Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
181/08.5TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: HERANÇA INDIVISA
DÍVIDA
RESPONSABILIDADE
HERDEIRO
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2068º E 2098º DO CC
Sumário: I – A herança, como património autónomo ou como universalidade de direito, assenta em que ela, e só ela, responde pelos chamados encargos da herança, e não o património dos herdeiros.

II – Assim, na herança indivisa, são os seus bens que, colectivamente, como universalidade, respondem pelos respectivos encargos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., S.A., com sede na Rua ..., Lisboa, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B..., residente em ..., Oliveira de Frades, C... e esposa, D...., residentes em ..., E... e esposa F..., residentes em ..., Oliveira de Frades, e G..., também residente em ..., Oliveira de Frades, pedindo que os RR. sejam “solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 57.250,05, acrescida de juros à taxa supletiva que pode ser praticada pelas empresas comerciais, desde 14.11.2006, até efectivo e integral pagamento, que à presente data (propositura da acção) ascendem a € 9.132.09”.

Alegou para tal, em síntese, que, no exercício da sua actividade de refinação e comercialização de combustíveis líquidos e gasosos, forneceu aos RR. (mais exactamente, à 1.ª e 4.ª rés e aos 2.º e 3.º réus maridos), para estes revenderem no posto de abastecimento de combustíveis que herdaram do seu pai – que os RR. detinham e exploravam – as quantidades de gasolinas, gasóleo e gasóleo corado constantes das facturas que junta, cujo valor ascendeu a € 57.350,44, tendo sido acordado que tais facturas se venceriam em 14/11/06; fornecimentos esses que os RR., embora repetidamente instados, na pessoa da R. B..., só pagaram € 80,39, encontrando-se por pagar os restantes € 57.250,05. Mais alegou, em relação às 2.ª e 3.ª rés, o proveito comum do casal, para além de a dívida ter sido contraída pelos maridos no exercício do seu comércio.

Citados todos os RR., apenas os 2.º e 3.º RR. contestaram.

Articulado em que, em resumo, alegam que, após a morte dos pais da 1.ª e 4.ª rés e dos 2.º e 3.º réus maridos, o posto de abastecimento de combustíveis, para o qual foram fornecidos os combustíveis em causa passou a ser explorado apenas pelas 1.ª e 4.ª rés, nunca tendo os réus contestantes estado, directa ou indirectamente, ligados à exploração comercial daquele posto, nunca tendo participado na sua gestão, nem efectuado compras ou vendas, nem participado nos lucros do mesmo. Mais alegam que, por escrituras de 12/07/07, doaram os seus direitos às heranças de seus pais à 4.ª ré, G..., em consequência do que esta foi julgada habilitada, ocupando aquela a sua posição nos autos de inventário pendente para partilha das heranças de seus pais. E invocam por fim que só poderiam ser responsáveis enquanto herdeiros e em representação da herança de seus pais e nunca a título pessoal, sendo nesse caso a sua responsabilidade limitada aos direitos que das mesmas heranças lhes adviessem, o que também não é o caso em face das doações que fizeram dos seus quinhões hereditários.

Concluem pois pela sua absolvição do pedido.

A A. replicou, alegando que os RR. contestantes aceitaram as heranças de seus pais antes da data em que foram fornecidos os combustíveis ao posto, que após essa aceitação detinham conjuntamente com as demais irmãs o domínio e posse dos bens da herança, não eximindo a sua responsabilidade o facto de mais tarde terem doado os seus direitos nas heranças à 4.ª ré, G..., dado que tal facto, por ser posterior à data da contracção da dívida, em nada alterar a sua responsabilidade nem relevar para a presente acção.

E concluiu como na PI.

Foi proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que a Exma. Juíza de Circulo proferiu sentença, em que concluiu pela improcedência da acção e pela total absolvição de todos os RR. do pedido.

Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “condene os Réus herdeiros, no pagamento à Autora das quantias peticionadas na acção, embora com a sua responsabilidade limitada às forças da herança.”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. A solução adoptada na sentença recorrida, de que, em caso de herança indivisa, ainda não partilhada, os herdeiros apenas podem ser condenados a reconhecer a existência de créditos sobre a herança e a ver satisfeitos esses créditos pelos bens dela, não podendo ser directamente condenados, na satisfação das correspondentes dívidas, não tem tradução na lei nem acolhimento na doutrina

2. Por um lado, é o próprio artigo 2091º do Código Civil, que dispõe que os direitos relativos à herança, só podem ser exercidos contra todos os herdeiros, o que implica que estes podem ser condenados, em acção que lhes for interposta, para fazer valer aqueles direitos.

3. Por outro, na doutrina, para Galvão Teles os herdeiros sucedem nas dívidas do de cujus, cabendo-lhes a posição de devedores, respondem colectivamente, perante os credores, enquanto a herança se mantém indivisa e é a eles que os credores se podem dirigir, para obter a satisfação dos seus créditos.

4. Oliveira Ascensão sustenta a oponibilidade do próprio débito proveniente do passivo hereditário, aos herdeiros e que são estes que recebem as próprias dívidas e não apenas a sua responsabilidade, sucedendo, nos débitos do de cujus.

5. E, no mesmo sentido, seguem Pires de Lima e Antunes Varela, que reportam que a concepção dominante na doutrina italiana é que o herdeiro sucede nos débitos do de cujus e que essa é a posição que melhor se adapta aos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 2071º do Código Civil e é aos herdeiros em geral do falecido que os credores hão-de exigir a satisfação dos encargos da herança.

6. Os herdeiros, como únicos detentores de personalidade jurídica, são, no seu conjunto, responsáveis pelo pagamento dos encargos da herança e, se o não fizerem, devem ser legitimamente condenados a fazerem-no, embora com a limitação de só responderem, em conjunto, pelas forças da herança e pela soma dos valores deixados pelos de cujus.

7. Essa responsabilidade pessoal por aqueles encargos é tanto mais gritante, num caso, como o dos presentes autos, em que as dívidas foram contraídas, não pelo de cujus, mas pelos próprios herdeiros, na exploração do posto de abastecimento de combustíveis que herdaram de seu Pai.

8. E quando, inclusivamente, esses encargos foram gerados por uma utilização desviante e abusiva, para outras finalidades, de elevados valores provenientes do produto da venda ao público consumidor dos combustíveis fornecidos aos Réus pela Autora, natural e prioritariamente destinados ao seu pagamento junto desta.

9. Deveria assim a sentença recorrida ter condenado os Réus herdeiros, no pagamento à Autora das quantias peticionadas na acção, embora com a sua responsabilidade limitada às forças da herança.

10. Não o tendo feito, com a sentença recorrida, a Mtma. Juiz a quo violou a norma do artigo 2091º, nº1, do Código Civil.

Os RR. não apresentaram qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

Os factos, com interesse, lógica e cronologicamente alinhados, são os seguintes:

1. A A. exerce a actividade de refinação e comercialização de combustíveis líquidos e gasosos. – Alínea A) dos factos assentes.

2. Os pais dos RR. maridos e das rés solteiras, detinham e exploravam um posto de abastecimento de combustíveis sito na E.N. Nº 16, Lugar de ..., em Ribeiradio. – Alínea B) dos factos assentes.

3. Por óbito da mãe dos réus maridos e das rés solteiras, ocorrido em 02.09.2002, foi instaurado no Tribunal de Oliveira de Frades pelo aqui R. C... Processo de Inventário para partilha dos bens deixados por aquela, o qual foi distribuído em 14.04.2004 e ao qual foi atribuído o Nº 318/04.3TBOFR no qual veio a ser ordenada, por despacho datado de 08.04.2005 a cumulação de inventários por morte do pai dos réus maridos e das rés solteiras ocorrida em 22.02.2005.

4. Da relação de bens apresentada em tal processo de inventário constava, entre outros, o posto de abastecimento de combustíveis supra aludido.

5. Em tal processo de Inventário foi nomeada cabeça de casal a aqui ré B..., a qual desempenhou tal cargo até ser removida do mesmo, por despacho datado de 11.01.2005, vindo a ser nomeado em substituição da mesma para desempenhar tal cargo de cabeça de casal o aqui réu C... o qual se manteve em tal cargo, pelo menos até 24.10.2006, vindo depois a ser substituído pela aqui ré G....

6. No referido processo de inventário foram citados como interessados os aqui réus maridos e rés solteiras, tendo os mesmos manifestado no mesmo o propósito de procederem à partilha dos bens por acordo, e, em conferência de interessados ocorrida em 04.07.2006 aprovaram tais interessados o passivo relacionado em tal processo e deliberaram proceder à venda de alguns bens nele relacionados para proceder ao pagamento do mesmo.

7. Pelo menos os réus maridos e as rés solteiras detinham e exploravam o posto de abastecimento referido em 2. em Outubro e Novembro de 2006, enquanto herdeiros de seu pai, H..., falecido em 22.02.2005, anterior titular de tal posto de abastecimento. Resp. quesitos 1º e 2º.

8. Em Outubro de 2006 a autora forneceu, para exploração e revenda naquele posto de abastecimento, diversas quantidades de gasolina, gasóleo e gasóleo corado, cujo valor global ascendeu a € 57.350,44, tendo emitido as facturas Nºs 2202198556 e 2202198566, com vencimento acordado para 14 de Novembro de 2006. – Resp. quesitos 3º e 4º.

9. Os RR. foram instados, na pessoa da ré B..., para procederem ao pagamento do referido valor. -Resp. quesito 5º.

10. Os RR. C..., E... e respectivas esposas, por escritura de 12 de Julho de 2007, doaram o seu direito às heranças de seus pais, H... e mulher, à co-ré G..., aqui 4ª ré. – Alínea C) dos factos assentes.

11. Em consequência das doações atrás referidas, a co-ré G... foi julgada habilitada do quinhão hereditário dos réus C..., E... e respectivas mulheres, ocupando a sua posição nos autos de inventário para partilha das heranças daqueles H... e mulher, a que se procede com o Nº 318/04.3TBOFR, neste Tribunal Judicial de Oliveira de Frades. – Alínea D) dos factos assentes.

12. Por decisão proferida em tal processo de inventário na conferência de interessados que no âmbito do mesmo ocorreu em 29.10.2009, foi homologada a desistência da instância do mesmo.


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III – Fundamentação de Direito

Na origem do litígio dos autos/recurso estão fornecimentos de gasolina e gasóleo efectuados pela A./apelante e ainda não pagos; que, segundo a posição jurídico-processual adoptada pela A/apelante na PI, davam lugar a que todos os RR. fossem “solidariamente condenados” a pagar-lhos.

Começamos por tal alusão para destacar a “evolução” – da PI à alegação recursiva – da posição jurídica da A/apelante e para assim circunscrever e centrar, na exacta dimensão, a divergência recursiva da A/apelante (em relação à sentença recorrida).

Divergência que, verdadeiramente, não é de direito substantivo.

Sustenta agora a A/apelante que “os herdeiros, como únicos detentores de personalidade jurídica, são, no seu conjunto, responsáveis pelo pagamento dos encargos da herança e, se o não fizerem, devem ser legitimamente condenados a fazerem-no, embora com a limitação de só responderem, em conjunto, pelas forças da herança e pela soma dos valores deixados pelos de cujus”.

Ou seja, a A/apelante abandona a explícita alusão, feita na PI, à condenação solidária dos RR. e até reconhece que a sua condenação/responsabilidade deve ser limitada às forças da herança.

É exactamente isto, em termos de direito substantivo, que se explana na sentença recorrida, designadamente quando se diz que “ (…) os herdeiros não têm qualquer legitimidade directa pelo respectivo pagamento (nem mesmo até ao limite do que recebessem em herança), pelo que não podem (eles próprios) ser condenados a pagar a dívida da herança. Neste caso – de herança indivisa não partilhada –, os herdeiros apenas podem ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança, devendo, por isso, improceder o pedido de condenação dos próprios herdeiros na satisfação desse crédito”; acrescentando-se e rematando-se, logo a seguir, que, “vindo peticionado na presente acção a condenação solidária dos RR. a pagaram à A. a dívida resultante dos fornecimentos ao aludido posto de combustíveis, em vez de, como devia em nosso entender, a condenação dos réus maridos e das rés solteiras a reconhecer a existência do crédito da A. sobre as heranças abertas por óbito dos seus pais, é manifesto que a acção não pode, com base em tal pedido, proceder.”

É exactamente aqui que se situa o âmago do objecto do recurso.

A questão não estará em saber se e como, em tese, os herdeiros podem ou não ser condenados pelos encargos da herança; a questão – toda a questão – estará em saber se um pedido mal formulado, em que se pede a condenação solidária e directa (sem aludir ou especificar a concreta veste ou qualidade em que se pede a sua condenação) de determinadas pessoas, pode/deve ser convolado/corrigido para a sua exacta formulação, sendo essas mesmas pessoas condenadas, mas circunscrevendo-se a veste/qualidade em que são condenadas e a massa patrimonial que responde pela condenação que é imposta.

Foi a esta questão que a sentença recorrida respondeu negativamente e é fundamentalmente em relação a tal resposta negativa que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva.

Isto dito, explicado o exacto ponto em que se situa a divergência recursiva, importa voltar um pouco atrás, à questão substantiva, para encontrar a sede, a nosso ver, da ratio decidendi; que impõe, no caso, a confirmação do decidido.

E começar-se-á por observar que não estamos, manifestamente, perante dívidas contraídas pelo falecido (pai da 1.ª e 4.ª rés e dos 2.º e 3.º réus maridos), uma vez que o crédito da A/apelante decorre de fornecimentos de combustível efectuados 20 meses após a sua morte.

O que à partida não impede que possamos estar perante dívidas sujeitas ao mesmo tratamento jurídico que as dívidas do falecido; que não impede que possamos estar perante encargos da herança.

Mas que permite e impõe que tenhamos presente que a contraparte da A/apelante, nos contratos de compra e venda que os fornecimentos configuram, não foi nem o H... (já falecido) nem a herança, que, embora património autónomo directamente responsável (cfr. 2097.º do CC), não possui nem personalidade jurídica nem judiciária.

E – é a 1.ª questão que se coloca – quem foi que a A./apelante apresentou como sua contraparte em tais contratos de compra e venda?

A 1.ª e 4.ª rés e os 2.º e 3.º réus maridos, directa e individualmente; de tal modo que, a propósito destes, até disse (art. 13.º da PI) que a dívida foi contraída no exercício do seu comércio.

É certo que também alegou que o posto/estabelecimento foi por eles herdado do pai, porém, apenas e só para justificar a detenção e exploração do mesmo pelos RR. e para depois alegar que (art. 4.º da PI) “forneceu aos RR. naquele posto para a sua exploração e revenda diversas quantidades de gasolina, gasóleo (…)”.

Não foi, porém, isto que se provou.

Não se deu como provado, como se alegava, o segmento em que se perguntava se “a A. forneceu aos RR.”, tendo-se antes, em termos explicativos, dado como provado que “os réus maridos e as rés solteiras detinham e exploravam o posto de abastecimento em Outubro e Novembro de 2006, enquanto herdeiros de seu pai”, e que a “A. forneceu, para exploração e revenda naquele posto de abastecimento, diversas quantidades de gasolina, gasóleo e gasóleo corado”.

Ou seja, deu-se apenas como provado que o combustível fornecido se destinou a um posto de abastecimento pertencente à herança indivisa – que os réus maridos e as rés solteiras detinham e exploravam enquanto herdeiros de seu pai – impondo-se concluir que o negócio do posto de abastecimento, o seu giro comercial, terá sido continuado pelo cabeça-de-casal no âmbito dos seus poderes de administração – em que se incluem, “para além dos definidos especialmente, poderes de administração ordinária, ou seja, poderes para a prática de actos e negócios jurídicos, de conservação e frutificação normal dos bens administrados[1].

Conclusão esta – importa enfatizá-lo – que está implicitamente aceite no raciocínio jurídico quer da sentença recorrida quer da alegação da A/apelante, que partem pacificamente da ideia do crédito da A/apelante ser um encargo da herança.

E, é ocioso explicá-lo, para o crédito da A/apelante ser um encargo da herança – para se efectuarem todas as considerações jurídicas expendidas sobre o modo da herança responder pelos respectivos encargos – teve que se considerar e aceitar que não foram os RR., enquanto tal (individual e directamente), que solicitaram o combustível à A/apelante, mas sim que a solicitação foi feita em nome da herança indivisa, cujo administração continuou (após a morte do de cujus) o giro comercial do posto de abastecimento; em síntese, teve que se considerar e aceitar que a contraparte, em tais negócios de compra e venda de combustível, foi o administrador da herança, razão porque se considerou estar perante encargos com a administração da herança, sujeitos por isso à disciplina jurídica que decorre dos dispostos nos art. 2068.º, 2097.º e 2098.º, todos do CC.

Enfim, em rigor, recentrando a questão do recurso, não se restringe a mesma, ao contrário do que aparenta, à mera convolação/correcção dum pedido incorrectamente formulado; não se trata tão só de circunscrever a veste/qualidade em que os condenados o são e a massa patrimonial que responde pela sua condenação.

Aparenta ser isto – é certo – mas, em substância, a “incorrecção” é mais profunda.

Foram invocados contratos de compra e venda em que a A. figura como a parte vendedora e os RR. como a contraparte/compradora – razão porque, invocando-se expressamente o disposto no art. 100.º do C. Comercial (cfr. art. 8.º e 9.º da PI), se pediu, sem qualquer lapso ou incorrecção, a condenação solidária dos RR – e quer-se agora que se considere os crédito da A/apelante como um encargo da herança, para o que é mister aceitar que o que se provou foram outros e diferentes, em relação ao invocado, contratos de compra e venda, em que, mantendo-se a A. como parte vendedora, o comprador passa a ser, não os RR., mas o administrador (cabeça-de-casal) da herança.

Em síntese e em rigor, a questão nem está apenas na incorrecção do pedido; está sim e fundamentalmente em se haverem provado contratos de compra e venda diferentes – com uma contraparte diferente – dos que foram invocados; está sim, em face disso, em se pretender aproveitar o que de diverso, em relação ao alegado, se provou, pretendendo-se operar, agora e tardiamente (cfr. art. 273.º do CPC), uma alteração da causa de pedir com a inerente rectificação/alteração do pedido[2].

É esta, a nosso ver, a ratio decidendi que impõe a improcedência da acção e a confirmação do decidido.

Efectivamente, se a questão se restringisse à convolação/correcção dum pedido incorrectamente formulado, se se tratasse tão só de circunscrever a veste/qualidade dos condenados e a massa patrimonial que havia de responder pela condenação, não nos repugnaria fazê-lo.

É sabido que o critério unificador da herança, como património autónomo ou como universalidade de direito, assenta em que ela, e só ela, responde por certos encargos; os chamados encargos da herança.

O que está bem reflectido e patente no caso da herança indivisa, em que se está perante um património autónomo, de afectação especial, directamente responsável (2097.º do CC), em que os herdeiros apenas têm de intervir (2091.º do CC) como co-titulares desse património, em que somente o seu activo, e não o património dos herdeiros, responde pela satisfação das respectivas dívidas (2068.º e 2098.º do CC)[3].

Por outras palavras, na herança indivisa, os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens, mas apenas titulares em comum de tal património; respondendo os bens da herança indivisa, colectivamente, como universalidade, pelos respectivos encargos.

Assim:

Pendente inventário e enquanto não transitada a sentença homologatória da partilha, a liquidação das dívidas e encargos pode aí ser feita e os credores podem aí reclamar os seus direitos (1331.º/2, do CPC).

Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança (2098.º/1 do CC); mas, mesmo depois das quotas da herança partilhadas, também estamos perante universalidades de direito, autonomamente referenciáveis, embora nestes casos os herdeiros já tenham um direito próprio (já não sejam co-titulares) a cada um dos bens que constituem a respectiva universalidade; razão por que são responsáveis pelos encargos apenas porque titulares dessas massas patrimoniais autónomas e por isso mesmo a sua responsabilidade não se processa ultra vires hereditatis (2098.º/1 CC)

Mas, evidentemente, o credor não pode ser obrigado a aguardar que as partilhas se processem – o que pode até nunca acontecer – para reclamar o seu crédito.

Se não houver inventário, se não estiver pendente inventário e se as dívidas não forem pagas voluntariamente pelos herdeiros ou pelo cabeça-de-casal, o credor pode exigir judicialmente o seu crédito dos herdeiros; de todos os herdeiros – já que são eles, todos eles, os representantes da herança (2091.º do CC) – qualidade em que são demandados pelos encargos/dívidas da herança (sendo assim partes legítimas em acção destinada à respectiva cobrança).

Sendo este agora o caso dos autos[4], exigindo o credor o seu crédito sobre a herança indivisa – que não tem personalidade jurídica e judiciária – de todos os herdeiros, tem que saber formular/organizar um pedido que cumpra e respeite as regras substantivas referidas (em que somente o activo do património autónomo, e não o património dos herdeiros, responde pela satisfação das respectivas dívidas (2068.º e 2098.º do CC)) sobre os termos em que o património autónoma e apenas este responde pelos encargos[5].

E, efectivamente, a fórmula mais correcta é a que se refere na sentença recorrida, isto é, não tendo os herdeiros qualquer responsabilidade directa no pagamento (nem mesmo até ao limite do que venham a receber em herança), não se pode pedir que (eles próprios) sejam condenados a pagar dívidas/encargos da herança, tendo assim, no caso de herança indivisa não partilhada, que se pedir que “os herdeiros sejam condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito (ou a satisfazer) esse crédito pelos bens da herança[6].

Mas – é este o ponto – sendo os herdeiros os co-titulares de tal património (que não tem, insiste-se, personalidade jurídica e judiciária) são ainda e sempre eles que são condenados, embora com a dupla restrição de serem condenados como herdeiros (como co-titulares de tal património autónomo) e da condenação estar limitada a ser satisfeita pelas forças/bens de tal património autónomo.

Por conseguinte, se a questão fosse apenas e só de incorrecção na formulação do pedido[7] – e não também, como já se explicou, de se pretender operar, agora e tardiamente, uma alteração da causa de pedir com a inerente rectificação/alteração do pedido – procederíamos à sua correcção na prolação da condenação.


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Improcede, assim, tudo o que em contrário a A/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio do recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância.

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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se totalmente a sentença recorrida.

Custas pela A/apelante.


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Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II Vol., pág. 78.
[2] Resulta claramente da PI que os RR. não foram demandados como e enquanto representantes da herança, mas sim na qualidade de contrapartes nas compras e vendas.
[3] Daí que a legitimidade passiva em matéria de responsabilidade por encargos da herança indivisa caiba a todos os herdeiros, como co-titulares de tal património autónomo, sendo nesta qualidade/veste e apenas nela (e não directamente por si) que têm legitimidade
[4] Esteve pendente inventário, mas terminou por desistência da instância – cfr. facto 12.
[5] Cumprimento de tais regras que o art. 827.º do CPC também tem presente.

[6] Como se decidiu no Ac da Relação do Porto de 28/10/2010, citado na sentença recorrida.
[7] Isso é, se os RR. tivessem sido demandados como e enquanto representantes da herança e tivesse havido tão só lapso na formulação do pedido.