Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
21/17.4T8SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
DENÚNCIA
NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO
NRAU
REGIME TRANSITÓRIO
Data do Acordão: 11/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - SEIA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.1097 CC, 26 Nº4 NRAU ( LEI Nº 6/2006 DE 27/2), DL Nº 321-B/90 DE 15/10 ( RAU), LEI Nº 31/2012 DE 14/8
Sumário: Aos contratos de arrendamento anteriores ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, não é aplicável o disposto no artigo 1097.º do Código Civil, onde se prevê o mecanismo da oposição à renovação do contrato por parte do senhorio (nem são denunciáveis livremente pelo senhorio).
Decisão Texto Integral:







I. Relatório

a) O autor instaurou a presente ação declarativa contra a Ré alegando que celebrou, por escrito, um contrato de arrendamento com F (…) marido da Ré, tendo por objeto o rés-do-chão do prédio urbano que identifica na petição.

O marido da Ré faleceu no dia 8 de julho de 2003, tendo a Ré acordado com o Autor manter-se na habitação, sendo a renda mensal atual de 157,00 euros.

Sucede que o Autor se opôs à renovação do contrato o que comunicou à Ré através de carta registada.

A Ré recusa-se a sair do locado e daí o recurso a tribunal, peticionando a condenação da Ré a restituir-lhe o locado livre de pessoas e bens; o pagamento de 1.256,00 euros de indemnização pela não entrega atempada do locado; o valor em dobro da renda por cada mês de atraso, e respetivos juros, e ainda uma quantia a título de sanção compulsória por cada dia no atraso da entrega do locado.

A Ré contestou argumentando que adquiriu o direito ao arrendamento por transmissão por morte e que a declaração de oposição à renovação do contrato não foi eficaz porque, por um lado, o Autor pretendia antecipar os seus efeitos e, por outro, as partes passaram a comportar-se na relação contratual como se de um contrato de duração ilimitada se tratasse, quer ainda porque a Ré se encontra protegida por lei em razão da sua idade e em face do lapso de tempo de duração do contrato.

No final foi proferida a seguinte decisão:

«Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condeno a R. (…) na entrega do locado – a saber, rés-do-chão do prédio descrito na Conservatória do registo predial de (...) sob o n.º (...)001 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (...) 0002 - livre de pessoas e bens ao A. J (…), no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato;

b) Condeno a R. (…) a pagar ao A. J (…) uma indemnização com vista ao ressarcimento dos danos causados pela não entrega atempada do locado, correspondente ao dobro do valor da renda em vigor em 30 de Setembro de 2016, por cada mês decorrido entre esta data (30.10.2016) até ao momento da efectiva restituição do locado, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento de cada uma das prestações que compõem a indeminização, a liquidar ulteriormente e à qual deverá ser descontado o valor pago pela R. a título de renda desde 01 de Outubro de 2016.

c) Absolver a Ré dos restantes pedidos contra si deduzidos pelo Autor.

Custas pela R. – artigo 527.º do C.P.Civil».

c) A Ré recorre desta decisão, tendo concluído do seguinte modo:

«1ª) O objecto do presente recurso cinge-se a matéria de Direito, tendo a Ré concordado com a sentença recorrida no que toca à matéria de facto dada como provada;

2ª) dentro da matéria de Direito, falta-lhe interesse em agir para recorrer da sentença na sua totalidade, uma vez que não se sente com forças para permanecer no locado, atento o clima de grave hostilidade, que a obriga a fazer um uso muito limitado e constrangedor das partes comuns do locado que partilha com o Autor;

3ª) pretendendo entregar o locado ao Autor o mais rapidamente possível, não tem interesse em recorrer da sentença no que respeita à protecção ao inquilino idoso que o RAU veio determinar e que em nosso entender o  NRAU só retirou aos contratos cuja transição para o NRAU foi entretanto promovida pelos senhorios;

4ª) prende-se assim o objecto do presente recurso com a (in)validade e  (in)eficácia da denúncia feita pelo senhorio através da carta junto aos autos, por um lado; e a interpretação feita, do disposto nº 2 do artigo 1045º do C. Civil, por outro; ou seja, com a violação do nº 3 do artigo 1055º do C. Civil, por um lado; e com a violação do nº 2 do artigo 1045º do C. Civil por outro, que em nosso modesto entender ocorreu na sentença recorrida;

5ª) pretende a recorrente que este Venerando Tribunal se pronuncie sobre aquelas duas questões e nada mais;

6ª) com efeito, a Ré convenceu-se que o senhorio ao denunciar o contrato para 1 de Agosto de 2016, ou seja, para dois meses antes do termo da quinta renovação, o não denunciou válida e eficazmente, tendo o contrato continuado a renovar-se no dia 1 de Outubro de 2016;

7ª) como de resto o Tribunal a quo, fez constar da sentença recorrida, a Ré ficou com « a expectativa de permanecer no locado que vem ocupando há muitos anos » cfr. sentença recorrida a fls. 5 in fine;

8ª) ora tal expectativa não é compatível com o argumento de que a Ré ao abrigo do disposto do artigo 236º do C. Civil tenha ficado vinculada a uma declaração de vontade diferente da plasmada na carta;

9ª) a Ré ficou convencida de que a denúncia era inválida e ineficaz, por violação do disposto no nº 3 do artigo 1055º do C.Civil;

10ª) daí que em seu humilde entender se tenha convencido que o contrato se renovaria no dia 1 de Outubro de 2016, sem prejuízo da protecção especial aos inquilinos com idade superior a 64 anos, e a habitar por mais de trinta anos no mesmo locado;

11ª) em momento algum, se convenceu de que tinha de restituir o locado até 30 de Setembro de 2016, sob pena de se constituir em mora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1045º nºs 1 e 2 do C.Civil

12ª) pois ao ficar com a expectativa de permanecer no locado, não podia ter ficado com a expectativa de ter de o restituir sob pena de pagar a renda em dobro;

13ª) a sentença recorrida vem assim ferida da nulidade da contradição insanável dos fundamentos de Direito em que a decisão assentou, prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC;

14ª) pois como acima se referiu, tendo o Tribunal a quo, ficado convencido que a Ré tinha a expectativa de permanecer no locado, não podia ao mesmo tempo, considerar que esta tinha interpretado a carta como determinante da obrigação de restituir o locado em 30 de Setembro de 2016;

15ª) a Ré nunca considerou a denúncia válida e eficaz daí que tenha ficado convencida que o contrato se renovaria como efectivamente, se renovou em 1 de Outubro de 2016;

16ª) em momento algum representou que se constituiria em mora por não restituir o locado;

17ª) por tudo quanto se deixou alegado, deverá o contrato de arrendamento sub judice, considerar-se automaticamente renovado em 1 de Outubro de 2016, pelo período de cinco anos;

18º) e em consequência disso, ser a Ré absolvida do pedido de indemnização previsto no artigo 1045º do C.Civil;

19º) sem prescindir, e caso Vossas Excelências venham a entender que o contrato não se chegou a renovar, deve a indemnização pela mora na restituição do locado, considerar-se integralmente paga, com o pagamento atempado das rendas em singelo até à efectiva entrega do locado ao Autor;

20º) em virtude de o nº 2 do artigo 1045º do C. Civil se referir à mora no pagamento da indemnização prevista no nº1 e não à mora na restituição do locado;

21º) devendo manter-se a decisão recorrida no que respeita à absolvição da Ré do pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória;

22º) finalmente, a política proteccionista dos inquilinos com mais de 64 anos, e sobretudo dos que se mantêm a habitar o mesmo locado há mais 30 anos, vem de longe, e com a aprovação no mês em curso da proposta de alteração ao NRAU, integrada na chamada Nova Geração de Políticas da Habitação ( NGPH ), tem feito emergir expectativas legítimas aos inquilinos naquelas circunstâncias, que merecem uma tutela do Direito mais abrangente, que não se fique pelo simples texto dos artigos em vigor;

23º) na mesma linha, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 297/15 considerou inconstitucional e consequentemente desaplicou os preceitos dos artigos 26º, nº 4. alínea a) e 28º da Lei n.º 6/2006 na redacção que lhe foi dada pela Lei 31/12, quando o requisito da idade já se tivesse preenchido à data da entrada em vigor deste último diploma;

24ª) àquela mesma política, se referindo o Tribunal a quo na sentença recorrida ao mencionar que se perspectiva a repristinação do referido regime de protecção, atento o anúncio efectuado pelo Governo de Portugal no sentido de se encontrar em curso uma proposta de lei com tal finalidade; cfr.sentença recorrida a fls 8 in  fine:

25ª) também por tudo isso, se afigura excessivo condenar inquilinos com mais de 30 anos de duração do contrato e com idade superior a 65 anos, a pagar o dobro da renda por cada mês de permanência no locado enquanto aguardam que um Tribunal lhes reconheça essa protecção, quer venham a gozar dela ou não;

26ª) porque uma vez aprovado um regime proteccionista desta natureza por largos anos, antes de ser temporariamente revogado, e havendo vontade política de o repristinar, as expectativas criadas nos inquilinos que preencham aqueles dois requisitos, serão sempre legítimas à luz do princípio constitucional da igualdade de tratamento, que passa por corrigir as desigualdades; cf. artigo 13º e artigo 65º nº 3 da CRP e artigo 31º da Carta Social Europeia ( CSER ) e o art. 23.º, §2.º, a), que protege o direito dos mais velhos a terem uma existência independente, no ambiente que lhes seja familiar(...)

27ª) justificando tais expectativas, que não se sancionem inquilinos com mais de 65 anos e com mais de 30 anos de duração de contrato, pelo atraso na entrega do locado, quer por dificuldade em encontrar casa de renda similar dentro da mesma localidade, quer por permanecer à espera de uma decisão judicial sobre a validade e eficácia de denúncia arbitrária do senhorio;

28ª) para concluir, a aqui recorrente vem pedir, que perante a denúncia arbitrária e mal feita do senhorio, seja considerado o contrato de arrendamento renovado em 1 de Outubro de 2016, pelo que nada deve ao abrigo do disposto no artigo 1045.º do C.Civil;

29ª) sem prescindir, vem em último termo, para o caso de Vossas Excelências considerarem que o contrato não se renovou em 1 de Outubro de 2016, pedir que se considere paga a indemnização devida pelo atraso na restituição do locado, com o pagamento atempado das rendas em singelo até à entrega efectiva do locado;

30ª) por serem estas as soluções jurídicas que em nosso humilde entendimento melhor respondem às exigências do nosso Estado de Direito no caso concreto, tendo em conta que se trata de uma idosa a viver na mesma casa há mais de trinta anos, e que neste momento quer tanto como o senhorio, entregar o locado, sem porém ter tido intenção de se constituir em mora na restituição do mesmo, atenta a expectativa de nele poder permanecer; termina pedindo a sua absolvição do pagamento da quantia em que foi condenada, através da revogação da sentença recorrida, como é de inteira e elementar Justiça!».

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 - A primeira questão suscitada no recurso consiste na arguição da nulidade da sentença, prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por contradição insanável dos fundamentos de direito em que a decisão assentou, porquanto tendo o Tribunal a quo ficado convencido que a Ré tinha a expectativa de permanecer no locado, não podia ao mesmo tempo, considerar que esta tinha interpretado a carta como determinante da obrigação de restituir o locado em 30 de Setembro de 2016.

2 – A segunda questão consiste em verificar se a declaração de oposição à renovação do contrato para o termo do prazo, feita pelo Autor, foi válida, no sentido de ter correspondido ao exercício de um direito, entendendo a Recorrente que não, porquanto a Ré tinha idade superior a 64 anos e habitava o locado há mais de 30 anos.

3 – Em terceiro lugar, se se concluir pela validade da oposição à renovação do contrato, cumpre analisar a questão e saber se se a declaração de oposição à renovação do contrato feita pelo Autor foi em si mesmo inválida ou ineficaz, entendendo a recorrente que não, por violação do disposto no n.º 3 do artigo 1055º do Código Civil, pelo que o contrato se renovou no dia 1 de Outubro de 2016, porquanto assinalou como termo do contrato a data de 1 de agosto quando é certo que o termo do prazo era em 1 de outubro.

4 - A quarta questão consiste em verificar se é devida indemnização pela mora na restituição do locado, sustentando a Ré que não porquanto se deve considerar-se integralmente paga, com o pagamento atempado das rendas em singelo até à efetiva entrega do locado ao Autor, uma vez que o n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil se referir à mora no pagamento da indemnização prevista no n.º 1 e não à mora na restituição do locado e se tal pagamento em singelo se justifica também pelo facto da Ré ter idade superior a 64 anos e habitar o locado há mais de 30 anos.

III. Fundamentação

a) Nulidade da sentença

1 - A primeira questão suscitada no recurso consiste na arguição da nulidade da sentença, por contradição insanável dos fundamentos de direito em que a decisão assentou, prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto tendo o Tribunal a quo, ficado convencido que a Ré tinha a expectativa de permanecer no locado, não podia ao mesmo tempo, considerar que esta tinha interpretado a carta como determinante da obrigação de restituir o locado em 30 de Setembro de 2016.

Lendo a fundamentação da sentença pode concluir-se pela decisão constante do dispositivo sem necessidade de tomar conhecimento prévio da mesma, o que mostra que não existe qualquer contradição na sentença que a torne nula.

Improcede a arguição da nulidade.

a) Matéria de facto – Factos provados

1 – Através da Ap. n.º 10 de 1996 de 14-10-1996 encontra inscrito a favor do autor J (…) e C (…), casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, o prédio urbano composto de casa de habitação composta de loja ampla, R/C e 1.º andar com 7 divisões cada e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...)001 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (...) 0002.

2 - Por escrito particular intitulado de contrato de arrendamento celebrado entre o autor J (…), o qual assinou na qualidade de locador, e F (…) o qual assinou na qualidade de arrendatário, o primeiro declarou dar de arrendamento ao segundo, para sua habitação, o rés-do-chão direito do prédio urbano atrás descrito.

3 – Consta do acordo referido em 2. a seguinte cláusula: «O prazo é de 5 (cinco anos), a começar em 01 de Outubro de 1986 e a terminar no último dia do mês de Setembro de 1991, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas enquanto por qualquer das partes não houver despedida com antecipação legal».

4 – Como contrapartida as partes estipularam a renda anual de 192.000$00 a ser paga em duodécimos de 16.000$00 no 1.º dia do mês a que dissesse respeito, a qual seria paga em casa do senhorio ou do seu representante.

5 – F (…) faleceu no dia 08 de Julho de 2003 no estado de casado sob o regime de comunhão de adquiridos com a R. M (…) nascida a 12 de Janeiro de 1951, e com quem residia.

6 – A Ré permaneceu a residir no locado tendo as partes nesse momento alterado a renda para o montante anual de 1.184,00 €, a ser paga em duodécimos de 157,00€/mês.

7 – O Autor remeteu à Ré carta registada datada de 07 de agosto de 2015, com o seguinte teor:

«Na qualidade de senhorio prédio sito na Rua x (...) n. 000, em y (...) , venho por este meio comunicar a V.ª Ex.ª, no termos do artigo 1097.º do Código Civil, a minha intenção de não renovação automática do contrato de arrendamento habitacional com prazo certo, tendo por objecto o referido andar, pelo que o referido contrato cessará os seus efeitos a partir de 01 de agosto de 2016, respeitando o período de pré-aviso legal, data em que deverão entregar o locado livre de pessoas e bens, no mesmo estado em que o receberam, bem como proceder à entrega das respectivas chaves».

8 – A Ré não entregou o referido espaço e nele permanece a residir, continuando a pagar as rendas estipuladas.

b) Apreciação das restantes questões objeto do recurso

1 – Vejamos então se foi válida a declaração feita pelo Autor de oposição à renovação do contrato no termo do prazo.

A Ré recorrente sustenta que não, porquanto a Ré tinha idade superior a 64 anos e habitava o locado há mais de 30 anos.

Assiste razão à Ré recorrente, não pelas razões que invoca relativas à idade, pois estas relevam quando se trata de denúncia do contrato, mas o Autor exerceu o direito de oposição à renovação do contrato, não denunciou o contrato.

Mas certo é que o Autor não tinha o direito de se opor à renovação do contrato, pelas seguintes razões:

 (I) Cumpre começar por verificar se o contrato dos autos, celebrado 1986, está abrangido pelo artigo 1097.º do Código Civil.

Refere-se no n.º 1 deste artigo 1097.º do Código Civil que «O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato, mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência de mínima seguinte:…».

A resposta à questão colocada é negativa, porquanto a norma constante do n.º 4 do artigo 26.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, instituído pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, em cujo proémio se estabeleceu que «Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:…», impede tal aplicação.

Com efeito, as normas do contrato de arrendamento urbano anteriores ao denominado Regime do Arrendamento Urbano (RAU - Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) não previam a existência de contratos de arrendamento para habitação de duração limitada, isto é, que pudessem cessar, findo o prazo, mediante declaração de vontade nesse sentido de qualquer das partes.

 Tal modalidade contratual (contratos de duração limitada), foi prevista no artigo 98.º do RAU, podendo tais contratos ser livremente denunciados decorridos os prazos de vigência estabelecidos.

Os restantes contratos de arrendamento urbano para habitação, que por oposição aos contratos de duração limitada se poderão designar por contratos sem duração limitada, estavam protegidos quanto ao direito de denúncia por parte do senhorio, limitada esta aos casos previstos no artigo 69.º do RAU.

Ora, o contrato dos autos é um contrato que estabelece o seguinte:

«O prazo é de 5 (cinco anos), a começar em 01 de Outubro de 1986 e a terminar no último dia do mês de Setembro de 1991, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas enquanto por qualquer das partes não houver despedida com antecipação legal».

Como em 1986 ainda não existia a figura dos contratos de duração limitada, mais tarde previstos no artigo 98.º do RAU, como já se referiu, então cumpre concluir que estamos perante um contrato sem duração limitada, ou melhor, considerados como tal ([1]).

Por conseguinte, quando no proémio do n.º 4 do artigo 26.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, instituído pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, se estabelece que «Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:…», está a dizer-se que os contratos anteriores ao RAU são considerados, por esta norma, como contratos de duração indeterminada e estão abrangidos pelo Regime Transitório estabelecido no NRAU.

Vejamos agora este Regime Transitório para verificar o que é estabelecido quanto ao direito de denúncia do senhorio, que ajuda a esclarecer a matéria do recurso.

(II) O Regime Transitório do NRAU, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, estabelece no seu «CAPÍTULO II», sob a epígrafe «Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU (…)», no seu artigo 27.º, o seguinte:

«As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro».

E no artigo 28.º dispôs:

«Aos contratos a que se refere o presente capítulo aplica-se, com as devidas adaptações, o previsto no artigo 26».

A redação dada ao artigo 26.º, incluído no «Capítulo I», sob a epígrafe «Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro», foi, na parte que agora interessa, esta:

«1- Os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.

2 - (…). 3 - (…).

4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:

a) Continua a aplicar-se o artigo 107.º do RAU;

b) (…);

c) Não se aplica a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.

5 - (…) 6 - (…)».

Verifica-se que ao tempo da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, por força do seu artigo 28.º, que remetia (com as devidas adaptações) para o artigo 26.º, os «Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU…» beneficiavam da proteção dispensada pelo artigo 107.º do RAU ([2]) (al. a), do n.º 4, do artigo 26.º), ou seja:

O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º, não podia ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorresse alguma das seguintes circunstâncias:

a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços;

b) Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.

As alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º respeitavam às situações em que o senhorio carecia da casa para viver, ele ou descendente em 1.º grau, ou querer aí construir a sua residência e ainda às situações em que o senhorio pretendia ampliar o local para criar mais locais arrendáveis.

Resumindo, relativamente aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, onde se inclui o caso dos autos, a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, quanto ao direito de denúncia do senhorio, manteve-os protegidos pelo regime que já vigorava antes desta lei.

Posteriormente, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, restringiu a proteção, determinando no seu artigo 27.º o seguinte:

«As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro»

E no seu artigo 28.º determinou o seguinte:

«1- Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º

2 - Aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.

3 - (…).

4 - (…).

5 - Se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct., a invocação do disposto na alínea b) do artigo 1101.º do Código Civil obriga o senhorio, na falta de acordo entre as partes, a garantir o realojamento do arrendatário em condições análogas às que este já detinha, quer quanto ao local quer quanto ao valor da renda e encargos.

6 - (…)»

A Lei n.º 31/2012 deu nova redação ao artigo 26.º, que passou a ter esta redação:

«1 - Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro (…), passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.

2 - (…). 3. (…).

4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:

a) Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU;

b) (…);

c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct..

5 – (…). 6 - (Revogado.). 7 – (…)»

Verifica-se, face ao texto do artigo 28.º, na redação da Lei n.º 31/2012, que os arrendamentos anteriores ao RAU gozam da proteção dispensada na al. a) do n.º 4 do artigo 26.º, ou seja, «Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU», isto é, o direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º do RAU, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos o arrendatário tenha 65 ou mais anos de idade ([3]).

Além disso, nos termos do n.º 2 do artigo 28.º «Aos contratos referidos no número anterior [são os anteriores ao RAU] não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil», ou seja, não se permite que o senhorio possa denunciar o contrato de duração indeterminada «Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação».

Ou seja, o senhorio não tem direito a denunciar o contrato livremente, isto é, fora dos casos de necessidade para habitação, sua ou de descendente em 1.º grau, ou demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos, conferidos pelas alíneas a) e b) do artigo 1101.º do Código Civil.

Portanto, nos arrendamentos anteriores ao RAU, mesmo após a Lei n.º 31/2012, o senhorio não goza do direito de denúncia livre.

Como refere Maria Olinda Garcia, «…nestes arrendamentos habitacionais mais antigos o senhorio nunca goza do direito de denúncia livre, apenas poderá denunciar o contrato nas hipóteses (de denúncia motivada) previstas nas alíneas a) e b) do artigo 1101.º (com as limitações previstas no artigo 26.º, n.º 4 e no n.º 5 do artigo 28.º), bem como nas hipóteses específicas do artigo 33.º, mediante indemnização ao arrendatário» ([4]).

(III) Verifica-se através da análise acabada de fazer ao regime relativo ao direito de denúncia do senhorio, que os contratos anteriores ao RAU continuaram a ficar protegidos no NRAU.

Tal preocupação do legislador em preservar a vigência dos arrendamentos anteriores ao RAU, continuando a limitar drasticamente o exercício da denúncia livre por parte do senhorio, seria ineficaz na prática se, depois, o mesmo regime do NRAU permitisse que o senhorio se opusesse com êxito, nos termos previstos no artigo 1097.º do Código Civil, à renovação automática do contrato, pois facilmente faria cessar o contrato.

Ou seja, deixava-se entrar pela janela do artigo 1097.º do Código Civil a situação jurídica à qual se fechou a porta no n.º 4 do artigo 26.º e artigo 28.º do NRAU.

Resulta do exposto, que aos contratos de arrendamento anteriores ao RAU, por força do disposto no n.º 4 do artigo 26.º e no artigo 28.º do NRAU, não é aplicável o artigo 1097.º do Código Civil, que prevê o mecanismo da oposição à renovação do contrato no final do prazo por parte do senhorio ([5]).

Por conseguinte, o Autor agiu sem ter um direito a justificar a sua ação.

Procede, por conseguinte, o recurso, não propriamente devido ao facto da Ré recorrente ter à data do termo do contrato mais de 65 anos de idade, mas porque o Autor não tinha pura e simplesmente o direito que pretendeu exercer.

Diverge-se, por isso, da sentença recorrida, que se baseou na aplicação ao caso do regime do artigo 1097.º do Código Civil, argumentando que nos termos do n.º 1 do artigo 59.º «O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias» e que as disposições transitórias não excetuavam a da sua aplicação o regime da oposição do senhorio à renovação automática previsto no artigo 1097.º do Código Civil, o que não corresponde à realidade, como se viu

2 – As restantes questões ficam prejudicadas. Não tendo existido exercício de um direito, não existiu mora, nem há lugar a qualquer indemnização com este fundamento.

Cumpre, por isso, revogar a decisão na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor indemnização com vista ao ressarcimento dos danos causados pela não entrega atempada do locado, correspondente ao dobro do valor da renda em vigor em 30 de Setembro de 2016, por cada mês decorrido entre esta data (30.10.2016) até ao momento da efetiva restituição do locado, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento de cada uma das prestações que compõem a indeminização, a liquidar ulteriormente e à qual deverá ser descontado o valor pago pela R. a título de renda desde 01 de Outubro de 2016.

Mantém-se a decisão no que respeita à condenação da Ré a entregar o local arrendado porquanto a Ré não quis abranger no recurso esta parte da sentença, por querer sair do arrendado, pelas razões que invocou, pretendendo apenas libertar-se da condenação relativa à indemnização que foi condenada a pagar (conclusões 18.ª e 30.ª).

Considerando tudo o que fica exposto, justifica-se ainda que seja só o Autor a pagar as custas da ação e do recurso, porquanto a Ré tem razão em toda a linha e limita-se a abandonar a favor do Autor o direito que lhe assistia a continuar no local arrendado.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a sentença no que respeita à condenação constante da alínea «b)» onde se condena a Ré a indemnizar o Autor.

Mantém-se, no restante, a sentença recorrida.

Custas do recurso e da ação pelo Autor.


*

Coimbra, 28 de novembro de 2018

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo



[1] Esta designação não é exata, no que respeita à correspondência entre o sentido literal e a realidade, porque os contratos previam um prazo renovável automaticamente.

[2] Na redação do DL n.º 329-B/2000, de 22 de dezembro.

[3] Ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.

[4] Arrendamento Urbano Anotado (Regime substantivo e processual, alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012). Coimbra Editora, 2012, pág. 131.

[5] Neste sentido o acórdão do TRP de 23-2-2010 no processo n.º 74/08.6TBVNG (Vieira e Cunha): I- A aplicação no tempo do NRAU consta do respectivo art. 59.º n.º 1, segundo o qual ele se aplica “aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias”; estas normas constam dos art°s 26.º a 58.º NRAU. II - Da conjugação dos art°s 26.º, 27.º e 28.º dessa Lei resulta que o legislador pretendeu que aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais (assim como aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes do RAU), anteriores ao DL. n.º 257/95, de 30/9, não se aplique a regra da denúncia livre por parte do senhorio. III- Desta forma, o legislador manteve em vigor os antigos regimes, relativamente aos contratos celebrados à sua sombra. IV- As disposições transitórias acabam por funcionar como não tocando nos anteriores regimes do arrendamento urbano, em matérias como a denúncia ou a oposição à renovação do contrato».

No mesmo sentido Fernando de Gravato Fernandes, quando refere: «Conclui-se, assim – de acordo com o regime-regra expresso nos arts. 1099.º e segts. do CC, NRAU – , que os contratos de arrendamento antigos só podem cessar por denúncia (do arrendatário – art. 1100.º do CC, NRAU – ou do senhorio – art. 1101.º do CC, NRAU) e deixaram  de poder extinguir-se por oposição à renovação (que, recorde-se, só o inquilino podia fazer) – Cadernos de Direito Privado, n.º 33 (2011), pág. 60.