Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
319/12.8PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: INCÊNDIO
NATUREZA DA INFRACÇÃO
ACTO PREPARATÓRIO
ACTOS DE EXECUÇÃO
Data do Acordão: 01/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU, VISEU – INST. LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 272.º E 21, DO CP
Sumário: I - O incêndio de relevo, não tendo de ser exclusivamente em extensão ou em duração, pode revelar-se temporalmente diminuto. Basta, para isso, que se desencadeie junto de matérias altamente inflamáveis.

II - O perigo (concreto), indispensável à verificação do crime de incêndio, existe sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, a acção possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens descritos no artigo 272.º do CP.

III - Resultando da matéria de facto provada:

- O arguido adquiriu uma garrafa de água, com a capacidade de 1,5 litro, despejou o seu conteúdo, e encheu-a com gasolina; no interior da garrafa colocou papel a servir de pavio;

- Após, colocou a garrafa, assim preparada, junto a uma viatura estacionada no parque de estacionamento contíguo a uma Esquadra da PSP, onde estavam estacionadas outros veículos (entre 10 a 20), tendo ateado fogo ao “pavio”;

- O fogo só não se propagou àqueles veículos porque foi visualizado e extinto por terceiro, mesmo antes de ter alastrado ao referido líquido;

estes factos consubstanciam conduta idónea, adequada, à realização do tipo de crime de incêndio, constituindo, como tal, acto de execução, desse ilícito penal [o arguido preparou o crime quando comprou a garrafa e a gasolina, e pôs o papel na garrafa a servir de mecha; iniciou a sua execução quando acendeu o papel].

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

A... veio interpor recurso da sentença que o condenou pela prática de um crime de incêndio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 272º, n.º 1, al. a), 22º, 23º e 73º do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão. Pena que foi declarada suspensa na sua execução por igual período.

As razões da sua discordância encontram-se expressas nas conclusões da motivação de recurso, onde se refere que:

1- A douta decisão recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e também em erro de interpretação e aplicação da lei, o que levou à condena­ção do arguido ora recorrente, o qual, se tal não acontecesse, teria sido necessariamente absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado.

2- Foram incorrectamente julgados os concretos pontos impugnados na motiva­ção do presente recurso, a saber, pontos 1, 2, 5, 16, 17 e 18 dos factos prova­dos.

3- As concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida são as refe­ridas na motivação do presente recurso, que por razões de economia se dão por integralmente reproduzidas, designadamente, os depoimentos das teste­munhas B..., B..., D...e E..., bem como as declarações do arguido nas passagens expressamente referidas na motivação deste recurso.

4- Se tais depoimentos e declarações fossem valorados segundo a normalidade das coisas e as regras da experiência, os factos dados como provados e ora impugnados teriam sido necessariamente dados como não provados.

5- A proceder, como se espera, a impugnação da matéria de facto, e sem prejuí­zo do que adiante se dirá, resulta não estarem preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo, o que inevitavelmente determinará a absolvição do arguido.

6- A douta sentença recorrida incorreu também em erro de interpretação e apli­cação da lei, tendo violado, além de outros, os art.°s 14°, 21°, 22°, 24°, 40°, 212º e 272° do C.P., os quais deverão ser interpretados nos termos que melhor constam da motivação do recurso.

7- Ainda que, por hipótese académica, o Tribunal julgue improcedente o recurso relativo à impugnação da matéria de facto, sempre a decisão condenatória devia ser revogada e o arguido absolvido do crime pelo qual foi condenado.

8- O Tribunal não atentou devidamente que o estádio até onde foram levados e a natureza dos actos e o modo e condicionalismo em que ocorreram, dado o recorte do tipo objectivo do ilícito criminal exposto no art. 272°, n.º 1, al. a) do C.P., são atípicos por funcionamento da cláusula de adequação social. Na verdade,

9- Para que haja crime de incêndio, ainda que na forma tentada, tem o mesmo de ser "de relevo", ou seja, assumir uma extensão ou intensidade de propor­ções tais que não seja socialmente adequada. Ora,

10- Tal causa de adequação social afasta a tipicidade de condutas de incêndio de extensão ou intensidade ínfimas, como ocorreu no caso sub judice, tendo o Tribunal incorrido na violação do art. 272°, n.º 1, al. a), ao decidir de modo diverso.

11- Os actos praticados pelo agente quedaram, no iter criminis, pelo estádio de meros "actos preparatórios", descaracterizados de verdadeiros actos de execução.

12- Com efeito, os actos a que se alude nas als. a), b) e c) do art.° 22° do C.P., para serem havidos como actos de execução, seria necessário que os mes­mos atingissem o âmbito de protecção da norma penal, o que manifestamente não aconteceu nos actos praticados pelo arguido. Assim,

13- Ainda que por hipótese se considere que o arguido se muniu dos instrumentos para a prática do crime de incêndio e que se deslocou para o local onde supostamente iria praticar o crime, os actos praticados, atento o processo causal conducente à prática do crime, são actos meramente preparatórios e, como tal, não criminalmente puníveis (art. 21° do C.P.), isto sem prejuízo da sua posição autónoma do art. 275° do C.P..

14- Tendo existido apenas actos preparatórios e não actos de execução, não há tentativa, pelo que, ao decidir de modo diverso, o Tribunal violou o disposto nos art.°s 21° e 22° do C.P. e, também por isso, o arguido devia ter sido absolvido.

15- Ainda que por hipótese académica se admitisse que os actos praticados pelo arguido pudessem ser havidos como actos de execução, atenta a prova pro­duzida (colocação da garrafa no passeio, em lugar visível, sem a ter arremes­sado contra nenhum veículo), estar-se-ia perante uma exclusão da punibilida­de da tentativa, por manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente ou face à inexistência de objecto essencial à consumação do crime. Ora,

16- Atenta a inidoneidade do meio utilizado e a inexistência do objecto, a tentativa não é punível, nos termos do disposto no art. 23°, n.º 3, do C.P., pelo que, também por isso, o arguido deveria ter sido absolvido.

17- O Tribunal a quo, ao fazer uso de uma clara alusão a um juízo de previsibili­dade condicional do agente quando actuou, afirma a existência de dolo eventual e não directo. Ora,

18- Da interpretação conjugada dos art.ºs 22° e 14°, n.º 3, do C.P., resulta ser incompatível a existência de dolo eventual com a tentativa. Assim,

19- Tendo a douta decisão recorrida feito apelo ao dolo eventual, jamais poderia ter condenado o arguido pela prática do crime na forma tentada.

20- Ao decidir de modo diverso, a douta sentença violou o disposto nos art.ºs 22°, n.º 1 e 14°, n.º 3, ambos do C.P..

21- Por fim, dir-se-á ainda que o Tribunal não valorou adequadamente a conduta do arguido, ao ter colocado a garrafa no passeio sem qualquer arremesso contra os veículos, pois, se o tivesse feito, necessariamente concluiria que o arguido desistira voluntariamente de prosseguir a execução do crime, admitin­do academicamente que alguma vez tal ideia tivesse existido. E,

22- Nessa hipótese, ao ter desistido, impunha-se que o Tribunal considerasse a tentativa não punível e, ao decidir de modo diverso, violou o disposto no art. 24° do C.P..

Nestes termos,

Deve o presente recurso ser recebido, julgado provado e procedente e, por via disso, ser pro­ferido douto acórdão que revogue a também douta decisão recorrida, absolvendo o arguido do crime em que foi condenado.


*

Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, defendendo a improcedência do recurso.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido apresentou resposta, discordando do parecer e reiterando os fundamentos da motivação.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da decisão recorrida consta o seguinte (por transcrição):

Os factos provados emergentes dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento.

1. No dia 9 de Março de 2012, cerca das 04H20, a PSP foi chamada ao Bar denominado Noite Bibas, sito na R. Conselheiro Afonso de Melo, nesta cidade de Viseu, onde estava o arguido e porque este se recusava a pagar o consumo mínimo obrigatório naquele estabelecimento, no montante de      € 5,00.

2. Depois de a PSP se inteirar da situação, o arguido acabou por pagar tal quantia de 5,00€ ao segurança do estabelecimento, na presença do elemento da PSP que fez directamente a abordagem às pessoas envolvidas.

3. Como o arguido manifestou o propósito de apresentar queixa pelo sucedido, nomeadamente contra o segurança, foi aconselhado a dirigir-se à esquadra da PSP, o que fez.

4. Aí chegado, foi conduzido à pessoa responsável para recolher essa sua queixa, D..., Chefe da PSP de Viseu, que se encontrava naquele dia, na referida Esquadra, a desempenhar funções de graduado de serviço.

5. Mas, como aquele elemento da PSP que o recebeu ficou com a impressão de que o arguido aparentava estar muito alcoolizado e não eram inteligíveis os termos em que queria apresentar queixa, nomeadamente o porquê e contra quem, foi informado do prazo que tinha para apresentar queixa e, por via do seu estado, aconselhado a fazê-lo mais tarde.

6. Pese embora a sua vontade de o fazer de imediato, o arguido acabou por abandonar, a pé, as instalações da Esquadra da PSP.

7. De seguida, o arguido foi buscar o seu carro, dirigiu-se com ao posto de abastecimento de combustível “BP”, sitas na Rua Cónego Barreiros, n.º 270, nesta cidade, e ali adquiriu uma garrafa de 1,50 de água,

8. Após, o arguido despejou o seu conteúdo de água e encheu-o de gasolina.

9. Muniu-se ainda de papéis de limpar as mãos, disponíveis naquele posto de estabelecimento e, na posse da gasolina, já engarrafada, abandonou o local, dirigindo-se ao parque de estacionamento, contíguo à entrada principal da esquadra da PSP onde havia estado e onde imobilizou o veículo por si conduzido por volta das 06H15.

10. De seguida, e já apeado, o arguido enrolou os papéis de limpar as mãos, com que se munira, enrolou-o por forma a descrever um pavio e introduziu no interior da referida garrafa, pelo gargalo, retirando a rolha que servia de fecho para a gasolina engarrafada

11. Acto contínuo, o arguido colocou a garrafa e papel nela inserido junto ao pára-choques frontal de um veículo automóvel aí estacionado, a uma distância não concretamente apurada mas rondando os 20 cm.

12. Com um isqueiro que trazia consigo, o arguido ateou fogo ao papel para que deste se propagasse para a gasolina e desta, por via das suas características altamente inflamáveis, ao veículo junto ao qual foi colocada e, eventualmente, aos veículos que estavam estacionados paralelamente àquele, de um e outro lado.

13. Por mero acaso, o Agente da PSP B..., que veio ao exterior da Esquadra fumar um cigarro, apercebeu-se de um clarão no parque de estacionamento logo percepcionando tratar-se de uma chama

14. E viu o arguido escondido entre os veículos ali estacionados.

15. O arguido, apercebendo-se da presença daquele agente e de que fora visualizado, pôs-se em fuga do local, utilizando para o efeito o seu veiculo matricula CH... e, por sua vez, o referido Agente deslocou-se para o local, apagou a chama, o que conseguiu fazer ainda antes que ela se propagasse à gasolina e alertou os colegas de serviço

16. O fogo só não se propagou aos restantes veículos, nomeadamente o veículo de matrícula      ...PO, no valor venal que rondaria os € 2.000,00 (propriedade de D..., Chefe da PSP de Viseu), de matricula ...BU, propriedade de E..., no valor de     € 2.500,00, de matricula VL ..., propriedade de I..., no valor de € 1.000,00 de matricula ...EF, propriedade de B..., no valor de, pelo menos, € 2.000,00 e matricula ...LN, porque o referido Agente da PSP evitou a propagação das chamas.

17. Ao actuar da forma descrita, o arguido sabia que o fogo necessariamente se propagaria rápida e incontrolavelmente ao veículo junto ao qual deixou a garrafa de gasolina e, eventualmente os veículos aquele circundantes, o que quis e que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade.

18. O arguido agiu voluntária e conscientemente, sabendo que esses bens não lhe pertenciam e que a sua conduta o faria incorrer em responsabilidade criminal.

19. O arguido não tem antecedentes criminais.

20. O arguido é médico dentista de profissão, actividade que exerce por conta própria nesta cidade de Viseu e em Lisboa, mantendo por via disso residência repartida entre estas duas cidades, durante a semana de trabalho.

21. O arguido é solteiro, pese embora tenha duas filhas, de quem tem a guarda partilhada com a mãe.

22. O arguido é considerado pelos seus amigos como bom profissional, querido e respeitado entre as pessoas conhecidas e, sobretudo, no círculo de amigos.


*

Factos não provados.

Não se provou que:

a. Quando na esquadra da PSP o arguido “...cambaleava e exalava um forte odor a álcool”

b. O arguido previu como possível que o fogo se propagasse também às instalações da PSP adjacentes ao parque de estacionamento e às habitações, com pessoas que estivessem no seu interior, de valor seguramente superior a € 100.000,00, e que se conformou com essa possibilidade.

c. Que o veículo de matricula ...LN propriedade de J... tinha o valor de € 2.000,00.

Factos irrelevantes à decisão a proferir (por via da delimitação do julgamento à matéria criminal da acusação)

“Pouco depois, o arguido, conduzindo o referido veículo, passou junto ao parque de estacionamento a buzinar, tendo virado à esquerda em direcção à Praça Humberto Delgado e, depois, novamente à esquerda para a Rua Alexandre Herculano, desrespeitando aqui o sinal vertical obrigatório de virar à direita (Sinal Dl), ali colocado”.

Inexistem outros factos provados ou não provados com relevo para decisão a proferir, considerando-se irrelevante ou meramente conclusivo tudo o demais constante da acusação e não elencado na matéria de facto provada.


*

Na apreciação crítica dos meios de prova pessoal e documental, produzidos em audiência de julgamento, teve-se em consideração que o arguido falou sobre os factos de que vinha acusado.

Das declarações que proferiu resultou a admissão, como correcta, do concreto dia e hora do sucedido, provada em 1. - reassegurados pelo auto de notícia e depoimento do agente autuante, que o confirmou - e, bem assim, a afirmação do sucedido nesse dia relativo ao facto de a PSP se ter deslocado ao local, nos termos também provados em 1., a afirmação do que se provou em 3., em 4. - pese embora não tivesse precisado o nome do graduado de serviço, este que foi ouvido como testemunha e afirmou ter efectivamente estado com o arguido por via de uma queixa que este queria apresentar - , a afirmação de que saiu da esquadra sem apresentar queixa, como se provou em 6., a afirmação do que se provou em 7., 8., 9. - embora com sem memória da concreta hora, esta que se veio a suprir, uma vez mais por via do auto de notícia e do depoimento do agente autuante - a afirmação do que se provou em 10., 11., com excepção da distância para o carro, e o acto de atear o fogo, provado em 12., primeira parte.

Pese embora esta admissão, os autos continham outros meios de prova que podiam permitir a formulação do mesmo resultado probatório, tendo em conta, nomeadamente, o resultado do depoimento do agente autuante, B..., o elemento da PSP que foi ao estabelecimento NB e relatou o que aí presenciou, incluindo as motivações para a chamada da PSP ao local e verificou a garrafa a arder, viu o arguido e a fuga deste do local, nos termos provados, D..., o elemento da PSP que esteve com o arguido na esquadra para colher a participação que aquele então queria fazer, E..., elemento da PSP que recebeu o arguida esquadra e o encaminhou para aquele D..., e I..., elemento da PSP que também viu a garrafa, as características dela, o local onde estava e o arguido ainda a passar.

Por outro lado, há registo de imagens do arguido a comprar a garrafa da água e a gasolina, nos termos provados e a fls. 105 está o exame médico descrevendo o produto da garrafa como sendo, efectivamente gasolina.

Ou seja, a prova produzida, para além das declarações do arguido, permitiam a sua colocação no local, a motivação, assim como permitiam imputar-lhe a autoria do engenho e o acto de o incendiar.

No fundo, portanto, o que ao arguido admitiu e afirmou, foi aquilo que não havia maneira de contornar.

E isso revela-se tão mais evidente quando se analisam as suas declarações, do ponto de vista formal, e a substância da explicação que veio trazer ao julgamento para ter agido como agiu, porventura acreditando que, como a mente das pessoas e as suas intenções são “internas”, porventura insondáveis, lograria convencer o tribunal da autenticidade sua explicação - quando os actos “dizem” outra coisa - como uma tão absurda e improvável que até poderia ser verdadeira, sobretudo se trouxesse a depor como testemunhas os seus amigos, pessoas de bem, a quem não se pode apontar motivo para não serem testemunhas atendíveis, testemunhas essas que não só atestariam as motivações que lhes relatou para ter tido o comportamento que teve – assim o foram as testemunhas G..., H... e B... – como até atestaria o motivo, supostamente legítimo, para ter querido ir apresentar queixa – como o foi a testemunha B..., mas cujas declarações, quanto ao suposto episódio que levou à chamada da PSP, acabaram por ser contrariadas pelo depoimento da testemunha B..., a quem, seguramente, não se pode apontar qualquer interesse – muito menos aquele de amizade íntima, de B... para com o arguido – para dizer coisa diferente daquela que presenciou.

Por assim ser, e nada se apontando ao depoimento da testemunha B..., se veio a julgar provado com base na sua afirmação e pelo que verificou no local, o que consta elencado em 1., quanto à motivação para a chamada da polícia ao local, sendo desprovido de credibilidade e senso lógico segundo as regras da experiência, que o arguido quisesse, como disse, pagar ao segurança em vez de pagar na caixa, como acontece com qualquer cliente, em qualquer estabelecimento.

É claro que isto não faz qualquer sentido – por mais floreados que se usem nas palavras e por mais instruídas que sejam as pessoas alegantes desse motivos – assim como não faz sentido – senão para desviar o assunto do essencial – que parte substancial da prova e das preocupações da defesa do arguido se centrassem no irrelevante aspecto, em termos criminais, de saber se o arguido apenas não queria pagar no caixa para não estar na fila, qual cliente VIP – que porventura se considerará – não que não quisesse pagar, para depois justificar, sem senso lógico, a posterior atitude.

Não deixa de ser sintomático, pois, e aqui se sublinha o aspecto formal das declarações do arguido, que o arguido antes de assumir o que fez, pelo menos por três vezes, tivesse tido a preocupação de assinalar as motivações para não querer pagar no caixa - não que se recusasse - como se, no extremo do ridículo, isso justificasse a sua conduta de suposta indignação - fabricada, porventura, por uma mente brilhante - de atear fogo a uma garrafa de gasolina através de uma mecha de papel, nas imediações de um local onde queria apresentar queixa e, nas suas palavras, por não lhe terem permitido fazê-lo - porventura deveriam permitir, apesar da aparência de influência alcoólica e ininteligibilidade do que queria, atendendo ao seu (suposto) carácter VIP, de médico dentista que até trabalha(ra) para os serviços assistenciais da PSP.

Também foi fruto da afirmação desta mesma testemunha o que se veio a provar em 2., quanto ao momento e forma de pagamento. O que faz sentido lógico, o arguido não queria pagar, independentemente das razões, a PSP foi ao local e o arguido, acabou por pagar ao segurança. Claro que as coisas não poderiam ficar assim, porque na mente do arguido, seguramente, ele tinha razão; e, naquela noite, o mundo estava a ser, quem sabe uma vez mais - agora que a profissão já nem permite ser abastado, tanto que, como disse nas suas declarações, uma vez mais sem qualquer credibilidade, depois de tudo pago ao fim do mês só lhe sobram para gastar consigo pouco mais de 200,00€! - injusto consigo. Haveria que repor as coisas no seu lugar. E, por isso, haveria que fazer queixa - sabe-se lá do quê, já que nem se viu matéria criminal ou contra-ordenacional para tanto, o que justifica que o graduado de serviço não entendesse do que é que se queria, afinal queixar - na PSP, como o quis logo fazer, não fosse a memória varrer-se depois de um sono necessário. Claro que, quando não lha quiseram escrever, “o caldo entornou-se”, e adveio o surto pirómano que não resultou em mal maior por mero acaso.

Foi, pois, fruto da afirmação da testemunha D..., o que se veio a provar em 5., que mais não disse do que aquilo que se provou, o que é compreensível, faz todo o sentido e não configura qualquer ilegalidade. Ao invés, só denota bom senso fazê-lo.

E por falta de mais elementos probatórios, se veio a julgar não provado o que se elencou em a.) da matéria de facto não provada.

Foi fruto da afirmação da testemunha B... o que se veio a provar em 13., 14 e 15, aqui precisando a distância provada em que a garrafa foi colocada, e com conhecimento de causa, exigindo o dever de verdade que se diga que o arguido admitiu ter abandonado o local.

É do conhecimento comum que a gasolina tem propriedades altamente inflamáveis, o que o arguido também não ignorava, antes revelando o seu modo de actuação o conhecimento dessas características. Caso contrário, porque pôr-lhe uma mecha e incendiá-lo? Porque incendiá-lo junto a veículos automóveis, que são, por natureza compostos de materiais inflamáveis. A explicação só pode ser aquela provada em 12. E, naturalmente, a lógica dita que o arguido não poderia deixar de querer e prever, ao agir como agiu, que por via das suas características altamente inflamáveis, poderia vir a causar um incêndio incontrolável no veículo junto ao qual foi colocada e, eventualmente, aos veículos que estavam estacionados paralelamente àquele, de um e outro lado. Por isso, o seu comportamento revela esses seus conhecimentos e vontade nos termos provados em 17. e 18.

Neste particular, cumpre dizer ainda, e uma vez mais, que não faz qualquer sentido a explicação dada para fazer o que fez, que a forma de actuar, de todo, é o resultado de uma qualquer manifestação de descontentamento para com um estado injusto de coisas. Quem não quer que as árvores sejam cortadas, agarra-se a elas com correntes. Quem quer evitar a saída de máquinas de uma fábrica faz uma barricada, quem quer protestar contra as portagens faz buzinão, quem quer protestar contra o uso de peles animais atira tinta a quem os usa... . E os exemplos poderiam continuar. Quem alguma coisa contra a política de admissão de clientes e pagamentos de uma discoteca usa o livro de reclamações ou coloca-se à porta da entrada com um cartaz. Quem tem alguma coisa contra prepotência policial usa o livro de reclamações ou põe-se á porta da esquadra com um cartaz. Mas não vai comprar uma garrafa de gasolina e põe-na junto aos carros de um estacionamento confinante com a PSP, notoriamente usado pelos operacionais daquela polícia, como é evidente e notório.

Quem faz como o arguido fez, quer vingança, tão só.

Por isso, aliás, o arguido não ficou no local quando foi detectado, antes se pôs em fuga. Quem estava, como o arguido, escondido entre os carros, queria assegurar-se que o seu propósito era assegurado e que, efectivamente, alguma coisa ardia! A explicação não pode ser outra.

Tentar discutir, como o arguido o fez, se a garrafa estava 5 cm mais junto ao gradeamento ou 5 mais junto ao carro, é tapar o sol com a peneira.

A justificação dada pelo arguido para agir como agiu, corroborada pelos seus amigos, que o reasseguraram e até tiveram como compreensível esse seu modo de manifesto – veja-se o depoimento da testemunha G... – é um insulto à inteligência de qualquer interlocutor do arguido.

E quem nele acredita, como os seus amigos aparentemente acreditaram, demonstra não ter a objectividade e distanciamento suficiente para ser equidistante e imparcial.

Quem quer protestar, enfrenta o protestado de frente, não foge.

Ainda assim, crê-se que o arguido não julgava nem queria ser o “Imperador Nero” da cidade de Viseu - pelo menos como o mito o vê - na forma descrita a acusação pública. Isto porque a expansão do incêndio para além daquele espectro físico-espacial do estacionamento - a veículos envolventes - nomeadamente ao edifício e edifícios circundantes, ainda que possível em abstracto, parece altamente improvável, por via da contribuição de outros factos dissipadores do risco: a dificuldade de propagação, por via da delimitação física dos espaços por materiais não inflamáveis, a inexistência de continuidade de combustíveis ou inexistência de combustíveis altamente inflamáveis e a possibilidade de rapidamente se controlar o incêndio por via dos meios de combate, circunstâncias que o arguido, necessariamente conhecia. Daí que se viesse a considerar não provado o que se elencou em b) dos factos não provados.

Resultou como consequência lógica da actuação da testemunha B... que o fogo só não se propagou por via da sua actuação nos termos provados em 16., sendo que o valor dos veículos estacionados e o lugar onde se encontravam, também nos termos provados em 16,º foram furto da afirmação dos respectivos donos, as testemunhas aí identificadas, com a nota de que nenhuma prova se produziu que permitisse a afirmação do valor do veículo LN.

A ausência de antecedentes criminais resultou do CRC.

A situação pessoal do arguido foi afirmada pelo próprio nos termos provados em 20 e 21, naquilo que de credível se julgou e na parte em que não tivesse interesse em faltar à verdade, pese embora se julgasse inverosímil, como se disse, que tivesse os rendimentos que declarou.

Já a forma como era visto pelos seus amigos, nos termos provados e 22 e uma vez mais aqui por não se ver qualquer interesse desses seus amigos o descreverem de forma diferente, resultou da afirmação das testemunhas defesa, os referidos F..., G..., H... e B....


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APRECIANDO

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

No presente recurso, o recorrente pugnando pela sua absolvição, considera que a sentença recorrida incorreu:

a) em erro de julgamento da matéria de facto (tendo impugnado parte da matéria de facto dada como provada) e,

b) em erro de interpretação e aplicação da lei, porquanto:

- se for entendido que deve ser mantida toda a matéria de facto, no caso sub judice as condutas de incêndio não foram “de relevo”, mas de extensão ou intensidade ínfimas;

- os actos praticados foram preparatórios, e não actos de execução, e como tal não são puníveis, nem pode ser considerada a tentativa;

- ainda que se admitisse que os actos praticados pudessem ser havidos como actos de execução, atenta à prova produzida (colocação da garrafa no passeio, em lugar visível, sem a ter arremessado contra nenhum veículo), estar-se-ia perante uma exclusão da punibilidade da tentativa, por manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente ou face à inexistência de objecto essencial à consumação do crime;

- tendo a decisão recorrida feito apelo ao dolo eventual, jamais poderia ser condenado o arguido pela prática do crime na forma tentada;

- o tribunal não valorou adequadamente a conduta do arguido, que colocou a garrafa no passeio sem qualquer arremesso contra edifício ou meio de transporte, pois se o tivesse feito, necessariamente concluiria que o arguido “desistiu voluntariamente de prosseguir a execução do crime”, e tendo havido tentativa não seria punível.


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A- Do erro de julgamento da matéria de facto

Como sabemos, a matéria de facto pode ser sindicada através da impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP, ou mediante a invocação dos vícios a que alude o n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código; quanto aos vícios, sendo de conhecimento oficioso, têm de resultar do texto da sentença recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não podendo o tribunal ad quem socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo. Vícios que, in casu, não se verificam.

O tribunal de recurso não procede a um novo julgamento, incumbindo-lhe apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes.

Invocando erro de julgamento, alega o recorrente que “A prova produzida em audiência de julgamento não foi devidamente valorada, sendo certo que se a mesma tivesse sido apreciada segundo as regras da experiência, seguramente os factos impugnados teriam sido julgados de modo diverso.”

Assim, indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados - os pontos 1, 2, 5, 16, 17 e 18 dados como provados - e, bem assim, as concretas provas que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida.

Para mais fácil compreensão, transcrevem-se tais factos:

1. No dia 9 de Março de 2012, cerca das 04H20, a PSP foi chamada ao Bar denominado Noite Bibas, sito na R. Conselheiro Afonso de Melo, nesta cidade de Viseu, onde estava o arguido e porque este se recusava a pagar o consumo mínimo obrigatório naquele estabelecimento, no montante de € 5,00.

2. Depois de a PSP se inteirar da situação, o arguido acabou por pagar tal quantia de 5,00€ ao segurança do estabelecimento, na presença do elemento da PSP que fez directamente a abordagem às pessoas envolvidas.

5. Mas, como aquele elemento da PSP que o recebeu ficou com a impressão de que o arguido aparentava estar muito alcoolizado e não eram inteligíveis os termos em que queria apresentar queixa, nomeadamente o porquê e contra quem, foi informado do prazo que tinha para apresentar queixa e, por via do seu estado, aconselhado a fazê-lo mais tarde.

16. O fogo só não se propagou aos restantes veículos, nomeadamente o veículo de matrícula  ...PO, no valor venal que rondaria os € 2.000,00 (propriedade de D..., Chefe da PSP de Viseu), de matricula ...BU, propriedade de E..., no valor de   € 2.500,00, de matricula VL ..., propriedade de I..., no valor de € 1.000,00 de matricula ...EF, propriedade de B..., no valor de, pelo menos, € 2.000,00 e matricula ...LN, porque o referido Agente da PSP evitou a propagação das chamas.

17. Ao actuar da forma descrita, o arguido sabia que o fogo necessariamente se propagaria rápida e incontrolavelmente ao veículo junto ao qual deixou a garrafa de gasolina e, eventualmente os veículos aquele circundantes, o que quis e que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade.

18. O arguido agiu voluntária e conscientemente, sabendo que esses bens não lhe pertenciam e que a sua conduta o faria incorrer em responsabilidade criminal.

Quanto aos pontos 1 e 2 refere o recorrente que o Tribunal a quo deu tal factualidade como provada atendendo ao depoimento da testemunha B..., agente da PSP de Viseu; depoimento que o recorrente considera vago, genérico, impreciso e indirecto.

Acrescenta que, contrariamente ao descrito nos pontos 1 e 2, nunca houve recusa em pagar, mas recusa em receber por parte do segurança, o qual, com a chegada da PSP, aceitou a entrega dos € 5,00 como resulta do depoimento da testemunha de defesa B..., que estava no local quando os factos ocorreram, e das próprias declarações do arguido.

 

Procedeu este tribunal à audição das declarações do arguido e do depoimento de todas as testemunhas, quer as arroladas pela acusação, quer as arroladas pela defesa.

Diga-se, antes de mais, que não consideramos que o depoimento da test. B... tenha sido vago, genérico e impreciso. É um facto que o seu depoimento foi mais pormenorizado relativamente aos factos ocorridos na Esquadra e parque de estacionamento (factos pelos quais o arguido foi condenado), tendo em conta as questões que lhe foram colocadas; ainda assim, relatou esta test., de forma coerente, o que presenciou no Bar NB. Não sabendo quem o chamou, deduziu que tenha sido alguém da casa. Quando chegou lá, o que estava em causa era o não pagamento do cartão, da despesa de € 5,00. O Sr. disse que não tinha consumido e que não tinha nada que pagar. O Sr. pagou depois ao segurança.

Quanto ao pagamento do cartão (relativo ao consumo mínimo obrigatório de € 5,00), ainda que o arguido tenha declarado em audiência, que apenas esteve no Bar NB cerca de 10 m, nada tendo consumido, pelo que não teria nada que pagar, acabou por dizer que pretendia pagar tal importância ao segurança, tendo-lhe este dito que tinha de recorrer à Caixa para fazer o pagamento; então recusou-se a pagar porque não ia para uma fila onde demoraria uns 30 minutos. No mesmo sentido o depoimento da test. B....

Ou seja, não incumbindo ao segurança do Bar receber quaisquer pagamentos, mesmo os de consumo mínimo obrigatório, tanto que indicou ao arguido que se deslocasse à Caixa para o efeito; pagamento que o arguido apenas efectuou após a chegada da PSP (independentemente de quem a chamou), nenhum reparo nos merece a factualidade assente de que o arguido se recusou a pagar o consumo mínimo obrigatório naquele estabelecimento, no montante de € 5,00.

Quanto ao ponto 5:

Sustenta o recorrente que a sentença em análise não explicita em que meio probatório se louvou para dar como provado que o agente que o recebeu ficou com a impressão de que o arguido aparentava estar muito alcoolizado e que por via do seu estado foi aconselhado a fazê-lo mais tarde.

Afigura-se-nos que neste particular assiste razão ao recorrente.

Efectivamente, das declarações e depoimentos prestados em audiência, apenas o arguido e a test. B... (que naquela noite havia jantado com o arguido e com mais 2 amigos) referiram que beberam ao jantar, estavam bem dispostos. Nada tendo sido dito sobre consumo excessivo de álcool.

Também a test. D...não fez qualquer referência de que o arguido aparentava estar alcoolizado. Disse esta testemunha que o arguido foi aconselhado para vir mais tarde apresentar a denúncia, dado que vinha exaltado com o que se tinha passado no Bar; estava alterado, não tinha um discurso coerente, não era explícito.

De igual modo, a test. E... que estava de sentinela, quando o arguido apareceu para apresentar queixa, disse não ter reparado se o arguido cambaleava quando andava, acrescentando que o Sr. estava nervoso e alterado.

Em conformidade, tem razão o recorrente quando põe em causa aquele segmente do ponto 5 dado como assente, devendo ser substituída a referência de que o arguido aparentava estar alcoolizado pelo facto de o arguido estar nervoso e alterado.


Em consequência, ainda que sem qualquer relevância (face ao crime de incêndio, na forma tentada, imputado ao arguido), julgando-se procedente o recurso, nesta parte, ao abrigo do disposto no artigo 431º, alínea b) do CPP, procede-se à modificação da decisão recorrida, nos seguintes termos:

O ponto 5 passa a ter a seguinte redacção:

5. Mas, como aquele elemento da PSP que o recebeu ficou com a impressão de que o arguido estava nervoso e alterado, foi informado do prazo que tinha para apresentar queixa e, por via do seu estado, aconselhado a fazê-lo mais tarde.

Quanto ao ponto 16:

Constando deste ponto que o fogo só não se propagou aos restantes veículos, nomeadamente aos que aí se encontram referidos, porque o agente da PSP B... evitou a propagação das chamas, argumenta o recorrente que a factualidade de tal ponto é manifestamente ambígua e contraditória, e por isso, não podia ser dada como provada. E isto porque, no testemunho em que a douta decisão se estriba para dar tal factualidade como provada (test. B...), jamais foi utilizada a expressão “fogo”; apenas utilizou a expressão “chama”.

E, acrescenta o recorrente, dizer-se que “o fogo só não se propagou aos restantes veículos” supõe que pelo menos um veículo tenha sido atingido pela chama/fogo, o que manifestamente não aconteceu.

Ora, tal como resultou provado (factos 11 a 15), e não foi impugnado pelo recorrente, o arguido colocou a garrafa e papel nela inserido junto ao pára-choques frontal de um veículo automóvel aí estacionado, a uma distância não concretamente apurada mas rondando os 20 cm. Com um isqueiro que trazia consigo, ateou fogo ao papel para que deste se propagasse para a gasolina e desta, por via das suas características altamente inflamáveis, ao veículo junto ao qual foi colocada e, eventualmente, aos veículos que estavam estacionados paralelamente àquele, de um e outro lado.

Por mero acaso, o Agente da PSP B..., que veio ao exterior da Esquadra fumar um cigarro, apercebeu-se de um clarão no parque de estacionamento logo percepcionando tratar-se de uma chama e, viu o arguido escondido entre os veículos ali estacionados.

O arguido, apercebendo-se da presença daquele agente e de que fora visualizado, pôs-se em fuga do local e, por sua vez, o referido Agente deslocou-se para o local, apagou a chama, o que conseguiu fazer ainda antes que ela se propagasse à gasolina e alertou os colegas de serviço.

Face à prova produzida e examinada em audiência (depoimento da test. B... e também da test. I..., agente da PSP, que “ainda viu a chama a arder”, fotos de fls. 49/52, e relatório de exame pericial de fls. 105), nenhum reparo nos merece a factualidade dada como assente no ponto 16.

Como é do conhecimento geral, o fogo é uma reacção química entre uma substância combustível e um comburente. Para que o fogo, combustão, tenha lugar é necessário a combinação simultânea de três elementos básicos: o combustível; o comburente (oxigénio) e uma energia de activação (calor). Basta que uma fonte de calor entre em contacto com um combustível, na presença de ar, para que tal reacção ocorra.

No caso vertente, o agente da PSP B..., que se dirigira para o exterior da Esquadra para fumar, “viu a chama onde estava a garrafa e a primeira coisa que fez foi apagá-la … era o papel que estava a arder; pôs a mão por cima

 Ou seja, por abafamento (impedindo o contacto do oxigénio com a matéria em chama), a testemunha B... conseguiu extinguir o fogo; circunstância que foi alheia e exterior à vontade do arguido e, dessa forma, evitou que o fogo se propagasse à viatura que estava mais próxima da garrafa e, eventualmente que o fogo se propagasse às viaturas que estavam estacionadas paralelamente àquela viatura, de um lado e de outro.

Importa reter que no desenvolvimento de um incêndio constitui factor essencial o tipo de combustível, sendo a gasolina um produto químico altamente inflamável (ou seja, que pega fogo facilmente), propriedade e característica que é do conhecimento da generalidade das pessoas e, que o arguido também conhecia, como ressalta da sua apurada conduta.

Quanto aos factos 17 e 18:

Sustenta o recorrente que «a alegada atitude de “vingança” contra a Polícia ou agentes da PSP a que se alude na douta decisão recorrida, como motivação para a actuação do arguido, não radica em qualquer facto probatório, nem a mesma pode ser admitida segundo as regras da experiência e a normalidade das coisas».

Declarou o arguido em audiência que tendo-se deslocado à Esquadra para apresentar queixa, quando o agente lhe disse que naquele dia não aceitava a queixa, se estava nervoso, disparou completamente, e agora vê que foi um acto irreflectido, numa atitude de indignação que foi buscar a garrafa (…) numa atitude de protesto e não com o intuito de prejudicar (…)

Respeitam tais factos ao elemento subjectivo da infracção.

Ora, segundo as regras da experiência comuns, não poderia o tribunal ter dado os mesmos como não provados, como pretende o recorrente; pois, tendo a prova sido correctamente valorada, em função da qual veio a ser apurado o demais circunstancialismo fáctico descrito, havia que concluir pela verificação dos elementos intelectual e volitivo do dolo.

No que respeita ao elemento subjectivo dos crimes, a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93, in B.M.J. 324/620 “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.

Daí que o tribunal a quo tenha considerado, na Motivação da decisão de facto, que “o seu comportamento revela esses seus conhecimentos e vontade nos termos provados em 17. e 18.


***

B- Do erro de interpretação e aplicação da lei

1- Sustenta o recorrente que Ainda que o Tribunal julgue improcedente o recurso relativo à impugnação da matéria de facto, sempre a decisão condenatória devia ser revogada e o arguido absolvido do crime pelo qual foi condenado.

Desde logo, porque Para que haja crime de incêndio, ainda que na forma tentada, tem o mesmo de ser "de relevo", ou seja, assumir uma extensão ou intensidade de propor­ções tais que não seja socialmente adequada, o que não ocorreu no caso sub judice.

Conforme o artigo 272º, n.º 1, al. a) do Código Penal “Quem provocar incêndio de relevo, nomeadamente, pondo fogo a edifício, construção ou a meio de transporte; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos”.

Um incêndio de relevo, “é um incêndio com uma extensão ou com uma intensidade que se devam considerar, à luz das regras da experiência, como manifestas, indiscutíveis ou relevantes. O legislador deu-nos exemplo daquilo que, segundo o seu critério, são incêndios de relevo. Por outras palavras: são incêndios de relevo, o incêndio de edifício, de construção ou de meio de transporte. (…) um incêndio de relevo não o tem de ser exclusivamente em extensão ou em duração. Pode bem suceder que um incêndio, temporalmente diminuto, deva ser visto como um incêndio de relevo. Basta para isso, por exemplo, que ele se tenha desencadeado junto de matérias altamente inflamáveis” – cfr. Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 871.

Compete ao julgador a avaliação, em cada caso concreto, da relevância ou inobservância do incêndio – ac. STJ de 24-3-1999, proferido no proc. n.º 98P1463, publicado na CJ, STJ, 1999, Tomo I, pág. 250.

Ainda, “para a verificação do tipo não basta a existência de incêndio de relevo. É necessária a verificação do perigo. A noção de perigo é «uma categoria relacional» (ob. cit. pág. 875), devendo ser integrada «dentro da normatividade inerente ao direito penal» por critérios de «probabilidade racional». Haverá, assim, perigo sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, a acção possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens que a lei refere” – ac. STJ de 12-9-2007, proferido no proc. n.º 07P2270, in www.dgsi.pt.

No caso vertente, atendendo à factualidade apurada, é do normal conhecimento do comum dos cidadãos, que o fogo que o arguido ateou, não fora a pronta intervenção do agente B..., tendo em conta o combustível a que se iria propagar, poderia rapidamente transformar-se em incêndio, pondo em perigo as viaturas estacionadas no parque de estacionamento.

Ou seja, para além da própria conduta, da acção de provocar incêndio de relevo, o arguido criou perigo, pelo menos, para bens patrimoniais alheios de valor elevado; tendo agido com dolo directo quanto ao incêndio, em si, e com dolo eventual quanto ao resultado do perigo criado. Isto é, in casu, verifica-se a combinação dolo-dolo (prevendo ainda o artigo 272º as combinações dolo-negligência e negligência-negligência).

Improcede, pois, nesta parte, a argumentação do recorrente.


*

2- Alega ainda o recorrente que os actos praticados foram preparatórios, e não actos de execução, e como tal não são puníveis, nem pode ser considerada a tentativa.

O crime de incêndio, enquanto crime de perigo comum ([1]), é um crime de perigo concreto em que a violação do bem jurídico está iniludivelmente ligada à ideia de dano – dano esse que enquanto realidade dogmática teria o mesmo valor de perigo – sendo, por isso, um crime de resultado. Fala-se por isso na existência de resultado de “perigo-violação” e de resultado de “dano-violação”. O que tudo tem a ver com a circunstância de no crime de perigo concreto se procurar precaver a expansão do bem jurídico, como que antecipando a sua protecção. Sendo o bem jurídico, conforme já se mencionou, a vida, a integridade física e os bens patrimoniais alheios de elevado valor. (cfr. Prof. Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao art. 272º).

Como se considera no preâmbulo do DL n.º 400/82, de 23.09, «O ponto crucial destes crimes (de perigo comum) - não falando, obviamente, dos problemas dogmáticos que levantam - reside no facto de que condutas cujo desvalor de acção é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que se possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social.».

Refere Lopes Rocha ([2]) que “O recuo da protecção penal para momentos anteriores, ou seja quando o perigo se manifesta, atira para plano secundário a ponderação do dano, nessa fase dificilmente comensurável, por aleatório. Mas, por outro lado, a perspectiva da produção futura de danos gravíssimos não deixa de exercer pressão sobre o «quantum» abstracto da pena”.

Na verdade, os actos preparatórios, na medida em que não se encontram descritos na generalidade dos tipos legais de crime, não são puníveis, salvo disposição em contrário (v.g. artigos 271º, 275º e 344º do CP) - art. 21º do CP.

Já a tentativa, enquanto prática de actos de execução de um tipo de crime (sem que este chegue a consumar-se), em princípio, é punível.

Nos termos do n.º 2 do artigo 22º do CP, são actos de execução:

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou

c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

In casu, o arguido adquiriu uma garrafa de água, com a capacidade de 1,5 litro, despejou o seu conteúdo, e encheu-a com gasolina; no interior da garrafa colocou papel (que está ao dispor dos clientes das gasolineiras, e que, por regra, é absorvente) a servir de pavio e, após colocou a garrafa, assim preparada, junto a uma viatura estacionada no parque de estacionamento contíguo à Esquadra da PSP, onde estavam estacionadas outras viaturas (entre 10 a 20), tendo ateado fogo ao “pavio” e afastando-se da garrafa.

Como bem sublinha o Mmº Juiz a quo, o arguido preparou o crime quando comprou a garrafa, a gasolina, e pôs o papel na garrafa a servir de mecha; e iniciou a sua execução quando acendeu o papel.

Ora, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, a aludida conduta do arguido é idónea, é adequada, à realização do tipo de incêndio (art. 272º CP) e, como tal, constitui um acto de execução.


*

3- Mais alega o recorrente: ainda que se admitisse que os actos praticados pudessem ser havidos como actos de execução, atenta à prova produzida (colocação da garrafa no passeio, em lugar visível, sem a ter arremessado contra nenhum veículo), estar-se-ia perante uma exclusão da punibilidade da tentativa, por manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente ou face à inexistência de objecto essencial à consumação do crime.

Não se compreende a insistência do recorrente quanto à manifesta inaptidão do meio empregado. Um facto resulta inequívoco, face à matéria de facto apurada, com a sua conduta, o arguido em nada contribuiu para que o incêndio não se produzisse.

Importa sublinhar que os factos ocorreram dum dia 9 de Março, cerca das 6 da manhã, não tendo resultado dos depoimentos prestados em audiência de julgamento que houvesse, naquele momento, grande movimentação na Esquadra da PSP de Viseu, para além da deslocação do arguido àquelas instalações para apresentar uma queixa.

Vale isto por dizer que nestas circunstâncias, de tempo e de modo, o arguido actuou numa hora pacata. E daí que, quando o agente B... vai até ao exterior para fumar vê o clarão do fogo que o arguido acabara de atear, tanto assim que, ainda conseguiu ver o arguido entre as viaturas.

Sustenta o recorrente que colocou a garrafa com gasolina no passeio, em lugar visível. É irrelevante esta sua alegação. Ainda que a garrafa estivesse no ângulo de visão de quem saísse da Esquadra, como referiu o agente B... em audiência foi surpreendido pelo clarão de uma chama, e não por uma garrafa. Porventura, àquela hora do dia nem a conseguiria visualizar.

E, quanto ao local onde estava a garrafa, aquilo que o recorrente apelida de passeio, a foto de fls. 49 é bem elucidativa. A garrafa estava a cerca de 20 cm do pára-choques frontal de um dos veículos automóvel ali estacionado.

Será caso para perguntar, se a garrafa e a gasolina que continha, após lhe ter ateado fogo, não era apta a provocar um incêndio, porque o arguido não se manteve ao pé da mesma e das viaturas e, ao invés, pôs-se em fuga.

Repetimos, mal se compreende esta argumentação do recorrente.


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4- Sustenta o recorrente que tendo a decisão recorrida feito apelo ao dolo eventual, jamais poderia ser condenado o arguido pela prática do crime na forma tentada.

Contudo, sem razão.

Basta atentar nos factos dados como provados nos pontos 17 e 18, dos quais resulta que o arguido agiu com dolo directo. Aliás, o que foi expressamente mencionado na sentença recorrida (fls. 205 dos autos).


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5- E conclui o recorrente, o tribunal não valorou adequadamente a conduta do arguido, que colocou a garrafa no passeio sem qualquer arremesso contra edifício ou meio de transporte, pois se o tivesse feito, necessariamente concluiria que o arguido “desistiu voluntariamente de prosseguir a execução do crime”, e tendo havido tentativa não seria punível. O Tribunal a quo desconsiderou o que dispõe o artigo 24º do CP.

 Face ao circunstancialismo fáctico apurado não se pode configurar o arrependimento por banda do arguido e a sua desistência voluntária de prosseguir a execução do crime, ainda que com o concurso de terceira pessoa, para impedir a verificação do resultado dano-violação.

Tal situação seria possível se, por hipótese (hipótese que se torna mais difícil de construir dado a gasolina ser altamente inflamável), o arguido após atear o fogo à garrafa, tivesse de imediato abandonado o local, e logo comunicasse a existência do incêndio, para que o mesmo fosse controlado e apagado, pretendendo limitar os perigos que criara.

O concurso de terceira pessoa não frustra a relevância da desistência – cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal, I vol, 2ª ed., pág. 245.

Nas Actas da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, I, pág. 184, a propósito da norma que constitui hoje o artigo 24º consta: “Sobre este preceito, considerou o Autor do Projecto que nele se prevê a desistência da tentativa ou arrependimento activo, entendendo-se, como não podia deixar de ser, que ela tem de ser voluntária para que seja relevante. Logo no corpo do artigo, porém, se consagra um alargamento da eficácia da desistência aos chamados crimes formais, isto é, aqueles que se consumam independentemente da produção do resultado: considera-se que tais crimes deixarão de ser puníveis quando o agente, tendo-os embora já consumado, evita que se produza o resultado em vista do qual a lei incriminou a respectiva acção”.

Comenta-se aqui, em termos pouco rigorosos, a equiparação dos crimes de perigo aos crimes formais ou de mera actividade.

Ainda na esteira do Prof. Faria Costa “Na hipótese de se verificar a consumação do crime de perigo (o agente cria, pela modalidade de conduta descrita, um perigo concreto para uma pessoa), caso o agente impeça a verificação de qualquer dano devem, ainda, ser aplicadas as regras da desistência” (in O Perigo em Direito Penal, pág. 1039).

Entendemos pois, contrariamente ao defendido pelo recorrente, que no caso concreto não tem aplicação a atenuação especial da pena ou a sua dispensa, a que alude o artigo 286º do Código Penal.

Damião da Cunha, em anotação a este mesmo artigo diz o seguinte: “Na hipótese de se verificar a consumação do crime de perigo (o agente cria, pela modalidade da conduta descrita, um perigo concreto para uma pessoa), caso o agente impeça a verificação de qualquer dano devem, ainda, ser aplicadas as regras da desistência.

Deve, aliás, acrescentar-se o seguinte: neste caso, em que se verifica um perigo concreto, criado pelo agente, este, ao impedir um dano - qualquer que ele seja -, está a actuar impedindo uma ofensa a um bem jurídico por ele próprio provocada; neste sentido, há como que uma preocupação de agir (um dever de agir), face à situação de perigo que (dolosa ou negligentemente) ele provocou. A eventual punibilidade do agente pareceria, neste caso, ser pouco razoável”.


*

Aqui chegados, não tendo sido questionada a medida concreta da pena imposta ao arguido, nada mais cumpre apreciar.

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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

- Ainda que sem qualquer relevância, tendo em conta o crime praticado pelo arguido, procede-se à modificação da decisão recorrida (vide fls. 13 deste acórdão), passando o ponto 5 dos factos provados a ter a seguinte redacção:

5. Mas, como aquele elemento da PSP que o recebeu ficou com a impressão de que o arguido estava nervoso e alterado, foi informado do prazo que tinha para apresentar queixa e, por via do seu estado, aconselhado a fazê-lo mais tarde.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.


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Coimbra, 14 de Janeiro de 2015

(Elisa Sales - relatora)

(Paulo Valério - adjunto)


[1] - Integrando o Capítulo III, do Título IV (Dos crimes contra a vida em sociedade) da Parte Especial do CP.           Crime de perigo porque não existe ainda qualquer lesão efectiva para a vida, a integridade física ou para bens patrimoniais de grande valor; e de perigo comum porque é susceptível de causar um dano incontrolável sobre bens juridicamente tutelados de natureza diversa.
[2] - In Jornadas de Direito Criminal, publicadas pelo CEJ, Abril de 1983, pág. 371.