Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3308/20.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL USADO
AVARIA
VENDA DEFEITUOSA
ÓNUS DO ADQUIRENTE
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 342º E 913º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I – No regime da venda defeituosa, previsto no n.º 1 do art. 913.º do CC, impende sobre os compradores o ónus da prova de que o vício já existia aquando da venda.

II - E é assim porquanto a execução defeituosa da prestação contratual, como violação do contrato, é um ato ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.

III - No domínio desta responsabilidade presume-se a culpa, mas na falta de norma que o permita o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.

IV - Assim, há-de ser sobre quem invoca a prestação inexata da outra parte como fonte da responsabilidade que há-de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento (facto ilícito), bem como os prejuízos dele decorrentes (dano) – artigo 342º, nº1, do Código Civil.

V - Não sendo à compra e venda em causa aplicável o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003, de 8/4, nem o disposto no artº 921º do C. Civil, a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do direito que suportava o pedido (artº 342º, nº 1, do CC) -, da anterioridade do defeito em relação à concretização do contrato e à entrega do veículo.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra(1):
I - A) - 1) 2«[…] Na presente acção declarativa sobre a forma comum, que I... Imobiliária, Lda. no processo melhor identificada, intenta contra T... Unipessoal, Lda., também esta melhor identificada nos autos, alega a 1º em síntese  que:
Em 09 de Maio de 2020 a A. adquiriu à R. - que se dedica ao comércio de automóveis
- um veículo automóvel usado pelo montante global de € 2.990,00.
Nesse mesmo dia, e aquando de viagem desse veículo num percurso de cerca de quatro quilómetros, a luz de óleo acendeu e apagou, sendo imobilizado  na  berma da estrada verificando-se o nível do óleo e água os quais  estavam  normais.
Ao fim desse dia o veículo e em nova volta dada com o mesmo, parou deixando de funcionar.
Nessa sequência foi levado para a oficina da Volvo, onde lhe foi diagnosticado  um problema da bateria e que o motor tinha “agarrado/colado”, informando aquela oficina que já não fornecia aquele tipo de motores por terem sido descontinuados.
O veículo foi depois objecto de uma perícia pedida pela A. e interpelado o R., sendo que posteriormente a viatura foi reparada em oficina, tendo-lhe sido colocado um motor em substituição daquele que lá  existia.
Os custos da reparação totalizam €3.075,00 a que acrescem  € 49,20  por transporte em reboque do veículo, €250,00 pagos pela A. ao seu legal representante por ter emprestado o seu veículo em substituição daquele que estava a reparar, €215,00 para a perícia feita ao veículo, €684,27 pagos à Ascendum (oficina da Volvo) pelo diagnóstico, e o valor de €750,00 a título de danos não patrimoniais pela má imagem criada à R. com a situação descrita nos autos.
Assim, e estando o veículo dentro do prazo da garantia devia o vendedor ter procedido à sua reparação o que este se negou a fazer, tendo-o feito a A. a expensas suas.
Termina pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 5.023,47  acrescida de juros de mora a contar da data da citação e até efectivo pagamento. Foi arrolada prova.
§ A R. foi citada e  contestou.
Refere que o veículo que vendeu à A. estava à venda pelo preço de €3.250,00.
A A. na pessoa do seu representante pediu à R. uma redução daquele valor, o que a R. acedeu com a condição de a viatura ser vendida sem garantia.
Após a entrega da viatura, uma horas depois, o legal representante da A. efetuou uma chamada telefónica dando conta que a luz do óleo tinha acendido, tendo-lhe sido dadas instruções para que a viatura fosse imobilizada e levada para as instalações da R.
Pese embora a A. tenha aceite comprar o veículo sem garantia, a R. disponibilizou-se de imediato a ver o problema da viatura, só que nunca o seu legal representante deixou que a R. tivesse acesso à  mesma.
O problema que a A. refere ter tido no carro deve-se em exclusivo a  má utilização da  viatura, pois que o  mesmo circulou apesar de ter acendido a luz do óleo/motor o que levou aos danos que se verificaram.
A A. levou o veículo para a oficina que quis sem que tenha dado conhecimento à R. do que pretendia fazer, não podendo, portanto, imputar-lhe os gastos hipoteticamente tidos com aquele, os quais a R. desconhece se efetivamente são aqueles que alegados estão, por não serem factos do seu conhecimento pessoal.
Termina peticionando a sua absolvição do pedido. Arrolou prova.
§ Proferiu-se despacho a atribuir valor à causa, dispensando o saneador, não se indicando os temas da prova nem o objecto do litígio, admitindo-se os róis probatórios e designando-se julgamento. […]».
2) Efetuado o julgamento, na sentença que veio a ser proferida em 2/6/2021 pelo Juízo Local Cível de Leiria, foi a ação julgada totalmente improcedente, tendo-se absolvido a Ré do  pedido.
3) - A Autora veio interpor recurso da sentença, oferecendo, a terminar a respectiva alegação, as seguintes  conclusões:
...
XVI - Deve, assim, proceder a ação, sendo concedido provimento ao presente recurso e a Ré ser condenada nos termos peticionados, sendo a sentença revogada e substituída por outra que conceda total vencimento à Autora/Apelante. (…)”.
A Apelada, respondendo à alegação de recuso, pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho3, o objeto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35864).
Assim, as questões a solucionar resumem-se a saber:
- Se é de alterar a matéria de facto em que se fundou a decisão recorrida;
- Se, em face da factualidade que seja de entender como provada, foi acertada a decisão de julgar a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
III - A) - Na sentença da 1.ª Instância consignou-se a seguinte decisão quanto à matéria de facto:
«Factos Provados:

            ...
Os restantes factos alegados nos articulados, por conclusivos, meramente impugnativos, repetitivos ou sem interesse para a causa, não foram considerados nem nos factos provados nem nos factos não provados. […]».
B) 1) - Estabelece o artº 662º, nº 1, do NCPC, que a Relação “deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
Considera o Apelante que a decisão proferida quanto à matéria de facto deveria ter sido outra, designadamente, no que concerne à matéria dos pontos A), B), C) e D) (dos factos não provados), pois que, sustenta, decorrer “…da prova produzida que os pontos A. B. C. D da matéria de facto dada por não por provada deveriam ter sido dados por provados pelo douto Tribunal a quo…”.
Alicerça essa sua pretensão, dizendo, em síntese, que houve erro na valoração do depoimento do Sr. ... e das declarações de parte do Sr. ..., gerente da Apelante, que, tais elementos probatórios, se tivessem sido correctamente valorados, imporiam que se desse como provada a factualidade que veio a ser consignada como não provada nas alíneas A. B. C. D.
Mais refere a Autora que, tendo-se como provada a referida factualidade, esta, conjugada com aquela que o Tribunal “a quo” deu como assente, levaria a que, aplicando-se o direito aos factos, se concluísse pela responsabilização da Ré a pagar-lhe a importância que pagou a terceiros para obter a reparação da avaria tida pelo veículo usado, da marca Volvo, que havia comprado à Ré.
Vejamos.
Antes do mais há que arredar liminarmente a aplicação ao caso “sub judice” do disposto no artº 493º do CC, que a Ré invocou (artºs 1º e 2º da p.i.), pois que a previsão desse artigo, no tocante a danos provocados por atividade, apenas abarca a atividade “…perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados…”, o que não se molda, de todo, à atividade da Ré, “…que se dedica ao negócio de compra e venda de automóveis, sendo proprietária de um stand…”, e tudo o que fez (se bem, se mal, não importa para a subsunção à norma em causa), foi, no exercício dessa atividade, vender à Autora em veículo automóvel usado  da marca Volvo modelo V70, matrícula ...
Dito o exposto e atento o teor da sentença impugnada e o teor das “conclusões” de recurso da Autora, não se discute que a problemática presente no litígio se deve ver, antes do mais, sob o prisma da venda de bens defeituosos, que, com previsão no artº 913º do Código Civil (CC), tem o respetivo regime, por remissão deste preceito, regulado nos art.os 905.º a 912.º, respeitantes à venda de bens onerados.
Não estando em causa que após a venda do veículo pela Ré à Autora e a respetiva entrega a esta, o mesmo, percorridos poucos quilómetros em, essencialmente, dois trajectos feitos em ocasiões distintas, veio a imobilizar-se, vindo a ser constatado, posteriormente, em oficina para onde o veículo foi enviado pela Autora, que o motor “não arrancava” porque “os bronzes da cambota se encontravam agarrados a esta e bem assim a existência de diversa limalha no carter e no tubo de sucção do óleo”, tendo-se apurado que tal problema do motor, “…se teria ficado a dever à falta de lubrificação dos bronzes das bielas, pela circunstância de ter existido uma avaria na bomba de óleo o que impediu a lubrificação do motor, levando a que a viatura se imobilizasse…”.
Em síntese, dizemos nós, o motor do veículo em causa deixou de funcionar devido a uma avaria na bomba de óleo, que provocou a falta de lubrificação dos bronzes das bielas.
A ação improcedeu, em síntese, porque o Tribunal entendeu - afastando, e bem, o regime jurídico da venda de bens de consumo -, que, mesmo tendo presente a existência (aí, com desacerto, como se verá, pois esse acordo não se provou), de uma acordada garantia de bom funcionamento, não eram devidos os valores peticionados pela Autora, designadamente o da reparação efetuada por terceiros, porque esta
«[…] não deu possibilidade à R. de verificar o estado do veículo após comunicação das anomalias e assim poder esta depois disso repará-las […]», sendo que, mesmo a considerar-se ter sido dada à Ré essa oportunidade, sempre cumpriria «[…] informá- la que tendo por definitivamente incumprida a obrigação o comprador (A.) iria proceder à reparação com apoio de um terceiro, exigindo o pagamento do preço ao vendedor (R.) […]».
Vejamos.
Não estando em causa que o veículo apresentou um vício que impedia a realização  do fim a que o mesmo se destinava, a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do direito que suportava o pedido (artº 342º, nº 1, do CC) -, da anterioridade do defeito em relação à concretização do contrato e à entrega do veículo, dependência esta que já não ocorreria, como adiante se explicitará, caso se provasse, como foi alegado na petição, que entre os contraentes fora acordada uma garantia (de bom funcionamento - artº 921º do CC), ou caso a compra e venda em causa não estivesse excluída do âmbito do regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003, de 8/4, com a alteração do DL 84/2008, de 21/5, porquanto não é de ter a empresa Autora 0como “consumidor”, na definição do artº 1º-B, a), daquele diploma (crf. Tb. artº 2º, nº 1, da Lei de Defesa do Consumidor - Lei n.º 24/96, de 31/7).
Na verdade, já no Acórdão da Relação do Porto de 18/06/2007 (apelação nº  0751464)
- Relator: Des. ABÍLIO COSTA5, se escreveu:
«[…] Da análise da matéria de facto apurada resulta que, em Março de 2002, foi celebrado entre A. e R. um contrato de compra e venda tendo por objecto um veículo automóvel marca L………., no estado de novo.
Um dos efeitos do contrato de compra e venda consiste, como se sabe, na obrigação de entrega da coisa art.s 874º e 879º, al. b), ambos do C.Civil.
E devendo os contratos ser pontualmente cumpridos art.406º, nº1, do C.Civil o cumprimento daquela obrigação só será perfeito se for entregue a coisa encomendada, por um lado, e sem defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais - defeitos de concepção ou design e defeitos de fabrico por outro lado. Caso a coisa vendida padeça daqueles defeitos, estamos perante a venda de coisa defeituosa art.913º do C.Civil.
Na fixação do regime jurídico da compra e venda de coisas defeituosas deve ter-se em conta o regime geral da responsabilidade contratual art.s 798º e seg.s do C.Civil
- o regime especial previsto no art.913º do C.Civil, ao remeter para o regime da compra e venda de bens onerados, e as particularidades previstas nos art.s 914º e seg.s daquele diploma legal.
Assim, atento o que fica dito, e desde logo, incumbe ao comprador a prova do direito invocado, ou seja, da entrega da coisa com defeito art.342º, nº1, do C.Civil.
Quanto à culpa, presume-se a culpa do vendedor art.799º, nº1, do C.Civil.
Provada a entrega da coisa com defeito e não tendo sido ilidida a presunção de culpa do vendedor, podem ocorrer as seguintes consequências: reparação do defeito, substituição da coisa, redução do preço, resolução do contrato e indemnização. […]». (o sublinhado é nosso).
Idêntico entendimento pode constatar-se no Acórdão do STJ de 26/04/2012 (Revista nº 1386/06.9TBLRA.C1.S1 - Relator Cons. Serra Batista), a que pertence o seguinte trecho:
«[…] tendo a autora, ora recorrente, apelado, se bem que de forma implícita, e desde logo, para as regras da compra e venda de coisas defeituosas, previstas nos arts 913.º e ss[14]/[15], pode o contrato ser anulado por erro ou dolo, desde que se verifiquem, no caso, os requisitos gerais da anulabilidade art. 905.º, ex vi do citado art. 913.º[16]. Tendo, ainda, o comprador, em princípio, direito a exigir do vendedor a reparação da coisa ou a substituição dela, se, como in casu sucede, tiver natureza fungível art. 914.º.
Colocando-se assim a questão, desde logo, no campo da responsabilidade contratual emergente do cumprimento defeituoso do contrato, já que a prestação do devedor (vendedor), segundo o credor (comprador ou que o lugar do mesmo assumiu com a concordância daquele), não satisfaz o interesse deste, por se verificarem desconformidades relativamente às que são normais e deviam existir, atento o destino e função do veículo em causa[17].
Respondendo o devedor presumindo-se a sua culpa quando a prestação for defeituosamente cumprida, pelo prejuízo causado ao credor, nomeadamente pela eliminação dos defeitos arts 798.º, 799.º, nº 1, 913.º e 914.º[18].
Estando-se, então, perante vícios materiais ou vícios físicos da coisa, ou seja, de defeitos intrínsecos, inerentes ao seu estado material, sem correspondência com as características acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador.
Tendo o clássico regime edilício da venda de coisas defeituosas  directamente em vista, desde logo, os vícios intrínsecos, estruturais e funcionais da coisa defeitos de concepção, de design e de fabrico que a tornam imprópria (por falta de qualidades ou características técnicas e económicas) para o seu destino, especialmente tido em vista por especificações/estipulações contratuais ou o destino normal das coisas do mesmo tipo[19]/[20].
Ora, sendo a execução defeituosa da prestação um acto ilícito[21]tem o credor lesado que alegar e demonstrar os restantes requisitos da responsabilidade civil, desde logo, e presumida que está a culpa do devedor, os factos que integram esse incumprimento, ou seja, o defeito.
Tendo aqui cabal aplicação o regime das provas estabelecido nos arts 341.º e ss e, assim, como a existência do defeito é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador, cabe a este a respectiva prova (art. 342.º, nº 1).
Tendo, in casu, de alegar e provar a desconformidade em causa, quer para os casos, em que a mesma se refere à prestação primeiramente efectuada, quer para aqueles em que a coisa foi reparada mas em que o defeito permanece.
Não bastando a prova do defeito, mas, de igual modo, a demonstração da sua gravidade, de molde a afectar o uso da coisa[22].
Sendo o vício ou defeito da coisa determinado à data do cumprimento, a  ela se reportando, mesmo que em germe. Ainda que eventualmente oculto[23]/[24].
Sendo certo que o cumprimento defeituoso tem como pressuposta a ideia de que, aquando da entrega da coisa, o comprador desconhecia o vício ou inexactidão  da prestação efectuada pela outra parte.
Constituindo matéria de facto determinar se o defeito é anterior ou  posterior ao cumprimento da prestação.
Cabendo ao comprador o ónus de alegação e prova da desconformidade da coisa vendida em relação à sua função normal (que é aqui o caso)[25].
Cabendo, ainda, ao mesmo comprador a alegação e prova de que o denunciado defeito existia à data do cumprimento do contrato, mesmo  em germe[26].
Não se descortinando razões bastantes para, também quanto a este pressuposto o da anterioridade dos defeitos denunciados se inverter o ónus da prova, assim se alterando as regras do regime probatório geral fixado nos arts 342.º e ss.
Com efeito, como já dissemos, a existência do defeito é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador[27].
Devendo o mesmo, como tal, se integrar na causa de pedir.
Cabendo, por tudo isto, e por princípio, a sua prova a quem o invoca (citado art. 342.º, nº 1).
E, advindo o defeito, no regime especial em apreço, de uma execução imperfeita da prestação, deve o mesmo, naturalmente (arts 408.º, nº 1, 879.º, als a) e b) e 882.º, nº 1), reportar-se à data do seu cumprimento.
Na verdade, quem exige a reparação ou a substituição da coisa, está, seguramente, a manifestar a vontade de obter a prestação originária a que, por virtude do contrato, tem direito.
Estando nele no contrato a matriz verdadeiramente fundante desta garantia[28].
Nem se podendo dizer ser difícil e muito menos impossível, para o autor, a prova da anterioridade do defeito, atento o clássico regime da garantia edilícia.
Tendo o mesmo, em princípio, ao seu dispor a prova pericial, na qual, desde logo com o saber especializado dos técnicos nomeados, a parte, com a prova realizada, poderá demonstrar, se caso disso for, a anterioridade do defeito denunciado.
Sem prejuízo, se também for o caso, de se poder lançar mão da previsão do art. 344.º, nº 2.
Ora, a autora não alega sequer a anterioridade dos defeitos que denunciou, pelo que jamais tal pode, agora, comprovar[29]. […]».
Também no Acórdão do STJ de 13/11/2018 (Revista nº 71/15.5T8PTL.G1.S2 - Relator: Cons. PEDRO DE LIMA GONÇALVES), se entendeu que “No regime da venda defeituosa previsto no n.º 1 do art. 913.º do CC, impende sobre os  compradores o ónus da prova de que o vício já existia aquando da venda.”, tendo-se escrito nesse aresto:
«[…] encontram-se provados os defeitos alegados pelos Autores.
Contudo, não está demonstrado que os defeitos existiam na data em que ocorreu a transferência de propriedade da fração autónoma (ou anteriormente).
E a prova desses factos, porque constitutivos do direito dos Autores, competia a estes nos termos do nº 1 do artigo 342º do Código Civil, porquanto no caso presente não existe, como se afirma no Acórdão recorrido, qualquer prazo de garantia, quer convencional quer legal.
E é assim, porquanto a execução defeituosa da prestação contratual, como violação do contrato, é um ato ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
No domínio desta responsabilidade, presume-se a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.
Assim, há-de ser sobre quem invoca a prestação inexata da outra parte como fonte da responsabilidade que há-de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento (facto ilícito), bem como os prejuízos dele decorrentes (dano) artigo 342º, nº 1, do Código Civil (Acórdão do STJ de 19/02/2008, consultável em www.dge.mj.pt)
Por outro lado, nestes autos não estamos no âmbito da garantia de bom funcionamento a que se refere o artigo 921º do Código Civil (presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza tal garantia, bem como não é aplicável o regime da venda de bens de consumo (Decreto Lei nº67/2003, de 8 de abril, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº1999/44/CE), como, aliás, reconhecem os Recorrentes, assim como não se verifica qualquer situação das previstas na Lei nº 24/96, de 31 de julho, nem lhe é aplicável o disposto no  artigo 1225º do Código Civil.
- cfr., no sentido de o ónus da prova competir ao comprador, na situação análoga à dos presentes autos, os acórdãos do STJ de: 14/12/2016; 19/02/2008; 23/11/2006; 13/03/2003; 29/11/2001; 21/05/1998 -
Deste modo, o recurso tem de improceder. […]».
É claro que, como flui daquilo que mais acima se disse, o entendimento seria diverso daquele que se vem expondo caso se estivesse no âmbito da aplicação do aludido regime jurídico da venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, ou, ainda, caso fosse aplicável a previsão do artº 921º, nº 1, do CC, que dispões sobre a venda com garantia de bom funcionamento.
No âmbito da venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, como se evidencia no Acórdão da Relação de Guimarães de 13/05/2021 (Apelação nº  2927/18.4T8VCT.G1
- Relatora: Des. MARIA CRISTINA CERDEIRA)6, «[…] é ao comprador/consumidor que cabe o ónus de alegar e provar o defeito de funcionamento da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, e que esse defeito existia à data da entrega da  coisa, embora disponha de presunções legais de não conformidade que facilitam tal prova (art. 2º, n.º 2). Ou seja, bastará ao consumidor alegar e provar os factos-índice da presunção de desconformidade com o contrato e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta por aquele diploma legal (2 ou 5 anos a contar da entrega), para se presumir que o defeito já existia à data da entrega (art. 3º, n.º 2). […]». (os sublinhados são nossos).
Sob a epígrafe “Garantia de bom funcionamento”, dispõe o nº 1 do artº 921º do CC: “Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.”.
Sobre esta norma expendeu-se o que se segue, no Acórdão do STJ de 03/04/2003 (Revista nº 03B809 - Relator: Cons. QUIRINO SOARES: «[…] Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.
(…)
A garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na justa medida em que, durante a sua vigência (que, em todo o caso, sempre teria de ser superior à combinada - cfr. nº 2 do artº 4º da Lei de Defesa do Consumidor (3), o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida.
Da garantia de bom funcionamento resulta, por isso, uma presunção ilidível de que o vício ou defeito que a coisa venha a revelar após a entrega já existia a essa data.
Tudo isto tem importantes reflexos na questão do ónus da prova, já que para o exercício dos direitos cobertos pela garantia o cliente (comprador) só terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega.
É ao vendedor que incumbe a alegação e prova de que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida, imputável, portanto, ao comprador ou a terceiro, ou atribuível a caso fortuito.
Esta garantia de bom funcionamento é um "mais" relativamente aos direitos conferidos ao comprador pelos artºs 913º e segs. do CC, e terá sido por não a entenderem assim que as instâncias, reconduzindo-a aos pressupostos e regime daqueles artigos (onde se trata das consequências do vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que é destinada e da falta das qualidades asseguradas ou necessárias para a realização daquele fim) valorizaram indevidamente a falta de prova sobre a específica avaria ou defeito que esteve na origem do mau funcionamento da direção do veículo.
Sendo assim, tendo ficado provado que, no prazo contratual de vigência da garantia, o volante do automóvel bloqueou inesperadamente, em andamento, isto é, que o veículo deu mostras de mau funcionamento, não restava outra coisa senão concluir pela verificação dos pressupostos de que dependiam os direitos do comprador de coisa defeituosa. […]». (o sublinhado é nosso).
Ora, alegando a Autora que por contrato verbal de compra e venda, firmado por intermédio do seu gerente, com a Ré, “adquiriu com garantia o veículo” (cfr. artº 4º da petição), será à Autora, que se quer valer dessa cláusula contratual que pretende fazer valer e lhe confere especiais direitos, que compete a prova da outorga dessa garantia (artº 342º, nº 1, do CC).
Só que, tendo essa factualidade sido impugnada, o que a tornou controvertida, após  a produção da prova, não foi a mesma dada como provada, antes tendo sido dado como não provado (alínea g) dos factos não provados), que “Aquando do negócio de aquisição da viatura as partes acordaram, a fim de fazer baixar o preço que era de €3.250,00 para €2.900,00, que a venda seria feita sem garantia, o que a A. aceitou.”.
No domínio do direito processual civil pretérito, em que se davam “respostas aos pontos da base instrutória”, foi entendimento jurisprudencial sólido que a resposta negativa a um facto da base instrutória não implicava a prova do facto contrário (Assim, por exemplo, o Acórdão do STJ de 04/01/1982 (Revista nº 069814).
Ora, no caso “sub judice” a falta de prova de que a venda foi feita sem garantia não equivale à prova do contrário, ou seja, à prova de que a venda foi feita com a garantia.
Portanto, há desacerto do Tribunal “a quo” quando entendeu que a falta de garantia era facto extintivo do direito da Autora e, assim sendo, esta é a onerada com a respetiva prova, dizendo-se na dúvida na existência dessa garantia, deu essa falta como não provada, em lugar de dar como não provado que a venda fora feita com garantia.
Por isso, é desacertada a seguinte afirmação que se faz na sentença: “Descendo ao caso dos autos, existindo garantia - refira-se que se não provou que a viatura foi vendida sem a mesma – o prazo da mesma, no silêncio do contrato, era de 6 meses.”.
Assim, o que há a concluir é que dos factos provados não consta que a venda haja sido feita com garantia de bom funcionamento e, portanto, não se tendo provado factualidade que nos permita concluir que, no domínio da venda de veículos automóveis usados, o vendedor, por força dos usos, está obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, nos termos do referido do artº 921º, nº 1, o que é de concluir é o caso “sub judice” escapa a essa previsão normativa.
Deste modo, tal como acima se adiantou, não sendo à compra e venda em causa  aplicável o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003, de 8/4, nem o disposto no artº 921º, a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do direito que suportava o pedido (artº 342º, nº 1, do CC) -, da anterioridade do defeito em relação à concretização do contrato e à entrega do veículo.
Ora, talvez fiada na prova da alegada garantia (cfr. artºs 4º, 25º e 28º, da p.i.), ou, porque, erradamente, assumiu ser aplicável o regime jurídico da venda de bens de consumo  (cfr.  artºs  9º a 55º da  p.i.), o certo é que a Autora não alegou tal factualidade e, portanto, não se tendo, evidentemente, provado a mesma, ficou irremediavelmente arredado o êxito da ação.
Em resultado do exposto é de concluir, pois, que ainda que atendida a alteração pretendida pela Apelante quanto à decisão proferida relativamente à matéria de facto, sempre improcederia a ação por falta de prova da apontada factualidade não alegada pela Autora.
Um eventual erro na fixação da matéria de facto só assume relevância para efeitos de alicerçar um pedido de alteração da decisão proferida quanto a essa matéria, na medida em que se possa repercutir no julgamento de direito, ou seja, se tiver aptidão para alterar o sentido da decisão do tribunal “a quo” no que se refere à  atendibilidade da pretensão do Autor (ou do Réu reconvinte, sendo ele  o Recorrente).
Compreende-se, assim, que a alteração da matéria de facto, peticionada pelo recorrente, seja de desatender quando se revele despicienda para alterar a decisão de direito a que se chegou, pois aquela alteração consubstancia apenas um meio posto à disposição das partes para atingirem este último apontado escopo.
Se a decisão sobre os factos que a parte pretende ver alterada pela Relação não é susceptível de se reflectir no sentido da procedência (ou da improcedência) da ação (ou da reconvenção), torna-se indiferente e, por conseguinte, revela-se inútil, a tarefa de confirmação do acerto da actuação do Tribunal “a quo” quanto a essa da matéria de facto.
Ora, pelas razões acima expostas, a alteração pretendida pela Recorrente, quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, mostra-se despicienda para inverter o decidido pelo Tribunal “a quo” quanto à procedência dos pedidos da Autora, o que leva a que esta Relação não examine o acerto da atuação da 1ª Instância quanto à fixação da matéria de facto em causa e, consequentemente, indefira a alteração peticionada pela Recorrente nesse domínio, o que ora se decide.
Assim, sendo, pois, a matéria de facto a ter como provada e como não provada, aquela que assim foi considerada na sentença e que mais acima se discriminou, o que já ficou exposto  em  termos de aplicação  do  direito, leva à inexorável conclusão de que, embora com fundamentação diversa daquela que se deu na sentença recorrida, é de manter a improcedência da ação e a absolvição da Ré do pedido.
IV - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em,  julgando a Apelação improcedente, confirmar, embora com fundamentação diversa daquela que foi dada pelo Tribunal “a quo”, a decisão recorrida.
Custas pela Apelante (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC). 9/11/20217

(Luís José Falcão de Magalhães)
(António Domingos Pires Robalo)
(Sílvia Maria Pereira Pires)

1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.

2 Transcrição de extracto do relatório da decisão recorrida.

3 Código este que é o aplicável no que concerne ao regime de recurso, dado que foi já na sua vigência que foi proferida a decisão ora impugnada.

4 Consultáveis na Internet, em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
5 Consultável - tal como os restantes acórdãos da Relação do Porto, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados -, em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase.

6 Consultável - tal como os restantes acórdãos da Relação de Guimarães, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados -, em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase.