Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
113/14.1GASJP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARTS. 21.º, 25.º E 40.º, DO DL. N.º 15/93
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 21.º, 25.º E 40.º, DO DL. N.º 15/93
Sumário: I - O crime de tráfico de menor gravidade contempla situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base [artigo 21.º], se processa de forma a ter como consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a “quantidade” do ilícito.

II - Do ponto de vista das regras da experiência comum, é de afastar a imputação pelo consumo, quando a quantidade de droga detida é tão substancial, que não pode considerar-se adequada ao simples consumo individual do seu detentor, por excederem notoriamente essas necessidades.

III - Não existe nenhum limite que trace neste campo quantitativo a fronteira entre o consumo e o tráfico. Apenas a experiência comum e indiciariamente o recurso às tabelas dos quantitativos máximos diários normais de consumo (v. Portaria 94/96 de 26.03, em anexo) poderão decidir.

Decisão Texto Integral:


Acordam  no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

***

              No processo supra identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou procedente a acusação e, em consequência:

              - Condenou A... pela prática em autoria singular, material e imediata de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. nos termos do disposto no artigo 40º nº2 do D.L.15/93 de 22/01, na pena de 80 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€(cinco euros), num total de 400,00€(quatrocentos euros) (em convolação do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 25º a) do D.L.15/93 de 22/01, republicado pela L.18/2009 de 11/05, com referência à Tabela I-C anexa, de que vinha acusado).

              - Condenou B... pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, a título de cúmplice p. e p. nos termos do disposto no artigo 40º nº2 do D.L.15/93 de 22/01, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 250,00€(duzentos e cinquenta euros) (em convolação do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 25º a) do D.L.15/93 de 22/01, republicado pela L.18/2009 de 11/05, com referência à Tabela I-C anexa, de que vinha acusado).

Desta sentença interpôs recurso o Ministério Público.

São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso, interposto pelo Ministério Público:

1 - O Tribunal a quo, após realização da audiência de julgamento, procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos dados como provados, condenando os arguidos pela prática de um crime de consumo, p.° p.° pelo art.° 40º, nº 2 do DL n° 15/93 de 22 de Janeiro ao invés de os condenar pelos crimes pelo qual vinham acusados - o crime de tráfico de menor gravidade, p.°p.° pelo art.° 25º, al. a) do mesmo diploma legal.

II - Deu-se como provado, no essencial, que os arguidos tinham na sua posse, no interior da residência de ambos vários pedaços de resina de canabis, com o peso bruto de 68,160 gramas, correspondendo a 133 doses individuais e, na varanda, 3 plantas de canabis, uma com 75 cm de altura e duas com 45 cm de altura, com o peso líquido de 641,5 gramas, que correspondem a 733 doses individuais. E, ainda que, o arguido A... destinava os produtos estupefacientes ao seu consumo pessoal, e que agiu com o propósito, concretizado, de cultivar e produzir canabis.

III - Resulta do depoimento do arguido prestado em audiência de julgamento a seguinte factualidade:

- Minuto 10.25 a 11.30 do registo audio: o arguido declarou que fumava de dois em dois meses ou de mês e meio em mês e meio. E, quando fumava, nessas alturas, fumava apenas um charro.

IV - Ora, se assim é, face às regras da experiência comum, a quantidade que o arguido guardava em casa (133 doses de resina canábis) bem como o número de doses (833 doses de canábis) a que correspondia a plantação que cuidava juntamente com a arguida B... , nunca o Tribunal a quo poderia considerar que estamos perante o crime de consumo, p.°p.° pelo art.° 40º, n°2 do do DL n° 15/93 de 22/01.

V - Pois se o arguido consumia apenas esporadicamente, de mês e meio em mês e meio ou de 2 em 2 meses, por que razão iria plantar uma quantidade tão grande de canábis, que resultou em 733 doses individuais face ao seu grau de pureza, quando ainda possuía 133 doses de resina que lhe daria para um período muitíssimo alargado, já que, face ao seu depoimento, o arguido consumia em média/por ano, 6 a 9 charros. Se ainda possuía resina que lhe dava para 133 charros, face ao limite legal para o consumo, o arguido A... ainda possuía droga para consumo por largos anos, face ao consumo que o mesmo revelou fazer (de 2 em 2 meses). Pelo que não necessitava de proceder a qualquer plantação - esta é a conclusão a que necessariamente o tribunal a quo teria que chegar face à matéria dada como provada, às declarações do arguido e à luz das regras da experiência comum.

VI - Do ponto de vista das regras da experiência comum, é no entanto de afastar a imputação pelo consumo, quando a quantidade de droga detida é tão substancial, que não pode considerar-se adequada ao simples consumo individual do seu detentor, por excederem notoriamente essas necessidades. E esta questão é recorrentemente discutida nos tribunais, pois não raro, apreensões significativas de droga, vêem a sua posse, alegadamente explicada pelos arguidos, como destinando-se ao seu consumo pessoal. Não existe nenhum limite que trace neste campo quantitativo a fronteira entre o consumo e o tráfico. Apenas a experiência comum e indiciariamente o recurso às tabelas dos quantitativos máximos diários normais de consumo (v. Portaria 94/96 de 26.03, emanexo) poderão decidir. - in Droga; Legislação; Notas, Doutrina, Jurisprudência, editora quidiuris, 2ª Edição, 2010, de Fernando Gama Lobo.

VII - A excepção prevista no art.º 21°, n°1 do DL n° 15/93 de 22 de Janeiro, fazendo referência ao disposto no art.º 40º, terá que ser ponderada, analisada cum grano salis, de forma casuística, sob pena de bastar-se ao arguido declarar que a droga que detinha era para seu consumo pessoal, qualquer que fosse aestupefacientes mais grave para o crime privilegiado de consumo.

VIII - No caso subjudice verifica-se que a factualidade dada como provada é susceptível de integrar o crime por que vinham acusados os arguidos, face à quantidade de canábis resina e folhas/ sumidades resultantes da plantação que lhes foi apreendida, pelo que ao condenar por crime diverso, a sentença recorrida violou o disposto nos arts.21°, n°1, 250, ai a) e 127° do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que condene os arguidos pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade.

V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!

            O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o arguido, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso.


xxx

Colhidos os vistos legais e efectuada a audiência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova foi documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

1. Desde data não concretamente apurada, o arguido A... delineou um plano para cultivar plantas de canabis com o objectivo de, posteriormente, extrair a respectiva substância activa psicotrópica.

2. Assim, o arguido A... semeou nuns vasos, na varanda da sua residência, diversos pés de Canabis, dos quais, colheu as folhas com vista ao seu consumo.

3. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente a 24 de Setembro de 2014, a arguida B... visualizou os pés de canábis descritos em 2 e perguntou ao arguido A... no que consistiam, tendo este dito ser canábis, a qual destinava ao seu consumo.

4. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente a 24 de Setembro de 2014, o arguido A... mudou-se temporariamente para França, para trabalhar, ao que pediu à arguida para regar os pés de cannabis enquanto se encontrava fora, ao que esta anuiu.

5. No dia 24 de Setembro de 2014, os arguidos tinham na sua posse, no interior da residência de ambos, sita na Rua (...) , Paredes da Beira, vários pedaços de resina de canabis, com o peso bruto de 68,160 gramas, correspondendo a 133 doses individuais e, na varanda, 3 plantas de canabis, uma com 75 cm de altura e duas com 45 cm de altura, com o peso líquido de 641,5 gramas, que correspondem a 733 doses individuais.

6. O arguido A... destinava os produtos estupefacientes ao seu consumo pessoal.

7. O arguido A... , durante o aludido período, agiu com o propósito, concretizado, de cultivar e produzir canabis.

8. Os arguidos conheciam perfeitamente a natureza e as características estupefacientes dos produtos acima referidos, que sabiam não poder cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, comprar ou deter para consumo que não fosse exclusivamente pessoal, oferecer, vender, proporcionar a outrem ou ceder a qualquer título, ainda que gratuito, por serem tais condutas proibidas e criminalmente punidas.

9. Os arguidos actuaram sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

10. Quanto às condições económicas, sociais e pessoais dos arguidos provou-se que:

a) O arguido A... possui o equivalente ao 12º ano de escolaridade, no sistema escolar de Marrocos, seu país de origem.

b) Os arguidos são casados entre si, não possuindo filhos menores.

c) A arguida B... encontra-se desempregada, trabalhando anteriormente como empregada de café.

d) O arguido A... trabalha como agricultor, em sistema temporário, entre Portugal e França, auferindo sensivelmente perto do Salário Mínimo Mensal.

e) Os arguidos pagam 100,00€ de renda.

f) Não possuem bens móveis ou imoveis.

g) Não auferem subsídios sociais.

h) O arguido A... admitiu parcialmente os factos.

i) A arguida B... admitiu o descrito em 3 e 4, atribuindo-o ao facto de amar o marido e aceitar o seu consumo de cannabis como parte da sua cultura de origem.

j) O arguido, à data dos factos era consumidor ocasional de haxixe.

k) Os arguidos não possuem antecedentes criminais registados.
*

Factos Não provados:

A. Que, desde data não concretamente apurada, a arguida B... tenha delineado um plano para cultivar plantas de canabis com o objectivo de, posteriormente, extrair a respectiva substância activa psicotrópica.

B. Que o arguido A... destinava o produto estupefaciente referido em 2 à venda.

C. Que a arguida B... tenha semeado nuns vasos, na varanda da sua residência, diversos pés de Canabis, dos quais, colheu as folhas com vista ao seu consumo e venda.

D. Os arguidos destinavam os produtos estupefacientes à venda a terceiros consumidores de canabis.

E. A arguida B... , durante o aludido período, agiu com o propósito, concretizado, de cultivar e produzir canabis.

F. Os arguidos actuaram em comunhão de esforços e de intentos, na sequência de um plano previamente delineado entre eles,
*

MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

O Tribunal fundou a sua convicção, desde logo, no teor das declarações dos arguidos (art.º 343º do C.P.C.), dais quais resultaram a admissão parcial dos factos pelo arguido A... - os pontos 1 a 9 da matéria de facto - reforçada ainda pela prova documental – exame laboratorial de toxicologia forense, com relatório de fls. 60 a 62; auto de apreensão de fls. 7 e 8; reportagem fotográfica de fls. 20 a 22 – quantos aos produtos apreendidos e suas características.

De facto, nas declarações que o arguido A... prestou, este descreveu como, na altura em que embarcou como clandestino de Marrocos para Portugal, em 2008, trouxe consigo a resina de cannabis e as sementes que usou na plantação descrita em 1, 2 e 5 da matéria de facto.

Relatou que tal prática é comum no seu país de origem, onde o consumo de cannabis, ainda que legalmente proibido é prática socialmente aceite, sendo comum plantar em casa cannabis, para não ter que comprar a terceiros.

Referiu que guardou as sementes e a resina desde 2008 a 2014 porque não era consumidor frequente, apenas ocasional.

Mais disse que, após o casamento com a arguida, que conheceu como trabalhador agrícola em S. João da Pesqueira, plantou as sementes sem que esta soubesse, no vaso na varanda da casa, onde se encontravam outras plantas da arguida.

No tocante à resina, referiu que a guardou, sendo que a esposa não sabia que esta a tinha.

Referiu ainda que sempre as destinou a consumo, não tendo nunca procedido a venda a terceiros.

Relatou ainda que a sua esposa não era sequer consumidora.

As declarações do mesmo, pese embora o insólito do descrito – de notar a discrepância entre a data da entrada em Portugal e a plantação (2008 a 2014) – foram de molde a merecer credibilidade, atenta a sinceridade das mesmas, a qual resultou de análise directa do tribunal.

No demais, as mesmas foram corroboradas pelas da arguida B... , a qual igualmente prestou declarações, nos termos do art.º343º do C.P.P.

A arguida referiu que sabia, desde algum tempo, que o arguido era consumidor de cannabis e que, ainda que não aprovasse ou sequer consumisse, aceitou tal facto por entender que tal se devia à cultura deste.

Relatou ainda que o arguido, por respeito a ela, não consumia à sua frente.

Relatou ainda que, no entanto, não sabia que este possuísse a resina em casa, tendo sido surpreendida pela sua apreensão em sua casa.

Distintamente admitiu saber da existência da plantação de pés de cannabis, a qual descobriu alguns meses antes de o marido ir para França.

Tendo-o interrogado acerca da mesma, este contou-lhe o que era e como ia trabalhar para França pediu-lhe que regasse a planta, o que esta fez.

Referiu que, aquando da apreensão, o arguido não se encontrava em Portugal.

As declarações da arguida foram prestadas, identicamente como as do arguido, de modo sincero e espontâneo, em termos que mereceram credibilidade.

As mesmas foram ainda corroboradas, no tocante ao desconhecimento da arguida B... da existência da resina, pelo depoimento da testemunha K..., 35 anos de idade, militar da GNR no posto de S. João da Pesqueira.

A testemunha interveio directamente na apreensão – ponto 5 – que originou os presentes autos. No âmbito da mesma, relatou que foram apreendidos os pés de cannabis e a resina, sendo que, quanto a esta última (resina) chegaram pela busca na residência dos arguidos e não por indicação da arguida B... .

A testemunha depôs, nesta parte, em termos que mereceram credibilidade, de modo espontâneo e sincero.

Distintamente, a testemunha relatou que o veículo automóvel do arguido era identificado como sendo de um traficante de droga, porém, quando inquirido não foi capaz de dizer nenhum nome, nem sequer donde lhe provinha a informação. Acresce que, da análise directa do depoimento nesta parte, resultou a convicção do tribunal na falta de credibilidade do mesmo, dada a pouca segurança e sinceridade que o mesmo demonstrou.

No demais, o mesmo foi infirmado pelo depoimento de testemunhas locais, residentes em Paredes da Beira.

De facto, os depoimentos das testemunhas - C... , 38 anos de idade, trolha, amigo pessoal dos arguidos desde há cerca de 4 ou 5 anos; D... , 57 anos de idade, ajudante de comércio, proprietário de um café que os arguidos costumam frequentar, E... , 54 anos de idade, comerciante, conhece os arguidos como seus vizinhos desde há cerca de 12 anos, sendo que actualmente já não são seus vizinhos – foram prestados de modo sincero e espontâneo, merecedor de credibilidade.

As mesmas relataram aos autos terem ficado surpreendidas com a notícia da apreensão em casa dos arguidos, pois nunca relacionaram os mesmos com o tráfico de droga.

Descrevem os arguidos como pacíficos, trabalhadores, humildes e sem nenhuns sinais exteriores de riqueza. Em particular, descreveram o arguido A... como boa pessoa, nada conflituoso.

Não obstante a relação de amizade das testemunhas com os arguidos, tal não foi de molde a afectar a credibilidade dos depoimentos, destacando-se a sinceridade e espontaneidade dos mesmos.

Assim sendo, tudo conjugado, resultou a convicção do tribunal na inexistência de actos de venda de estupefacientes pelos arguidos, bem como, na existência apenas de actos de consumo pelo arguido A... .

Os referidos depoimentos, bem como, as próprias declarações dos arguidos foram fulcrais para convicção na inexistência de tráfico, tendo em conta que, tratando-se de uma localidade pequena e pouco povoada, é pouco credível que a ligação dos arguidos ao tráfico de estupefacientes passasse despercebida.

No tocante aos actos de consumo, pelo arguido, os mesmos resultaram de confissão parcial pelo mesmo e tendo em conta que o mesmo admitiu apenas ter contado posteriormente à sua esposa, não o fazer à sua frente, bem como, o carácter privado deste tipo de prática, torna plausível que as referidas testemunhas desconhecessem, eventualmente, o seu consumo, ainda que não o tráfico, atenta a publicidade de tal prática.

No tocante à destinação da substância ao consumo de estupefacientes – ponto 5 da matéria de facto – por oposição com o constante da acusação pública, tal resultou igualmente da conjugação das declarações do arguido, bem como, das regras de experiencia comum no tocante ao quantitativo apreendido.

Assim sendo, pese embora o quantitativo apreendido exceda largamente o legalmente estatuído para consumo pessoal diário, o arguido justificou a sua detenção – em termos credíveis – com o facto típico, na sua cultura de origem, de plantar cannabis para não ter que comprar, o que implica sempre a existência de quantidades superiores às necessárias ao consumo diário.

No tocante à resina, como fizemos notar, pese embora a grande dilação de tempo que já fizemos notar supra, da análise das declarações do arguido resultou credível a sua versão de que a mesma não fora totalmente consumida, por ser mero consumidor ocasional.

Para efeitos de fixação do quantum da substância apreendida valorou, ainda, o Tribunal, o exame laboratorial de toxicologia forense, com relatório de fls. 60 a 62.

Os pontos 3 e 4 foram aditados, face ao supra exposto, nos termos do art.º 358º nº2 do C.P.P.

No que diz respeito aos elementos psicológicos e volitivos aquando da prática dos factos, os mesmos foram fixados atentos os meios probatórios supra referidos, sendo que, de acordo com critérios de lógica e experiência comum, outro não podia ser o conhecimento e intenção dos arguidos, do que proceder ao cultivo de cannabis para consumo – o arguido A... – e o auxílio ao consumo pela arguida B... .

Relativamente aos factos referentes à condição económica, social e pessoal dos arguidos – ponto 10 da matéria de facto - valorou o Tribunal as declarações dos mesmos, nos termos do art.º 343º do C.P.C.

Relativamente aos antecedentes criminais foi considerado o teor dos seus C.R.C. dos arguidos.

No tocante à matéria de facto não provada, a mesma resultou da contrariedade com a matéria dada como provada – ponto 1 a 9 e A a F da matéria de facto.

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                                                             *                            

            Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac do STJ de 19/6/96, no BMJ 458-98).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr Germano marques da Silva, in “Curso de Processo penal”, III, pg 335).

Questões a decidir:

- Se houve errada qualificação jurídica;

Foi deduzida acusação contra os arguidos, B... e A... , imputando-lhes a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. no artº 25º a) do DL nº 15/93 de 22/1, com referência á tabela I-C anexa a tal diploma. Após o julgamento, os arguidos foram condenados pela prática de um crime de consumo de estupefacientes. E é contra esta decisão que o Ministério Público se insurge.

O Tribunal deu como apurado que:

1. Desde data não concretamente apurada, o arguido A... delineou um plano para cultivar plantas de canabis com o objectivo de, posteriormente, extrair a respectiva substância activa psicotrópica.

2. Assim, o arguido A... semeou nuns vasos, na varanda da sua residência, diversos pés de Canabis, dos quais, colheu as folhas com vista ao seu consumo.

3. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente a 24 de Setembro de 2014, a arguida B... visualizou os pés de canábis descritos em 2 e perguntou ao arguido A... no que consistiam, tendo este dito ser canábis, a qual destinava ao seu consumo.

4. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente a 24 de Setembro de 2014, o arguido A... mudou-se temporariamente para França, para trabalhar, ao que pediu à arguida para regar os pés de cannabis enquanto se encontrava fora, ao que esta anuiu.

5. No dia 24 de Setembro de 2014, os arguidos tinham na sua posse, no interior da residência de ambos, sita na Rua (...) , Paredes da Beira, vários pedaços de resina de canabis, com o peso bruto de 68,160 gramas, correspondendo a 133 doses individuais e, na varanda, 3 plantas de canabis, uma com 75 cm de altura e duas com 45 cm de altura, com o peso líquido de 641,5 gramas, que correspondem a 733 doses individuais.

6. O arguido A... destinava os produtos estupefacientes ao seu consumo pessoal.

7. O arguido A... , durante o aludido período, agiu com o propósito, concretizado, de cultivar e produzir canabis.

8. Os arguidos conheciam perfeitamente a natureza e as características estupefacientes dos produtos acima referidos, que sabiam não poder cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, comprar ou deter para consumo que não fosse exclusivamente pessoal, oferecer, vender, proporcionar a outrem ou ceder a qualquer título, ainda que gratuito, por serem tais condutas proibidas e criminalmente punidas.

9. Os arguidos actuaram sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Reportando-se ao tráfico e outras atividades ilícitas, o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, no seu n.º 1, dispõe que «Quem, sem para tal se encontrar devidamente autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previsto no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».

Ao tráfico de menor gravidade alude o artigo 25.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, nos seguintes termos: «Se, no caso dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».

O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base [artigo 21.º], se processa de forma a ter como consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a “quantidade” do ilícito.

A título exemplificativo, indicam-se no artigo 25º do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, como índices, critérios, exemplos padrão ou fatores relevantes, de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objetivas e factuais, verificadas na ação concreta, nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade de plantas, substâncias ou preparações objeto do tráfico «os quais devem ser analisados numa relação de interdependência, já que há que ter uma visão ou perspectiva global, uma mais ampla e correcta percepção das acções desenvolvidas (actividade disseminadora de produtos estupefacientes) pelo agente, de modo a conclui-se se a conduta provada fica ou não aquém da gravidade do ilícito justificativa da integração no tipo essencial, na descrição fundamental do art. 21º, nº 1

Nesta perspectiva e de acordo com significativa jurisprudência, a consagração do tráfico de menor gravidade [artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro] constitui uma “válvula de segurança do sistema”, destinando-se a assinalar diferenças entre os casos de tráfico menor aos de tráfico importante e significativo e, assim, evitar a imposição de penas desproporcionadas ou que obriguem à utilização indevida da atenuação especial da pena.

Ao consumo reporta-se o artigo 40.º da Lei n.º 15/93, nos seguintes termos:
«
1 – Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.

2 – Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

3 – No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena

Este artigo 40.º foi revogado pela Lei n.º 30/2000, 29 de Novembro, exceto quanto ao cultivo.

E, de acordo com o disposto no n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, praticará uma contraordenação quem consumir ou, com intenção de consumir, detiver ou adquirir substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, em quantidade que não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 (dez) dias.

Dificuldades surgidas com a aplicação deste novo regime – com decisões não coincidentes e constatação de vazios de punição – deram origem a querela prolongada nos Tribunais e ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, que uniformiza jurisprudência nos seguintes termos:

«Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias» (AcRel Porto nº 163/11.0GCVFR.P1 de 12/11/14 relatado por Ana Bacelar)

O Tribunal apenas e tão só considerou as declarações do arguido esquecendo as regras da experiência que muitas das vezes temos de lançar mão. 

O próprio tribunal acha insólito o descrito pelo arguido, nomeadamente, que guardou as sementes que plantou desde 2008 até 2014 altura em que decidiu semeá-las, assim como guardava a resina que lhe foi apreendida desde essa altura. No entanto e apesar de, efectivamente, tais declarações não terem qualquer fundamento o Tribunal considerou-as.

Na verdade, se o arguido consumia apenas esporadicamente, de mês e meio em mês e meio ou de 2 em 2 meses, não necessitava de plantar uma quantidade tão grande de canábis, que resultou em 733 doses individuais face ao seu grau de pureza, quando ainda possuía 133 doses de resina que lhe daria para um período muitíssimo alargado, já que, face ao seu depoimento, o arguido consumia em média/por ano, 6 a 9 charros. Se ainda possuía resina que lhe dava para 133 charros, face ao limite legal para o consumo, o arguido A... ainda possuía droga para consumo por largos anos, face ao consumo que o mesmo revelou fazer (de 2 em 2 meses). Portanto, não necessitava de proceder a qualquer plantação.

Como é referido por Fernando Gama Lobo in Droga; legislação, Notas; Doutrina; Jurisprudência, editora quidiuris, 2º 2dição, cit. pelo Mº Pº “No tipo legalmente conformado, a quantidade de droga, releva para o preenchimento do normativo. Do ponto de vista das regras da experiência comum, é no entanto de afastar a imputação pelo consumo, quando a quantidade de droga detida é tão substancial, que não pode considerar-se adequada ao simples consumo individual do seu detentor, por excederem notoriamente essas necessidades. E esta questão é recorrentemente discutida nos tribunais, pois não raro, apreensões significativas de droga, vêem a sua posse, alegadamente explicada pelos arguidos, como destinando-se ao seu consumo pessoal. Não existe nenhum limite que trace neste campo quantitativo a fronteira entre o consumo e o tráfico. Apenas a experiência comum e indiciariamente o recurso às tabelas dos quantitativos máximos diários normais de consumo (v. Portaria 94/96 de 26.03, em anexo) poderão decidir.

Perante a quantidade de droga que o arguido semeou e que detinha, sendo ambas canábis, mas uma era resina e a outra folhas/ sumidades (porque ainda em plantação) existe como o Mº Pº refere, um risco elevado que aquela droga viesse a cair no comércio e, por conseguinte, violando o bem jurídico que se visa com a protecção da norma que é a saúde pública em múltiplas vertentes.

Assim, o Tribunal a quo deveria ter concluído, face às regras da experiência comum, que a detenção e plantação da quantidade total de 866 doses de canábis, por pessoa que se diz ser consumidor de um charro de 2 em 2 meses, ou seja, aquela quantidade de droga face ao seu consumo pessoal, dar-lhe-ia para anos a fio.

É que não podemos esquecer que o arguido, não só tinha a plantação de canábis correspondente a 833 doses de canábis (face à tabela legal), como guardava, no interior da sua residência, 133 doses individuais de resina de canábis.

Ora, perante a droga que o arguido detinha e cultivava e atendendo que o consumo era esporádico temos que concluir tal como é referido no parecer do Mº Pº atento o modo como se encontra moldado o tipo base do art.º 21° do DL 15/93 de 22/1, “como delito de perigo abstracto, perfectibilizável tipicamente pelo preenchimento de qualquer dos múltiplos itens em que se diversifica e sediado num terreno (ou encarado sob um prisma) onde a mera detenção do produto tóxico se deve precipuamente aferir em função de uma relação finalística com o tráfico, em que é criminalizada a detenção ilícita, na suposição legal de que determinados
comportamentos são geral e potencialmente perigosos para os bens e valores jurídicos tutelados pela incriminação, isto porque a perigosidade da acção, menos que elemento do tipo, constitui, sobretudo, o próprio fundamento das disposições legais neste domínio,
que a situação terá de ser enquadrada no que se convencionou denominar de tráfico, atenta a função acima aludida”.

No que respeita à arguida esta também teve um papel decisivo e não apenas como cúmplice. Cuidou da plantação, durante o tempo em que o arguido esteve ausente para as mesmas não definharem, nem secarem assim, a sua actuação, ultrapassou o mero auxílio, tendo o domínio, nesse tempo decisivo, do cultivo, com o aludido fim.

A conduta dos recorrentes e, como decorre da acusação, integra o art.º 25° do DL 15/93 de 22/1 atenta a ilicitude consideravelmente diminuída que os autos dão conta e que passa desde logo pelas circunstâncias da detenção, e pela finalidade primordial do consumo.

Assim tem-se como provado os seguintes factos:

1. Desde data não concretamente apurada, os arguidos delinearam entre si um plano para cultivar plantas de canabis com o objectivo de, posteriormente, extrair a respectiva substância activa psicotrópica.

2. Assim, os arguidos semearam nuns vasos, na varanda da sua residência, diversos pés de Canabis, dos quais, colheram as folhas com vista ao seu consumo e venda.

3. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente a 24 de Setembro de 2014, o arguido A... mudou-se temporariamente para França, para trabalhar, ao que pediu à arguida para regar os pés de cannabis enquanto se encontrava fora, ao que esta anuiu.

4. No dia 24 de Setembro de 2014, os arguidos tinham na sua posse, no interior da residência de ambos, sita na Rua (...) , Paredes da Beira, vários pedaços de resina de canabis, com o peso bruto de 68,160 gramas, correspondendo a 133 doses individuais e, na varanda, 3 plantas de canabis, uma com 75 cm de altura e duas com 45 cm de altura, com o peso líquido de 641,5 gramas, que correspondem a 733 doses individuais.

6. Os arguidos destinavam os produtos estupefacientes quer ao seu consumo pessoal, quer à venda a terceiros consumidores de canábis.

7. Os arguidos, durante o aludido período, agiram com o propósito, concretizado, de cultivar e produzir canabis.

8. Os arguidos conheciam perfeitamente a natureza e as características estupefacientes dos produtos acima referidos, que sabiam não poder cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, comprar ou deter para consumo que não fosse exclusivamente pessoal, oferecer, vender, proporcionar a outrem ou ceder a qualquer título, ainda que gratuito, por serem tais condutas proibidas e criminalmente punidas.

9. Os arguidos actuaram sempre de forma livre e consciente, em comunhão de esforços e de intentos, na sequência de um plano previamente delineado entre eles, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

10. Quanto às condições económicas, sociais e pessoais dos arguidos provou-se que:

a) O arguido A... possui o equivalente ao 12º ano de escolaridade, no sistema escolar de Marrocos, seu país de origem.

b) Os arguidos são casados entre si, não possuindo filhos menores.

c) A arguida B... encontra-se desempregada, trabalhando anteriormente como empregada de café.

d) O arguido A... trabalha como agricultor, em sistema temporário, entre Portugal e França, auferindo sensivelmente perto do Salário Mínimo Mensal.

e) Os arguidos pagam 100,00€ de renda.

f) Não possuem bens móveis ou imoveis.

g) Não auferem subsídios sociais.

h) O arguido A... admitiu parcialmente os factos.

i) A arguida B... admitiu o descrito em 3 e 4, atribuindo-o ao facto de amar o marido e aceitar o seu consumo de cannabis como parte da sua cultura de origem.

j) O arguido, à data dos factos era consumidor ocasional de haxixe.

k) Os arguidos não possuem antecedentes criminais registados.
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Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa.
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Estatui o artº 21º, no seu nº 1, do DL nº 15/93, de 22.01, que “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

Na sequência da aprovação e ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas o legislador tipificou no artº 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22.01., o crime detráficode estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, tendo criado nos artgs 24º e 25º do mesmo diploma legal dois subtipos (um agravado e outro privilegiado).
Trata-se de um crime de perigo comum e abstrato, na medida em que visa antecipar a proteção legal de diversos bens jurídicos com dignidade penal, como por exemplo, a vida, a integridade física e a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes (em suma, visa-se a proteção da saúde pública), ainda que em concreto não se tenha verificado o perigo de violação desses bens jurídicos (vide, neste sentido, entre outros, o acórdão do T.C. de 6.11.91, B.M.J. nº 411, págs. 56 a 73).

De notar que para que o tipo objetivo se preencha, basta a mera detenção ilícita daqueles produtos estupefacientes, desde que não seja para exclusivo consumo pessoal, não sendo pois necessário que a detenção do produto estupefaciente se destine à posterior venda.

Por seu turno, estabelece o artigo 25º, do mesmo diploma legal, que “Se nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
 b) (…)”.

O preceito em causa não é mais do que uma “válvula de segurança” do sistema, na medida em que evita que situações de menor gravidade (e portanto com nítida menor ilicitude) sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuante especial (vide João Luís Moraes Rocha, Droga - Regime Jurídico, citando Lourenço Martins, pág. 86, 1994 Livraria Petrony). Visa-se pois punir menos severamente comportamentos que, embora enquadráveis na previsão legal do artº 21º, revestem-se de uma considerável menor ilicitude, ou seja, comportamentos que se traduzem num menor desvalor da ação, desvalor esse que terá de ser avaliado pela imagem global do facto, aferida através dos meios utilizados, da modalidade ou das circunstâncias da ação e da qualidade ou quantidades das substâncias (neste sentido, ac. do STJ de 16.06.2008, com texto integral em www.dgsi.pt, proc. nº 08P1228) (Ac. Rel Porto de 17/06/2015)

Portanto, a factualidade apurada permite enquadrar a conduta dos arguidos na subsunção legal prevista no citado artº 25º, al. a), do DL nº 15/93, de 22.01.

Tendo em conta a quantidade e a natureza das drogas apreendidas (canábis), o facto de os arguidos terem agido com dolo direto e o modus operandi, o juízo de censurabilidade ético-jurídica e, portanto, de culpabilidade, é mediano. Por outro lado, no que concerne às necessidades de prevenção geral positiva, há que ponderar o facto de que a natureza deste crime é geradora de grande insegurança na comunidade, na medida em que a sua prática amiúde conduz ao cometimento de outros crimes direta ou indiretamente com ele conexos, entre os quais os crimes contra o património.  Assim, as necessidades de prevenção geral positiva são altas, pois que, como resulta do que acima se referiu, a reposição da confiança dos cidadãos na norma violada e a efetiva tutela dos bens jurídicos cuja proteção se visa assegurar pela incriminação deste tipo de condutas assim o impõe.
Além disso, ao nível das necessidades de prevenção especial, há que ponderar os seguintes fatores:

- Os arguidos não têm antecedentes criminais;

- Têm uma condição socioeconómica modesta, sem meios económicos próprios que lhe permitam subsistir licitamente e sem o auxílio de terceiros. Nessa medida, quer-nos parecer que as ditas necessidades de prevenção especial têm alguma relevância.

Tudo visto, variando a moldura penal entre 1 e 5 anos de prisão, parece-nos adequada a imposição de uma pena de 1 ano e seis meses de prisão para a arguida e dois anos para o arguido.

Por outro lado, dispõe o artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr. artº 40º, nº 1, do CP). Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos, configurando a mesma uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.

Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a censura do facto e a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.

No caso em apreço, verifica-se que o pressuposto formal estabelecido por aquela disposição se encontra preenchido, dado que a pena imposta é inferior a 5 anos de prisão.

Também se encontram preenchidos os inerentes pressupostos materiais em face do que se disse a propósito das necessidades de prevenção especial  pelo que concluímos que é possível efetuar-se um juízo de prognose favorável no que respeita ao futuro comportamento dos arguidos, de sorte que nos quer parecer que a censura do comportamento em causa e a ameaça da execução daquela pena de prisão satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tal como enunciadas no artº 40º, nº 1, do Código Penal.

Como tal, as pena de prisão aplicadas deverão ser suspensas na sua execução, por igual período de tempo (cfr. artº 50º, nºs 1, 4 e 5, do Código Penal).

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP e em consequência:

- Condenar os arguidos B... e A... pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 25º, al a), do DL nº 15/93, de 22.01, com referência á tabela I-C anexa a tal diploma;

- Designadamente, o arguido A... na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo;

- A arguida B... na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

Sem tributação.

Coimbra, 27 de abril de 2016

(Alice Santos – relatora)

(Abílio Ramalho - adjunto)