Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
447/09.7TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ÂMBITO DA HERANÇA
DEPÓSITOS BANCÁRIOS
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 2031.º DO CÓDIGO CIVIL, E ARTIGOS 1338.º, N.º 2, 1340.º, Nº 3, E 1346.º, N.º 1, DO CPC DE 1961.
Sumário: I - Se no momento da abertura da sucessão, se constata que um depósito bancário de que o de cujus era titular ou contitular, patenteia um saldo nulo, a única coisa que, à certeza, com exactidão, se pode afirmar é que o património do autor da herança não é integrado por um crédito sobre o banco detentor do depósito – mas não que o dinheiro que nele estava depositado deixou de integrar aquele património.

II - Quando, no inventário se relacionam depósitos bancários, o que verdadeiramente se relaciona é o dinheiro objeto mediato do depósito e caso se deva reconhecer que esse dinheiro pertence ao relictum do autor da herança, ele deve figurar no inventário, com inteira indiferença pela circunstância, dolosa ou fortuita, de já não se mostrar depositado na conta de que aquele era contitular.

III - Na falta de prova de um negócio aquisitivo ou transmissivo oponível ao verdadeiro titular da propriedade económica do dinheiro, deve entender-se que o dinheiro continua integrado na herança e deve ser objeto de partilha pelos vários interessados de harmonia com a respetiva vocação sucessória.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

No processo de inventário judicial, para por termo à comunhão do património hereditário de AA, instaurado, no dia 5 de Fevereiro de 2009[1], por BB, CC e DD, que sob o n.º  447/09.... correu termos no ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., a cabeça-de-casal, EE, relacionou, por requerimento de 6 de Junho de 2014, entre outros, os bens seguintes:

Verba n.º 1: conta de depósito à ordem, na Banco 1..., n.º ...00, com o saldo, á data do óbito da inventariada, de € 5 039,45;

Verba n.º 2: conta de depósito à ordem, na Banco 1..., n.º ...30, com o saldo, à data do óbito da inventariada, de € 220 612,47, mas que em Julho de 2007, era de € 32,71 e na data da apresentação da relação de bens é de € 2 292, 16, conta movimentada pelo herdeiro FF, dali retirando numerário no valor de € 220 612,47, do qual procedeu à divisão com a herdeira GG, que dele veio a receber € 135 000,00, que de acordo com o testamento deve dividir com os restantes herdeiros, não o tendo feito até à data;

Verba n.º 9 – identificada com o n.º 10 nas relações de bens oferecidas nos dias 30 de Junho de 2014 e 1 de Fevereiro de 2019: conta de depósito a prazo, na Banco 1..., n.º ...20, com o saldo, á data do óbito, por ora se desconhece, mas que em Julho de 2007, era de € 6 868,11.

A interessada HH reclamou contra a relação de bens, pedindo:

a) No tocante à verba n.º 1, a eliminação do saldo existente à data do óbito da inventariada, bem como o existente em Julho e 14 de Novembro de 2007, por virtude de, desde o falecimento da inventariada, terem sido efectuados pagamentos, com dinheiro da conta, de dívidas da herança, restando o saldo actual de € 1 196,00, de que se deve relacionar, como pertencendo à herança, apenas 1/3, dado que, à data da morte da inventariada, a conta era titulada por esta, por si e por II; 

b) Relativamente à verba n.º 2, que do saldo, que aceita, na presente data, no valor de € 2 2 238,67 – dado que na data do falecimento da inventariada o saldo era zero - se deve relacionar, como pertencendo à herança, apenas 1/3, dado que, à data da morte da inventariada, a conta era titulada por esta, por si e por II; 

c) No que concerne à verba n.º 10 que do saldo, que à data do óbito da inventariada em Julho de 2007 era de € 6 868,11, sendo na presente data de € 2 444,80, - se deve relacionar, como pertencendo à herança, apenas 1/3, dado que, à data da morte da inventariada, a conta era titulada por esta, por si e por II.

Os interessados e requerentes do inventário BB, CC e DD, reclamaram também contra a relação de bens, acusando a falta  de relacionação da verba de € 270 000,00, pertencente à inventariada, mas que os interessados FF e HH partilharam entre si, em partes iguais, com o intuito de, cada em deles, distribuírem a parte com que ficaram com os demais interessados, o que não aconteceu e, em resposta à reclamação da última, afirmaram que a totalidade dos saldos das contas relacionadas sob as verbas n.ºs 1, 2 e 10 pertencia, em exclusivo, à inventariada.

Requisitada uma multiplicidade de informações à Banco 1..., detentora das contas relacionadas sob as vernas n.ºs 1, 2 e 10, por despacho de 31 de Maio de 2017, com fundamento em que a ilisão da presunção de comparticipação em partes iguais no crédito nas contas plurais solidárias competia aos interessados BB, CC e DD, que invocam que a totalidade do saldo das referidas contas pertencia em exclusivo à inventariada, a Sra. Juíza de Direito decidiu produzir apenas a prova por declarações de parte propostas por aqueles, diligência que teve lugar no dia 9 de Outubro de 2017, no decurso da qual foram ouvidos, em declarações de parte, os interessados CC, DD e JJ.

Entretanto, a interessada HH, produziu, no dia 27 de Setembro de 2018, requerimento com este conteúdo: HH, interessada nos autos supra identificados, cumprindo a notificação que lhe foi feita, vem dizer que a transferência efetuada em 11/01/2007, da conta nº ...30 da Banco 1..., no montante de € 220.612,47, foi a concretização da vontade da falecida de que o valor que efetivamente detinha nessa conta solidária revertesse a favor dos filhos da contitular II e da contitular HH e da irmã desta, KK.

A Sra. Juíza de Direito, por despacho de 28 de Dezembro de 2018 – com fundamento em que a totalidade do saldo das contas relacionadas sob as verbas nºs 1, 2 e 10 pertencia, em exclusivo à Inventariada - julgou improcedente a reclamação contra a relação de bens apresentada por HH e parcialmente procedente a apresentada por BB, CC e DD e determinou que os saldos que constituem as verbas n.ºs 1, 2 e 10 se mantenham relacionados na totalidade e que as verbas do activo n.ºs 1 e 10 passem a conter os saldos das contas bancárias à data do óbito da inventariada (.../.../2007), nos seguintes montantes:  verba n.º 1: € 5.040,45 e verba n.º 10: € 6.868,11.

A interessada HH, por requerimento de 17 de Janeiro de 2019, logo interpôs recurso desta decisão que, porém, por despacho proferido no dia 4 de Março do mesmo ano, foi indeferido com o fundamento de que aquela decisão não admitia recurso autónomo.

Realizada a conferência de interessados e elaborado o mapa da partilha de harmonia com o despacho determinativo -  que ordenou a realização da partilha com obediência das disposições do testamento público outorgado no dia 22 de Dezembro de 1992 pela inventariada – proferiu-se a sentença homologatória da partilha.

É justamente a sentença que julgou a partilha e, bem assim, o despacho, proferido no dia 28 de Dezembro de 2018, que decidiu as reclamações contra a relação de bens, que a interessada impugna no recurso, no qual a pede a sua revogação e substituição por acórdão que:

a) – Julgue não provado o facto inserto em 3 dos factos considerados provados na decisão recorrida de 27/11/2018, e, consequentemente,

b) – Determine que a quantia de € 220.612,47 referente à verba n.º 2 não seja objeto de relacionação, por não integrar o património da inventariada à data do seu falecimento;

c) - Determine que relativamente às verbas nºs. 1 e 10 (verba 9 da nova relação de bens apresentada em 01/02/2019) apenas seja relacionado um terço do saldo que cada uma destas contas apresentava à data do óbito da inventariada, ou seja, € 1.680,15 e € 2.289,37, respetivamente

A impugnante rematou a sua alegação com estas conclusões:

I. Quanto ao valor de € 220.612,47 da conta da verba nº 2.

1ª – A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor.

2ª – A relação de bens a apresentar no inventário só deve conter os direitos patrimoniais do autor da herança, com referência à data da abertura da sucessão.

3ª – Assim, só os direitos patrimoniais da inventariada existentes à data da sua morte é que devem ser relacionados.

4ª – A quantia de € 220.612,47 da conta da verba nº 2 não existia no património da inventariada à hora da sua morte.

5ª – A conta desta verba era solidária com três titulares, podendo ser movimentada com a assinatura da cotitular inventariada ou com a assinatura conjunta das cotitulares HH e II.

6ª – A recorrente, na reclamação que apresentou contra a relação de bens, expressamente, referiu que tal conta era solidária e com três titulares, pertencendo 1/3 dessa conta à inventariada, 1/3 a si própria e o outro 1/3 à II.

7ª – Nessa sequência e contrariamente ao que vem entendido na sentença que decidiu os incidentes da reclamação contra a relação de bens e, consequentemente, na sentença homologatória da partilha, a recorrente, no seu requerimento de 27/09/2018, não admitiu que o valor do saldo desta conta de € 220.612,47 pertencia à inventariada.

8ª – A recorrente, no seu requerimento de 27/09/2018, quando referiu que a transferência daquele montante efetuada em 11/01/2007, foi a concretização da vontade da inventariada de que o valor que efetivamente detinha nessa conta revertesse a favor dos filhos da cotitular II e da cotitular HH e da irmã desta, KK, mais não pretendeu dizer, e disse, que esse valor era o correspondente ao 1/3 de que a inventariada era dona nessa conta.

9ª - Se a ora recorrente quisesse dizer que tal saldo pertencia na totalidade à inventariada, então, limitar-se-ia a dizer que tal transferência foi a concretização da vontade da inventariada de que esse valor (€ 220.612,47) revertesse a favor de tais pessoas.

10ª - O vertido pela ora recorrente no aludido requerimento deve ser entendido na perspetiva que, desde o inicio do processo, por ela foi sempre sustentada.

11ª – As decisões recorridas fizeram uma interpretação abusiva do teor do aludido requerimento da ora recorrente.

12ª - Mais, neste requerimento, quando referiu que o aludido valor era para reverter a favor dos filhos da cotitular II e da cotitular HH e irmã, apenas quis referir-se aos filhos daquela e já não ao seu próprio filho.

13ª - O facto desta conta poder ser movimentada com a assinatura da inventariada ou com a assinatura conjunta da recorrente e da II, não permite retirar a ilação, como retirou o tribunal recorrido, de que o saldo da mesma pertencia só à inventariada.

14ª - Se fosse só da inventariada, então as demais titulares, sem a assinatura daquela, também não a deveriam poder movimentar.

15ª – De resto, com essa forma de movimentação, a inventariada não tinha possibilidade de controlar a conta.

16ª – Nos autos não existe qualquer prova de que o valor de € 220.612,47 transferido desta conta em 11/01/2007, ou qualquer outro valor desta, fosse proveniente de rendimentos da inventariada, pelo que,

17ª - A presunção de comparticipação, em partes iguais da inventariada e das demais cotitulares, resultante do disposto no artigo 516.º do Código Civil, não foi ilidida.

18ª – Consequentemente, o facto considerado provado sob n.º 3 na decisão recorrida de 27/11/2018 foi indevidamente considerado provado.

19ª - Ainda que se entendesse que o referido valor pertencia em exclusivo à cotitular inventariada, o que não se concede, jamais se pode considerar que a transferência dessa importância pelas demais cotitulares para uma conta bancária, titulada por uma destas e pelo filho da outra, constitua um crédito da massa da herança sobre estes últimos.

20ª – E que seja obrigatória a sua restituição à herança, sem que se demonstre que essa transferência é ilícita.

21ª - Até porque esta ocorreu antes do falecimento da inventariada e, conforme foi referido pela ora recorrente, no seu requerimento de 27/09/2018, a mesma foi a concretização da vontade da inventariada de que o valor que detinha nessa conta revertesse a favor das pessoas aí referidas.

22ª - O que significa que tal transferência foi lícita.

23ª - Era aos reclamantes BB, CC e DD, que pretendiam a inclusão de tal quantia na relação de bens, que incumbia a alegação e prova de factos demonstrativos da ilicitude dessa transferência, o que não fizeram.

II – Quanto aos saldos das verbas 1 e 10 (verba 9 da nova relação de bens apresentada em 01/02/2019).

24ª - Do facto provado sob n.º 3 resulta que os saldos bancários existentes nessa data, no valor de €5.040,45 e €6.868,11, respetivamente, eram provenientes de rendimentos da inventariada.

25º - Para considerar provado que o saldo da conta da verba nº 10 era proveniente de rendimentos da inventariada, a decisão recorrida fê-lo através de ilação que retirou do facto de esta conta poder ser movimentada com a assinatura da inventariada ou com a assinatura conjunta da recorrente e da II.

26ª – Porém, o facto desta conta poder ser movimentada com a assinatura da inventariada ou com a assinatura conjunta da recorrente e da II, não permite retirar a ilação, como retirou o tribunal recorrido, de que o saldo da mesma pertencia só à inventariada.

27ª - Se fosse só da inventariada, então as demais titulares, sem a assinatura daquela, também não a deveriam poder movimentar.

28ª – De resto, com essa forma de movimentação, a inventariada não tinha possibilidade de controlar a conta.

29ª - Relativamente à conta da verba n.º 1, apenas resulta da informação da Banco 1... de fls. 456 que a mesma podia ser movimentada com a assinatura de qualquer uma das titulares.

30ª – Inexiste prova nos autos e qualquer fundamento nas decisões recorridas para que o saldo destas contas haja sido considerado proveniente de rendimentos da inventariada, pelo que,

31ª - A presunção de comparticipação, em partes iguais da inventariada e das demais cotitulares, resultante do disposto no artigo 516.º do Código Civil, não foi ilidida.

32ª – Consequentemente, o facto considerado provado sob n.º 3 foi, no que toca a estas contas, também indevidamente considerado provado.

33ª – Só um terço do saldo de cada uma destas contas pode e deve ser deve ser relacionado.

34ª – As decisões recorridas violaram, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos artigos 516.º, 2021.º e 2024.º do Código Civil.

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.

2.1. A Sra. Juíza de Direito julgou provados, no despacho que decidiu as reclamações contra a relação de bens, os factos seguintes:

1- A inventariada AA faleceu em .../.../2007.

2- Em .../.../2007 a Inventariada era contitular das seguintes contas bancárias domiciliadas na Banco 1..., juntamente com as interessadas HH e II:

2.1. n.º ...00 (verba n.º 1 da relação de bens), que nessa data apresentava o saldo de € 5.040,45;

2.2. n.º ...30 (verba n.º 2 da relação de bens), que nessa data apresentava o saldo de € 0,00 e

2.3. n.º ...20 (verba n.º 10 da relação de bens), que nessa data apresentava o saldo de € 6.868,11.

3- Os saldos bancários das contas referidas em 2.1. a 2.3. eram provenientes de rendimentos da inventariada.

4- Em 11-01-2007, foi feita uma transferência bancária no valor de € 220.612,47, da conta de depósitos à ordem n.º ...30 (referida em 2.2.) para a conta n.º ...30, titulada por HH e por FF, por ordem desta e de II.

2.2.  A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento dos factos referidos em 2.1., a motivação seguinte:

Para responder aos factos foi considerada toda a prova produzida, no seu conjunto e em confronto, tendo em conta as regras gerais sobre o ónus da prova (art. 342º do Código Civil), bem como aquelas a ter em conta nos casos de dúvida sobre a realidade dos factos, conforme dispõe o art. 414º do C.P.C.

Os factos dados como provados resultaram:

- o ponto 1), do assento de óbito de fls. 27 e 28;

- o ponto 2), quanto à titularidade e saldos à data do óbito da Inventariada, dos documentos bancários de fls. 287 a 295 e informações bancárias e esclarecimentos da Banco 1... de fls. 371, 381 e 411.

Finalmente, quanto ao ponto 4) dos factos provados, efectivamente da documentação bancária de fls. 291 a 294 e 371 resulta que 40 dias antes do óbito da Inventariada, HH e II transferiram € 220.612,47 da conta referida em 2.2 para uma conta titulada pela primeira e por FF (vd. fls. 362 e 457), deixando-a com o saldo zero que apresentava à data do óbito.

Por outro lado, a explicação dada por HH no requerimento de 27-09-2018, para tal transferência e da circunstância de ter ocorrido em data tão próxima, mas anterior ao óbito da Inventariada, de que tal foi feito em concretização da vontade da inventariada de que o valor que detinha nessa conta revertesse a favor dos filhos de HH e II carece de qualquer suporte probatório.

Termos em que tal quantia deverá fazer parte dos saldos relacionados, em conformidade com a actual relação de bens (verba n.º 2).

Quanto ao ponto 3) dos factos provados, os interessados BB, CC e DD invocam que a totalidade do saldo das referidas contas pertencia, em exclusivo à Inventariada, tendo explicado que, ao sentir-se debilitada, a mesma solicitou àquelas sobrinhas que constassem como contitulares para poderem movimentar as contas, na impossibilidade de a mesma o fazer.

Se tal invocação seria insuficiente, caso inexistisse qualquer outro meio de prova, certo é que há um elemento que objectivamente revela que os saldos das contas bancárias em questão eram da exclusiva propriedade da Inventariada: as condições de movimentação das mesmas por parte de HH e II. Efectivamente, conforme informação da Banco 1... (fls. 371, com os esclarecimentos de fls. 381), AA podia movimentar as contas sozinha, mas HH e II só as poderiam movimentar em conjunto (com excepção da verba n.º 1, conforme informação de fls. 456). Ora, não é plausível que pertencendo os referidos saldos, efectivamente e proporcionalmente, a cada uma das três titulares, uma delas pudesse movimentar individualmente as referidas contas e as duas outras apenas o pudessem fazer em conjunto. A explicação razoável para tal circunstância de movimentação das contas em questão é, precisamente, a contitularidade se justificar, não pelos depósitos terem sido constituídos com o dinheiro, por igual, das titulares, mas sim pelo receio de vulnerabilidade da proprietária exclusiva daqueles saldos: a Inventariada. Por outro lado, a própria reclamante HH acaba por admitir isso mesmo, no requerimento de 27-09-2018, ao afirmar que a transferência da totalidade do saldo da conta referida em 2.2. ocorreu em concretização da vontade da inventariada de que o valor que detinha nessa conta revertesse a favor dos filhos de HH e II. Ora, ao fazer tal afirmação, mais não está a requerente do que a admitir que a totalidade do mencionado saldo pertencia à Inventariada, a si cabendo a respectiva disponibilidade.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objetivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635 nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

No caso, são impugnadas, de modo concentrado, duas decisões: a que decidiu a reclamação contra a relação de bens; a que julgou a partilha.

Todavia, é clara, em face do conteúdo das alegações da recorrente, a fundamental homotropia do objecto de ambas as impugnações, o que, decerto se explica, pelo facto de a impugnação da sentença homologatória da partilha ter por finalidade conspícua assegurar a da decisão interlocutória que conheceu do objeto do incidente da reclamação contra a relação de bens.

Maneira que, em termos de prioridade ou ordem de conhecimento, deve apreciar-se, em primeiro lugar a impugnação deduzida contra o despacho que decidiu a reclamação contra a relação de bens.

Todavia, da homogeneidade do objecto de ambas impugnações, decorre, como corolário que não pode ser recusado, esta consequência: se a impugnação deduzida contra o despacho que decidiu as reclamações contra a relação de bens proceder, a procedência do recurso de apelação é uma fatalidade inevitável. Mas o inverso também é verdadeiro: se se negar provimento àquela impugnação, a improcedência do recurso da sentença que julgou a partilha é meramente consequencial[2].

Assim, considerados os apontados parâmetros de delimitação da competência decisória desta Relação, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se a decisão que decidiu o incidente da reclamação contra a relação de bens deve ser revogada e substituída por outra que determine a eliminação da relação bens da quantia de € 220.612,47, constante da verba nº 2, e a relação de apenas 1/3 do valor das verbas relacionadas sob os n.ºs 1 e 10.

A decisão que decidiu as reclamações deduzidas contra a relação de bens determinou a manutenção da relação na totalidade dos saldos das verbas nºs 1, 2 e 10, e que os saldos da primeira e da última destas verbas fossem relacionados pelos valores de € 5 040,45 e € 6 868,11, respectivamente. Fundamento: os saldos dos depósitos bancários relacionados naquelas verbas pertenciam, por inteiro, à inventariada. A apelante discorda: no seu ver a verba de 220.612,47 constante da verba n.º 2 deve ser excluída da relação por não integrar o património da inventariada, dado que na data do óbito desta o depósito apresentava um saldo nulo; os saldos dos dois outros depósitos bancários, relacionados sob os n.ºs 1 e 10 apenas o devem ser por 1/3 do respectivo valor. Motivo: os depósitos eram titulados por mais duas outras pessoas, pelo que se presume que apenas aquela parte pertencia à inventariada, presunção que se deve ter por não foi ilidida, uma vez que a Sra. Juíza de Direito, ao considerar provado que aqueles saldos pertenciam na totalidade ao de cujus, incorreu num error in iudicando, por erro na aferição das provas.

Maneira que a resolução da questão concreta controversa enunciada reclama o exame do regime jurídico dos depósitos bancários plurais e a precisão do momento relevante para a determinação do relictum da inventariada e, evidentemente – depois de adquiridos os parâmetros dos poderes e controlo desta Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1.ª instância – a reponderação desta decisão.

A matéria de facto e a matéria de direito estão entre si numa relação de interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência, para a obtenção da decisão num caso concreto. Dada a patente delimitação da matéria de facto em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados nos acontecimentos naturais e sociais segundo a sua relevância jurídica – justifica-se que a exposição posterior se abra com a análise do regime jurídico dos depósitos bancários plurais e do momento relevante para a determinação da composição património hereditário. Os elementos assim obtidos, permitirão depois regressar à espécie objecto do recurso e proceder à aferição da exactidão da decisão(ões) impugnada(s).

Previamente, porém, há que determinar a lei aplicável ao processo de inventário no qual foram proferidas as decisões impugnadas e, bem assim, a lei aplicável a essa impugnação.

O processo de inventário foi instaurado no longínquo ano de 2009.

Durante a vigência do CP Civil de 1961, o regime do processo de inventário foi objeto de sucessiva reformulação pelos Decretos-Lei 227/94, de 8 de Setembro, 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro. Depois de algumas vicissitudes legislativas, a Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) e, em consequência, revogou as disposições relativas ao processo de inventário que constavam do CP Civil (art.º 6 n.º 1).  Todavia, por força da norma de direito transitório de que a Lei 23/2013, de 5 de Março, se fez acompanhar, ela não é aplicável aos processos e inventários pendentes no primeiro dia útil do mês de Setembro de 2013, data da sua entrada em vigor (art.ºs 7.º e 8.º). Na sequência da reintrodução do processo de inventário no CP Civil e da sua rejudicialização, revogou-se o RJPI e aprovou-se o Regime do Inventário Notarial (RIN) (artºs 2.º e 10.º da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro). Porém, de harmonia com a norma de direito transitório de que se fez acompanhar, a Lei 117/2019, de 13 de Setembro, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2020, só é aplicável aos processos de inventário requeridos após aquela data, bem como aos processos de inventário notarial que venham a ser remetidos para o tribunal despois daquela mesma data (art.ºs  8.º, 11.º, nº 1 e 13.º n.º 3).  Portanto, ao processo de inventário no qual foi proferida a decisão reclamada, é aplicável o CP Civil de 1961, tal como foi reconformado pelos Decretos-Lei 227/94, de 8 de Setembro, 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de setembro.

De outro aspecto, de harmonia com a norma de direito transitório de que a Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou, o actual CPC, se fez acompanhar, aos recursos interpostos de decisão proferida depois da sua entrada em vigor – 1 de Setembro de 2013 – em acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008, é aplicável o regime dos recursos decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações por ela introduzidas (com excepção do disposto no n.º 3 do art.º 671.º) (art.ºs 1.º., 7.º. n.º 1 e 8.º). Do que resulta que o regime aplicável aos recursos interpostos de decisões proferidas depois de 1 de Setembro de 2013, em processo de inventário judicial a que seja aplicável – como é o caso – o CP Civil de 1961, é o que decorre das regras gerais da apelação contidas no Código de Processo Civil actual.

3.2. Depósitos bancários plurais e momento relevante para a determinação da composição do património hereditário.

A abertura de conta e o depósito bancário são operações, rectior, contratos bancários, reservadas a banqueiros (artºs 362.º do Código Comercial e 4.º e 8.º, nºs 1 e 2, do RGICSF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na sua redacção actual).

As operações bancárias são reguladas pelas disposições especiais respectivas aos contratos que representarem ou que afinal se resolverem (art.º 363.º do Código Comercial).

A decisão impugnada e a alegação da apelante recorrem repetidamente às noções de conta bancária com o sentido de depósito bancário como se estas duas realidades jurídicas fossem inteiramente homótropas. Mas a verdade é que não o são. As noções de abertura de conta e de depósito bancário devem, bem pelo contrário, ser cuidadosamente recortadas e separadas.

A abertura de conta é, muitas vezes, confundida quer com a conta-corrente quer com o depósito bancário. Trata-se, porém, de realidades bem distintas.

A abertura de conta é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias[3]. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes[4].

O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, pela aposição da assinatura em local bem demarcado e tem por conteúdo necessário uma conta-corrente bancária, como operação associada o deposito bancário e, como elemento eventual, entre outros, por exemplo, o negócio de concessão de crédito por descoberto em conta.

A conta-corrente bancária é uma conta-corrente comum, mas celebrada entre o banqueiro e o cliente que se inclui no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária: através dela fica assente o modo pelo qual a conta é movimentada em termos de débito e de crédito e tem por elemento nuclear o saldo, verdadeiramente autónomo em relação aos créditos que o antecedem (art.º 344.º do Código Comercial).

Se é perfeitamente admissível a conclusão de um contrato de abertura de conta, com a inerente conta-corrente bancária, sem um depósito inicial, a verdade é que o depósito é uma operação que surge, normalmente, associada a uma abertura de conta: aquando da conclusão deste último contrato, surge para o banqueiro, em regra, a obrigação de receber depósitos bancários.

O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (art.ºs 408.º do Código Comercial e 1.º do Decreto Lei n.º 430/91, de 2 de Novembro)[5].

Distinguo particularmente relevante no universo dos depósitos bancários é o que os separa entre depósitos singulares e depósitos plurais.

Depósito singular, como a designação logo deixa antever, é aquele em que a conta é titulada por uma única pessoa; o depósito é plural sempre que, como titular da conta, figurem duas ou mais pessoas. A categoria do depósito plural não é, porém, unitária, podendo subdividir-se em duas modalidades diferenciadas: o depósito plural conjunto e o depósito plural solidário.

Depósito conjunto é o depósito plural que só pode ser movimentado a débito pela actuação conjunta de todos os seus titulares.

Depósito solidário – que é o que, no caso, mais nos interessa - é aquele em que qualquer dos credores – depositantes ou titulares da conta – apesar da indivisibilidade da prestação tem a faculdade de exigir por si a prestação integral, ou seja o reembolso de toda a quantia depositada, acrescida, eventualmente, dos respectivos juros, e em que a prestação assim efectuada libera o devedor – o banqueiro – para com todos eles (art.º 516.º do Código Civil)[6]. Uma conta desta espécie pode ser movimentada por qualquer dos seus titulares, indistinta e isoladamente, podendo os cheques ou as ordens de pagamento ser subscritas apenas por um dos titulares da conta.

No depósito plural solidário, cada titular pode, pois, proceder à movimentação da conta sem o concurso dos demais contitulares, sem necessidade de demonstrar, perante o detentor do depósito, a autorização dos últimos.

O que quer que os contitulares do depósito tenham convencionado no âmbito das suas relações internas é, a este propósito, indiferente, não podendo a violação dessa convenção ou pacto interno ser oposta ao banco, com o fito de impedir uma movimentação por cada um dos contitulares ou para efeitos de responsabilidade por uma movimentação contrária aquele acordo.

Ao lado dos depósitos conjuntos e dos depósitos solidários podem, evidentemente, surpreender-se os depósitos plurais mistos, em que os termos da respectiva movimentação conjugam as particularidades dos depósitos conjuntos e dos depósitos solidárias ou mesmo de particularidades de uma delas com outras variantes. Assim, pertencerá à categoria de depósito plural misto, aquele em que a respectiva movimentação pode ser feita, nos termos do contrato, por um dos contitulares isoladamente, e por outros contitulares conjuntamente. O depósito conjuga, nesta hipótese, a regra da solidariedade e da conjunção. É o que sucede com os depósitos relacionados sob as verbas n.ºs 2 e 10: de harmonia com a informação prestada pelo detentor dos depósitos – a Banco 1... – a inventariada podia movimentá-los sozinha, mas as demais contitulares só poderiam movimentá-los conjuntamente.

Como é patente, o depósito plural solidário assenta na confiança recíproca dos diversos titulares e no consentimento, ao menos tácito, que antecipada e reciprocamente, dão uns aos outros, para a livre movimentação da conta e das respectivas disponibilidades financeiras[7]. Seja como for, o que individualiza este tipo de depósito é a faculdade de qualquer dos seus titulares poder, livremente, por si só, realizar qualquer tipo de operação[8].

Todavia, um ponto que, nemine discrepanti, a doutrina e a jurisprudência a propósito deste tipo de depósito bancário põem em claro é que a titularidade da conta pode nada ter a ver com a propriedade das quantias nela depositadas. A faculdade que qualquer dos titulares tem de dispor, por acto unilateral, no todo ou em parte, dos fundos ou valores depositados, não envolve, inelutavelmente, a sua titularidade sobre esses fundos ou valores: esse poder de disposição assenta, em exclusivo, no contrato celebrado com o banqueiro, com inteira abstracção da propriedade das disponibilidades financeiras depositadas; estas podem pertencer a todos ou a alguns dos titulares, com quotas iguais ou não, ou só a um deles, e mesmo, a nenhum deles – mas a terceiro.

A posição dos titulares dos depósitos solidários resolve-se numa simples legitimação dispositiva face ao banqueiro – mas não atribui qualquer direito sobre os fundos ou valores depositados.

Em boa verdade, uma coisa é titularidade do depósito bancário, outra, bem diversa, é a propriedade das quantias nela depositadas[9]. Há, portanto, que operar um distinguo entre a titularidade do depósito, a propriedade – jurídica – do dinheiro depositado e a propriedade económica deste mesmo dinheiro. A titularidade do depósito pertence àquele em nome do qual o depósito foi feito, sujeito a quem pertence, em termos jurídico-bancários, o crédito sobre o banqueiro, no caso, evidentemente, de o depósito apresentar um saldo positivo; a propriedade do dinheiro é, naturalmente, do banco, sendo o titular do depósito, quando muito, titular da moeda escritural, representada pela inscrição a crédito seu, na respectiva conta corrente; a propriedade económica  do dinheiro depositado, objeto de lançamento a crédito, pode pertencer ao titular ou titulares da conta, ou só a alguns deles, em partes iguais ou desiguais, ou mesmo a nenhum deles, mas a terceiro, ponto que – como já se fez  notar – assume particular relevância nos depósitos plurais solidários ou nos depósitos plurais mistos, que apresentem características típicas da solidariedade.

De outro aspecto, o facto de  alguém depositar dinheiro uma quantia numa conta solidária, em seu nome ou no nome do depositário, não significa que o primeiro faça à segunda uma doação[10]. O mesmo sucede quando ocorre uma modificação subjectiva na titularidade do depósito através da adição de outros titulares: também neste caso, este alargamento subjetivo da titularidade do depósito não envolve, como corolário que não possa ser recusado, a doação pelo titular originário da conta aos titulares supervenientes da propriedade económica do dinheiro depositado, devendo antes entender-se, na falta de outros elementos, que aquele – e só aquele - continua a ser proprietário económico desse dinheiro.

A observação da realidade social mostra que ao aproximar-se o fim da vida é comum os titulares de depósitos bancários – antecipando e prevenindo as dificuldades inerentes à  sua gestão e movimentação, pessoal e direta, resultantes das limitações crescentes das suas competências pessoais, ou mesmo visando evitar a sujeição a tributação pelo facto da transmissão mortis causa – adicionarem como titulares os filhos ou outros parentes sucessíveis ou só alguns daqueles filhos ou destes parentes ou mesmo constituírem com estes depósitos plurais (art.º 349.º do Código Civil). Mas deste facto não decorre necessariamente, pelas razões já apontadas, a aquisição, pelos últimos, de qualquer direito às quantias depositadas; esse direito continua a radicar na esféria jurídico-patrimonial do titular originário do depósito e, verificado o facto lamentável da morte daquele, as quantias depositadas são devolvidas às pessoas que disponham de uma qualquer vocação sucessória, de harmonia com as regras dessa vocação. Conclusão que se impõe de modo mais expressivo, nos casos em que apenas são adicionados como titulares do depósito, algum ou alguns dos filhos ou algum ou alguns dos parentes ou em que exista uma vontade expressa conhecida no tocante ao destino desse bem e de outros, no caso de morte do titular da conta, como sucede no caso de este ter outorgado testamento (artºs 2179.º, 2181.º, 2183.º, 2204.º e 2205.º do Código Civil). Em qualquer destes casos – e sobretudo no último – é licito presumir que, v.g., com a adição de novos contitulares, o titular originário não agiu ordenado pelo propósito de beneficiar os novos contitulares em detrimento de outros com igual vocação sucessória ou para, pelo funcionamento das regras de movimentação do depósito – designadamente, pela actuação, nos depósitos plurais solidários, do efeito presuntivo sobre a titularidade económica do dinheiro depositado - alterar a destinação dos bens e, quantitativamente, as deixas ou disposições constantes do testamento. Por definição, o testamento – enquanto negócio jurídico unilateral – é o acto em que, de modo conspícuo, o autor da herança procede a disposições de última vontade, pelo que, na dúvida sobre a destinação de certo bem, deve prevalecer a que consta do acto testamentário.

Apesar do necessário distinguo entre a titularidade da conta e a titularidade do direito às quantias depositadas, presume-se que a conta solidária pertence aos diversos co-titulares em partes iguais[11] (artºs 516.º e 1403.º, n.º 2, ex-vi art.º 1404.º, do Código Civil). A presunção aplicável é a disposta na lei para a compropriedade e não tanto a que aflora na regulação da participação dos credores solidários, dado que esta presunção só intervém quanto à dúvida sobre a medida da participação do titular de conta no direito ao dinheiro depositado e não também quanto à dúvida sobre a titularidade desse direito.

A prova de que se é titular do direito sobre o bem depositado é feita nos termos e com a observância das regras gerais e especiais relativas ao ónus da prova, tendo, portanto, presente que o nosso direito probatório material se orienta pela chamada doutrina da construção da proposição jurídica ou teoria das normas – de harmonia com a qual a repartição desse ónus decorre das relações das normas entre si – e que, numa formulação simplificada, pode enunciar-se deste modo: cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribuiu um efeito favorável (art.º 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). Nestas condições o ónus da prova dos factos que permitam determinar a titularidade – económica, dado que a propriedade jurídica, essa, pertence ao banqueiro - de dinheiro depositado junto de um banco, vincula a parte a quem essa titularidade permite produzir um efeito que a favorece (art.ºs 342.º, n.º 1 , e 346.º, in fine, do Código Civil, e 414.º do CPC).

A presunção apontada é, com é bem de ver, uma simples presunção iuris tantum, portanto, ilidível mediante prova do contrário (art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

O mesmo ocorre, de resto, com a penhora que tenha por objecto depósito bancário com vários titulares, em que aquele acto de constituição da garantia patrimonial incide sobre a quota-parte do executado na conta comum, presumindo-se a igualdade das quotas dos diversos titulares (art.º 780.º, n.º 5, do CPC). A única diferença consiste na amplitude da presunção, que funciona independentemente do regime da conta plural, dado que vale tanto para a conta solidária como para a conta simplesmente conjunta[12].

Se considerarmos o fim a que se destina, o processo de inventário é um processo divisório, tem por objectivo a partilha de uma massa de bens pelos respectivos titulares; relacionam-se bens com vista à preparação da partilha[13].

Um dos aspectos essenciais na partilha de qualquer património, maxime do património hereditário, é a determinação dos bens que devem figurar na partilha, porque dessa determinação depende a satisfação efectiva do direito a esse património. A transparência patrimonial é, assim, uma condição indispensável, ao êxito e à justiça de qualquer partilha, e por isso, não admira a vinculação do cabeça-de-casal a este fundamental dever: o de relacionar os bens – todos os bens - que hão-de figurar no inventário (artºs 1338.º, n.º 2, 1340.º, nº 3, e 1346.º, n.º 1, proémio, do CPC de 1961).

Sucede com alguma frequência que, chegado o momento capital da relacionação dos depósitos plurais de que era titular o autor da herança se verifica que, no momento da sua morte, patenteiam um saldo nulo ou ao menos inferior àquele que era expectável, facto de que o vinculado à relacionação – ou o beneficiário último das quantias objeto do depósito - extrai a conclusão de que nada há, a este propósito, que relacionar. Nem é outro o ponto de vista sustentado no recurso pela recorrente no tocante ao depósito bancário relacionado sob a verba n.º 2. E alguma jurisprudência converge na mesma conclusão, com o argumento de que não existindo qualquer saldo na conta plural, á data do óbito do de cujus, a quota parte deste não tem, em princípio, de ser relacionada no inventário, excepto se se provar que o levantamento, pelo contitular, foi feito contra a vontade do autor da herança[14].

Sempre com a unção devida a que sustenta ponto de vista diverso, considera-se que esta conclusão merece alguma reserva ou, mais benignamente, deve ser entendida cum granu salis.

A abertura da sucessão é um efeito jurídico que se produz num momento determinado. Este momento é o momento da morte do autor da sucessão. A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor (art.º 2031.º do Código Civil).

Tem muito interesse, para variados efeitos, saber qual é o momento da abertura da sucessão e fazê-lo coincidir com o momento da morte, podendo dizer-se que é um princípio geral do nosso direito sucessório, o de que o momento fundamental do fenómeno sucessório é o momento da abertura da sucessão, a este momento devendo ser reportados os vários actos e operações a que no decurso desse fenómeno há que proceder.

Assim, por exemplo, a lei faz retroagir todo o fenómeno sucessório ao momento da abertura da sucessão (art.ºs 2032.º e 2050.º, n.º 2, do Código Civil). Do mesmo modo, em regra, só são absorvidas pelo fenómeno da sucessão as situações jurídicas que se encontrarem na esfera jurídica do de cujus, no momento da sua morte, o mesmo é dizer, no fundamental momento da abertura da sucessão.

Correntemente – como mostra a observação da realidade judiciária - a inexistência, no momento capital da abertura da sucessão, de saldo – ou de saldo inferior – nos depósitos plurais – maxime, solidários - explica-se, por em data anterior, mas próxima à da morte do de cujus, co-titulares desse depósito – normalmente pessoas que concorrem com outras à sucessão - terem procedido à sua movimentação, transferindo o respectivo saldo, no todo ou em parte, para outra ou outras contas bancárias. Essa transferência opera, evidentemente, a saída do dinheiro da conta, mas não tem a virtualidade de, só por si, distrair esse bem do património hereditário, excepto se se demonstrar a existência, a favor do beneficiário último da transferência, de um qualquer negócio aquisitivo ou transmissivo oponível ao verdadeiro titular da propriedade económica do dinheiro e a que se associe o efeito – lícito - de perimir o direito real de propriedade daquele sobre esse dinheiro ou de transmitir para outrem esse mesmo direito. Insiste-se: convém não confundir o direito de movimentar um depósito plural – com o direito ao dinheiro depositado. A circunstância de estar autorizado a movimentar um depósito bancário, não legitima o movimentador, se a propriedade económica do dinheiro lhe não pertencer, ou não lhe pertencer por inteiro, a apropriar-se dele ou a descaminhá-lo. Se um interessado se apropriar de um bem móvel antes da abertura da sucessão, pode dizer-se que que tal bem deixa de integrar a herança e, por isso, não deve ser relacionado? Claro que não pode. Então que razão material se pode encontrar para tratar diferentemente o dinheiro levantado de uma conta bancária titulada ou co-titulada pelo inventariado?

Maneira que, se no momento da abertura da sucessão, se constata que um depósito bancário de que o de cujus era titular ou contitular, patenteia um saldo nulo, a única coisa que, à certeza, com exactidão, se pode afirmar é que o património do autor da herança não é integrado por um crédito sobre o banco detentor do depósito – mas não que o dinheiro que nele estava depositado deixou de integrar aquele património.

Quando, no inventário se relacionam depósitos bancários, o que verdadeiramente se relaciona é o dinheiro objeto mediato do depósito e caso se deva reconhecer que esse dinheiro pertence ao relictum do autor da herança, ele deve figurar no inventário, com inteira indiferença pela circunstância, dolosa ou fortuita, de já não se mostrar depositado na conta de que aquele era contitular. Na falta de prova de um negócio – lícito – apontado, deve entender-se que o dinheiro continua integrado na herança e deve ser objeto de partilha pelos vários interessados de harmonia com a respetiva vocação sucessória. Solução diversa – sobretudo nos casos em que o dinheiro reverteu, materialmente, a favor de co-interessado - violaria ostensivamente o princípio sob cujo signo deve decorrer a partilha: o da justiça ou da equidade.

De modo que, no caso do recurso, tudo está em saber quem era o titular da propriedade económica do dinheiro depositado: se a inventariada, como sustenta a decisão impugnada; se, presuntivamente, os três titulares dos depósitos, na proporção de 1/3 para cada um deles, como advoga a recorrente.

3.3. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.3.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto.   

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (art.º 640.º, nº 1, do CPC).

Todavia, esse controlo é actuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.      

Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[15].

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º,  nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[16].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[17].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo[18].

3.3.2. Reponderação das provas.

As provas produzidas na instância de que provém o recurso, interessantes para a resolução deste são apenas duas: a documental; a prova pessoal por declarações de parte.

A prova documental relevante é que tem por objecto a titularidade dos depósitos, os respectivos movimentos e os saldos finais. Todavia, esta prova, pelas razões conhecidas, não é, por si só, concludente sobre a titularidade económica efectiva do dinheiro depositado, ou melhor, sobre os saldos.

Uma prova cuja exacta força persuasiva é objecto de funda controversão – doutrinal e jurisprudencial -  é as declarações de parte (artº 466.º, nº 3, do CPC). Prova que, por declaração expressa da lei, está submetida à livre convicção do juiz, salvo, naturalmente se o depoimento conduzir à confissão (art.º 466.º, n.º 3, do CPC). As declarações de parte podem, na verdade, redundar na obtenção de meio de prova de natureza distinta e com diferente valor probatório: confissão; reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam valer como confissão; demonstração de factos favoráveis - caso em que as declarações de parte são livremente valoráveis pelo juiz (art.ºs 352.º e 381.º do Código Civil e 466.º n.º 3, do CPC).

No entanto, não falta quem sustente que as declarações de parte se reconduzem à figura do início de prova e não à de um meio probatório em sentido próprio. Como o princípio de prova é o menor grau de prova - dado que sé vale apenas como factor corroborante da prova de um facto - as declarações de parte não são suficientes para estabelecer por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova do facto: a sua função seria, assim, eminentemente integrativa e subsidiária ou supletiva[19].

Seja como for, as declarações da própria parte – pela natureza das coisas, dado o perigo de parcialidade – devem ser avaliadas com particular prudência. O que bem se compreende: por força da qualidade de parte é natural a tendência do depoente para exprimir pontos de vista que o favoreçam e mesmo a inexigibilidade de dizer a verdade que conhece. Nalguns casos, o depoente reiterará as alegações que produziu nos articulados porque está sinceramente convencido de que a sua versão é a verdadeira. É o caso de boa fé; outras vezes, apesar de reconhecer que essa versão não é verdadeira, confirma-a por fraqueza de ânimo. Pode, finalmente, suceder, que nos articulados a parte tenha atraiçoado a verdade, tenha produzido alegações cientemente falsas: neste caso o mesmo impudor que o levou a faltar à verdade levá-lo-á a reiterar no seu depoimento essas alegações. Tudo, portanto, a aconselhar vivamente a prudência – muita prudência – na avaliação das declarações da própria parte.

Apesar do carácter espinhoso do problema, sendo a lei de processo terminante na estatuição de que as declarações de parte são apreciadas livremente pelo tribunal – como, aliás, sucede com a generalidade das provas produzidas na audiência e mesmo fora dela -  não parece correcta uma desvalorização ou degradação apriorística do valor probatório desta prova pessoal, pelo que o exacto valor persuasivo deste meio de prova só, em concreto, numa avaliação prudencial, pode ser determinado, tudo dependendo, em última extremidade, do conteúdo, da contextualização e da coerência das declarações, do modo, v.g., espontâneo, como foram prestados, etc.

Se não se deve fazer um pré-juízo sobre a força probatória desta prova, deve-se, decerto, considerada a qualidade da pessoa de que ela emana, manejá-la com subida prudência.

No caso, a motivação com que se procurou fundamentar a decisão da questão de facto, parece sensível a um entendimento restritivo do valor probatório das declarações de parte – i.e. que lhe assinala um valor meramente integrativo ou supletivo, portanto, carecida de corroboração por outros elementos de prova – visto que julgou necessário, para o convencimento sobre a realidade do facto discutido, recorrer, de modo adjuvante, ás regras de movimentação de duas das contas e a uma declaração produzida pela apelante a propósito da movimentação de uma terceira.

Não parece, todavia, que as declarações de parte produzidas pelos interessados ouvidos, devidamente apreciadas à luz das regras de experiência e critérios sociais, sejam insuficientes para inculcar a veracidade do facto controverso.

Realmente, o declarante CC foi assertivo na afirmação de que a HH – a recorrente – não pôs dinheiro nas contas, que está de má fé, porque ainda não dividiu com a família (o valor do depósito relacionado sob a verba n.º 2). E a apertado, na instância, pelo Exmo. Advogado da apelante, reiterou que não é possível, não é próprio da HH depositar um cêntimo, depositou dinheiro da tia, da venda de propriedades.

Por seu lado, a declarante DD, assegurou que os demais titulares das contas não levaram dinheiro para estas. Por último, a declarante JJ, perguntada pelo Exmo. Advogados dos reclamantes se os demais titulares dos depósitos tinham dinheiro próprio nas contas, garantiu peremptóriamente que não, não era para eles, e acrescentou que a inventariada, quando se sentiu mais debilitada, pôs então lá duas pessoas, uma do lado do marido, dos WW..., e outra do lado dos YY..., precisamente para esse equilíbrio, ela mesma me falava nisso e para na eventualidade para ser preciso movimentar dinheiro, para efectivamente e ela estar impossibilitada e haver alguém que o fizesse e que quando eu fechar os olhos isto vai ser dividido igualmente por toda a gente, disse-o várias vezes.

Estas declarações – sobretudo as últimas – conjugam-se inteiramente com o critério social ou com a regra de experiência ou de normalidade - derivado do id quod plerumque accidit, daquilo que normalmente sucede, segundo a qual, as pessoas no ocaso da vida, com a consequente degradação das suas capacidades e competências pessoais, associam outras pessoas, geralmente parentes sucessíveis, ás respectivas contas bancárias para prevenir a impossibilidade da sua movimentação pessoal e directa. E o que é também comum, como decorre da observação da realidade judiciária, é esses parentes sucessíveis procederem ao levantamento das quantias depositadas – regra geral em momento próximo da morte do de cujus - e não ao depósito na conta de quantias que lhes pertencem, desde logo por ficarem incursos no risco de, aberta a sucessão, se verem confrontados com os embaraços da prova ordenada para a ilisão da presunção de comunhão decorrente da natureza plural do depósito e, consequentemente, caso não consigam livrar-se do encargo da prova dos factos susceptíveis de proceder àquela ilisão, de ser levado à partilha dinheiro seu.

De resto – e como se salientou na motivação da decisão da quaestio facti da 1.ª instância – a pertença das quantias depositadas a inventariada e só a esta – é inculcada, pelo menos no tocante a dois depósitos, pelas regras peculiares convencionadas com o banco relativas à sua movimentação: ao passo que a inventariada podia mobilizar o respectivo saldo sozinha, singularmente, os demais titulares apenas o podiam fazer conjuntamente, regras de que, aliás, sempre resultaria, presuntivamente, uma repartição não igualitária da titularidade dessas contas. Estas regras peculiares, insinuam, indelevelmente, como esclareceu a declarante DD que a contitularidade das contas pela reclamante e por outra interessada – oriundas, cada uma delas, de cada uma das duas estirpes familiares da inventariada – melhor se explica pela necessidade de prevenir a sua movimentação, em caso de incapacidade daquela – do que pela efectiva contitularidade dos fundos depositados.

A decisora de facto da 1.ª instância extraiu também um argumento de prova da declaração produzida pela apelante quando foi instada a esclarecer a transferência do saldo da conta n.º ...30, para a qual deu esta explicação:  a transferência efetuada em 11/01/2007, da conta nº ...30 da Banco 1..., no montante de € 220.612,47, foi a concretização da vontade da falecida de que o valor que efetivamente detinha nessa conta solidária revertesse a favor dos filhos da contitular II e da contitular HH e da irmã desta, KK. A Sra. Juíza de Direito concluiu que, com esta declaração, não está a requerente mais do que a admitir que a totalidade do mencionado saldo pertencia à Inventariada, a si cabendo a respectiva disponibilidade.

A recorrente discorda veementemente, salientando que, com aquela declaração, mais não pretendeu dizer, e disse, que esse valor era o correspondente ao 1/3 de que a inventariada era dona nessa conta.

À interpretação dos actos das partes são aplicáveis os critérios de interpretação dispostos na lei substantiva para a declaração negocial (art.º 236.º, aplicável aos actos não negociais, ex-vi art.º 295.º, do Código Civil). Maneira que, dado que os atos das partes têm por destinatário o tribunal e a contraparte, aquele acto deve ser interpretado de acordo com o sentido que um destinatário normal, colocado na posição do real declaratório – o tribunal e a contraparte – possa deduzir do comportamento da parte.

Resulta daquela declaração que a apelante mobilizou, por transferência, a totalidade do saldo da conta e não apenas a parte desse saldo, que no seu ver, pertencia à inventariada, pelo que o mais natural seria que permanecesse depositado, pelo menos, a parte do saldo que, na sua perspetiva, era pertença sua e, bem assim, a parte do saldo que era pertença da terceira contitular, uma vez que não é razoável supor, de harmonia com o id quod plerumque accidit, que a apelante desse a dinheiro seu e da outra contitular a destinação, que segundo alega, lhe foi assinalada pela inventariada. A alegação da mobilização da integralidade do saldo na execução de instrução da inventariada, concorre, realmente, para alicerçar a convicção de que o saldo constituía pertença exclusiva da autora da herança. De resto, não está demonstrado – porque a este propósito nenhuma prova concludente foi produzida – a instrução da inventariada alegada pela apelante – instrução relativamente à qual se deve exigir uma prova cabal, considerado o conhecimento das disposições de última vontade da inventariada, disponibilizado pelo testamento público que outorgou. De resto, a apelante limitou-se, sempre, a socorrer-se da presunção decorrente da natureza plural dos depósitos, não tendo sequer produzido uma qualquer alegação – e muito menos uma qualquer prova – que, positivamente, demonstrasse que alimentou qualquer dos depósitos com dinheiro seu. Prova positiva que, no caso não seria particularmente difícil, dado que a movimentação, a débito e a crédito, dos depósitos bancários é objecto de registo, com indicação da sua origem, na conta-corrente que, como se viu, é inerente no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária.

Em absoluto remate: não há razão para concluir que a Sr.ª Juíza de Direito tenha incorrido, no julgamento do ponto de facto controvertido, relativo à titularidade do dinheiro depositado, num error in iudicando, por erro na aferição das provas e, portanto,  que a  convicção que extraiu das provas não foi alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir de forma correcta[20]. E desde que a convicção que esta Relação forma a partir a partir das provas produzidas na 1.ª instância – apesar da distância e do modo como delas conheceu – coincide com a da Sra. Juíza de Direito, não há fundamento para alterar a decisão da matéria de facto desta última.

3.4. Concretização.

A matéria de facto disponível mostra que as quantias depositadas nas contas bancárias ou que destas contas foram transferidas integram o património hereditário a cuja partilha se procede. Esse activo patrimonial deve, pois, figurar no inventário, devendo dar-se-lhe a destinação que resulta da vocação sucessória – no caso testamentária – dos diversos interessados.

Sendo isto exacto, então a improcedência da impugnação deduzida contra a decisão da reclamação deduzida pela apelante contra a relação de bens é irrecusável. E em face da falta de bondade daquela impugnação é meramente consequencial a improcedência também do recurso interposto da sentença que julgou a partilha.

Exposta toda a argumentação, afirma-se em síntese apertada que:

- A categoria do depósito bancário compreende o depósito plural conjunto – que é aquele que só pode ser movimentado a débito pela actuação conjunta de todos os contitulares – o depósito solidário – que aquele em que qualquer dos contitulares tem a faculdade de movimentar isoladamente o depósito – e o depósito plural misto -  aquele em a respectiva movimentação pode ser feita, nos termos do contrato, por um dos contitulares isoladamente, e por outros contitulares conjuntamente, caso em que o depósito conjuga as regras da solidariedade e da conjunção;

- A posição dos titulares dos depósitos solidários resolve-se numa simples legitimação dispositiva face ao banqueiro – mas não atribui qualquer direito sobre os fundos ou valores depositados.

-  Nos depósitos plurais, mesmo solidários, há que distinguir entre a titularidade do depósito, a propriedade – jurídica – do dinheiro depositado e a propriedade económica deste mesmo dinheiro. A titularidade do depósito pertence àquele em nome do qual o depósito foi feito, sujeito a quem pertence, em termos jurídico-bancários, o crédito sobre o banqueiro, no caso, evidentemente, de o depósito apresentar um saldo positivo; a propriedade do dinheiro pertence ao banco, sendo o titular do depósito, quando muito, titular da moeda escritural, representada pela inscrição a crédito seu, na respectiva conta corrente; a propriedade económica do dinheiro depositado, objeto de lançamento a crédito, pode pertencer ao titular ou titulares da conta, ou só a alguns deles, em partes iguais ou desiguais, ou mesmo a nenhum deles, mas a terceiro.

-  Se no momento capital da abertura da sucessão, se constata que um depósito bancário de que o de cujus era titular ou contitular, patenteia um saldo nulo, a única coisa que, à certeza, com exactidão, se pode afirmar é que o património do autor da herança não é integrado por um crédito sobre o banco detentor do depósito – mas não que o dinheiro que nele estava depositado deixou de integrar aquele património;

- A transparência patrimonial é uma condição indispensável ao êxito e à justiça de qualquer partilha, pelo que no inventário devem figurar todos os bens que o autor da herança era titular no momento da abertura da sucessão, dado que só assim se garante o princípio fundamental a que divisão desse património deve obedecer: o da equidade.

A recorrente deverá suportar, porque sucumbe no recurso, as custas dele (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         2022.07.12

[1] E não no dia 22 de Outubro de 2010, como, decerto por lapso, se escreveu no despacho, proferido no dia 28 de Dezembro de 2018, que decidiu as reclamações contra a relação de bens. Este erro material, ostensivo em face do requerimento do inventário, apenas importa a respectiva correcção (art.º 249.º, ex-vi art.º 295.º, do Código Civil).

[2] Ac. da RC de 07.11.06, www.dgsi.pt.

[3] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2006, págs. 410 a 416.

[4] José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Iuris, Lisboa, 2004, págs. 139 a 141 e Acs. da RC de 09.03.99, CJ, XXIV, II, pág. 21 e do STJ de 19.12.06, www.dgsi.pt; cfr. a Directiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Setembro – JO L 271, de 9 de Outubro, considerando 17 e a Instrução do Banco de Portugal nº 48/96, de 17 de Junho (Boletim Oficial do Banco de Portugal nº 1/96, de 17 de Junho de 1996) relativa aos requisitos a observar pelas instituições de credito na aberturas de contas de depósito, designadamente quanto à identificação dos respectivos titulares e representantes.

[5] Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 93 a 98 e Carlos Barata, Estudos em Honra do Professor Doutor Galvão Telles, cit., págs. 7 a 66. A natureza jurídica precisa do depósito bancário é muito discutida. Alguma doutrina e sobretudo a jurisprudência – v.g. Acs. do STJ de 09.02.95, CJ, STJ, III, I, pág. 75 e RL de 07.10.99, CJ, XXXIV, IV, pág. 119 considera-o um depósito irregular; outra sustenta que tem a natureza de mútuo – v.g. Paula Ponces Camanho, cit. págs. 145 a 210 e Carlos Ferreira de Almeida Contratos II, Conteúdo – Contratos de Troca, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 158 e 159; finalmente há quem o encare como figura unitária, típica, autónoma, próxima do depósito irregular – v.g. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit. pág. 482.

[6] Antunes Varela, Depósito Bancário, Revista da Banca, nº 21 Janeiro – Março 1992, APB, Lisboa, 1982, pág. 50.

[7] Ac. da RP de 14.02.84, CJ, IX, I, pág. 238.

[8] Vasco da Gama Lobo Xavier e Maria Ângela Coelho, Anotação ao Ac. do STJ de 5 de Março de 1987, Depósito bancário a prazo, levantamento antecipado, RDE, nº 14, 1988, pág. 281, nota 27, e Acs. da RL de 27.09.90, CJ, XV, V, pág. 132 e de 03.06.82, CJ, VII, III, pág. 115, e do STJ de 25.02.81, BMJ nº 304, pág. 444.

[9] Acs. do STJ de 08.05.73, BMJ nº 227, pág. 133, de 07.06.77, BMJ nº 269, pág. 136, de 25.02.81, BMJ nº 304, pág. 449 e da RP de 04.03.97, CJ, XXII, II, pág. 191.

[10] Acs. da RL de 13.10.88, CJ, XIII, IV, pág. 120 e do STJ de 08.05.73, BMJ nº 227, pág. 133.

[11] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 502 e Acs. da RL de 10.10.88, CJ, XIV, I, pág. 143, da RP de 04.03.97, CJ, XXII, II, pág. 191 e do STJ de 07.07.77, BMJ nº 269, pág. 136.

[12] Manuel Januário da Costa Gomes, Penhora de direitos de crédito. Breves notas. Themis, RFDUNL, Ano IV, nº 7, 2003, A Reforma da Acção Executiva, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 129.

[13] Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, Coimbra, 1982, págs. 355 e 356.

[14] Ac. RL 30.04.2009 (9615/2008-6)

[15] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.

[16] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., pág. 237 e João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.

[17] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.

[18] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 226.
[19] Carolina Braga da Costa Henriques, Declarações de Parte, pág. 48, disponível em wwwestudogeral.sib.uc.pt, Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum á Luz do Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 278, e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 357, e Acs. da RP de 15.09.2014, 20.11.2014, 17.12.2014, 26.06.2014 e 30.06.2014; criticamente, Miguel Teixeira de Sousa, entrada de 20.01.2017, acessível em https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudência-536.html#links; diferentemente, contra a degradação antecipada do valor probatório das declarações, por não ter fundamento legal, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos da prova legal, Luís Pires de Sousa, As Malquistas Declarações de Parte ("Não acredito na parte porque é parte")», disponível no sítio do STJ http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/CPC2015/painel_1_articulados_audiencialuissousa.pdf; Catarina Gomes Pedra, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil/Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito do Minho, 2014, pág. 145, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80, Elisabete Fernandes “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa?” Sobre a (in)coerência do Sistema Processual a este Propósito, Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, pág. 36., Acs. da RP de 23.03.2015 e de da RE de 12.03.2015, www.dgsi.pt. e, por todos, Ac. da RL de 26.04.2017 (18591/15.OT8NT.L1-7)

[20] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pág. 521.