Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1502/11.9TBGRD
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
CONTRATO
Data do Acordão: 08/23/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.211 CRP, 66 CPC, 77 DA LEI 3/99 DE 13/9, 4º DO ETAF, DL Nº 18/2008 DE 29/1
Sumário: 1. Para que os litígios contratuais fiquem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré- contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo.
2. A causa cujo objecto respeite ao cumprimento ou execução de um contrato administrativo ou não, submetido por lei a um procedimento pré-contratual, regulado por normas de direito público, é da competência dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº 1, e), do ETAF.
3. A apreciação dos litígios sobre questões relativas à execução de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo é da competência dos tribunais administrativos.
Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. Na presente acção declarativa de condenação tramitada sob a forma de processo sumário, veio o Autor, J (…), com domicílio na Guarda, pedir a condenação da Ré, Freguesia de Fernão Joanes, no pagamento àquele da quantia de 4.175 €, acrescida do respectivo valor do IVA, de 960,25 €; no pagamento, a título de despesas efectuadas com a elaboração do projecto, da quantia de 1.300 €; e no pagamento de juros de mora vincendos, incidentes sobre as quantias anteriormente referidas, contados desde a data da citação da Ré até integral pagamento e calculados à taxa legal em vigor.
O Autor alegou, em síntese, que, na sua qualidade de engenheiro civil, acordou, em Abril de 2009, com o presidente da Junta de Freguesia da Ré a elaboração de um projecto de melhoria do regadio da referida Freguesia, por forma a permitir a candidatura da mesma ao Programa de Desenvolvimento Rural – Modernização de Regadios Colectivos Tradicionais, sendo que tal trabalho seria pago pela Ré num montante correspondente a 5% do valor total da obra a realizar, metade após a conclusão do referido projecto e respectiva entrega, e a outra metade quando o mesmo projecto obtivesse a comparticipação de fundos comunitários ou públicos. Que o Autor por diversas vezes se deslocou ao local sobre que incidiria o projecto, procedendo a inspecções, tendo, inclusivamente, contratado os serviços de um engenheiro topógrafo para o auxiliar, acontecendo que uma vez elaborado o projecto foi o mesmo enviado, a pedido da Ré, a diversos organismos da Administração do Estado, que emitiram pareceres favoráveis ao projecto apresentado. Que o Autor interpelou a Ré para que procedesse ao pagamento de metade do custo do projecto, ou seja metade de 8.350 €, o que esta não fez.
A Ré contestou referindo que, ao contrário do que é preconizado pelo Autor, foi este que abordou a Junta de Freguesia com vista à realização do projecto, na sequência da disponibilidade manifestada pelo Autor para proceder à elaboração de tal candidatura, na qual era necessário apresentar um projecto técnico. Nessa sequência o presidente da Junta da Freguesia aqui Ré contactou o Autor que se disponibilizou a efectuar o projecto sem qualquer custo para aquela, uma vez que os custos do mesmo e da candidatura seriam suportados pelo financiamento da mesma, condição esta que presidiu à entrega da execução do projecto em causa ao Autor. O pagamento ficou, assim, condicionado à aprovação da candidatura que, contudo, não foi aprovada.
O Autor apresentou resposta, impugnando os factos aduzidos pela Ré, e referindo que não teve qualquer responsabilidade pela não aprovação da candidatura em causa, dizendo que na parte que lhe cabia, correspondente ao projecto técnico, respondeu adequadamente às exigências do mesmo.
Seguidamente, o Tribunal “a quo” suscitou a sua eventual incompetência material para apreciação da questão, tendo as partes sido notificadas para, querendo, se pronunciarem, o que fizeram, pugnando o Autor pela competência do Tribunal, argumentando a Ré em sentido divergente.
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Seguidamente foi proferido despacho saneador, no qual o tribunal “ a quo” se julgou incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu a Ré, Freguesia de Fernão Joanes, da instância.
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2. O A. interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou o Douto Tribunal Judicial da Guarda incompetente, em razão da matéria, e absolveu a ré da instância;
II. Salvo o devido respeito, trata-se de uma decisão inaceitável, visto que, no nosso modesto entendimento, é competente o Tribunal Civil, ou seja, o Douto Tribunal Judicial da Guarda;
III. Ao contrário do sustentado na douta sentença recorrida, não estamos perante uma relação jurídico-administrativa;
IV. O objeto do contrato em causa tem natureza privada;
V. Por outro lado, salvo o devido respeito por melhor opinião, o legislador não regulou o contrato celebrado entre o autor e a ré em termos específicos pelo facto de a Administração ser parte;
VI. Acresce ainda que também não encontramos no contrato qualquer marca de administratividade, pois que a Junta de Freguesia de Fernão Joanes não goza de quaisquer poderes de autoridade, nem o contrato celebrado com o autor a investiu dos poderes previstos no artigo 180.º do C.P.A.;
VII. Com efeito, não é possível encontrar no contrato celebrado qualquer poder da ré para modificar unilateralmente as obrigações do contraente particular;
VIII. Além do mais, o autor, na sua condição de particular e para cumprimento das obrigações que para ele resultaram com a celebração do contrato, não ficou sujeito ao poder de direção da Junta de Freguesia de Fernão Joanes;
IX. Com efeito, a não atribuição de poderes de direção à ré denota até que o exercício da atividade levada a cabo pelo autor não abrange sequer a satisfação imediata do interesse público;
X. Na verdade, apesar de a ré ter como objetivo a melhoria do regadio tradicional da Freguesia de Fernão Joanes, tal fim não é satisfeito de forma imediata, através da celebração do contrato com o autor;
XI. Por outro lado, também não se encontra qualquer marca de administratividade quanto à possibilidade de rescisão do contrato pela ré, já que esta apenas o poderia fazer no caso de incumprimento pelo autor, o que, na verdade, não aconteceu;
XII. A Junta de Freguesia de Fernão Joanes, aquando da celebração do contrato com o autor, não ficou investida de poderes exorbitantes, pois que o contrato não ficou condicionado à fiscalização da ré, e nem sequer previram qualquer tipo de sanções a aplicar ao autor, no caso de inexecução do contrato;
XIII. Em face do exposto, dúvidas não devem restar, quer quanto à impossibilidade da ré exercer os poderes previstos no artigo 180.° do C.P.A., quer quanto ao facto de o contrato não satisfazer, de forma imediata, o interesse público;
XIV. Com efeito, não existem quaisquer condições especiais de sujeição do autor ao interesse público;
XV. O que justifica até o facto de a douta sentença recorrida não especificar qualquer condição especial que reflita a falta de paridade entre as partes em razão do referido interesse público;
XVI. Assim, tendo em conta que não existe qualquer elemento que permita qualificar como público-administrativa a relação contratual estabelecida entre as partes, não poderá ser atribuída competência para dirimir o presente conflito ao Tribunal Administrativo;
XVII. Pelo que, a competência material para apreciação da presente ação cabe aos tribunais judiciais, mais concretamente, ao Douto Tribunal Judicial da Guarda;
XVIII. Consequentemente, e em face do supra exposto, deve ser revogado o douto despacho saneador/sentença, devendo ser substituído por outro que afirme tal competência e dê o competente seguimento aos autos.
XIX. Salvo o devido respeito por melhor opinião, no nosso entendimento, mostram-se violados, por erro de interpretação e de aplicação, entre outras disposições legais, o art. 66.º do C.P.C., o art. 4.º do E.T.A.F., e os arts. 178.º e 180.º do C.P.A.
Termos em que se requer muito respeitosamente a V. Exas. se dignem conceder provimento ao presente recurso, e revogar a douta decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que julgue o Douto Tribunal Judicial da Guarda competente em razão da matéria.
Só assim é Direito
E só assim se fará a mais lídima JUSTIÇA
3. A R. contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
a) Pelo exposto, a relação jurídica entre Recorrente e Recorrida consiste numa relação jurídica administrativa que tem por base um contrato de prestação de serviços – artigo 450º do Código dos Contratos Públicos.
b) Ora as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público, são da competência da jurisdição administrativa – artigo 4º/f) do ETAF.
c) Nestes termos, competente seria a jurisdição administrativa, pelo que, de acordo com o artigo 101º do Código de Processo Civil, “a infracção das regras de competência em razão da matéria (…) determina a incompetência absoluta do tribunal”, a qual configura uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição do réu da instância (artigos 105º, n.º 1, 288º, n.º 1, alínea a), 493º, n.º 2, 494º, alínea a) e 495º, todos do Código de Processo Civil).
d) Face ao que aqui se deixa alegado, a Douta Sentença recorrida não merece qualquer reparo devendo manter-se nos seus precisos termos já que é de pleno direito.
e) Consequentemente, com o mais que Vossas Excelências se dignarão doutamente suprir, negando-se provimento ao presente recurso se fará, como sempre, J U S T I Ç A

II – Factos Provados

Os factos provados são os constantes do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, do CPC).
Nesta conformidade a única questão a decidir é a seguinte.
- Competência material do tribunal judicial.

2.1. Na sentença recorrida escreveu-se que:
Ora, nos termos do art. 211.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, “[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais”, já nos termos do art. 212.º, n.º3, do mesmo diploma, “[c]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Nesta linha, o art. 66.º do Código de Processo Civil (doravante CPC) (e, bem assim, o art. 77.º da Lei nº 3/99, de 13 de Setembro, L.O.F.T.J), ao dizer que “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, concretiza o citado preceito constitucional, percebendo-se, então, que a delimitação da competência material dos tribunais judiciais se faz pela negativa, sendo de concluir que se trata de uma competência residual, uma vez que cabe a estes tribunais julgar os feitos que não estejam cometidos a outras ordens jurisdicionais.
(…)
Tendo presente o inciso constitucional já mencionado, é de pôr em relevo que a competência dos tribunais administrativos está, substancialmente prevista no art. 4º da lei nº13/2002, de 19 de Fevereiro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante ETAF).
Nos termos de tal artigo e incidindo sobre aquilo que interessa ao caso, dispõe-se, no seu nº 1, que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…) e) questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; f) questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público (…)”.
Tal artigo, cuja redacção vem da Lei nº 59/2008, de 11/09, operou uma espécie de circuição na competência material dos Tribunais Administrativos pois que como salientam Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de Oliveira (in, CPTA e ETAF anotados, Vol. I, 2004, em anotação ao art. 4º, nº1, al. e) do ETAF, pp. 48 a 53, citado no Ac. do TRL de 14/09/2010, disponível in, www.dgsi.pt (de onde serão todos os Acórdãos sem indicação de sentido contrário), proc. nº353806/08.2YIPRT.L1-1) “a opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento de litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente das qualidades das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja pela disciplina da própria relação contratual) eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.)”.
Assim, para se afirmar a competência dos Tribunais Administrativos para estes efeitos “não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que “admita que (ele lhe) seja submetido”, como salienta o Ac. do TRL de 14/09/2010.
De efeito, neste mesmo sentido já o nosso Supremo Tribunal se havia pronunciado no aresto datado de 08/01/2009 (in, proc. nº 08B3352), escrevendo que “para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo”, sendo que, continua tal decisão, “se, relativamente ao anterior E.T.A.F.- Dec. Lei nº 129/84, seu artº 4º nº 1 al. f), que dispunha que “ estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público”, se apresentava de especial relevância a dicotomia “ actos de gestão pública/actos de gestão privada”, de que se serviu também o tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão, com as alterações introduzidas pelo novo E.T.A.F., aqui aplicável, este fundamento perdeu essa especial relevância, uma vez que - embora possa ainda tal dicotomia ser de considerar noutros casos – em situações como a presente, passou a competir aos tribunais administrativos a apreciação dos respectivos litígios, “ex vi” do disposto no artº 4º, nº1, al. e)”.
*
Feito o enquadramento jurídico impõe-se cotejá-lo com o caso retratado no presente processo.
Revertendo para a causa de pedir espelhada nos autos é fácil de concluir que estamos perante um pedido (de condenação da Ré nos pagamentos das quantias já mencionadas) que se alicerça no facto de o Autor ter prestado serviços à Ré traduzidos, como aquele os descreve, na elaboração de um projecto.
Com efeito o contrato de prestação de serviços aparece definido no art. 1154.º do CC como “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”, sendo certo que ao que transcorre, designadamente, da factualidade apresentada pelo Autor, este ter-se-á comprometido para com a Ré ao desenvolvimento da sua actividade de engenharia com vista ao alcançar de um resultado corporizado no seu projecto de regadio.
Mais resulta da sua descrição dos factos que tais trabalhos tiveram por base uma solicitação da Ré (Junta de Freguesia e portanto pessoa colectiva de direito público) para tal.
Pois bem, se da alegação do Autor se pode extrair que o mesmo configura a relação estabelecida como sendo de direito privado, o que parece ser, de facto, o caso, pois que nada do que se retira do alegado permite concluir que a referida Junta de Freguesia, aqui Ré, tenha negociado com o Autor investido de poderes públicos (o designado ius imperii), a verdade é que, ainda assim, por via do que se vem de explicitar o conhecimento do objecto do presente litígio é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, atento o preceituado na mencionada al. e), do nº1 do art. 4º do ETAF.
Suportando tal circunstância encontra-se o facto de o contrato em questão, embora não dizendo respeito a um contrato administrativo tout court, ter por base uma verdadeira prestação de serviços (traduzida na elaboração de um projecto) que, de acordo com o Dec.-Lei nº 197/99 de 08/06, poderia, embora não o tenha sido, ser objecto de um procedimento pré-contratual regulado no citado diploma, assim se cumprindo a parte final do art. 4º, nº1, al. e) do ETAF, quando abrange no seio da competência material dos Tribunais Administrativos todas aquelas questões atinentes a contratos relativamente aos quais “haja lei específica (como é o caso do decreto referido) que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”.
Lê-se, de facto, logo no art. 1.º do Decreto referido que “o presente diploma estabelece o regime da realização de despesas públicas com locação e aquisição de bens e serviços, bem como da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços”, daqui se concluindo que, embora o acordo espelhado nos autos não tenha partido do procedimento preceituado em tal normativo tal era possível, o que, mais uma vez se sublinha, é suficiente para preencher a al. e) do já muito referenciado art. 4º do ETAF” – fim de transcrição.
2.2. A decisão da 1ª instância está correcta, mas importa que se façam, agora, para clarificação do que se vai decidir, dois reparos, e se acrescentem dois pontos.
O primeiro reparo respeita à fundamentação da decisão atrás transcrita, quando nos dois últimos parágrafos argumenta com o regime do DL 197/99, de 8.6. Na verdade, reportando-se o contrato dos autos a Abril de 2009, segundo alegação do A., nessa altura já estava em vigor o Código dos Contratos Públicos (CCP), publicado pelo DL 18/2008, de 29.1, entrado em vigor em Julho desse ano. Ora este diploma revogou aquele DL 197/99, como se vê do art. 14º, nº 1, f), pelo que é juridicamente incorrecto esgrimir, de modo directo, com um regime legal revogado.
O segundo reparo a fazer respeita agora às alegações do recorrente que se sustentam essencialmente na inexistência de administratividade do contrato celebrado entre o recorrente e a R., em vista dos arts. 178º e 180º do Código de Procedimento Administrativo, disposições previstas no Capítulo III, da Parte IV, de tal Código. Ora aquele DL 18/2008 revogou este Capítulo, como se vê do referido art. 14º, nº 1, c), pelo que do mesmo pecado, que a decisão recorrida, padecem as alegações do recorrente.
Passando agora ao primeiro ponto, concorda-se com a fundamentação da decisão recorrida (era correcta face aos arts. 1º, 2º c), 24º, nº 1, c) e 164º, nº 1, do falado DL 197/99), mas agora por reporte ao aludido CCP.
Neste diploma, entre outras disposições, estipula-se que:
Artigo 1.º
Âmbito
1 - O presente Código estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.
2 - O regime da contratação pública estabelecido na parte ii do presente Código é aplicável à formação dos contratos públicos, entendendo-se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código.
(…)
5 - O regime substantivo dos contratos públicos estabelecido na parte iii do presente Código é aplicável aos que revistam a natureza de contrato administrativo.
6 - Sem prejuízo do disposto em lei especial, reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias:
a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público;
(…)
Artigo 2.º
Entidades adjudicantes
1 - São entidades adjudicantes:
(…)
c) As autarquias locais;
Artigo 3.º
Contraentes públicos
1 – Para efeitos do presente Código, entende-se por contraentes públicos:
a) As entidades referidas no n.º 1 do artigo anterior;
Artigo 6.º
Restrição do âmbito de aplicação
1 - À formação de contratos a celebrar entre quaisquer entidades adjudicantes referidas no n.º 1 do artigo 2.º, a parte ii do presente Código só é aplicável quando o objecto de tais contratos abranja prestações típicas dos seguintes contratos:
(…)
e) Aquisição de serviços.
PARTE II
Contratação pública
TÍTULO I
Tipos e escolha de procedimentos
CAPÍTULO I
Tipos de procedimentos
Artigo 16.º
Procedimentos para a formação de contratos
1 - Para a formação de contratos cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adoptar um dos seguintes tipos de procedimentos:
a) Ajuste directo;
b) Concurso público;
c) Concurso limitado por prévia qualificação;
d) Procedimento de negociação;
e) Diálogo concorrencial.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, consideram-se submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objecto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza:
(…)
e) Aquisição de serviços;
Artigo 20.º
Escolha do procedimento de formação de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços
1 - No caso de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de contratos de aquisição de serviços:
a) A escolha do ajuste direto só permite a celebração de contratos de valor inferior a (euro) 75 000;
b) A escolha do concurso público ou do concurso limitado por prévia qualificação permite a celebração de contratos de qualquer valor, excepto quando os respectivos anúncios não sejam publicados no Jornal Oficial da União Europeia, caso em que só permite a celebração de contratos de valor inferior ao referido na alínea b) do artigo 7.º da Directiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março.
TÍTULO IV
Instrumentos procedimentais especiais
CAPÍTULO I
Concurso de concepção
Artigo 219.º
Âmbito
1 - O concurso de conceção permite a seleção de um ou mais trabalhos de conceção, ao nível de programa base ou similar, designadamente nos domínios artístico, do ordenamento do território, do planeamento urbanístico, da arquitetura, da engenharia ou do processamento de dados.
2 - Quando a entidade adjudicante pretenda adquirir por ajuste directo, adoptado ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 27.º, planos, projectos ou quaisquer criações conceptuais que consistam na concretização ou no desenvolvimento dos trabalhos de concepção referidos no número anterior, deve previamente adoptar um concurso de concepção nos termos previstos no presente capítulo”.
Ou seja, o projecto de concepção (projecto de engenharia), alegadamente contratado pelo A./recorrente com a autarquia R., estava sujeito a contratação pública, pelo que quedam inteiramente pertinentes as referências jurisprudenciais (ambos os acórdãos, do STJ e da Relação, referem-se a contratos de prestação de serviços) e doutrinais chamadas à colação na decisão recorrida.
Quer dizer, e em suma, o que é relevante para determinar o âmbito “contratual” da jurisdição administrativa, continua a ser a natureza jurídica do procedimento que antecedeu – ou que devia ou podia ter antecedido – a sua celebração, e não a própria natureza do contrato.
Tratando-se de um procedimento administrativo, a jurisdição competente para conhecer da execução do próprio contrato celebrado na sua sequência – independentemente de ele ser um contrato administrativo ou de direito privado – é a jurisdição administrativa. E independentemente também de se tratar (de actos pré-contratuais ou) de contratos de uma pessoa colectiva de direito público ou de um sujeito privado que esteja submetido, por lei específica, a deveres pré-contratuais de natureza administrativa. Assim, os contratos cuja execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), do nº 4, do ETAF, são quaisquer contratos – administrativos ou não – que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado pelas normas de direito administrativo. O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que ele lhe seja submetido. A competência “contratual” da jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso de a entidade administrativa contratante ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privada (vide M. Esteves de Oliveira, ob. cit., Reimpressão, 2006, pág. 51/52, e J. C. Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 11ª Ed., 2011, pág. 101).
Passando ao segundo ponto, importa acrescentar que caberia, também, ao tribunal administrativo dirimir o presente conflito ao abrigo do referido art. 4º do ETAF, mas agora da f), no segmento “de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo“.
Efectivamente dispõe o mencionado CPP (além das disposições acima transcritas) que:
“Parte III
Regime substantivo dos contratos administrativos
TÍTULO I
Contratos administrativos em geral
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 278.º
Utilização do contrato administrativo
Na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os contraentes públicos podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer.
Artigo 280.º
Direito aplicável
1 - Na falta de lei especial, as disposições do presente título são aplicáveis às relações contratuais jurídicas administrativas.
2 - As disposições do presente título são subsidiariamente aplicáveis às relações contratuais jurídicas administrativas reguladas em especial no presente Código ou em outra lei, sempre que os tipos dos contratos não afastem as razões justificativas da disciplina em causa.
TÍTULO II
Contratos administrativos em especial
CAPÍTULO V
Aquisição de serviços
Artigo 450.º
Noção
Entende-se por aquisição de serviços o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço”.
Isto é, articulando o regime do ETAF com o do CCP, estão abrangidos pelo âmbito da jurisdição administrativa os contratos que apresentem alguma das três notas de administratividade a que se reporta o art. 4º, nº 1, alínea f) do ETAF, entre os quais se destacam os contratos cujo regime substantivo das relações entre as partes é total ou parcialmente regulado por normas de Direito Administrativo e desde logo os contratos administrativos típicos, como tal previstos e regulados por normas específicas de Direito Administrativo, o que compreende os tipos contratuais previstos no Capítulo V, do Título II, da Parte III do CCP (designadamente aquisição de serviços por contraentes públicos) – vide neste sentido M. Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, 2012, pág. 162, e J. C. Vieira de Andrade, ob. cit. pág. 101/102.
Como no nosso caso o direito que o A. pretende fazer valer através da acção proposta se reporta à execução de um contrato administrativo (de aquisição de serviços por contraentes públicos), independentemente da forma adoptada na sua celebração, fundando-se em normas de direito administrativo, porquanto o mesmo é regulado pelo regime substantivo consagrado no CCP, o seu conhecimento compete aos tribunais da jurisdição administrativa, de acordo com o citado art. 4º, nº 1, alínea f), do ETAF (cfr. Ac. do STJ de 4.12.2008, Proc.08B2779, em www.dgsi.pt).
Nestes termos, a apreciação da presente acção compete à jurisdição administrativa, bem tendo andado a decisão recorrida.
3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC).
i) Para que os litígios contratuais fiquem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré- contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo;
ii) A causa cujo objecto respeite ao cumprimento ou execução de um contrato administrativo ou não, submetido por lei a um procedimento pré-contratual, regulado por normas de direito público, é da competência dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº 1, e), do ETAF;
iii) A apreciação dos litígios sobre questões relativas à execução de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo é da competência dos tribunais administrativos.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente.
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Coimbra, 23.8.2012

Moreira do Carmo ( Relator )