Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
16/11.1TBSCD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
OBRIGAÇÕES
GARANTIA
MUTUANTE
BENEFICIÁRIO
SEGURO
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 426 § 1º DO CÓDIGO COMERCIAL, 10 A 16 DO DL Nº 176/95, DE 26 DE JULHO E 37 DA LCS, ARTºS 1 B, G) E H) DO DL Nº 176/95, DE 26 DE JULHO
Sumário: I – O facto de o segurador se mostrar vinculado à obrigação de garantir, ao mutuante, a realização da prestação, não desvincula o mutuário segurado da obrigação garantida, nem impede o mutuante de accionar qualquer outra garantia que tenha sido prestada para assegurar a obrigação de restituição do capital mutuado e de pagar a remuneração convencionada.

II - Admitindo-se, porém, que nos casos em que o mutuante impõe ao mutuário a contracção de seguro, em que o primeiro figure como beneficiário, se deve entender que a vontade usual das partes será a de que o credor se pague primeiro à custa do segurador, deve exigir-se ao segurado a prova de que o segurador está efectivamente vinculado ao dever de prestar ao mutuante.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Banco P…, SA, promoveu, no Tribunal Judicial da Comarca de Santa Comba Dão, contra J… e cônjuge, M…, acção executiva para pagamento de quantia certa, para haver dos últimos a quantia de € 50.062,25.

Fundamentou esta pretensão executiva no facto de, por escritura pública de 5 de Maio de 2006, ter mutuado e entregue aos executados, para obras de beneficiação do prédio urbano sito na Rua …, destinado a habitação própria permanente, a quantia de € 50.000,00, amortizável em 240 prestações mensais, empréstimo em garantia do qual foi constituída hipoteca sobre aquele prédio, e de os mutuários terem liquidado apenas as prestações vencidas até 25 de Junho de 2009, pelo que encontra em dívida a quantia de € 45.209,79, acrescida de juros, à taxa de 1,538%, e da sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal, no valor de € 4.852,46.

Ambos os executados se opuseram, mas em incidente autónomo, à execução, pedindo que se declare inválido o documento apresentado como título executivo, por haver entidade legal e contratualmente, obrigada ao pagamento das prestações em dívida, e ipso facto, a sua absolvição da petição executiva.

 A executada M… invocou, como fundamento da oposição que considera que a dívida não lhe deverá ser imputada, dado que aquando da celebração da escritura, foi celebrado um contrato de seguro de doença com O…– Companhia de Seguros de Vida SA, imposto pelo documento complementar, que foram pagando as obrigações mensais decorrentes da escritura e para com a companhia de seguros, até ao dia em que tiveram conhecimento que padeciam de uma doença do foro oncológico, tendo sido diagnosticado ao marido um adenocarcinoma gástrico, que obrigou à realização de uma gastrectomia subtotal radial, estando totalmente impossibilitado de trabalhar desde, pelo menos, 5 de Julho de 2009; que quando teve sintomas da doença enviou, em 31 de Dezembro de 2008, uma carta registada com aviso de recepção à administração da exequente, que nunca obteve resposta; que lhe foi diagnosticado, no dia 12 de Abril de 2007, um carcinoma da mama esquerda, que levou, em 16 de Novembro de 2007, à mastectomia radical, ficando desde essa data até à actualidade totalmente incapaz de trabalhar e sempre de baixa, pelo que estamos perante um caso de invalidez total e permanente, tendo-lhe sido emitido, em 2 de Abril de 2008, uma incapacidade permanente global de 60%, que o exequente, apesar de ter conhecimento da sua doença e da do marido, não comunicou à companhia de seguros a impossibilidade do pagamento das prestações mensais por motivo de doença, sendo aquela entidade que está legalmente obrigada a pagar as prestações.

O exequente afirmou, em contestação, designadamente que os opoentes subscreveram um seguro multirriscos, para o imóvel, e o seguro de vida, obrigando-se a pagar os prémios; que a apólice garantia os riscos de morte ou invalidez total e permanente dos titulares do contrato de crédito à habitação associado; que não se mostravam preenchidos os requisitos que contratualmente se mostravam indispensáveis para o accionamento do seguro; e que a apólice caducou por falta de pagamento, pelos executados, dos prémios, o que oportunamente lhes foi comunicado.

Os processos de uma e outra oposição prosseguiram autonomamente, com abstenção, num e noutro, da selecção da matéria de facto.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – e decidiu-se, sem reclamação, a matéria de facto.

A sentença final – com fundamento que estando provado que na vigência do contrato de seguro a opoente detinha uma incapacidade de 60%, podendo concluir não estar verificado, no caso concreto, o risco coberto no caso concreto, e que sendo certo que, em 2010, a opoente já apresentava um grau de incapacidade de 80%, igualmente é verdade que em tal data a apólice do seguro de vida já havia caducado por falta de pagamento, pelo que também inexistia qualquer fundamento para o accionamento do seguro – julgou a oposição totalmente improcedente.

É esta sentença que a executada impugna através do recurso ordinário de apelação, tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

...

Na resposta, o exequente concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. A recorrente alegou, no artigo 37 da petição da oposição, que estamos perante um caso de invalidez total e permanente.

2.2. O enunciado referido em 2.1. obteve do Tribunal de que provém o recurso, na fase da audiência, esta resposta: Artigo 37.º - Provado apenas que em 2 de Abril de 2008, foi atribuído à opoente uma incapacidade global de 60% e, em 10 de Julho de 2012, foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente e global de 80%.

2.3. O Tribunal recorrido adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.2., esta motivação: (…) O facto dado como provado em 37º, nos termos aí expostos, decorre da análise articulada dos atestados médicos de incapacidade de multiuso, decorrente da junta médica a que a opoente foi sujeita, datado de 2 de Abril de 2008, o qual concluiu pela atribuição à mesma de uma incapacidade permanente global de 60% e, em 10 de Julho de 2012, o qual concluiu pela atribuição à mesma de uma incapacidade permanente global de 80%, conforme consta de fls. 143 dos autos. Não obstante este último facto não surgir alegada – no que concerne ao teor e conclusão do último certificado de incapacidade junto aos autos – o mesmo é considerado por este tribunal à luz do princípio da aquisição processual, por decorrente do elemento documental junto aos autos, cujo teor não foi infirmado, nos termos do disposto no artigo 264.º nº 3 e 659º., n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, elemento este de conhecimento superveniente.

2.4. O Tribunal de que provém o recurso julgou provados, no seu conjunto, os factos seguintes:

1. Aquando da celebração da escritura junta com o requerimento executivo no autos principais – contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre os opoentes e a sociedade oponida em 5 de Maio de 2006, no Cartório Notarial de Carregal do Sal tendo a sociedade oponida declarado conceder aos opoentes um empréstimo no montante de cinquenta mil euros, que os mesmos aceitaram e se confessaram devedores, tendo constituído hipoteca para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e respectivos juros sobre o prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de Carregal do Sal sob o n.º … - foi celebrado um contrato de doença imposto nos termos do documento complementar assinado aquando da aludida escritura, cujas cláusulas 10.º e 11.º prescrevem que:

Para efeitos de cobertura complementar considera-se b) invalidez total e permanente por acidente – a pessoa segura encontra-se na situação de invalidez total e permanente por acidente se, em consequência do acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer a actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria do seu estado de saúde de acordo com os conhecimento médicos actuais (…) devendo sempre e em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%.

Por seu turno o artigo 2.º sob a epígrafe “Objecto da Cobertura” prevê que “pelo presente contrato a seguradora garante, em complemento das garantias da cobertura principal, o pagamento do capital seguro, definido nas condições particulares ou certificado individual da apólice, em caso de invalidez total e permanente da pessoa segura, em consequência de acidente ocorrido durante a vigência da cobertura.”

2. A opoente celebrou o contrato de seguro, com conhecimento directo da exequente, com a companhia de seguros “O… – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A”, com sede na …, no qual o banco ficou como beneficiário.

3. A opoente e o marido J… foram pagando pontualmente as suas obrigações mensais decorrentes da escritura de mútuo, bem como para com a companhia de seguros, até ao ano de 2009 momento em que a opoente e o marido da opoente enfrentavam diagnóstico de doença do foro oncológico.

4. Tendo sido diagnosticado ao marido um cancro denominado adenocarcionoma gástrico, pelo IPO de Coimbra, o qual obrigou à realização de uma gastrectomia sub-total radial, ficando o mesmo em dieta fraccionada e impedido de trabalhar.

5. O marido da opoente esteve internado no IPO entre 5 de Julho de 2009 e 15 de Julho de 2009 para realização de intervenção cirúrgica.

6. Continuou em observação a partir dessa data, bem como com a aludida dieta rigorosa.

7. Após a análise da amostra retirada na intervenção cirúrgica a que foi sujeito, em 6 de Julho de 2009, o estudo anatomo-patológico revelou um carcinoma gástrico do tipo misto da classificação respectiva.

8. Em 24 de Setembro de 2009 foram diagnosticados 15 gânglios linfáticos isolados ao marido da opoente, que andou em controlo clínico desde essa data.

9. Desde 5 de Julho de 2009 até 3 de Maio de 2010, o marido da opoente encontrou-se impossibilitado de trabalhar, tendo-lhe sido emitidos certificados de incapacidade total para o trabalho, não se podendo ausentar do domicílio.

10. Em 31 de Dezembro de 2008 a opoente enviou, em conjunto com o seu marido, uma carta registada com aviso de recepção dirigida à exequente, com o teor constante de fls. 26 e 27 que se dá aqui por integralmente reproduzido.

11. A doença da opoente começou no ano de 2007, altura em que ficou de baixa a partir de 14 de Junho de 2007, ficando totalmente incapacitada para o trabalho.

12. O diagnóstico foi de carcinoma da mama esquerda, efectuado em 12 de Abril de 2007, que levou à mastectomia radical modificada em 16 de Novembro de 2007, conforme relatório clínico de 23 de Abril de 2009.

13. A opoente permaneceu de baixa, incapacitada de trabalhar desde 14 de Junho de 2007 até 29 de Dezembro de 2010, tendo-lhe sido concedida, em 23 de Novembro de 2010, a reforma por invalidez.

14. Em 2 de Abril de 2008, foi-lhe emitido um atestado médico de incapacidade multiuso pela Sub-região de saúde, que atesta uma incapacidade permanente global de 60%.

15. Em Agosto de 2010 foi-lhe diagnosticada uma metastização óssea, conforme relatório clínico de 20 de Outubro de 2010.

16. Entretanto surge a doença do marido e deixa de haver rendimento familiar suficiente para pagar a prestação bancária e demais encargos, inclusive o prémio de seguro.

17. A sociedade exequente não comunicou ou participou à seguradora O… a doença dos opoentes.

18. Em 2 de Abril de 2008 foi atribuído à opoente uma incapacidade global de 60% e, em 10 de Julho de 2012, foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente e global de 80%.

19. Tendo em vista o accionamento do seguro referido em 1. os opoentes dirigiram-se à sucursal do Banco manifestando essa mesma intenção, tendo-lhes sido transmitido pelos funcionários do Banco as informações sobre os elementos e condições necessários e indispensáveis ao accionamento do seguro.

20. Os executados foram devidamente alertados de que não deveriam deixar de efectuar o pagamento dos prémios do respectivo seguro, sob pena de este poder vir a ser anulado por falta de pagamento.

21. Apesar de advertidos, os executados deixaram de efectuar o pagamento dos prémios do respectivo seguro de vida, pelo que a apólice caducou por falta de pagamento.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Dentro do objecto do processo e com observância dos casos julgados formados na acção, o âmbito do recurso delimita-se objectivamente pela parte dispositiva da decisão que for desfavorável ao recorrente, âmbito que pode ainda ser restringido pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição do recurso ou nas conclusões da alegação (artºs 684 nº 2, 1ª parte, e nº 3 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação de ambas as partes, as questões concretas controversas colocadas à atenção desta Relação são as de saber se:

a) O tribunal de que provém o recurso incorreu, no julgamento da questão de facto, por equívoco na valoração das provas, num error in iudicando;

b) Se reponderado o julgamento da matéria de facto, no segmento e que foi objecto de impugnação, a oposição à execução deduzida pela recorrente deve julgar-se procedente.

A resolução destes problemas vincula ao exame, ainda que leve, dos parâmetros a que obedece o controlo, por esta Relação, da decisão da matéria de facto da 1ª instância, e do conteúdo do contrato de seguro alegado como fundamento da oposição.

3.2. Impugnação da decisão da matéria de facto.

                3.2.1. Parâmetros do controlo, por esta Relação, da decisão de facto da 1ª instância.

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1, a) e b), e 2 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[1]. O recurso ordinário de apelação não perde, mesmo neste caso, a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Depois, essa reponderação tem por finalidade e é actuada sob o signo dos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática, e não uma verdade absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 655 nº 1 do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de argumento capaz de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[2];
f) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta

g) O controlo pela Relação da decisão da matéria de facto não é actuado por imediação, i.e., através de numa percepção própria do material que lhe serve de base, mas através da audição de um registo sonoro ou da leitura, fria e inexpressiva, de transcrições, que torna indisponíveis todos os relevantíssimos momentos não verbais da comunicação.

Além disso, de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC).

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação.

3.2.2. Reponderação do julgamento da matéria de facto da 1ª instância.

                A leitura dos articulados das partes e da sentença impugnada inculca, sobejamente, que a controvérsia de facto verdadeiramente relevante gravita em torno deste facto capital: o grau de incapacidade ou desvalorização de que a recorrente, por virtude da doença grave que vitimou, era portadora durante a vigência do contrato de seguro. E foi por se ter provado que, na pendência do contrato de seguro, a apelante tinha uma incapacidade de 60%, inferior à exigida por aquele contrato - e inexistir, portanto, qualquer fundamente para o accionamento do seguro – que a sentença impugnada concluiu pela improcedência da oposição.

A questão concreta controversa conspícua objecto do processo, segundo a única solução plausível da questão de direito - que consiste em saber se a recorrente está desvinculado do dever de prestar ao exequente, cabendo tal dever de prestar ao segurador – resume-se, pois, a este facto: se se concretizou, relativamente à recorrente, o risco que se encontra coberto pelo contrato de seguro, se se verificou, no tocante à apelante, antes do eclipse do contrato de seguro, o evento aleatório convencionado, que desencadeia o accionamento da cobertura de risco nele previsto.

Sendo esse o único facto verdadeiramente relevante – segundo o único enquadramento jurídico possível do objecto da oposição – então não há que reponderar, por falta de utilidade, a exactidão do julgamento de quaisquer outros pontos de facto.

No ver da recorrente deve julgar-se provado que durante a vigência do contrato de seguro já era portadora da incapacidade de 80%, já que esta retroage a Abril de 2007.

E que provas é que, de harmonia com a alegação da recorrente, inculcam a veracidade desse facto e o correspondente error in iudicando do decisor da 1ª instância? Duas provas: a prova testemunhal, representado pelo depoimento do cônjuge e co-executado, J…, e de A…, funcionária do exequente, na sucursal de …, nos anos de 2008 e 2009; a prova documental, consubstanciada no atestado médico de incapacidade multiuso emitido pelo presidente da junta médica da ARS Centro, ACES, Dão, Lafões, incluso a fls. 143 que a recorrente, escusadamente, voltou a juntar com a sua alegação.

Não é preciso perder muitas palavras para mostrar que para o problema da prova do grau de incapacidade de que a opoente era portadora num dado momento, os depoimentos das apontadas testemunhas se devem ter por inconclusivos e mesmo por imprestáveis: por força da especificidade ou densidade técnica do facto cuja exactidão do julgamento se controverte – que releva eminentemente da ciência médica – é bem de ver que a prova adequada para a sua demonstração é, decerto, a prova pericial – que no caso, não foi produzida – ou a prova documental, desde que, evidentemente, o documento tenha sido produzido por entidade com reconhecida competência no domínio considerado.

De resto, quanto ao facto do grau de incapacidade de que a recorrente era portadora antes da cessação do contrato de seguro, o depoimento da testemunha A… em nada favorece o seu ponto de vista, dado que – a perguntas do Exmo. Advogado da apelada, aquela foi terminante em afirmar que lhe foi apresentado – pelo executado – o atestado de incapacidade de 60%, o que não permitia accionar o seguro, e que lhe disse mesmo, a questão, para ver se conseguia junto da junta médica, aumentar o grau de incapacidade para poder accionar o seguro e ter o problema resolvido, mas que isso implicava obviamente manter o seguro activo. E a instâncias do Exmo. Advogado da recorrente, a testemunha reiterou que o atestado dizia que tinha uma incapacidade de 60%. Já quanto ao depoimento do co-executado – e abstraindo mesmo do notório interesse no desfecho da causa, que vincula, naturalmente, a uma apreciação deveras prudente da sua força persuasiva – em lado nenhum é sequer referido o grau de incapacidade da recorrente, tendo-se limitado a narrar a doença grave que atingiu ambos os executados e as diligências que levou a cabo junto do exequente.

Resta, portanto, a prova disponibilizada pelo atestado médico de incapacidade multiuso emitido pelo presidente da junta médica da ARS Centro, ACES, Dão, Lafões, que, aliás, foi a prova que, como decorre da motivação do julgamento de facto, exerceu no espírito da Sra. Juíza uma influência decisiva. Neste documento, o presidente da junta médica atesta que de acordo com a TNI, Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei nº 352/2207, de 23 de Outubro, a recorrente é portadora, em 10 de Julho de 2012, de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 80%, susceptível de reavaliação futura, devendo ser reavaliada no ano de 2016, que aquela é portadora de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados no serviço lhe conferiram em 2 de Abril de 2008, pela TNI aprovada pelo Decreto-Lei nº 341/93, de 30 de Setembro, o grau de incapacidade de 60%, e que a incapacidade agora reavaliada teve início em Abril de 2007.

                A recorrente acha que a incapacidade de 80% retroage a Abril de 2007. Mas é ostensivo que o atestado não consente, de todo, essa leitura. Patentemente, o que se atesta é que a incapacidade teve início em Abril de 2007 e não que, nesta data a recorrente, fosse já portadora do grau de incapacidade de 80%. Que a recorrente não tinha, naquela data um tal grau de incapacidade, resulta, clara cristalinamente, do facto de se asseverar no atestado que em Abril de 2008 a percentagem de incapacidade era de apenas 60% - como aliás se atesta no atestado médico de incapacidade multiuso produzido no dia 2 e Abril de 2008 pelo presidente da junta médica da Subregião de Saúde de Viseu, oferecido pela recorrente logo com o articulado de petição inicial da oposição.

                O que estes dois documentos inculcam indelevelmente é que a incapacidade de que a recorrente é portadora não é uma realidade estática, mas dinâmica, susceptível, portanto, de variação ao longo do tempo – o que impõe a sua reavaliação periódica – e que tem evoluído no sentido do agravamento.

                Portanto, em face destes elementos de convicção e esclarecimento, ao julgar provado que em 2 de Abril de 2008, foi atribuído à opoente uma incapacidade global de 60% e, em 10 de Julho de 2012, uma incapacidade permanente e global de 80%, tem-se por certo que o decisor de facto da 1ª instância não incorreu no error in iudicando que a recorrente lhe assaca, por equívoco na valoração ou apreciação da prova. Não há, pois, razão para modificar o julgamento deste ponto de facto.

Como já se fez notar, esta Relação pode reapreciar a decisão da matéria de facto e, consequentemente, alterar e substituir a decisão corresponde da 1ª instância, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa que não possa ser contrariada por quaisquer outras provas (artº 712 nº 1 b) do CPC de 1961).

Estará nessas condições, o documento ou a declaração confessória que façam prova plena do facto documentado ou confessado que o decisor da 1ª instância tenha desconsiderado (artºs 371 nº 1, 376 nº 1, 377, 352 e 358 nº 1 do Código Civil).  

O uso pela Relação dos poderes do controlo sobre a decisão da matéria de facto do tribunal recorrido não oferece, neste caso, particular dificuldade, dado que o tribunal ad quem se encontra numa posição rigorosamente idêntica à do tribunal recorrido: a forma de obter a decisão deste e daquele tribunal é exactamente a mesma. A Relação, tal como o tribunal da 1ª instância, tem um contacto imediato com aquela prova, o que lhe permite ter uma percepção directa ou uma relação própria com esse meio de prova, subtraído de, resto, à livre convicção do tribunal.

O que é essencial que se trate de documento suficientemente decisivo para impor decisão sobre o facto contrária à do tribunal da 1ª instância.

Nestas condições, deve julgar-se assente, desde logo, que a recorrente não satisfez ao exequente as quantias que este lhe exige na acção executiva. Realmente, o exequente alegou, no requerimento executivo, um tal facto e, na oposição, a executada não o impugnou, antes o aceitou como verdadeiro, limitando-se a sustentar que a dívida lhe não deve ser imputada. Ergo, tal facto deve considera-se admitido por acordo e, como tal plenamente provado (artºs 490 nº 2 do CPC de 1961 e 574 nº 2 do NCPC).

A recorrente alegou, na petição da oposição, que celebrou com O…- Companhia Portuguesa de Seguros de Vida SA um contrato de seguro de doença, tendo a exequente alegado, na contestação, que os executados celebraram, com aquele segurador, um seguro de vida. Na sentença impugnada declara-se – no ponto 1 da fundamentação de facto – que foi celebrado um contrato de doença (sic) e que o objecto da cobertura é a invalidez total e permanente da pessoa segura, em consequência de acidente ocorrido, durante a vigência da cobertura.

Abstraindo do notório lapso de escrita da sentença impugnada – e da inanidade da discussão relativa à integração numa cobertura contratual por acidente do segurado, da doença desse mesmo segurado – interessa, evidentemente, à economia do recurso, determinar com precisão qual o risco que se encontra coberto pelo apontado contrato de seguro, qual é o universo dos factos possíveis previstos nesse contrato, cuja verificação determina a realização da prestação por parte do segurador.

Essa determinação pode ser feita através do exame do mole ou da amálgama de documentos, representados pelos certificados e apólices de todos os contratos de seguro de que os executados foram titulares - inclusos a fls. 123 e ss, que o segurador O… – Companhia de Seguros de Vida SA – juntou ao processo, por requisição do tribunal - e que não foram objecto de qualquer impugnação.

Vê-se do certificado nº …, a que corresponde a apólice nº …, com início em 5 de Maio de 2006 – que foi anulada por falta de pagamento – epigrafado Seguro Temporário, Cobertura Principal, Ramo Vida -Grupo, Condições Gerais, O…, e do Seguro Temporário, Ramo Vida – Grupo, Condições Especiais, Cobertura Complementar – Invalidez Total e Permanente por acidente, e do Seguro Temporário, Cobertura Complementar – Invalidez Absoluta e Definitiva, Ramo Vida – Grupo, condições especiais, O…, que entre os executados e a O… – Companhia Portuguesa de Seguros SA foi concluído um contrato de seguro de vida e multirriscos, associado ao crédito habitação - em que aqueles e o exequente figuram como segurados e como tomador e beneficiário, respectivamente - e que a primeira garante o pagamento do capital seguro, ao exequente:

a) Em caso de acidente - considerando-se como tal todo o acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido à acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origina lesões corporais a invalidez total e permanente em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de incapacidades, ser superior a 66,6%, que para efeitos desta cobertura é considerada como sendo igual a 100% (artº 1, a) e b), 2º das condições especiais da cobertura complementar – invalidez total e permanente por acidente):

 b) Em caso de invalidez, absoluta e definitiva, da pessoa segura, em consequência de doença ou de acidente manifestado durante a vigência da cobertura, considerando-se que a pessoa segura se encontra na situação de invalidez absoluta se, em consequência de doença ou acidente, estiver totalmente incapaz de exercer qualquer profissão, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis; esta situação será considerada como invalidez absoluta e definitiva se a pessoa segura necessitar de recorrer de modo contínuo à assistência de uma terceira pessoa para efectuar actos normais da vida diária, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde com os conhecimentos médicos actuais (artº 1 d) da condições especiais da cobertura complementar – invalidez absoluta e definitiva, ramo vida-grupo).

Quer dizer: deve julgar-se assente – por força da apontada prova - que a cobertura do seguro alegado compreende a invalidez, total e permanente dos executados, por acidente e a invalidez absoluta e definitiva, dos executados, que seja consequência, tanto de acidente como de doença.

Porém, a amarga verdade é que, mesmo com esta modificação da decisão da matéria de facto, a oposição à execução – e o recurso – se devem ter por improcedentes.

Por uma pluralidade de razões, de resto.

3.3. Concretização.

A acção executiva, que visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado, tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (artºs 2, 4 nº 3 e 45 nº 1 do CPC de 1961, 2 e 10 nºs 1, 4 e 5 do NCPC).

A exequibilidade extrínseca da pretensão é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo, i.e., num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artº 45 nº 1 do CPC de 1961 e 10 nºs 4 e 5 do NCPC).

O título executivo cumpre, no processo executivo, uma função de legitimação: ele determina as pessoas com legitimidade processual para a acção executiva e, salvo oposição do executado, ou vício de conhecimento oficioso, é suficiente para iniciar e efectivar a execução.

O título executivo é o documento da qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização da correspondente pretensão através de uma acção executiva. Este título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação[3].

O título executivo exerce, assim, uma função constitutiva – dado que atribui exequibilidade a uma pretensão, permitindo que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal – uma função probatória – o título executivo é um documento e a sua eficácia probatória é aquela que corresponde ao respectivo documento - e uma função delimitadora: é por ele que se determinam o fim e os limites, subjectivos e objectivos, da acção executiva (artºs 45 nº 1 do CPC de 1961 e 10 nºs 4 e 5 do NCPC).

A acção executiva visa a realização coactiva de uma prestação ou de um seu equivalente pecuniário. A exequibilidade da pretensão, na qual se contém a faculdade de exigir a prestação, e, portanto, a possibilidade de realização coactiva desta prestação, deve resultar do título.

O título deve, portanto, incorporar o direito de execução, quer dizer o direito do credor de obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação.

Para que possa ser reconhecido valor executivo a um documento é necessário que contenha, ao menos implicitamente, a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação e o correspondente dever de cumprimento. Para que possa ser usado como título executivo o documento deve incorporar o direito a uma prestação; quando isso não ocorre, nada há a prestar por um sujeito passivo e, por isso, nada há a executar.

Nem sempre se justifica exigir a proposição de uma acção condenatória como meio de obter um título executivo. Se a obrigação se encontra titulada por um documento escrito, pode inferir-se, com elevado grau de probabilidade, a sua constituição. Numa tal eventualidade, justifica-se que se dispense a acção declarativa e se permita ao credor, utilizando esse documento como título executivo, instaure directamente a acção executiva.

Sempre que documento que serve de suporte ao accionamento executivo não incorpora a faculdade de exigir o cumprimento de uma prestação, o título correspondente é extrinsecamente inexequível.

Não é esse, decerto, o caso do recurso.

O título que serve de suporte à execução é um documento autêntico – i.e., um documento exarado, no caso, por um notário - que importa a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação pecuniária (artºs 362 nº 2 do Código Civil, 51 nº 2 do Código do Notariado, 46 b) do CPC de 1961 e 703 b) do NCPC).

Não vem oferecida qualquer dúvida, por mais leve que seja, que a escritura pública outorgada pelo exequente e pelos executados, documenta a celebração entre aquele e estes, de um contrato de mútuo oneroso (artº 1142 do Código Civil)[4]. Desde que, de harmonia com a alegação do apelado, este entregou aos réus coisas fungíveis – uma dada quantidade de espécies monetárias, rectior, dinheiro – ficando os últimos adstritos ao dever de as restituir, é indiscutível que concluíram entre si um contrato de mútuo.

Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.

E é precisamente essa obrigação pecuniária de dare, ou melhor, o dever de prestar que o exequente pretende ver realizado coactivamente. O objecto da execução é uma pretensão e a correspondente causa debendi, que constitui a causa de pedir dessa acção. No caso, a causa de pedir do pedido de realização coactiva da prestação correspondente à quantia mutuada não restituída é o próprio fundamento deste dever de restituição, i.e., o incumprimento do contrato de mútuo.

E em face da matéria de facto provada a obrigação de restituição da quantia mutuada e de pagamento da remuneração acordada que vincula a recorrente não se mostra satisfeita desde Junho de 2009.

O título em que se funda à execução é, portanto, extrinsecamente exequível dado que dela resulta, designadamente para a recorrente, um dever de prestar, um dever de cumprimento de uma obrigação pecuniária.

Não se suscitando qualquer dúvida quanto à exequibilidade extrínseca do título, segue-se, naturalmente, que o fundamento de oposição invocado pela opoente tem, necessariamente, de ser reconduzido, ao problema da inexequibilidade intrínseca da obrigação nele incorporada.

A inexequibilidade – extrínseca – do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica: a inexequibilidade – intrínseca - da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar (artºs 814 a) e g), 1ª parte do CPC de 1961 e 729 a) e g) do NCPC).

O fundamento em que a executada alicerça a oposição é este: não estou vinculada ao dever de cumprir dada a existência de um contrato de seguro que garante o cumprimento da obrigação de restituição da quantia mutuada, recaindo sobre o segurador, por se ter verificado o sinistro, esse dever de prestação.

Apesar de nem a opoente nem a sentença apelada caracterizarem o exacto fundamento da oposição, esse fundamento deve, realmente, reconduzir-se à inexequibilidade intrínseca da pretensão incorporada no título, decorrendo essa inexequibilidade desta excepção peremptória: a vinculação do segurador à realização da prestação cuja realização coactiva é pedida, na acção executiva, pelo exequente.

Note-se que do ponto de vista da opoente o facto que determina a exequibilidade da obrigação e justifica a procedência da oposição não é a realização efectiva pelo segurador da prestação – mas a simples vinculação do segurador à realização desta prestação.

O cumprimento da obrigação reconduz-se a esta proposição simples: a realização da prestação devida. Ontológica e analiticamente, o cumprimento da obrigação traduz-se na concretização do comportamento a que o credor tem direito, no acatamento pelo devedor, da norma de obrigação que o adstringia.

O cumprimento – a prestação como conduta devida - é o fim último da obrigação; este fundamento final orienta todas as normas destinadas a instituir e proteger a posição do credor.

No caso, o facto que, na perspectiva do executado, perime a obrigação não é o cumprimento – mas a simples adstrição de terceiro – o segurador - à realização da prestação objecto da execução.

Há, portanto, que convocar para a discussão o contrato de seguro[5].

Apesar da segurança que disponibiliza o património do devedor – e os diversos instrumentos ordenados para proteger preventivamente o direito de crédito em função da evolução desse património – a verdade é que essa massa de bens pode não ser – ou pode deixar de ser – tranquilizadora para o credor. E pode sê-lo objectivamente – mas o credor não confiar no devedor ou temer uma crise patrimonial deste.

Para proteger e garantir a satisfação do seu crédito, o credor pode recorrer, designadamente, a soluções externas ao vínculo obrigacional e, que, portanto, lhe disponibilizam uma tutela mais forte do que a que é oferecida pelo património do devedor. Não raro, a constituição pelo devedor, sobre bem integrado no seu património, não é considerada suficiente pelo credor que, mesmo nesse caso, exige do devedor uma solução externa que lhe disponibilize um meio ágil de satisfaça do seu crédito, para além do património deste, que constitui a garantia geral, e, portanto, que esconjure o perigo ou lhe diminua o risco do não cumprimento do devedor ou de não conseguir, à custa do património deste, a realização coactiva, especifica ou por equivalente, da prestação. Esta atitude defensiva do credor cria uma garantia, através da qual pretende tornar efectiva a satisfação do seu crédito, aumentar a probabilidade da efectiva realização da prestação correspondente.

Esse resultado pode ser conseguido, por exemplo, através da adjunção de um novo devedor que possa responder pelo devedor primitivo pelo cumprimento da obrigação ou pelas consequências do seu não cumprimento. Ainda que a garantia disponibilizada pelo novo devedor seja meramente pessoal, ocorre um alargamento da massa de bens responsáveis e, correspondentemente, um reforça quantitativo da probabilidade de satisfação do crédito. É claro que o valor económico da garantia, quando esta seja meramente pessoal, está na dependência directa da capacidade de cumprimento do terceiro, dador da garantia. Isto explica que seja comum que o credor exija que esse terceiro goze de reconhecida solvabilidade económica.

Seja a garantia meramente pessoal ou real, sempre que ela provenha de terceiro, o credor passa a beneficiar de uma posição jurídica adicional, de um novo meio orientado para a satisfação do seu crédito. A garantia não é, porém, um meio de satisfação do crédito, dado que, evidentemente, a sua constituição não envolve a satisfação do crédito[6].

Esta situação dá, ou pode dar lugar, muitas vezes, a situações de sobregarantia ou de sobrecobertura, portanto, de desproporção, desrazoável ou injustificada entre o valor do crédito garantido e o valor dos bens ou dos patrimónios dados em garantia.

Assim, por exemplo, no tocante à concessão de crédito para aquisição ou realização de obras em casa própria, a lei determina que o empréstimo será garantido por hipoteca da habitação adquirida, construída ou objecto das obras financiadas, incluindo o terreno (artº 23 nº 1 do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro). Mas logo esclarece que em reforço daquela garantia real, poderá ser constituído seguro de vida, do mutuário e do cônjuge de valor não inferior ao montante do empréstimo ou outras garantias consideradas adequadas ao risco do empréstimo pela instituição de crédito mutuante (artº 23 nº 2 do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro).

Neste contexto legislativo, não é de estranhar a sistemática prática bancária de conceder crédito bancário para compra de habitação própria – e mesmo para a aquisição de bens de consumo – subordinada à exigência de contracção de um seguro de vida do mutuário. Para explicar esta prática generalizada não será decerto estultícia fazer notar o facto de o banco e o segurador pertencerem ao mesmo grupo ou conglomerado financeiro - o que faz criar a suspeita de que muitas vezes a concessão de crédito é mero pretexto para inculcar outros produtos, designadamente, o seguro.

Diz-se contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro, a que assume esse risco e percebe a remuneração – prémio – diz-se segurador; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida é o segurado – que pode ou não coincidir com o tomador do seguro (artºs 426 e 427 do Código Comercial)[7].

Enquanto o segurador e o tomador do seguro assumem, por definição, a posição de partes num contrato de seguro, outras pessoas podem ocupar a posição de parte ou de terceiro nesse mesmo contrato. Entre estas avulta, evidentemente, a figura do segurado – o sujeito que se situa dentro da esfera de protecção directa e não meramente reflexa do seguro, de quem pode afirmar-se que está coberto pelo seguro. O segurado é, portanto, aquele por conta de quem o tomador celebra o seguro. Nos casos subjectivamente mais simples, o segurado será o próprio tomador do seguro, o tomador-segurado; nos demais casos, estar-se-á face a um ou mais terceiros-segurados. Numa palavra: segurado não é quem contrata o seguro, mas sim quem por ele fica coberto.

O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. O universo de factos possíveis, previstos no contrato de seguro, cuja verificação determinará a realização da prestação por parte do segurador, representa a cobertura-objecto do contrato; o estado de vinculação do segurador, durante o período convencionado no contrato, conducente à constituição de uma obrigação da prestar, em caso de ocorrência daqueles factos, representa a cobertura-garantia.

A delimitação daquele universo de factos – que compõem a cobertura-objecto – é feita, em regra, segundo a técnica da definição primária da chamada cobertura de base e da subsequente descrição de sucessivos níveis de exclusões. No caso por exemplo, dos seguros de responsabilidade civil, pode delimitar-se o âmbito de cobertura a partir de uma pessoa – v.g., responsabilidade civil geral – de uma coisa – v.g., uma automóvel. Mas essa delimitação pode não se ficar por aí: após a fixação da pessoa ou da coisa que servirá de ponto de referência ao seguro, bem como os interesses que se cobrem, podem seguir-se outros níveis, sucessivamente mais precisos, de delimitação. Assim pode, por exemplo, descrever-se as circunstâncias em que poderá ocorrer o dano, v.g., a actividade profissional desenvolvida pelo segurado.

Estas exclusões não são, em princípio, cláusulas de exclusão da responsabilidade – mas regras que definem o âmbito de cobertura do seguro. Essa delimitação pode ser feira positiva e negativamente, e dentro da delimitação negativa, através de exclusões objectivas – v.g., guerra – ou subjectivas, como por exemplo, o sinistro deliberadamente provocado[8].

O que não é lícito é, através das exclusões, desvirtuar o objecto do contrato, i.e., modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado.

Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador, dado que assumiu a cobertura do risco, deve proceder à liquidação desse sinistro, ou seja, realizar a prestação convencionada em caso de verificação, total ou parcial, do evento compreendido no risco coberto pelo contrato. Tratando-se de seguro de prestação convencionada, o segurador deve prestar o valor previamente fixado no contrato.

O contrato de seguro releva, largamente, da autonomia privada. De harmonia com o Código Comercial, o contrato de seguro regulava-se pelas estipulações, gerais e especiais, da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência pelas disposições do Código Comercial (artº 426); de acordo com a LCS, o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, com os limites indicados na lei (artº 11).

O conteúdo do contrato – da apólice – é muito complexo dado que deve conter toda uma série de elementos, entre os quais, o objecto do seguro, a sua natureza e valor, o risco contra que se faz o seguro, a quantia segurada e o prémio do seguro (artº 426 § 1º do Código Comercial, 10 a 16 do DL nº 176/95, de 26 de Julho e 37 da LCS).

Portanto, é, em regra, o contrato que recorta – em razão da actuação pelas partes da sua autonomia privada – a sua exacta posição jurídica, as precisas prestações a que reciprocamente se vincularam.

A alguns seguros, designadamente os seguros de vida, é assinalada pela doutrina e pela jurisprudência, ao contrato, a natureza de contrato a favor de terceiro[9].

O contrato a favor de terceiro constitui uma situação jurídica complexa, decomponível em três relações: uma relação de cobertura ou de provisão; uma relação de atribuição ou de valuta; uma relação de execução (artº 443 nº 1 do Código Civil)[10]. A relação de cobertura compreende todos os elementos que levam o promitente a obrigar-se face ao terceiro, v.g., seguro; a relação de atribuição estabelece-se entre o promissário e o terceiro, que adquire o direito à prestação, independentemente de qualquer aceitação e mesmo de conhecimento (artº 441 nº 1 do Código Civil); a relação de execução é que liga o promitente ao terceiro, através da qual aquele executa a determinação do promissário.

Por força do contrato, o promissário adquire o direito a exigir do promitente a prestação ao terceiro (artº 444 nº 2 do Código Civil).

Na espécie do recurso, a obrigação de restituição da quantia mutuada e da remuneração acordada foi garantida, não apenas pela hipoteca do imóvel dos mutuários, mas também por seguro de vida desses mesmos mutuários contra o risco de morte e invalidez total e permanente por acidente e de invalidez absoluta e definitiva por doença ou acidente.

Porém, este seguro oferece uma particularidade relevante: trata-se de um seguro de grupo e de um seguro de grupo contributivo: o banco exequente é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio; os mutuários do crédito concedido são o grupo segurável – i.e., as pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum; as pessoas seguradas são aquelas cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora depois da recepção das declarações de adesão ao grupo, quer dizer, do documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro – e que contribuem, no todo ou em parte, para o pagamento do prémio (artºs 1 b, g) e h) do DL nº 176/95, de 26 de Julho)[11].

O banco é o tomador do seguro e, portanto, o beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro, e é para ele que reverte a prestação a que o segurador, por força do contrato, se vincula – excepto se, claro está se o capital seguro exceder o valor que lhe é devido, caso em que o excesso deve reverter para o segurado ou, em caso de morte deste, para os seus herdeiros.

Face a este recorte estrutural, o seguro de grupo contributivo, não se constrói como um contrato a favor de terceiro: os segurados não o são porque aderem ao contrato concluído entre o segurador e o banco; este também não o é dado que é parte no contrato, aberto à adesão de todos os que contraírem junto do banco contratos de mútuo[12].

Decerto que o mutuante é o principal beneficiário do seguro, mas os segurados – ou os herdeiros destes no caso de verificação do risco da morte deste – também o são e, por virtude dessa qualidade, é indubitável que lhes assiste o direito de exigir do segurador a realização da prestação, ainda que a favor do mutuante visto que a satisfação por aquele do valor em dívida os liberará da sua obrigação de proceder ao seu pagamento.

Como quer que seja, o seguro surge, por força da sua associação ao contrato de mútuo, como reforço da hipoteca e, portanto, assume, também ele, a nítida função de garantia e a clara natureza de garantia pessoal atípica.

No caso do recurso, a recorrente acha que está desvinculado da obrigação de restituir ao exequente o capital mutuado em dívida e o acrescido – juros e cláusula penal moratória – por, no seu ver, se ter verificado o sinistro convencionado no contrato de seguro.

Todavia, esta proposição só pode ter-se por juridicamente exacta demonstrando-se que a verificação do sinistro desvincula os mutuários da obrigação de restituição das quantias mutuadas e da remuneração convencionada.

Mas nada permite a conclusão de que, no caso figurado, o mutuante só do segurador pode exigir aquela prestação.

O contrato de seguro teve por finalidade a adstrição de património diverso do dos mutuários à satisfação das obrigações contraídas por estes – e não a substituição do património do segurador ao património dos mutuários. A obrigação do segurador foi colocada ao lado da dos mutuários - não em substituição da obrigação do último.

O segurador garante a obrigação do mutuário, no caso de verificação do sinistro, mas essa obrigação de garantia não se substitui à obrigação assegurada – e qualquer outra garantia prestada - e, por isso, o mutuante pode exigir do mutuário – ou, no caso de morte, dos seus herdeiros, o cumprimento da obrigação de restituição das quantias mutuadas e da remuneração acordada.

O facto de o segurador se mostrar vinculado à obrigação de garantir realização da prestação não desvincula o mutuário da obrigação garantida, nem impede o mutuante de accionar qualquer outra garantia que tenha sido prestada para assegurar a obrigação de restituição do capital mutuado e a remuneração convencionada.

É claro que se o mutuário, apesar da existência do seguro, tiver de satisfazer ao mutuante a obrigação de reembolso garantida, goza de acção de regresso relativamente ao segurador, podendo exigir dele a indemnização que lhe cause a satisfação coactiva da prestação. Esse direito de regresso decorre, precisamente da relação de garantia que emerge do contrato de seguro: desde que o segurador cobre o risco de não satisfação da obrigação de restituição em caso de morte ou de invalidez total e permanente por acidente e a invalidez absoluta e definitiva por doença ou acidente do mutuário, este – ou os seus herdeiros – caso tenham que satisfazer a obrigação garantida podem reclamar do segurador, por via de regresso, aquilo que tiverem satisfeito ao mutuante.

Seja como for, permanece intocada a exactidão desta proposição: a existência da garantia representada pelo seguro não desvincula o mutuário da obrigação de restituição das quantias mutuadas e da retribuição convencionada.

Desta conclusão – que, natural e logicamente, prejudica a discussão acerca da verificação ou não do sinistro durante a vigência do contrato de seguro – decorre, como corolário que não pode ser recusado, a exequibilidade intrínseca da obrigação pecuniária incorporada no título que suporte à execução.

A prestação desta garantia – que, no caso, foi imposta pela exequente aos executados como condição de conclusão do contrato mútuo, imposição que compreendeu igualmente o seu exacto conteúdo e o segurador, nitidamente ligado ao exequente – visou, de um aspecto, assegurar a satisfação ao mutuante do crédito emergente do contrato de mútuo, e de outro, facilitar, em caso de verificação do sinistro, a sua realização, em face da comprovada capacidade financeira do segurador.

Vamos, por isso, que, nestas condições, se deve entender que vontade usual das partes é a de que o credor procure primeiro a sua satisfação através da garantia disponibilizada pelo seguro.

Admita-se, realmente, ao menos ad argumentam, que se o sinistro – i.e. a verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador, consistir, como é o caso, na incapacidade absoluta e definitiva do devedor segurado, com a consequente diminuição, de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, da solvabilidade deste – o mutuante, é obrigado, segundo a vontade presumida das partes, a procurar primeiro a sua satisfação, pela prestação do segurador.

Mesmo à luz deste entendimento do problema – de que com a imposição da celebração do contrato de seguro, do seu conteúdo, v.g. âmbito da cobertura, e da indicação irrevogável do beneficiário, se quererá, em regra, que, verificado o sinistro, o mutuante se pague por esse meio - decerto que a contracção do seguro não extingue quaisquer outras garantias que o devedor – ou terceiro - tenha prestado nem sequer, evidentemente, o crédito garantido.

Dado, porém, o contexto em que o contrato de seguro é concluído e a sua finalidade, vamos que se deve entender a vontade usual das partes será a de que o credor se pague primeiro – verificado, evidentemente, o sinistro – à custa do segurador. Nestas condições, a razão que talvez explique que, no caso figurado e semelhantes, o mutuante não procure satisfação junto do segurador consiste no facto de o segurador pertencer ao mutuante ou, ao menos, ambos se compreenderem no universo do mesmo grupo económico. Mas, neste contexto, uma tal atitude é inteiramente contrastante com o princípio regulador estruturante sobre cujo signo as partes devem actuar na execução da relação contratual: a boa fé (artº 762 nº 2 do Código Civil). Independentemente da exactidão desta última consideração, a verdade é que a exigência de que o mutuante procure, primeiro, a satisfação do seu crédito junto do segurador, não deixa sem tutela aquele credor, dado que ele sempre poderá afastar a excepção, demonstrando que, no caso concreto, não lhe é comprovadamente possível obter aquela satisfação junto do segurador, porque, por exemplo, o contrato de seguro é inválido ou não se verificam as condições convencionadas para que aquele se constitua no dever prestar a que se vinculou pelo contrato, como, v.g., que se não verificou o sinistro ou que o sinistro verificado não se compreende no âmbito da cobertura do seguro ou dela deve considerar-se excluído. De resto, é ele que estará em melhores condições de o fazer, dado que foi ele que impôs a contracção do seguro, modelou o seu conteúdo, escolheu o segurador e é ele o beneficiário primeiro da prestação convencionada no contrato.

O que, de todo, parece contrário à norma comportamental objectiva da boa fé – à luz deste entendimento - é exigir a contracção de um seguro – e o sacrifício económico do pagamento do prémio – com um certo conteúdo e junto de determinado segurador e impor-se como seu beneficiário – e, depois, aceitar como boa qualquer recusa, mesmo que exasperadamente infundada do segurador em honrar o contrato, e demandar o segurado como se um tal contrato não existisse.

A arquitectura do seguro de grupo revela uma estrutura triangular. Por força dela, tanto o tomador do seguro e o beneficiário do seguro como o segurado podem demandar o segurador e exigir dele a prestação convencionada, nada impondo, portanto, que só o segurado possa – ou deva - demandar o segurador. Assim como nada impõe que seja o segurado a convencer o segurador do seu dever de prestar, nada impede que aquele convença o tomador ou o beneficiário do seguro de que o segurador se constituiu no dever de prestar. E é-lhe lícito fazê-lo na contestação à execução que lhe tenha sido movida pelo mutuário, dado que a oposição à execução mais não é que um processo declarativo instaurado pelo executado, contra o exequente, que corre por apenso à execução (artº 817 nº 1, proémio, do CPC de 1961 e 732 nº 1, proémio, do NCPC).

Ponto – à luz deste entendimento das coisas - é que se demonstre que, realmente, no caso, se verificam as condições convencionadas no contrato de seguro para a constituição do segurador no dever de prestar.

Mas não é, por certo, esse o caso do recurso.

Desde logo, tomando-se como exacto – como se declara na sentença impugnada – que o facto evento compreendido no risco coberto pelo contrato de seguro – era constituído pela invalidez total e permanente da recorrente, em consequência de acidente, é evidente que não é esse o caso da apelante, dado que a patologia que a afecta resulta de doença – de falta de saúde, enfermidade ou moléstia – e não de acidente, uma que por este se entende, de harmonia com convenção expressa do contrato de seguro, o acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido à acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais. Realmente, mesmo em geral, por acidente deve entender-se o acontecimento de natureza súbita e imprevisível, exterior à vontade da vítima – ou ao funcionamento da coisa – susceptível de fazer actuar as garantias do contrato de seguro[13].

 Patentemente, a recorrente foi atingida ou vitimizada por uma patologia cancerígena, portanto, por uma doença, por uma alteração involuntária do seu estado de saúde, de etiologia interna e insidiosa - e não por um acidente.

                Não está demonstrada – por nem sequer ter sido objecto de adequada alegação - a data em que o contrato de seguro cessou. Todavia, como essa cessação teve por causa a falta de pagamento do prémio e – como resulta do facto identificado na sentença com o nº 3 – os prémios foram pagos até ao ano de 2009, pode dar-se como assente, por aplicação de uma regra de lógica, que o contrato se extinguiu nesse ano. E ao tempo da extinção do contrato, a recorrente não era portadora do grau de incapacidade exigido pela cobertura-objecto do seguro, relativa às consequências de acidente.

Em qualquer caso, a doença que atingiu o recorrente não lhe provocou a invalidez exigida pela convenção do seguro, dado que esta reclama a sua total incapacidade de exercer qualquer profissão, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprovável e a necessidade do recurso de modo contínuo à assistência de uma terceira pessoa para efectuar actos normais da vida diária, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde com os conhecimentos médicos actuais – facto que a recorrente nem sequer alegou

Neste contexto, a conclusão de que não ocorreu o facto susceptível de desencadear, no tocante à recorrente, a garantia contratual da cobertura do risco, que origina para o segurador o dever fundamental de realizar – ao exequente - a prestação convencionada – é irrecusável.

E não havendo qualquer excepção que tolha a exequibilidade extrínseca do título que serve de suporte à execução ou intrínseca da obrigação nele incorporada a improcedência da oposição – e do recurso – é puramente consequencial.

O recurso não tem, pois, bom fundamento. Importa julgá-lo improcedente.

Síntese recapitulativa:

a) O facto de o segurador se mostrar vinculado à obrigação de garantir, ao mutuante, a realização da prestação, não desvincula o mutuário segurado da obrigação garantida, nem impede o mutuante de accionar qualquer outra garantia que tenha sido prestada para assegurar a obrigação de restituição do capital mutuado e de pagar a remuneração convencionada;

b) Admitindo-se, porém, que nos casos em que o mutuante impõe ao mutuário a contracção de seguro, em que o primeiro figure como beneficiário, se deve entender que vontade usual das partes será a de que o credor se pague primeiro à custa do segurador, deve exigir-se ao segurado a prova de que o segurador está efectivamente vinculado ao dever de prestar ao mutuante.

A recorrente sucumbe no recurso. Deverá, por esse motivo, suportar as respectivas custas (artº 527 nºs 1 e 2 do NCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.

                                                                                                              14.01.21

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa        


[1] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[2] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[3] J. C. Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19, (1965), pág. 317 e ss.
[4] João Redinha, Contrato de Mútuo, Direito das Obrigações, 3º volume, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, 1991, págs. 187 a 190.
[5] No dia 1 de Janeiro de 2009 entrou em vigor o Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, rectificado pelas Declarações de Rectificação nºs 32-A/2008, de 13 de Junho e 39/2008, de 23 de Julho, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro (artºs 1 e 7 daquele diploma legal). O mesmo diploma revogou expressamente, entre outras normas, as constantes dos artºs 425 a 462 do Código Comercial, aprovado por Carta de Lei de 28 de Junho de 1888 e dos artºs 1 a 5 e 8 a 25 do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho (artº 6). Todavia, de acordo com a norma de direito transitório de que se fez acompanhar, o novo regime jurídico do contrato de seguro só se aplica aos sinistros ocorridos depois da sua entrada em vigor (artº 2 nº 2). Nestas condições, dado que, no caso do recurso, o sinistro se verificou antes de 1 Janeiro de 2009, ao contrato de seguro objecto da oposição é aplicável a lei antiga e é essa lei que deve ser considerada. Note-se, em todo o caso, que a lei nova, caso fosse a aplicável, em nada interferiria com a declaração do direito do caso. Cfr., quanto ao problema da aplicação no tempo do novo regime jurídico do contrato de Seguro, Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres, Arnaldo da Costa Oliveira, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado, José Vasques e José Alves de Brito, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Coimbra, 2009, págs. 25 e 26.

[6] Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Coimbra, 2000, págs. 46 e 47.
[7] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 546, José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 120 e Ac. do STJ de 10.05.07, www.dgsi.pt.
[8] Os casos de exclusão da cobertura são factos impeditivos do direito do segurado à indemnização, competindo, por isso, ao segurador, o ónus da sua alegação e da sua prova (artº 342 nº 2 do Código Civil): Ac. do STJ de 13.10.13, www.dgsi.pt.
[9] Diogo Leite de Campos, Contrato a Favor de Terceiro, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 76 a 80, José Vasques, cit., págs. 122 e 123 e Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros, Principia, Cascais, 2006, pág. 68; Acs. da RP de 21.04.82, CJ, II, pág. 48, do STJ de 30.03.89, BMJ nº 385, pág. 563 e de 26.09.90, Acs. Doutrinais do STA, nº 348, pág. 1630, da RL de 18.09.07 e da RC de 13.01.09 www.dgsi.pt.
[10] Cfr., v.g., António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1º vol., AAFDL, 1980, págs. 541 a 543.
[11] Calvão da Silva, Apólice Vida Risco – Crédito Habitação: as pessoas com deficiência ou risco agravado de saúde e o princípio da igualdade na Lei nº 46/2006, RLJ, Ano 136, pág. 160, Paula Ribeiro Alves, Estudos de Direito dos Seguros, Intermediação de Seguros e Seguros de Grupo, Coimbra, 2007, págs. 243 e ss. e Acs. do STJ de 10.05.07 e 22.01.09 e da RC de 13.01.09, www.dgsi.pt. A autora citada define o contrato de seguro de grupo como o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, a que aderem, como pessoas seguras, os membros dum determinado grupo ligado ao tomador. Cfr. ops. cit. pág. 345.
[12] Acs. do STJ de 10.05.07, de 22.01.09, www.dgsi.pt. e de 13.04.94, BMJ nº 436, pág. 339, e Paula Ribeiro Alves Estudos de Direito dos Seguros, Intermediação de Seguros e Seguros de Grupo, Coimbra, 2007, pág. 329. No sentido de que no seguro de grupo se está não perante um único contrato, mas sim face a um pluralidade de contratos – o celebrado entre o tomador e o segurador e o que se estabelece entre o segurador e cada um dos segurados, Maria Inês de Oliveira, Martins, o Seguro de Vida Enquanto tipo Contratual Legal, Coimbra Editora, 2010, pág. 83, e Nuno Trigo dos Reis, “ Os deveres de informação no contrato de seguro de grupo”, www,isp.pt/exeres/CO7A30.CA6F-4C81-975D-46002195D32E.html.
[13] É a noção que, em certa medida, se extrai, v.g., do artº 210 da LCS.