Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
126/09.5IDCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 308º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Se ocorrer no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo, a declaração de nulidade da acusação (art.ºs 283º, n.º 3 e 308º, n.º 3, do C. Proc. Penal), a obstar ao conhecimento do mérito da causa, mormente pela ausência da narração dos factos, determinará a não pronúncia e o consequente arquivamento do autos e não a «remessa» dos mesmos ao Ministério Público.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 126/09.5IDCBR, que corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, concluída a fase da Instrução, requerida pelo arguido A... [o requerimento de abertura da instrução apresentado pelos arguidos “W…, SA” e B... foi considerado sem efeito], no decurso da qual B... arguiu a nulidade da acusação, realizado o debate instrutório, foi, em 29.09.2011, proferida decisão instrutória que julgando verificada a nulidade da acusação pública, determinou a remessa dos autos ao Ministério Público.

2. Inconformado com a decisão recorreu o arguido B..., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

A. Ao concluir pela verificação das nulidades da acusação por violação do disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas a), b) e c) do CPP, cabia ao Tribunal a quo promover o arquivamento dos autos ao invés de ordenar a sua remessa ao Ministério Público.
B. Na verdade, a decisão pelo arquivamento dos autos é a única conclusão que se mostra em conformidade com elementos literal e sistemático da lei (artº 9º do CC). Só assim se respeita o teor dos artºs 283º, nº 3 e 308º, do CPP, e só assim se compatibiliza o regime da nulidade da acusação com o disposto nos artºs 303º e 359º, do CPP. Mais, esta é a única solução compatível com o princípio do acusatório e do contraditório, prevista no artº 32.º da CRP.
C. Efectivamente, a instrução, com carácter facultativo, visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
D. Assim, concluída a fase de Instrução, possui o Juiz de Instrução duas opções, (i) entende estarem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e profere despacho de pronúncia (ii) caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
E. Não existe, pois, uma terceira alternativa, que permita ao Juiz de Instrução decidir pela remessa do processo ao Ministério Público para reformulação da Acusação.
F. Neste sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30-01-2007, Proc. 10221/2006 – 5, “I. É nula a acusação pública – conduzindo à sua rejeição por ser de reputar manifestamente infundada – quando a mesma é omissa quanto aos factos que integram o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido. II Concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art.º 308º, n.º 1, in fine, do CPP. III – Não pode, naquele caso, o Juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula”.
G. Tal entendimento é o único compatível com a nova redacção dos artºs 303º, n.º 3 e 359º, n.º 1, do CPP, que passaram a prever que uma alteração substancial dos factos previstos na acusação não poderá ser tomada em consideração, quer para efeitos de pronúncia no processo, quer para efeitos de condenação no processo em curso.
H. Assim, verificando-se as aludidas nulidades da Acusação, deveria ter sido proferido despacho de não pronúncia com o consequente arquivamento dos autos;
I. Pelo que, decidindo pela remessa dos autos ao Ministério Público, a decisão instrutória violou o disposto no artigo 308.º do CPP.
J. Acresce que, a interpretação dos artºs 283º, n.º 3 e 308º, do CPP no sentido de, em sede de instrução, ser admissível a prolação de decisão instrutória que ordene a remessa dos autos ao Ministério Público para reformulação da Acusação em caso de verificação das nulidades vertidas nas alíneas a) a c) do artº 283.º, n.º 3, do CPP é manifestamente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2 e n.º 3 e 32º, n.º 5 da CRP.
K. E isto mesmo resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-07-2011, no Proc. 2184/06.5JFLSB (disponível in www.dgsi.pt), onde se decidiu: “Se o actual regime do Código de Processo Penal, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo, por acréscimo de razão, esta via também não pode ser utilizada no caso evidenciado nos autos, em que se verifica mais do que alteração substancial. Efectivamente, a falta de narração, na acusação pública, do tipo subjectivo do crime de administração danosa, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, por maioria de razão, neste contexto, admíssível, como bem refere o arguido B …, na sua resposta aos recursos, a alteração dos factos da acusação, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico dos agentes, uma vez que tal alteração, neste caso, consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica. A possibilidade de, após a dedução da acusação pública, na qual não constam todos os elementos típicos do crime imputado, se poder reformular essa peça processual, seria manifestamente violadora do princípio do acusatório e das mais elementares garantias de defesa do arguido”.
L. Assim, sempre deverá a decisão instrutória objecto do presente recurso ser revogada e substituída por outra que ordene o arquivamento dos presentes autos.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e em consequência, ser revogado o despacho recorrido na parte que ordena a remessa do processo para o Ministério Público, com o que se fará a costumada JUSTIÇA!

3. Na 1.ª instância não foi apresentada resposta ao recurso.

4. Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este tribunal – [cf. fls. 64].

5. Na Relação, a Ilustre Procuradora – Geral Adjunta, em douto parecer, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso – [cf. fls. 86 a 89].

6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP, não houve qualquer reacção.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No presente recurso, à luz das conclusões apresentadas, a única questão controvertida resume-se a saber qual o «destino» dos autos após - no decurso da fase da instrução requerida pelo arguido -, em sede de decisão instrutória, por ocasião do «saneamento» do processo [artigo 308º, nº 3 do CPP], ter sido declarada a nulidade da acusação pública por violação das alíneas a), b) e c), do n.º 3 do artigo 283º do CPP.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor da decisão recorrida:
DECISÃO INSTRUTÓRIA:

O Ministério Público deduziu acusação, em Processo Comum, para julgamento com a intervenção do Tribunal singular, contra:
1- «W…, S.A.», sociedade anónima, com sede … Cantanhede;
2 – A..., residente na Rua …Mealhada;
3 – B..., residente na … , Mealhada impuntando-lhes a prática de:
- 1.ª arguida – um (1) crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo art. 105º, nº. 1 do R.G.I.T., por força do disposto no art. 7º, nº 1 do R.G.I.T. – 2º e 3º arguidos – co-autoria, um (1) crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelo artº 105º, nº 1 do R.G.I.T.
*
Não se conformando com a acusação, veio o arguido A... requerer a abertura da instrução, alegando, em síntese, que não está suficientemente indiciada a prática dos factos que lhe são imputados, dado que a mesma deriva duma suposta qualidade de sócio e gerente da sociedade, gerência essa nunca exercida pelo arguido, tendo como único suporte cópias de cheques alegadamente por si rubricados, acto que só praticou a pedido do seu irmão.
Acrescentou ainda que a sociedade arguida é uma sociedade anónima sendo que no Registo Comercial consta como administrador único … pelo que o arguido não é representante da mesma, face ao disposto no art. 6º do RGIT.
Mais disse que a administração de facto da sociedade a partir de 2003 foi exercida por B..., que praticava todos os actos de gestão financeira, exercendo o arguido apenas as funções de técnico comercial, nunca tendo qualquer intervenção na gestão da mesma, não lhe competindo tomar quaisquer decisões sobre pagamentos.
Conclui referindo que inexistem quaisquer indícios de que o arguido em representação da sociedade tivesse tomado a decisão de não pagamento do IVA à Administração Fiscal.
Como diligências de prova requreu a inquirição de testemunhas e juntou cópia do Registo Comercial relativa à sociedade arguida.
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W…,SA e B... requereram também a abertura de Intrução.
Sustentaram que o não pagamento dos montantes em dívida de IVA foi consequência da situação deficitária da sociedade que teve como consequência a apresentação à insolvência em 2006, sendo que a partir de 2004 foi dada prioridade ao pagamento de vencimentos e dos bens e serviços essenciais à actividade da sociedade, entrando em incumprimento entre outros, com a Fazenda Nacional.
Acrescentaram que os arguidos pessoas seingulares, a título pessoal, entregarm maesmo valores a título de suprimentos, prestações acessórias ou suplementos e prestaram garantias pessoais, estando neste momento a ser objecto de acções executivas.
Concluíram que agiram sempre com o intuito de criar condições de revitalização da empresa, criando mais valias que se destinariam ao pagamento daqueles valores e nunca com o intuito de se locupletarem dos mesmos, inexistindo assim o elemtno subjectivo do crime – intenção de apropriação para si ou para terceiro dos montantes devidos.
Requereram a inquirição de testemunhas.
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A instrução requerida pelo arguido A... foi admitida por despacho constante de fls. 357, tendo sido deprecada a inquirição das testemunhas arroladas e foi considerado sem efeito o requerimento de abertura de Instrução apresentado pela arguida W…,SA e B... atento o facto de à data da sua entrada em juízo, o exercício da advocacia do subscritor estar suspensa, na sequência da aplicação de pena disciplinar.
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O arguido B... veio a fls. 414 nos termos do disposto no art. 283º nº 3 b) c) do CPP arguir a nulidade da acusação.
Teve lugar o debate instrutório com observância das formalidades legais.
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O tribunal é competente.
Não há questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Cumpre, porque prévio à apreciação do mérito – a suficiência de indícios – apreciar as invocadas nulidades da acusação.
Com efeito o arguido B... veio arguir a nulidade da acusação com dois fundamentos: 1) por incumprimento do dever de circunstanciação de facto previsto no art. 283º nº 3 b) e 2) por falta de indicação das disposições legais efectivamente aplicáveis como impõe o art. 283º nº 3 c) do CPP.
O Ministério Público pugnou pela inexistência das apontadas nulidades.
*
Dispõe o art. 283º nº 3 c) do CPP que a acusação contém, sob pena de nulidade a indicação das disposições legais aplicáveis.
Ora, na acusação é imputada à 1.ª arguida a autoria de um (1) crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo art. 105º nº 1 do RGIT, por força do disposto no art. 7º nº 1 do RGIT e aos 2º e 3º arguidos a co-autoria de um (1) crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo art. 105º nº 1 do RGIT.
Ou seja, a responsabilidade da pessoa colectiva decorre do art. 7º que foi citado na acusação, sendo que a responsabilidade dos demais arguidos pessoas singulares poderia ser assacada nos termos do postulado no art. 6º do RGIT, artigo esse que não foi meniconado na acusação.
Mais se diga que a menção a “gerência” da sociedade em termos jurídicos é equívoca dado que se trata de uma sociedade anónima pelo que, importava referir a administração.
No que diz respeito à qualificação da quantia devida como prestação tributária com efeito, também a acusação – na parte atinente à qualificação jurídica – é omissa no que concerne aos correspondentes artigos do CIVA que não poderiam deixar de ser mencionados.
Quanto à imputação a título doloso ou negligente afigura-se-nos que, neste particular, não assiste razão ao arguido, dado que a acusação contém de forma vítrea a narração do tipo subjectivo doloso (“Os arguidos, em nome e no interesse da 1.ª arguida, agiram livre e voluntariamente, bem sabendo que se apropriavam, em comunhão de esforços, de um montante que não les pertencia, referente a I.V.A. a que estavam legalmente obrigados a entregar ao Estado, actuando sempre com o propósito de engrandecer o seu património, à custa do não pagamento de impostos devidos ao Estado. Ambos sabiam que o seu comportamento era previsto e punido por lei penal”).
Dispõe o art. 283º nº 3 b) do CPP que a acusação contém sob pena de nulidade “ a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança incluindo, se possível, o lugra, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Refere-se ainda na acusação que: “Os arguidos foram regularmente notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105º nº 4 b) sem que tenham procedido a qualquer pagamento no prazo de 30 dias que lhes foi fixado”.
Ora, quer se considere um elemento (objectivo-sublectivo) do tipo de ilícito (Taipa de Carvalho) quer se considere uma condição objectiva de punibilidade (Figueiredo Dias) certo é que a mesma não se encontra devidamente formulada na acusação, dado que a redacção supra citada é manifestamente conclusiva, não estando narrado o facto, designadamente, a data da notificação e o teor da mesma.
A isto acresce que, como bem refere o arguido, na acusação não são mencionados quaisquer factos que sustentem a imputação aos dois arguidos pessoas singulares da co-autoria, nos termos do art. 26º nº 1 – 3ª parte do CP. Pois aí não se refere terem tomado parte directa na execução do facto, por acordo ou conjuntamente com outro(s).
Diz-se apenas na acusação que: “Os 2.º e 3.º arguidos eram sócios e gerentes, em efectivo exercício de funções, da «W …», competindo-lhes as funções de administração e gestão da empresa, bem como o pagamento dos impostos devidos ao Estado.
Ora, como já se mencionou, tratando-se de uma sociedade anónima importava apurar a quem incumbia a “administração” sendo que a “gerência” é a figura jurídica prevista para as sociedades por quotas.
Consta ainda da acusação que: Não obstante a 1.ª arguida ter exercido, de modo habitual, continuado e sem interrupções, a mencionada actividade de comércio de artigos para o lar, emitindo facturas e recebendo dos seus clientes os preços correspondentes, liquidando o I.V.A. incidente sobre tais transacções, os 2.º e 3.º arguidos, em nome e no interesse da 1.ª arguida, não entregaram nos cofres do Estado o imposto apurado nas transacções efectuadas, relativamente ao período de Janeiro de 2006.
Na verdade, apesar de estarem obrigados a enviar ao S.A.I.V.A., até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, as declarações periódicas acompanhadas dos correspondentes meios de pagamento, respeitantes ao montante do imposto liquidado nas transacções que efectuava (cfr. arts. 26, n.º 1, 28º, n.º 1, al. c) e 40.º, nº 1, al. a) do C.I.V.A.), os arguidos, perfeitamente cientes dessa obrigação, não entregaram à Fazenda Nacional o imposto exigível relativo aquele período (Janeiro de 2006) no montante de € 26.346,60.
Ora, não decorre da factualidade constante da acusação que os 2º e 3º arguidos tenham recebido os montantes (liquidando IVA aos clientes), pois apenas se diz que a Sociedade assim actuou, nem da acusação decorrem factos, que permitam sustentar a “obrigação jurídica” que sobre os 2º e 3º arguidos impendia de entrega de tais montantes ao Estado, dado que os mesmos não estão descritos na acusação como administradores.
Acresce ainda que, apesar de não invocada a nulidade, na acusação não consta o nome completo do 3º arguido, aí figurando apenas “B...” violando-se assim o disposto no art. 283º nº 3 a) do CPP.
Ora, face a todo o exposto, uma vez constatada a verificação das apontadas nulidades, fica prejudicado o conhecimento do mérito da causa.

DECISÃO:
Face ao exposto, julgam-se verificadas as apontadas nulidades da acusação por violação do disposto no art. 283º nº 3 alíneas a) b) e c) do CPP o que obsta ao conhecimento do mérito da causa e, consequentemente, determina-se a oportuna remessa dos autos ao Ministério Público.
Notifique
Sem custas.”

3. Apreciando

É este tribunal convocado a pronunciar-se sobre se tendo sido, no âmbito da decisão instrutória [instrução requerida pelo arguido], declarada a nulidade da acusação pública com fundamento na violação das alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP, podia o juiz determinar a «remessa» dos autos ao Ministério Público - como sucedeu no caso - ou se, ao invés – como defende o recorrente - se impunha, antes, que tivesse decidido pela não pronúncia, determinado o arquivamento dos autos.
Não está em causa, por conseguinte, o acerto da decisão na parte em que declarou a nulidade da acusação, designadamente quanto à oportunidade da respectiva arguição e fundamentos que a suportaram, aspectos que não suscitaram reacção por parte dos intervenientes processuais interessados e, como tal, por não integrarem matéria de conhecimento oficioso, insusceptíveis de ser sindicados.

Após este breve parêntesis, convém deixar bem claro que o conhecimento das nulidades da acusação, invocadas pelo arguido B..., teve lugar no âmbito da fase de instrução, realizada a requerimento do arguido A..., efectuadas que foram as diligências instrutórias, bem como o debate instrutório, no seio da decisão instrutória, em momento prévio à apreciação dos indícios, a qual – em função da declaração da nulidade - resultou prejudicada.

Posto isto, o que se questiona é se, como preconiza o recorrente, a decisão que declarou nula acusação teria de conduzir à não pronúncia com o consequente arquivamento dos autos.

Vejamos o quadro legal.

Nos termos do n.º 1 do artigo 307º do CPP encerrado o debate instrutório, o juiz profere decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia, dispondo, de seguida, o artigo 308º do CPP:
“1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2. (…)
3. No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.”

Parece, pois, inegável que a decisão instrutória pode quedar-se por aspectos formais, sem chegar a debruçar-se sobre os «indícios» a que se reporta o n.º 1 do citado preceito.
A propósito refere o Prof. Germano Marques da Silva Antes de formular o juízo de indiciação, o juiz deve conhecer de todas as questões prévias e incidentais de que possa conhecer, dispõe o art. 308.º, n.º 3.
(…)
A decisão sobre as questões prévias corresponde sobretudo à ideia de saneamento do processo. Essas questões respeitam à instância, são independentes da questão de mérito com a qual estão conexas só por via da relação formal que entre ambas se estabelece.
Importa averiguar da regularidade da instância para que o processo viciado não prossiga; há que saneá-lo, sendo possível, para que se possa vir a proferir a decisão de mérito para que tende todo o processo ou para evitar que prossiga inutilmente. O juiz deve procurar remover os obstáculos que se opõem à decisão de mérito ou evitar que o processo prossiga inutilmente se a decisão de mérito não for possível.
As questões prévias são, pois, questões de natureza procesual; são os pressupostos da existência ou requisitos de validade ou regularidade do procedimento e dos actos processuais.
(…)
A decisão sobre as questões prévias e incidentais faz, em regra, parte integrante da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia… A decisão de não pronúncia pode ter por fundamento precisamente um vício processual, pode ser resultado da apreciação de uma questão prévia ou incidental.
(…)
Também quando a decisão das questões prévias conduza à anulação total ou parcial do processo, com consequente anulação da acusação, poder-se-ia entender que o juiz não chegaria a proferir despacho de não pronúncia, uma vez que não chegaria sequer a apreciar a acusação, mas não é assim. O tribunal recusa a acusação com o fundamento da sua inadmissibilidade em razão daqueles vícios – [cf. “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2009, págs. 175/177].
Concretamente sobre a não pronúncia por vício de acto processual escreve o Ilustre Professor Também pode suceder que o processo não possa prosseguir para a fase do julgamento pela ocorrência de um vício processual que determine não a extinção do procedimento, mas simplesmente a sua remessa para a fase do inquérito, para que esse vício possa ser sanado. É o que sucederá, v.g., se a acusação for nula por falta de algum dos requisitos (art. 283.º, nº 3). Nestes casos o procedimento há-de poder prosseguir, mas só depois de sanado o vício, pelo que o processo é remetido para a fase de inquérito para que possa prosseguir regularmente a partir daí[cf. ob. cit., pág. 186].
Tal modo de ver encontra-se em consonância com a posição perfilhado pelo Autor no sentido de que as nulidades da acusação podem ser arguidas no requerimento instrutório do arguido, se não se deverem considerar sanadas – [cf. ob. cit., pág. 171].
Entendimento diferente parece ter o Professor Paulo Pinto de Albuquerque quando defende não haver lugar a instrução em caso de nulidade insanável ou nulidade ou irregularidade não sanada da acusação ou do arquivamento, acrescentando que As nulidades ou irregularidades devem ser arguidas, desde logo, diante do magistrado do MP titular do inquérito, com reclamação para o respectivo superior hierárquico[cf. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 778].

Seja como for, como já anteriormente se deu conta no caso que nos ocupa foi no âmbito da instrução arguida, conhecida e declarada a nulidade da acusação por violação das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do CPP, decisão que, repete-se, nesta parte, se tornou pacífica no âmbito do processo.

Que a decisão instrutória que conhecendo de nulidades, irregularidades ou de pressupostos processuais que obstam ao conhecimento do mérito da causa - sem que chegue a debruçar-se sobre este, em função daqueles prejudicado - se traduz numa das modalidades de despacho de não pronúncia [nas palavras do Professor Paulo Pinto de Albuquerque “despacho de não pronúncia que não conhece do mérito da causa”] na estrita medida em que o processo não pode prosseguir para a fase do julgamento, também não temos grande dúvida [cf. vg. acórdão do TRL de 12.01.2010, CJ, XXXV, I, 127 e ss].
A questão que aqui surge controvertida é a de saber se uma vez declarada a nulidade da acusação pública, deve seguir-se o regime da invalidade previsto no artigo 122º do CPP ou se, pelo contrário, se impõe o arquivamento dos autos.
Defende o recorrente que na situação em análise apenas restaria ao juiz, lavrando despacho de não pronúncia, determinar o arquivamento dos autos, já porque só assim resultaria respeitado o teor dos artigos 283º, nº 3 e 308º do CPP e compatibilizado o regime da nulidade da acusação com o disposto nos artigos 303º e 359º do mesmo diploma legal, já porque essa seria a única solução compaginável com os artigos 303º e 359º do CPP, bem como com os princípios do acusatório e contraditório [artigo 32º da CRP].
Em abono da sua posição convoca o acórdão do TRL de 30.01.2007 [proc. n.º 10221/2006 – 5], do qual se extractam as seguintes passagens:
Que consequências retirar da declaração de nulidade da acusação pública, por falta de factos essenciais ao preenchimento do tipo legal imputado, ou seja, essenciais à condenação?
É certo que a declaração de invalidade de um acto determina, em princípio, a sua repetição, sempre que esta seja necessária e ainda seja possível. O que pode determinar o retrocesso dos autos para uma fase distinta e anterior daquela em que se encontram.
Mas essa não é, seguramente, na nossa opinião, a situação dos autos.
Cremos ser inquestionável que, caso o processo tivesse sido remetido directamente para julgamento … o respectivo juiz, ao proferir despacho ao abrigo do art.º 311º, do CPP e constatando a escassez de factos para preenchimento do tipo legal de crime imputado, deveria rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, ao abrigo do n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do mencionado normativo legal.
Igualmente, caso tal falha não tivesse sido detectada nestas fases processuais e o processo chegasse a julgamento, ao lavrar a sentença o juiz julgador, perante a insuficiência dos factos, só tinha uma solução: absolver o arguido.
Isto porque, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (artº 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal - leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos oredenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido… O mesmo se passa com o juiz de instrução. Requerida esta fase pelo arguido para contrariar a acusação pública …, o JIC, chegado o momento de sobre ela decidir, ou considera que aquela contém todos os elementos essenciais e que há “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena …” e, então, profere despacho de pronúncia, ou faz um juízo negativo e profere despacho de não pronúncia. Não pode ordenar, perante a insuficiência de factos, que os autos voltem ao MP … para que seja completada a acusação.
No citado aresto é ainda estabelecido paralelo com o que se passa com o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, na sequência do despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, quando o mesmo é omisso na narração dos factos imputados ao arguido relativamente ao elemento subjectivo da infracção, situação que tem vindo a motivar, com a anuência dos tribunais superiores, a rejeição do respectivo requerimento, sem prévio convite ao aperfeiçoamento, convite, esse, arredado no acórdão STJ n.º 7/2005 que fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»
Também o TC no acórdão nº 358/04, ao apreciar a constitucionalidade do artigo 283º, nº 3, al. b) do CPP, interpretado no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução, apresentado pelo assistente, os elementos mencionados nessa alínea, decidiu que tal interpretação é conforme à Constituição.
Chama, ainda, o recorrente à colação o acórdão do TRC de 06.07.2011 [proc. n.º 2184/06.5JFLSB.C1], onde, após pertinentes considerações sobre os princípios estruturantes do processo penal e análise do regime da alteração substancial dos factos à luz dos artigos 303º e 309º do CPP, ilustrados com recurso a relevantes elementos doutrinários, para o que ora releva, se conclui:
Se o actual regime do Código de Processo Penal, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo, por acréscimo de razão, esta via também não pode utilizada no caso evidenciado nos autos, em que se verifica mais do que alteração substancial.
Efectivamente, a falta de narração, na acusação pública, do tipo subjectivo do crime de administração danosa, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, por maioria de razão, neste context, admissível…a alteração dos factos da acusação, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico dos agentes, uma vez que tal alteração, neste caso, consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica.
A possibilidade de, após a dedução da acusação pública, na qual não constam todos os elementos típicos do crime imputado, se poder reformular essa peça processual, seria manifestamente violadora do princípio do acusatório e das mais elementares garantias de defesa do arguido.

No caso que nos ocupa, sendo a decisão tão mais absurda quanto não só não conclui pela não pronúncia dos arguidos, quanto nenhuma referência faz ao regime geral das invalidades - mormente com a identificação dos actos que, em função da nulidade reconhecida, passariam a considerar-se inválidos [não tendo, naturalmente, viabilidade a coexistênia de uma fase de instrução não encerrada a par de um inquérito reaberto] -, afigura-se-nos que a razão está do lado do recorrente não tanto por violação, imediata, do princípio do acusatório [tende-se a concordar com o acórdão do TRL de 01.10.2008 (proc. n.º 7383/2008 – 3) enquanto consigna: Não se podem confundir os efeitos da declaração da nulidade e a eventual necessidade de os repetir com qualquer intromissão judicial na autonomia do Ministério Público. É que o sentido do novo acto praticado traduz sempre uma valoração do Ministério Público] -, mas pela «diferença de tratamento» a que conduziria o despacho recorrido.
Com efeito, o que nos parece incontornável é que através do despacho em questão se iria conferir uma prerrogativa ao Ministério Público que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais, aos quais, em posição similar, não é concedida a faculdade de deduzir «nova acusação». É, manifestamente, o que se passa na situação atrás reportada com o assistente, quando, em caso de crime de natureza pública ou semi – pública, na sequência do despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, vê o requerimento de abertura da instrução por si apresentado indeferido, sem que haja lugar a prévio convite ao aperfeiçoamento, designadamente por falta de narração dos factos integrantes do crime imputado ao arguido, posição/interpretação que tem vindo a ser sufragada pelos tribunais superiores, já foi objecto de fixação de jurisprudência e relativamente à qual o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de não se mostrar ferida de inconstitucionalidade – [cf. vg. os acórdãos TC n.ºs 389/2005 e 636/2011].
Mas, também, se poderá configurar o caso em que, tratando-se de crime particular, requerida a instrução pelo arguido, no momento do saneamento a que alude o n.º 3 do artigo 308º do CPP ser detectada a nulidade – que escapou ao controlo por ocasião da apresentação do requerimento de abertura da instrução - da acusação deduzida pelo assistente [artigo 285º, nº 3 do CPP] e o que se pergunta é se nesse quadro, declarada a invalidade, é, de novo, concedida ao assistente a faculdade de, no âmbito do processo, deduzir acusação?
Parece que não! Desde logo, mas não só, pela natureza peremptória do prazo em causa.
Por outro lado, talvez deficiência nossa, não se vê motivo plausível para que transitando o processo directamente da fase de inquérito para a fase de julgamento, o juiz, por ocasião do artigo 311º do CPP, detectando um dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º 3 do citado preceito – equivalentes às que configuram as nulidades contempladas nas alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP – deva rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação e constatado idêntico vício na fase de instrução a consequência a retirar não seja a de não pronúncia, não obstante por razões que não se prendem com o mérito.
Poder-se-á argumentar que além [artigo 311º, nºs 2 e 3 do CPP] a sindicância é de mérito, enquanto aqui [artigo 308º, n.º 3 do CPP] estamos no âmbito do saneamento do processo, o que constituindo, embora, uma realidade, ainda assim, no nosso modesto modo de ver, não justifica diferente solução.
Aceitando o risco, olhando globalmente o sistema, somos tentados a dizer que o efeito a retirar no âmbito do processo de uma acusação «nula», mormente pela ausência da narração dos factos, diverge consoante o «momento processual» em que a mesma for declarada.
Assim, se for arguida perante o titular do inquérito e por este declarada ficará sujeita à disciplina do artigo 122º do CPP; se for reconhecida por ocasião do despacho a que alude o artigo 311º do CPP será objecto de rejeição por manifestamente infundada; se for declarada no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo [artigo 308º, nº 3 do CPP], determinará a não pronúncia e, sendo-o, em sede de julgamento – posto de que alteração substancial se trata, pois de contrário não se compreenderia a declaração de nulidade da acusação por ausência de narração dos factos [uma coisa é a nulidade da acusação outra, diferente, a deficiência da mesma] -, tratando-se de factos novos, não autonomizáveis, e não havendo acordo das «partes», não podendo aqueles ser considerados no âmbito do processo, a consequência será a absolvição do acusado.
Muito modestamente, é esta a solução que melhor nos parece compatibilizar-se com os princípios estruturantes do processo penal, com o sistema no seu todo, com a «paridade processual», isto é com a necessidade de garantir «igualdade de tratamento» a situações idênticas.

III. Decisão

Termos em que, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido na parte em que determinou a «remessa dos autos ao Ministério Público», o qual deverá ser substituído por outro que conclua pela não pronúncia dos arguidos, com o consequente arquivamento dos autos.

Sem tribustação

Maria José Nogueira (Relatora)
Isabel Valongo