Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4143/18.6T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: CITAÇÃO
REGRAS A OBSERVAR
NATUREZA URGENTE DO PROCESSO
Data do Acordão: 09/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 227º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: I – Nos termos do art. 227º/2 do NCPC, “No acto de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia.”.

II - A expressão “… o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa… reporta-se exclusivamente à duração do prazo concedido ao citado para se defender em juízo (v.g. o de 30 dias fixado no art. 569º do NCPC, o de dez dias para o exercício do contraditório que decorre das disposições conjugadas dos arts. 365º, 366º e 293º/2 do NCPC, o de 20 dias fixado no art. 728º/1 do NCPC, o de 15 dias fixados nos art. 128º e 156º/1 do CPT).

III - Como facilmente se constata da simples análise das normas acabadas de enunciar os prazos legalmente fixados para a apresentação da defesa são fixos, não variando a duração dos mesmos em função da natureza urgente ou não dos processos ou da circunstância dos mesmos correrem ou não em férias judiciais.

IV - Tal expressão não comporta, pois e ainda que imperfeitamente expressa, a mínima alusão à natureza urgente ou não de uma determinada ação, nem à forma de contagem dos prazos processuais no que respeita à sua continuidade e/ou suspensão ou não no decurso das férias judiciais.

V - Assim sendo, sustentar-se que essa expressão comporta uma exigência de indicação de que se trata de processo de natureza urgente e de que, por isso, o prazo para a apresentação da defesa não se suspende em férias judiciais redunda na adopção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.

Decisão Texto Integral:




Autor: A...

Ré: V..., Lda

Relator: Jorge Manuel Loureiro

1ª adjunta: Paula Maria Roberto

2º adjunto: Ramalho Pinto


Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

Nos presentes autos de acção especial emergente de acidente de trabalho e em cumprimento do despacho de fls. 195, foi enviada carta de citação à Ré com o seguinte teor:

Fica citado para no prazo 15 dias, contestar, querendo, a presente acção, sob pena de se considerarem confessados os factos articulados pelo(a) Autor(a).

Deve, com a contestação, juntar os documentos e requerer quaisquer outras provas.

Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte.

Fica advertido de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial.

Juntam-se os duplicados legais.

Mais se refere em notas constantes de tal notificação que “As férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro; de domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 31 de Agosto.

Tal citação foi recebida pela ré em 18/12/2019, tendo o respectivo A/R sido assinado por L..., um dos gerentes da ré.

A ré veio a apresentar a contestação em 13/1/2020.

Na sequência de arguição da intempestividade da contestação feita pelo autor, o tribunal recorrido proferiu o despacho do qual consta, designadamente, o que seguidamente se transcreve: “Contudo, tal como refere a Ré, não pode a citação dirigida à Ré ter-se como correctamente efectuada.

Na verdade, o artº 227º, nº 2 do CPC, (normativo que estabelece os elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando) estabelece que “No acto da citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre em caso de revelia.”

Ora, no caso em apreço, pese embora no acto de citação conste o prazo de 15 dias, para contestar a acção e se indique o período das férias judiciais, o certo é que da mesma não consta que se trata de processo urgente e que tal prazo não se suspende nas férias judiciais.

Tal menção era essencial para a parte conhecer o prazo dentro do qual podia oferecer a defesa, sendo por isso um elemento a transmitir obrigatoriamente ao citando, tal como decorre do disposto no supra referido artº 227º, nº 2 do CPC.

Assim, terá que se considerar que na citação não foram observadas as formalidades prescritas na lei, o que determinaria a nulidade da citação em face do disposto no artº 191º, nº1 do CPC.

Contudo, nos termos do disposto no nº 3 de tal normativo “Se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado, a não ser que o Autor tenha feito citar novamente o réu nos termos regulares”.

No caso em apreço, consideramos que se está perante esta situação, porquanto ao não se informar a Ré de que o prazo não se suspendia nas férias judiciais, terá que se considerar que lhe foi indicado o prazo normal previsto no nº 1 do artº 138º, com suspensão durante o período de férias judiciais, sendo que da citação consta a menção de quando decorrem as férias judiciais.

Efectivamente, sendo que a citação efectuada na Ré, enquanto pessoa colectiva, não tem a mesma de saber, se o processo que contra si foi instaurado, corre termos com carácter de urgência e o que é que isso na realidade significa, designadamente quanto à contagem dos respectivos prazos. E, como resulta do nº 6 do artº 157º do CPC os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso, prejudicar as partes. (cfr. neste sentido Ac. da RE de 09-12-2009, no proc. 274/06.3TBCTX-B.E1, e Ac. da RL de 17-10-2007 no proc. 4801/2007-4, ambos in www.dgsi.pt).

Desta forma, e considerando que suspendendo-se o prazo nas férias judicias o seu termo ocorreria apenas em 15-01-2020, podendo o acto ser praticado ainda que com o pagamento de multa até ao dia 20-01-2020, em conformidade com o supra referido artº 191º, nº 3 do CPC terá que ser admitida a contestação apresentada no dia 13-01-2020, uma vez que foi apresentada no prazo indicado no acto da citação.

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, considera-se que a contestação da Ré foi tempestivamente apresentada, indeferindo-se por isso o seu desentranhamento requerido pelo Autor a fls. 211 e seguintes.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o autor, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Não foram apresentadas contra-alegações

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a questão a decidir: saber se no acto de citação devem ser fornecidas ao citado informações sobre a natureza urgente da acção e sobre a não suspensão em férias judiciais do prazo para apresentação da defesa, sendo nula a citação que não comporte tais informações.

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

Os factos provados com relevo para esta decisão são os que resultam do antecedente relatório.

B) De direito

Questão única: saber se no acto de citação devem ser fornecidas ao citado informações sobre a natureza urgente da acção e sobre a não suspensão em férias judiciais do prazo para apresentação da defesa, sendo nula a citação que não comporte tais informações.

Como se depreende do relatório deste acórdão, o despacho recorrido considerou nula a citação da ré pela circunstância de não ter sido fornecida no acto de citação a informação sobre a natureza urgente deste processo e sobre o decurso do prazo para contestar no período de férias judiciais.

Nos termos do art. 227º/2 do NCPC, “No acto de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia.”.

A decisão recorrida considerou que a exigência de indicação do prazo dentro do qual pode ser apresentada a defesa comporta a exigência de indicação de que se trata de processo de natureza urgente e que o decurso do prazo não se suspende em férias judiciais.

Argumenta a decisão recorrida no sentido de que “… no caso em apreço, pese embora no acto de citação conste o prazo de 15 dias, para contestar a acção e se indique o período das férias judiciais, o certo é que da mesma não consta que se trata de processo urgente e que tal prazo não se suspende nas férias judiciais.

Tal menção era essencial para a parte conhecer o prazo dentro do qual podia oferecer a defesa, sendo por isso um elemento a transmitir obrigatoriamente ao citando, tal como decorre do disposto no supra referido artº 227º, nº 2 do CPC.”.

Não acompanhamos a decisão recorrida.

A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” – art. 9º/1 do CC.

Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” – art. 9º/2 do CC.

Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” – art. 9º/3 do CC.

Resulta do art. 9º transcrito que na interpretação da lei devem considerar-se os elementos literal, histórico, sistemático e teleológico, tudo com vista a alcançar-se o resultado final pretendido, qual seja o de ser desvendado o espírito da lei (o denominado pensamento legislativo objectivo).

O ponto de partida do intérprete é constituído pelo elemento literal que, além disso, também constitui o limite da interpretação.

Com efeito, a letra da lei tem duas funções: a negativa ou de exclusão, que impõe o afastamento de qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); e a positiva ou de selecção que determina sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.

Logo por aqui se verifica que a interpretação sustentada pelo tribunal recorrido esbarra no elemento literal, em especial na sua função negativa.

Com efeito, por um lado, a expressão “… o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa…”, reporta-se exclusivamente à duração do prazo concedido ao citado para se defender em juízo (v.g. o de 30 dias fixado no art. 569º do NCPC, o de dez dias para o exercício do contraditório que decorre das disposições conjugadas dos arts. 365º, 366º e 293º/2 do NCPC, o de 20 dias fixado no art. 728º/1 do NCPC, o de 15 dias fixados nos art. 128º e 156º/1 do CPT).

Como facilmente se constata da simples análise das normas acabadas de enunciar os prazos legalmente fixados para a apresentação da defesa são fixos, não variando a duração dos mesmos em função da natureza urgente ou não dos processos ou da circunstância dos mesmos correrem ou não em férias judiciais.

Tal expressão não comporta, pois e ainda que imperfeitamente expressa, a mínima alusão à natureza urgente ou não de uma determinada acção, nem à forma de contagem dos prazos processuais no que respeita à sua continuidade e/ou suspensão ou não no decurso das férias judiciais.

Assim sendo, sustentar-se que essa expressão comporta uma exigência de indicação de que se trata de processo de natureza urgente e de que, por isso, o prazo para a apresentação da defesa não se suspende em férias judiciais redunda na adopção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.

Note-se, ademais, que a expressão utilizada no citado art. 227º/2 do NCPC é claramente distinta das expressões “… indicando-lhe o dia até ao qual pode oferecer a defesa…” que era utilizada no art. 242º/1 do CPC de 1961, ou do “termo do prazo até ao qual pode ser oferecida a defesa e que é marcado com a dilação …” que era utilizada no art. 244º/2 do mesmo CPC, as quais, a manterem-se na actualidade, exigiriam, essas sim, que se indicasse o último dia até ao qual a defesa poderia ser apresentada, o que obrigaria a ponderar a natureza urgente ou não do processo em questão e a suspensão ou não dos prazos em férias judiciais.

Ora, se o legislador processual civil actual, ao contrário do que sucedeu com o de 1961, não pretendeu que fosse indicado o último dia disponível para o citado apresentar a sua defesa e se bastou, literalmente, com a indicação do prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, o qual, como visto, tem duração fixa legalmente imposta, tal só pode significar que aquele legislador não impôs ao autor da citação a obrigação de ponderar e esclarecer o citado sobre a natureza urgente ou não do processo e sobre a suspensão ou não do prazo para apresentação da defesa em férias judiciais.

Finalmente, a história da lei (trabalhos preparatórios, exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, PL 521/2012, de 2012/11/22, e occasio legis - circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada), o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo sistemático, e o elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar (ratio legis)[1], não fornecem qualquer argumentação no sentido propugnado pela decisão recorrida que, aliás e deste ponto de vista, nada aduz.

Não se verifica, assim, o fundamento fáctico-jurídico em que o tribunal recorrido ancorou a nulidade da citação que declarou.

Não pode subsistir, por isso, a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que decida a questão da (in)tempestividade da contestação apresentada pela ré partindo do pressuposto de que a citação não padece de qualquer vício que determine a sua nulidade e que justifique a suspensão em férias judiciais do prazo para a ré contestar.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que decida a questão da (in)tempestividade da contestação apresentada pela ré partindo do pressuposto de que a citação não padece de qualquer vício que determine a sua nulidade e que justifique a suspensão em férias judiciais do prazo para a ré contestar.

Sem custas.

Coimbra, 11/9/2020.


Jorge Manuel Loureiro)

(Paula Maria Roberto)

(Ramalho Pinto)



***


[1] No caso, esclarecer o citado, tão-só, do prazo de que dispõe para apresentar a sua defesa, que não esclarecê-lo da forma como deve contar esse prazo e, nessa medida, de qual o último dia em que pode apresentar aquela defesa.