, Dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, pág. 445.
[7] Ac. da RE de 16.12.93, BMJ nº 432, pág. 453.
[8] Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jurisprudência, BFDUC, Vol. XLVIII, Coimbra, 1972, pág. 227.
[9] Ac. do STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[10] Acs. da RL de 10.11.05 e de 19.02.04, www.dgsi.pt. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 150.
[11] Eurico Lopes Cardoso, BMJ nº 80, págs. 220 e 221.
[12] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274.
[13] Acs. do STJ 08.11.95, CJ, STJ, 95, III, pág. 293 e da RP de 20.02.01, www.dgsi.pt.
[14] Ac. do STJ de 29.09.95, www.dgsi.pt.
[15] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[16] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[17] Antunes Varela, RLJ Ano 116, pág. 330.
[18] Acs. da RP de 29.03.93 e da RE de 11.11.94, BMJ nºs 425, pág. 627 e 441, pág. 421. Cfr., contudo, em sentido aparentemente contrário, o Ac. da RP de 29.4.98, BMJ nº 476, pág. 489.
[19] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 263 e 264.
[20] Carlos Lopes do Rego, O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo da Filiação, in, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, págs. 789 e 780.
[21] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pág. 177.
[22] Cfr., v.g., Acs. da RC de 06.02.90, BMJ nº 394, pág. nº 330, pág. 543 e da RL de 04.11.97, BMJ nº 471, pág. 448.
[23] Assim, no tocante a cheque emitido com data em branco, completado posteriormente, cfr. o Assento do STJ de 14 de Maio de 1996, DR, II Série, de 11 de Julho de 1996. Cfr. Acs. do STJ de 28.07.92, BMJ nº 219, pág. 235 de 28.05.96, BMJ nº 457, pág., 401, de 17.04.08 e 23.04.09, www.dgsi.pt., da RP de 21.10.96, CJ, 96, V, pág. 183, e 27.01.98, CJ, STJ, 98, I, pág. 40. No caso de non liquet, aplicam-se igualmente, quer as regras gerais quer as eventuais regras especiais (artºs 516 do CPC e 346 nº 2 do Código Civil). Cfr. Ac. da RP de 05.02.98, CJ, 98, I, pág. 207.