Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/23.4YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
MDE
DUPLA INCRIMINAÇÃO
CRIME DE EVASÃO
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: N
Texto Integral: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: RECUSADA A EXECUÇÃO DO MANDADO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 11.º, 12.º, 21.º E 40.º DA LEI N.º 65/2003 DE 23 DE AGOSTO
DECISÃO QUADRO Nº 2002/584/JAI, DO CONSELHO, DE 13 DE JUNHO
ARTIGO 19.º E 352º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - O mandado de detenção europeu é um instrumento de cooperação judiciária entre as autoridades judiciárias dos Estados membros da EU, não tem intervenção do poder executivo, e visa a detenção e entrega por um Estado membro de uma pessoa procurada por outro Estado membro, que emite o mandado, para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

II - O MDE é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados membros da UE, em conformidade com o disposto na Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, e na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, suprimindo o recurso à extradição.

III - Traduzindo a execução de um mandado de detenção europeu uma restrição importante do direito fundamental à liberdade num horizonte territorial alargado e dado o período de tempo em que a detenção potencialmente se pode manter sem que seja tomada a decisão final de entrega, a sua prossecução e a decisão que a montante é tomada quanto à sua emissão devem obedecer aos princípios da legalidade, da excepcionalidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade lato sensu.

IV - O MDE engancha teleologicamente na concepção de celeridade e de eficácia da cooperação judiciária europeia em matéria penal, mas não pode sacrificar os direitos fundamentais, sob pena de se deificar a descoberta da verdade e a realização da justiça e de se niilificar a protecção dos direitos fundamentais da pessoa procurada e de todos os outros.

V - No processo de execução de MDE a intervenção do tribunal do Estado de execução é restrita à verificação da regularidade do mandado, dos requisitos formais do mandado, à ocorrência de eventual situação de recusa da sua execução e ao controle do respeito pelos direitos fundamentais, não tendo de se pronunciar sobre a bondade, utilidade, adequação ou oportunidade da emissão do MDE.

VI - A reserva de soberania a que o MDE está sujeito impõe, nalguns casos, à autoridade judiciária portuguesa a recusa de execução do mandado, noutros permite-lhe a recusa do mandado e noutros ainda impõe a prestação de garantias especiais por parte do Estado membro de emissão para que o mandado possa ser executado.

VII - No caso de emissão de mandado pela prática do crime de evasão há necessidade da verificação da dupla incriminação, ou seja, verificar se o comportamento imputado também constitui infracção punível em Portugal, porque a infracção não consta do elenco do artigo 2.º, n.º 2, da Lei.

VIII - No caso, estando o requerido em cumprimento de pena de semi-liberdade, sem qualquer vigilância electrónica, não estava objectivamente privado de liberdade quando decidiu não regressar no término da licença, pressuposto do crime de evasão, resultando daqui que a infracção que motivou a emissão do MDE não constitui crime em Portugal.

Decisão Texto Integral: *

I – RELATÓRIO

1. O Ministério Público veio, ao abrigo do artigo 16º, nº 1, da Lei nº 65/2003, de 23/8, alterada pelas Leis nºs 35/2015, de 4/5 e 115/2019, de 12/09, requerer a execução do mandado de detenção europeu relativo a:

AA … nos termos e com os fundamentos seguintes:

«1º Pela Autoridade Judiciária competente do Tribunal Judicial da Comarca de Aix en Provence, França, no âmbito do Processo nº ...2, foi emitido, em 4.02.2021, um Mandado de Detenção Europeu e inserido no Sistema de Informação Schengen …

2º Mandado e inserção esses emitidos para efeitos de procedimento criminal, pela circunstância de o requerido se ter evadido, por não ter regressado ao estabelecimento prisional em ..., onde se encontrava preso um cumprimento de uma pena de semiliberdade, entre 5 de novembro de 2020 e 22 de janeiro de 2021.

3º Os factos integram a prática do crime de evasão, previsto no art. 434-27; 434-29; 434-31; 434-36; 434-44 do Código Penal Francês, punível com uma pena cujo máximo pode ascender a 3 (três) anos de prisão.

4º A G.N.R. deteve o requerido no dia de ontem, 17 de janeiro de 2023, pelas 12h10m, na ..., tendo feito a sua comunicação ao Tribunal da Relação de Coimbra, para efeitos de consideração e validação da detenção no âmbito de um Mandado de Detenção Europeu.

5º … ao presente pedido é aplicável a Lei nº 65/2003, de 23 de agosto – que aprovou o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu – em transposição da Decisão-Quadro Nº. 2002/584/JAI do Conselho, de 13.07.2002.

6º Quer a inserção no sistema SIS da indiciação de existência de um Mandado de Detenção Europeu e da necessidade de procurar e deter o requerido, quer a sua detenção, foram legais.

7º Os factos que justificam a emissão do Mandado de Detenção Europeu e a inserção SIS … poderão constituir, em abstrato, perante a lei portuguesa, a eventual comissão do crime de evasão, p.p. pelo art. 352º, nº 1 do Código Penal, com uma pena até 2 (dois) anos de prisão.

8º Pelo crime imputado pode ser emitido mandado de detenção europeu, nos termos do art. 2º, nº 1, da Lei nº 65/03, de 23 de agosto.

9º O presente MDE cumpre e obedece aos requisitos dos art.os 1º, 2º, 3º, 4º, nº 1 e 4, 5º, nº 3 da mesma lei.

10º As Autoridades Francesas comprometeram-se a apresentar o original do Mandado de Detenção Europeu …

11º Uma vez que o requerido tem nacionalidade Portuguesa e é residente em Portugal, poderá, nos termos do artº 13º, nº 1, alínea b) da referida Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, na redação dada pela Lei nº 35/2015 de 04-05, ser declarado que a decisão de entrega às Autoridades Francesas fica sujeita à condição de o requerido ser devolvido a Portugal a fim de aqui poder cumprir a pena que eventualmente lhe vier a ser aplicada.

12º O regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, em transposição da Decisão-Quadro nº. 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de julho de 2002, fundamenta-se no princípio do reconhecimento mútuo e da confiança entre os Estados Membros, sendo a República Francesa membro da União Europeia, e tendo subscrito a Convenção Europeia de Extradição, o Acordo de Schengen e aquela Decisão Quadro nº 2002/584/JAI.

13º O Tribunal da Relação de Coimbra é o competente para o processo de execução do presente Mandado de Detenção Europeu, nos termos do art. 15º, nº 1, da referida Lei nº 65/03.

14º E o Ministério Público tem legitimidade para requerer a execução do mesmo, nos termos do art. 16º, nº 1, desta mesma Lei nº 65/03.

Termos em que e nos mais de Direito, se requer a V.ª Ex.ª que, no caso de o requerido não ter ainda constituído advogado, lhe seja nomeado defensor, e se proceda à audição do mesmo, nos termos do art. 18º da referida Lei, validando-se e mantendo-se a detenção, seguindo-se depois os ulteriores termos legais».

2. Após detenção … foi a mesma ouvida em 18 de Janeiro de 2023, dentro do prazo legal para o efeito, tendo ela declarado não renunciar ao princípio da especialidade [1]e opor-se à sua entrega …

Nessa data foi fixado o seguinte estatuto coactivo: TIR, obrigação de se apresentar duas vezes por semana no OPC mais perto da sua residência e proibição de se ausentar do país sem autorização.

5. Foi solicitado ao Tribunal de Aix-en-Provence o envio de cópia da decisão que condenou o arguido na pena de semiliberdade, a cujo cumprimento o mesmo «se evadiu», e que fundamenta o ilícito que motivou a emissão do presente MDE.

Até hoje, nada foi respondido pelo tribunal francês.

6. O Exmº Procurador da República entendeu dar o seu PARECER no dia 13/3/2023, promovendo a recusa da execução deste MDE em virtude de o facto que motivou a emissão do MDE não constituir crime de acordo com a lei portuguesa (cfr. artigo 2º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23/8).

7. O tribunal é o competente e não ocorrem nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir com celeridade, assente que o prazo de 60 dias referido no artigo 26º, nº 2 do diploma em causa precludiu em 18/3/2023, ou seja, há 4 dias, assente que já consta dos autos suficiente documentação que nos levará a decidir do mérito da causa.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Da documentação junta aos autos (nomeadamente do que consta de fls 18 a 32, e 64 a 82) resulta que:

A)- Pela Autoridade Judiciária competente do Tribunal Judicial da Comarca de Aix en Provence, França, no âmbito do Processo nº ...2, foi emitido, em 4.02.2021, um Mandado de Detenção Europeu e inserido no Sistema de Informação Schengen …

B)- Tais mandados foram emitidos para efeitos de procedimento criminal contra o requerido, pela circunstância de ele não ter regressado ao Estabelecimento Prisional em ..., onde se encontrava em cumprimento de uma pena de semiliberdade.

C)- O requerido não regressou ao Estabelecimento Prisional onde se encontrava detido em regime de semiliberdade, na sequência de saída precária que lhe foi concedida, «não estando aí integrado entre 5 de novembro de 2020 e 22 de janeiro de 2021».

D)- Após emissão do competente MDE, foi o requerido detido em Portugal.

2. Tendo em conta estes factos, vejamos se é de deferir ou não a entrega da pessoa procurada.

*

O mandado de detenção europeu é um instrumento de cooperação judiciária entre autoridades judiciárias dos Estados membros da UE que visa a detenção e entrega por um Estado membro de uma pessoa procurada por outro Estado membro, que emite o mandado, para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (artº 1º da Lei nº 65/2003 de 23/8).

Trata-se de um procedimento em que a cooperação se faz directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados membros sem qualquer intervenção do poder executivo e que é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo que, por sua vez, assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados membros da UE, em conformidade com o disposto naquela Lei e na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13/06) – destina-se, enfim, a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, suprimindo o recurso à extradição.

A legislação portuguesa – Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, já duas vezes revista, que implementou na ordem jurídica nacional a dita Decisão-Quadro -, é aplicável a todos os pedidos recebidos após a sua entrada em vigor com origem em Estados-Membros da União Europeia que tenham implementado a referida Decisão-Quadro (cfr. artigo 40º, da citada lei), como é o caso da França.

Tem sido entendido que, traduzindo-se a execução de um mandado de detenção europeu uma restrição importante de um direito fundamental como o direito à liberdade, num horizonte territorial alargado, tendo em conta, igualmente, o período de tempo em que a detenção potencialmente se pode manter sem que seja tomada a decisão final de entrega, não só a sua prossecução, mas também a decisão que a montante é tomada quanto à sua emissão, deverão obedecer aos princípios da legalidade, da excepcionalidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade lato sensu.

O Mandado de Detenção Europeu engancha teleologicamente na concepção de celeridade e de eficácia da cooperação judiciária europeia em matéria penal e ancora nos princípios do reconhecimento mútuo das decisões judiciárias penais e da confiança mútua e, ainda, é gerador de "desconfiança" e de precauções normativas e interpretativas na abolição (relativa) do princípio da dupla incriminação.

Deparamo-nos, assim, com a equação jurídico-criminal de os anseios estratégico-políticos europeus despirem o direito penal do seu magnânime princípio de ultima et extrema ratio e da sua função de equilíbrio entre a tutela dos bens jurídicos individuais e supra-individuais e a tutela dos interesses e direitos do delinquente.

Contudo, o Mandado de Detenção Europeu não pode sacrificar os direitos fundamentais, sob pena de se deificar a descoberta da verdade e a realização da justiça e de se niilificar a protecção dos direitos fundamentais - da pessoa procurada e de todos os outros. Este caminho pode, por um lado, distorcer o equilíbrio imposto pela "concordância prática" e, por outro, fomentar uma descoloração total da paz jurídica no espaço da União e desvirtuar o espaço de liberdade, de justiça e de segurança.

A Lei nº 65/03 é aplicável aos pedidos de detenção originados em qualquer dos Estados membros da União Europeia, e desde já aos que transpuseram a DQ, os mesmos são de aceitar, se formulados através da:

transmissão, após 1/1/04, do original de um mandado de detenção emitido por uma sua autoridade competente, directamente ou através de contacto da Rede Judiciária Europeia, nos termos dos arts. 9º nº 1 da DQ, 4º nº 1 e 5º nºs 1 e 4, e 40º da Lei 65/03;

indicação inserida, após a mesma data, no sistema de Informação de Schengen (SIS), após 1/1/04, da qual constem os elementos constantes do modelo anexo à referida DQ (semelhante ao que consta em anexo à Lei nº 65/2003).

Os sujeitos do mandado de detenção podem ser qualquer pessoa maior de 16 anos (artigos 4º nº 6 da LQ, 11º al. c), 12º nº 1 al. g) da mesma Lei e 19º do Código Penal, doravante CP), com ou sem entrega de objectos, sejam eles:

cidadão “nacional”;

cidadão estrangeiro, “residente” no país;

cidadão estrangeiro que se “encontre” no país.

O objecto do dito mandado de detenção é, em geral:

procedimento penal, por crime punível com prisão não inferior a 12 meses; ou

cumprimento de pena de prisão não inferior a 4 meses; ou

cumprimento de medida de segurança não inferior a 4 meses.

Adiantam ainda os nºs 2 e 3 artigo 2º do diploma:

«2 - Será concedida a entrega da pessoa procurada com base num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as seguintes infrações, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos:

Participação numa organização criminosa;

Terrorismo;

Tráfico de seres humanos;

Exploração sexual de crianças e pedopornografia;

Tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas;

Tráfico ilícito de armas, munições e explosivos;

Corrupção;

Fraude, incluindo a fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, na acepção da convenção de 26 de Julho de 1995 relativa à protecção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias;

Branqueamento dos produtos do crime;

Falsificação de moeda, incluindo a contrafacção do euro;

Cibercriminalidade;

Crimes contra o ambiente, incluindo o tráfico ilícito de espécies animais ameaçadas e de espécies e essências vegetais ameaçadas;

Auxílio à entrada e à permanência irregulares;

Homicídio voluntário e ofensas corporais graves;

Tráfico ilícito de órgãos e de tecidos humanos;

Rapto, sequestro e tomada de reféns;

Racismo e xenofobia;

Roubo organizado ou à mão armada;

Tráfico de bens culturais, incluindo antiguidades e obras de arte;

Burla;

Extorsão de protecção e extorsão;

Contrafacção e piratagem de produtos;

Falsificação de documentos administrativos e respectivo tráfico;

Falsificação de meios de pagamento;

Tráfico ilícito de substâncias hormonais e outros factores de crescimento;

Tráfico ilícito de materiais nucleares e radioactivos;

Tráfico de veículos roubados;

Violação;

Fogo posto;

Crimes abrangidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional;

Desvio de avião ou navio;

Sabotagem.

3 - No que respeita às infracções não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação».

Ou seja, será concedida a extradição com origem num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as infracções, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, constantes do elenco previsto no artº 2º da dita Lei.

Ou seja:

Neste processo de execução de MDE, o grau de intervenção do tribunal do Estado de execução é exíguo, sendo muito limitada a actividade judicial a exercer, restrita à verificação da regularidade do mandado, dos requisitos formais do mandado (artigo 3º da Lei nº 65/2003) e à ocorrência de eventual situação de recusa da sua execução (artigos 11º e 12º), bem como ao controle do respeito pelos direitos fundamentais, não tendo de se pronunciar sobre a bondade, utilidade, adequação ou oportunidade da emissão do MDE.

E assim é, porque, como refere o acórdão do STJ de 9/5/2012, proferido no processo nº 27/12.0YRCBR.S1 - 3.ª Secção, «a decisão do Estado emitente do MDE, desde que seja tomada por autoridade judiciária competente à luz do direito interno daquele Estado e em conformidade com aquele direito, tem um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, produzindo a decisão judiciária do Estado emitente efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada pela autoridade judiciária nacional».

3. O objecto desta decisão é o MDE que consta dos autos.

No caso, o crime em causa – de «evasão» (cfr. artigo 434-29, nº 3 do Código Penal francês e artigo 352º, nº 1 do Código Penal português) - não consta do elenco de catálogo do nº 2 do artigo 2º.

Se assim é, há necessidade da verificação da dupla incriminação do artigo 2º, nº 3 da Lei nº 65/2003 (ou seja, este comportamento imputado ao requerido tem de também constituir infracção punível em Portugal).

Em ambos os casos, a pena cominada é sempre superior aos 12 meses referidos no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 65/2003.

Não obstante, o MDE está sujeito a uma reserva de soberania que, nalguns casos impõe à autoridade judiciária portuguesa a recusa de execução do mandado (artigo 11º), noutros permite-lhe a recusa do mandado (artigo 12º) e noutros ainda impõe a prestação de garantias especiais por parte do Estado membro de emissão para que o mandado possa ser executado (artigo 13º).

Nos termos do artigo 21º da Lei nº 65/2003, a pessoa procurada pode opor-se e não consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão mas essa oposição só pode fundar-se no erro na identidade do detido ou na existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu (nº 2).

4. Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do MDE em causa, que observa o disposto no artigo 3º, da citada Lei, foi recepcionado em boa e devida forma e está devidamente traduzido para português (artigos 39º e 3º, nº 2, da mencionada Lei).

Já o vimos - nos termos do artigo 21º, nº 2, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, a oposição pode ter por fundamento o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa do MDE.

No caso em apreço, não há dúvidas quanto à identidade do requerido.

Apesar de o requerido não ter apresentado oposição escrita, perante o relator deste aresto declarou, em 18/1/2023, não consentir na sua entrega às Autoridades Francesas.

Por isso, deve esta Relação conhecer oficiosamente as causas de recusa previstas na lei.

São causas de recusa obrigatória as seguintes …

«a) A infracção que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infracção;

b) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado membro onde foi proferida a decisão;

c) A pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

f)[2] O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infração punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infração não incluída no nº 2 do artigo 2º» 

Por sua vez, constituem causas de recusa facultativa[3] (artigo 12º, da mencionada Lei):

b) Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;      

c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido arquivado o respectivo processo;

d) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro em condições que obstem ao ulterior exercício da acção penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11º;

e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

f) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei portuguesa;

g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;

h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:

i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou

ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.

As causas de recusa facultativa de execução constantes do artigo 12°, nº 1, da Lei nº 65/2003, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.

Importa ainda reter, a propósito das causas de recusa facultativa de execução do MDE, que as causas previstas no artigo 12º não funcionam imperativamente, uma vez verificadas, como se alcança, aliás, pela própria natureza que lhes foi atribuída, causas facultativas, e pelo teor literal do proémio do nº 1, na parte em que menciona que “a execução do mandado europeu pode ser recusada...”.

5. Vejamos então a causa de recusa obrigatória prevista no artigo 11º, alínea f).

O requerido não regressou de uma saída precária que lhe foi concedida em França, tendo estado aí a cumprir uma pena de prisão em regime de semiliberdade.

É isto que consta dos autos.

E só isso nos pode vincular.

Constitui tal conduta CRIME em Portugal?

Em França sê-lo-á (cfr. artigo 434-29, onde se estatui que «constituiu ainda evasão punível com as mesmas penas o facto: 3º- por qualquer condenado, de não regressar ao estabelecimento penitenciário na sequência de medida de suspensão ou fracionamento da prisão, colocação no exterior, semi-liberdade[4] ou autorização de saída [5]»).

Em Portugal, só existe crime de evasão quando alguém foge de uma reclusão - «quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir, é punido com pena de prisão até 2 anos».

E a propósito do que se deve entender por «privação de liberdade», ouçam-se estas correntes jurisprudenciais existentes entre nós:

1º)

«O recluso a quem foi concedida uma licença de saída de curta duração encontrando-se no gozo de liberdade, concedida pela autoridade competente que ordenou a cessação temporária da privação fáctica da liberdade, e ao não se apresentar, não comete o crime de evasão, porque não se encontrava objectivamente privado da liberdade.

A consequência desse não regresso integra a verificação de uma situação de ausência ilegítima, decorrente da desobediência à ordem de apresentação no estabelecimento prisional no fim daquele período de três dias que durou até à data em que foi recapturado, implica a revogação da saída e o desconto na pena a cumprir de todo o tempo em que permaneceu em ausência ilegítima, com se refere nos artigos 80º nºs1 a 3, 85º, nºs 3 e 4, e 141º alínea h) do Código de Execução das Penas, na redacção introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto».

2º)

«I - No artigo 392º do Código Penal de 1982, o crime de evasão era aplicável “à pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reações criminais privativas da liberdade”, isto é, ao evadido que se encontrasse em prisão preventiva ou em cumprimento de pena de prisão ou de internamento.

II - O legislador da reforma de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15/3) veio introduzir, no atual artigo 352º do Código Penal, a expressão abrangente “encontrando-se legalmente privado da liberdade”.

III - Com esta expressão substitutiva quis a Comissão Revisora do Código Penal abranger precisamente as pessoas submetidas a medida de segurança privativa da liberdade, prisão preventiva e obrigação de permanência no domicílio.

IV - Por isso, somos levados a concluir no sentido de que comete o crime de evasão também aquele que encontrar privado da liberdade por estar sujeito a obrigação de permanência na habitação aplicada como medida de coacção».

Ou seja:

No nosso caso, o requerido – em cumprimento de uma pena de semi-liberdade, sem qualquer vigilância electrónica - não estava objectivamente privado de liberdade quando decide não regressar no término da sua licença.

E se assim é, não se evadiu.

É o que nos basta para entender que a infracção que motivou este MDE não constitui crime em Portugal, tanto mais ainda que, no nosso país, desde a entrada em vigor da Lei nº 94/2017, de 24/8, foi eliminado do espectro das nossas penas o regime da prisão por dias livres e o regime de semidetenção, este último, aparentado com o regime francês.

Aqui concorda-se com o Exmº Magistrado do MP nesta instância quando refere que este é mais um fundamento para considerar descriminalizada no nosso ordenamento jurídico-penal a ausência ilegítima após a concessão de uma saída precária, o que enfraquece a possibilidade de fazer cumprir este MDE.

6. Como tal, e sem necessidade de acrescida fundamentação, só há que indeferir a execução deste Mandado de Detenção Europeu, determinando este tribunal a recusa da sua execução nos termos legais acima explanados.

III. DECISÃO

1. Pelo exposto, e nos termos do artigo 22º/1 da Lei nº 65/2003 de 23/8, acordam os Juízes da 5ª secção - criminal - deste Tribunal da Relação em, indeferindo ao requerido, RECUSAR A EXECUÇÃO DO PRESENTE MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU contra AA, não se ordenando a entrega de tal requerido, de nacionalidade portuguesa, às autoridades francesas para os efeitos nele previstos.

2. Notifique o requerido e seu ilustre mandatário e comunique ao GNI, ao Gabinete Nacional do SIRENE, à PGR, e à entidade emissora do MDE.

3. Sem custas.

4. Julgo cessada as medidas coactivas aplicadas ao requerido, devendo comunicar-se ao Posto da GNR ....

Coimbra, 22 de Março de 2023

(processado e revisto pelo relator e seus adjuntos)

Paulo Guerra

Alcina da Costa Ribeiro

Cristina Pêgo Branco





[1] O princípio da especialidade – inato ao instituto tradicional da extradição, que traduz a limitação do âmbito penal substantivo do pedido, cuja abrangência se encontrava vedada e circunscrita aos factos motivadores do pedido de extradição – surge como uma garantia da pessoa procurada e como limite da acção penal ou da execução da pena ou da medida de segurança e representa uma segurança jurídica de que não será julgada por crime diverso do que fundamenta o Mandado de Detenção Europeu (MDE), ou que não cumprirá sanção diversa da que consta do MDE.
[2] As alíneas d) e e) estão hoje revogadas por força da aplicação directa do artigo 5º da Lei nº 35/2015, de 4 de Maio.
[3] As causas de recusa a que alude o invocado artigo 12º da Lei nº.65/2003 são motivos que não desencadeiam obrigatoriamente a recusa, mas sim que podem facultativamente implicá-la. Dependem como tal de uma apreciação do Estado de execução, “in casu” do Tribunal da Relação competente – v.art.15º da Lei nº 65/2003 -, de modo a perpetrar um juízo de hermenêutica e de ponderação da tutela de interesses juridicamente protegidos em conflito.
[4] Em penas de prisão efectivas inferiores a dois anos, é possível, em França, em certas condições, aplicar uma pena de prisão em regime de semi-liberdade ou prisão domiciliária com vigilância eletrónica.
Em França, tal como em Portugal, defende-se que a pena de prisão deve ser aplicada apenas quando não houver mais nenhuma opção.
Desta forma, o legislador tem reduzido os casos em que a prisão é a única opção.
A questão das penas de substituição tem vindo a merecer cada vez mais importância, sendo o “trabalho de
interesse geral” o mecanismo mais eficaz de todas as penas de substituição.
A “semidetenção” (ou semi-liberdade) em França, é utilizada, sobretudo, na fase intermédia entre a vida prisional e o regresso à vida em liberdade. Esta é igualmente condição prévia para a obtenção da “liberdade condicional”.
Prevê o artigo 132º-25 que, quando o tribunal condena numa pena de prisão igual ou inferior a dois anos, ou no caso de “reincidência” numa pena igual ou inferior a um ano, pode ser estabelecido na sentença condenatória que a pena será cumprida em regime de “semidetenção”.
Este regime permite que o condenado possa exercer a sua actividade profissional, ainda que temporariamente; pode participar no essencial na sua vida familiar; se for o caso, pode beneficiar de tratamento médico; podendo, assim, obter a sua reintegração social mais rapidamente.
Ao abrigo do vertido no artigo 132º-26 o cumprimento e a duração da pena são determinados pelo tribunal na sentença condenatória.
O cumprimento da pena no estabelecimento prisional vai depender do tempo necessário para a sua actividade ou formação profissional, tal como foi estabelecido pelo tribunal.
No caso de incumprimento passa a exigir-se a permanência durante o dia na prisão e as suas obrigações externas são suspensas.
Em suma:
A semi-liberdade, enquanto colocação sob vigilância electrónica e colocação no exterior, é uma modificação da pena de prisão que permite ao condenado beneficiar de um regime especial de detenção que o autoriza a sair do estabelecimento penitenciário para o exercício de uma actividade profissional, seguir uma educação, formação profissional ou emprego temporário, procurar emprego, participar de forma essencial na vida familiar, submeter-se a tratamento médico ou investir-se em qualquer outro projeto de integração ou reintegração suscetível de prevenir o risco de reincidência.
[5] A versão original do diploma gaulês dita assim:
«Constitue également une évasion punie des mêmes peines le fait:
1º- Par un détenu placé dans un établissement sanitaire ou hospitalier, de se soustraire à la surveillance à laquelle il est soumis;
2º - Par tout condamné, de se soustraire au contrôle auquel il est soumis alors qu´il a fait l´objet d´une décision soit de placement à l´extérieur d´un établissement pénitentiaire, soit de détention à domicile sous surveillance électronique ou qu´il bénéficie soit du régime de la semi-liberté, soit d´une permission de sortir;
3º- Par tout condamné, de ne pas réintégrer l´établissement pénitentiaire à l´issue d´une mesure de suspension ou de fractionnement de l´emprisonnement, de placement à l´extérieur, de semi-liberté ou de permission de sortir;
4° Par tout condamné placé sous surveillance électronique, de neutraliser par quelque moyen que ce soit le procédé permettant de détecter à distance sa présence ou son absence dans le lieu désigné par le juge de l´application des peines».